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A desfigura do ano

No telemóvel ainda choviam cordialidades pela passagem do ano. A cabeça pesava-me como se estivesse cheia de babalaza de todos os destilados. Por isso não me levantei logo da cama. Mas não ia demorar ali deitado porque não gosto de estar sozinho, sem vozes de pessoas ou outros ruídos a entreterem-me os ouvidos. Sozinho, há espaço para o silêncio. Fujo do silêncio para, no meio de outros barulhos, poder fingir que não ouço a incontornável voz da minha consciência. 

A minha consciência fala baixo. Com voz serena e vibrante. Como se discursasse sem microfone do meio de um átrio sagrado. E fala pouco, mas assertiva, como um padre experiente, capaz de resumir uma missa inteira em duas ou três palavras.

Ainda de olhos fechados, no lento processo do despertar, já ouvia a respiração intensa da minha consciência. Abri os olhos por instinto, mesmo sabendo que não a veria. Nunca ninguém viu a própria consciência, apesar de ouvirmo-la sempre. 

Olhei para o tecto. O tecto olhava para mim. A cabeça pesava. Pesava muito. Ia voltar a fechar os olhos para aproveitar o resto de sono, por alguns minutos. Mas um ruído interrompeu-me. Era o som seco de uma tosse. Era a minha consciência a tossir, chamando-me atenção. Antes que ela começasse a dizer coisas,  levantei-me da cama.

Eu estava mole, com o cansaço do ano inteiro que recai sobre nós por estas alturas, e com este peso enorme na cabeça. Quando me levantei parecia que os meus miolos se tinham transformado, durante a noite, em chumbo. Sentei-me na borda da cama. Não bocejei. Não espreguicei. Estava sem forças até para a higiene matinal. Sem forças para o café da manhã, para os jornais que me acompanham os cafés. Malditos jornais, pensei. Não os quero ler. Nem um! Nem um pôs a minha foto na capa como figura do ano. Mesmo depois dos lobbies que fiz. Se eu fosse figura do ano num desses jornais, não me escapavam uma dessas nomeações sazonais. Juro. Não me escapavam.

Olhei para o espelho. Eu estava com mau aspecto. O espelho devolvia-me a imagem como se a rejeitasse. Como se não quisesse responsabilidades sobre as iniquidades do mundo. Levei a mão à  testa,  instintivamente, avaliando a temperaruta do corpo. Não estava febril. Mas a cabeça pesava como chumbo e doía.

— Precisas ir ao médico — falei em tom amigo, ao outro eu do outro lado do reflexo. 

— Médico? Mas não estás doente… — intrometeu-se a voz da minha consciência. Percebi que estava ali muito próximo, embora não a visse no espelho.

— Mas pesa-me cabeça, e dói-me muito. Nem é ressaca porque não bebi. Deve ser malária — respondi-lhe a olhar para o meu reflexo, como se olhasse para quem me falava, habituado a diálogos com contacto visual.

— Olha bem para ti .

Olhei para o espelho

— Não para o espelho. Para dentro de ti.

Eu não sabia como é que alguém podia olhar para dentro de si. Mas fiquei calado a olhar para o espelho. 

— Vês? — perguntou-me.

Eu não via nada para além da minha imagem refletida no espelho.

— Se queres ser político…

— Mas eu sou político.

— Não. Ser político é mais do que isso. Olha bem para ti.

Silêncio. No reflexo a minha barriga aparecia gorda de comissões. E estava suja. As minhas mãos também apareciam sujas, muito sujas.

— É o sujo da corrupção — disse a voz.

Apercebi-me que o espelho estava rachado. A rachadura percorria o espelho de tal modo que parecia barra de uma grade. E o meu reflexo estava atrás  das grades. Assustei-me.

— Vês? — a voz falou como se pousasse a mão no meu ombro — esse peso na tua cabeça não é  malária. Não é  babalaza. É peso de consciência.

No canto do espelho, a rachadura terminava em muitas outras, e fragmentava a minha imagem. Eu que tudo fizera para ser a figura deste ano nos jornais e conseguir uma nomeação, estava a sentir-me desfigurado pelo espelho e pela consciência. Estava a sentir-me a Desfigura do Ano.

 

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