“Republic of Ghana” é onde estás, meu irmão. Custa-me pagar o imposto da distância por estas palavras. Sei que a senha da saudade paga-se nas manhãs chuvosas de lágrimas no balcão da memória ou no guiché da cama. Todavia, eu quero paga-la aqui neste meu “Relógio di Oro”.
Quantas vezes sacudimos o sal do cansaço dos nossos passeios e o cheiro do sol ali na Avenida Kwame Nkrumah? E quantos abraçamos dobramos em nossos corpos esperando as nossas namoradas naquela avenida? Tudo isso, afinal, era um projecto do instante. Hoje estás na terra de Kwame Nkrumah. E aquela avenida está sem nós. Existirá, ali, uma cratera que engole a massa pesada da amizade? Por que saímos de Chamanculo só para nos abraçar ali?
Cá estou pensando em ti, meu irmão. É como se tivesses fugido do bairro por culpa de algum medo qualquer. Recordas das nossas fugas sempre que a porrada das nossas mães estivesse por perto? E quem conhece o nosso pequeno esconderijo que inventávamos e passávamos as tardes e noites para despistar o velho que fazia circuncisão?
Quero pensar em ti, mas sempre me derrubo em nós. Ainda lembras dos nossos cigarros de jornais que nos enchiam os pulmões de tosse, os olhos de um vermelhão rígido e tonturas imaginárias que não tínhamos? Tossíamos e o vermelho nublava o céu dos nossos olhos. A cada tosse as nossas fisgas em riste, nos pescoços, baloiçavam e voltavam a fixar o seu formato “Y” na divisão dos nossos peitos esticados por ossos.
Será que aí há espaço para lavares na memória as nossas camisas antigas rotas; estampadas de ranho seco escorregadiço e brilhante e com nódoas de jambolão bem desenhadas pela tinta da nossa saliva que não cabia em nossas bocas? E as mangas? As mangas que temperávamos com grãos grossos de sal para terem sentido na língua. E trincávamos a mesma manga, com o mesmo sal, obedecendo a medida marcada pela unha suja na pele verde da manga. Era como se as unhas fossem a finta métrica das nossas bocas.
Deves te recordares que gostávamos de girar pneus sujos em todo bairro; e de quando em quando servíamos de jantes dos pneus. Dobrávamo-nos para entrar no pneu e alegrarmo-nos por ver cada um de nós girando, a cabeça e os pés imitando as voltas infinitas dos raios. O corpo o único diâmetro. E por vezes a força esgotava e o pneu em forma de espiral caía; as jantes que éramos saíam do pneu. A pele que se arrastava no chão seco e sangrava era cicatrizada por um penso improvisado de areia.
Éramos uma dupla e escrevo-te porque ainda sei que somos. E como éramos cortados o cabelo? A minha mãe, também tua mãe, alinhava uma lâmina, “Made in China”, num pente amarelo e deslizava-a em nossas cabeças. Aquela lâmina em nossas cabeças parecia uma charrua desfazendo os nossos cabelos enrolados. E quando parava, um molho de cabelos caía-nos sobre o corpo enrolado por uma capulana com desenhos do alfabeto. Era o nosso salão aquele. A lâmina passava para arrancar os cabelos e o pente seguia para descolar a caspa de areia que crescia. As pernas da velha prediam-nos os movimentos e o corte saía. Ficávamos dias com restos de cabelos nas orelhas.
Não sei se Gana dá-te espaço para te lembrares de tudo isso. Não sei se ainda há luz suficiente na tua memória para clarear as cavernas que nos acolhiam em jogos das escondidas. Nós não nos escondíamos, mas sim desaparecíamos. E o jogo termina antes da nossa descoberta. Sim. O jogo terminava e não arrebentava porque nunca éramos descobertos.
Aí é terra de Michael Essien. Aquele fantástico futebolista que um dia queríamos se-lo. Escrevo-te, isto, porque quero fintar uma lágrima de saudade que avança no meio campo dos meus olhos. Sem chuteiras, apenas de peúgas, fazíamos rolar uma bola feita pela mestria das tuas mãos. Sempre que chegasse a hora do jogo cada um de nós, em grupo, contribuía o material que se transformava em uma bola: meias, camisas sujas, linhas de sacos de carvão, esponjas e plásticos. Tu, na baliza, eras como um macaco que espera bananas dum galho duma criança.
E hoje estás aí. Pagando as contas das cervejas que tomas com uma moeda estranha que não te cabe no bolso (CEDI?). E sei que ainda tens o cheiro do metical nas linhas das tuas mãos. E sentes o cheiro das acácias gastas de urina da nossa cidade, a raiva dos txopelas derretendo entre longas filas de autocarros na nossa paragem (Romos) e as moedas molhadas de suor que juntávamos para pequenos passeios sem destino no bairro. E eu termino este texto porque oiço dentro de mim teu assobio chamando-me…