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Línguas e identidades

Um ensaio sobre as representações identitárias de Hugh Masekela1
A decade or two from now, African society will be the first in human history to have abandoned its native tongues in preference to those manipulated by colonial rule if we do not soon reinstitute our own languages back into our homes, schools and social interaction with each other”.
                                   Hugh Masekela
Introdução

As ideologias da negritude e da renascença africana que se construíram sob a memória da escravidão, do colonialismo e do apartheid, resultaram  na construção de um discurso nativista de uma África singular que imprimiu nos africanos uma representação de si mesmos como um povo uno, coeso e com tradições muito particulares. Embora se tenham enfraquecido com o surgimento e a consolidação de Estados nacionais, essas ideologias, como faz notar Mbembe (2001), parecem estar a ressurgir sob o impacto da globalização, recombinando-se, ganhando novos ímpetos e reinvocando a tradição e a ideia de uma africanidade essencial.

Se algumas categorias identitárias, como raça e ancestralidade comum, que outrora foram altamente produtivas, já não são eficazes para a fixação da pretendida africanidade, outras categorias ganham expressão e têm sido evocadas e utilizadas. As línguas, concebidas como depositárias do que é tipicamente africano, aparecem como recursos simbólicos privilegiados de identificação. É interessante notar que, associado à ideia de que existe a necessidade de maior valorização e preservação das línguas africanas, alegadamente em desaparecimento por força do “imperialismo” das línguas ocidentais, coloca-se o argumento de que se deve fazê-lo para preservar as identidades africanas sob a ameaça de erosão. Dois aspectos se confundem nesses discursos, nomeadamente a necessidade e a razão da valorização das línguas, e a necessidade de preservar identidades, vistas neste sentido como fixas, imutáveis e das quais a língua é apenas simples depositária e reflexo.  

Se a legitimidade do primeiro aspecto é reconhecível e defensável, a do segundo é bastante problemática e passível de discussão. Neste ensaio, baseando-me em Hall (1992) e Bucholtz e Hall (2002), reflicto em torno do projecto de resgate e preservação da identidade africana proposto pelo célebre músico e activista político africano Hugh Masekela. Interessa-me  discutir a razoabilidade e as possibilidades de tal projecto no tempo em que vivemos, caracterizado por mudanças, fracturas e deslocamentos (HALL, 1992), em que a fixidez cede à fluidez (BAUMAN, 2007). Defendo a tese de que a valorização e a preservação das línguas africanas deve justificar-se na medida em que elas constituem parte do riquíssimo repertório semiótico da humanidade e não quanto simples repositórios de identidades tradicionais que se supõem autênticas, imutáveis e a-históricas.
O texto de Stuart Hall “A identidade cultural na pós-modernidade”, cuja ideia central é a de que as identidades, que uma vez foram centradas, coerentes e inteiras, estão agora a ser deslocadas, fragmentadas, permite-me localizar e pensar as razões do ressurgimento de reivindicações identitárias na pós-modernidade e na efervescência da globalização. O texto de Bucholtz e Hall “Language and Identity, que aborda sobre as tácticas de intersubjectividade, isto é, os mecanismos de construção de identidades com recurso a variados recursos simbólicos, ajuda-me a compreender como é que língua é utilizada como recurso de identificação.

Hugh Masekela e o resgate da identidade africana
Hugh Rampolo Masekela, aclamado compositor, trompetista, cantor e activista político sul-africano, engajou-se nos últimos tempos em projectos de sensibilização pelo que chamava “o resgate da identidade primária” dos africanos, que, para si, “reside nas línguas africanas” que estão a desaparecer. Masekela entendia que os africanos, principalmente os jovens residentes nos centros urbanos, estão progressivamente a deixar de usar as suas línguas nativas a favor das “línguas coloniais”, de origem ocidental, e, assim, as culturas africanas vão igualmente desaparecendo.

Bra Hugh, como era carinhosamente tratado, é um veterano da música africana, que iniciou a sua carreira nos anos 60 do século passado e tornou-se famoso por escrever e interpretar as canções “Soweto Blues” e “Bring him back home”, dois hinos africanos contra o apartheid na África do Sul, aquela denunciando a atrocidade do regime no bairro de lata de Soweto reservado aos negros e a última um grito, qual exigência, para a soltura de Nelson Mandela, o emblemático presidiário 46664 da Roben Island. O artista tornou-se numa das figuras africanas mais influentes também pelo seu activismo social, através da Hugh Masekela Heritage Foundation, que se dedica a iniciativas de luta contra a fome e a preservação da memória africana.

A alegação do artista era de que as “as nossas línguas não são faladas pelos jovens”, muito influenciados pela cultura ocidental, resultando disso a perda da identidade e da cultura tipicamente africana.

“Africans, we are the only society in the world that imitate other cultures at the expense of our own. If we don’t stop, we are going to disappear; we are going to be extinct. In fact there are children and adults today that are unable to construct a mere sentence in their mother tongue. It is very important to revive the knowledge of all those things,”2
Contra esse movimento, sugeria o “resgate da cultura africana”, que deve ser objecto de ensino nas escolas, tema de performances artísticas e promoção mediática.
“Our history and heritage is the richest in the world and humanity and civilization started with us, so it’s so embarrassing for me to find us where we are today. So I am now obsessed with imparting it, it’s my duty. What I’m trying to do is restore pride in the heritage, in the ethnic identity, in the language.”3

Esse movimento fez eco na imprensa e tem merecido a atenção de diversos activistas culturais africanos que, reconhecendo legitimidade no projecto, se mobilizam de variadas formas em prol da valorização e preservação, entre outros aspectos, das línguas africanas.

A questão das identidades na pós-modernidade
A questão das identidades na pós-modernidade foi muito bem tratada por Stuart Hall no seu livro “A identidade cultural na pós-modernidade”. Para este teórico cultural e sociólogo jamaicano, as identidades modernas estão a entrar em colapso como consequência de um conjunto de mudanças de ordem estrutural que estão a transformar as sociedades. Para Hall, as tradições do pensamento marxista, a descoberta do inconsciente por Freud, o trabalho da linguística estrutural de Saussure, Foucault e a genealogia do sujeito moderno e o impacto do feminismo, afectaram as concepções de sujeito e de identidade. Com efeito, concepções essencialistas ou fixas de identidade foram ficando para trás, dando lugar a identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, formadas e transformadas continuamente.
“O sujeito assume identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. Dentro de nós, há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direcções, de tal modo que as nossas identificações estão continuamente deslocadas.” (HALL, 1992, p. 13).

Esta forma de pensar sublinha o carácter histórico da identidade, ou seja, que ela não “está impressa nos nossos genes” e “não são coisas com as quais nascemos”, mas são formadas e transformadas no interior das representações. Hall (1992) mostra que, na actualidade, à medida em que as culturas – sistemas de representação identitária – se tornam mais expostas a influências externas, sob o impacto da globalização, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural. O mundo encolheu. As fronteiras diluíram-se. Os contactos intensificaram-se. Estamos interligados uns aos outros, através dos sistemas de comunicação, as viagens tornaram-se mais fáceis e rápidas, partilhamos imagens, etc. Vivemos na já anunciada aldeia global de McLuhan. O efeito de tudo isto, para o autor, é a desvinculação das identidades de tempos, lugares, histórias e tradições específicos.

Está colocação de Hall é particularmente interessante para o caso que abordamos aqui. É que a África, sobretudo o espaço urbano das grandes cidades como, por exemplo, Johannesburg, Abuja, Maputo, não está à margem destes processos, desconectada do resto do mundo. Hoje, o jovem de Johannesburg ou de Maputo e o de Nova York, em continentes diferentes e separados por um imenso oceano, estão mais conectados e partilham gostos musicais, estilos de vida, ideias e referências mais do que faz o mesmo jovem sul-africano ou moçambicano com o seu compatriota da província do Limpopo ou de Niassa, no mesmo continente ou país.

Portanto, a ideia de que a “identidade africana” deve ser preservada de ameaças de erosão parece-nos ignorar essa nova ordem e continua a fundar-se numa perspectiva essencialista e estática de identidade. Baseia-se na ideia de que as pessoas que constituem um grupo identitário são fundamentalmente similares umas às outras e fundamentalmente diferentes de membros de outros grupos e o que as constitui é inevitável, natural e fixo (Bucholtz e Hall, 2004). Supõe que a identidade pré-existe aos indivíduos, os quais apenas têm de se conformar a ela, não a trair e cuidar que não seja corrompida, conforme sugere um discurso como este:
“I’ve got to where am in life not because of something I brought to the world but through something I found – the wealth of African culture4”.

É difícil reconhecer a legitimidade de discursos semelhantes e a sua produção só se pode entender como algumas das reacções contraditórias ao impacto da globalização, como aquilo que Hall (1992, p.77) designa “o grito dos angustiados daqueles que estão convencidos/as de que a globaização ameaça solapar as identidades”. E não faltam gritos como estes nos discursos de Hugh Masekela:
“They [parents] will say: Once upon a time we were Africans.”5

“In 20 years from now, when people ask my grandchildren who they are, they’ll say: it is rumoured that we used to be Africans – long ago”6.

Entender as identidades como representações flexíveis, contextuais, como dispositivos discursivos (HALL, 1992, p. 62),  ao contrário de categorias fixas e imutáveis, é cada vez mais importante na actualidade,  em que, cada vez mais, se assiste à ampliação e intensificação da exposição e influências de culturas. Pensamos que quaisquer iniciativas ou lutas contra as tendências homogeneizadoras da globalização e contra as desigualdades geradas por essa nova ordem só podem ter capital mobilizador se tomarem em consideração que as identidades, como dizem Bucholtz e Hall (2004, p. 376), não são atributos individuais, mas situacionais, são produtos de acções sociais situadas, e, como tal, mudam, recombinam-se para corresponder a novas circunstâncias. Portanto, os indivíduos não são simples espectadores da acção da cultura sobre eles, mas agentes que reconfiguram estrategicamente as suas representações.

Língua como categoria identitária
Bucholtz e Hall (2004, p. 369), referem que, entre muitos recursos simbólicos disponíveis para a produção cultural da identidade, a língua é o mais flexível e penetrante.

Língua e identidade associam-se de forma muito estreita. Como diz Kramsch (1998, p. 3), a língua, por um lado, expressa uma realidade cultural, na medida em que as palavras que usamos referem-se a uma experiência comum; expressam factos, ideias ou eventos que são comunicáveis porque reportam a um estoque de conhecimentos sobre o mundo partilhado. Por outro lado, através da língua, membros de uma comunidade ou grupo social criam experiências e lhes atribuem significados.

No entanto, a compreensão das identidades como sendo social e historicamente situadas e, portanto, flexíveis, mutáveis, permite compreender que a língua não constitui uma “prisão” para o processo de identificação dos indivíduos. Língua e identidade são mutuamente constitutivas (Norton e Toohey, 2011) e os indivíduos têm o poder de agência. Eles podem engajar-se estrategicamente com uma ou outra língua que projecte a identidade que lhes é circunstancialmente conveniente. Isto vai contra a tendência de se pensar que entre a língua e a identidade se estabelece uma conexão natural e o indivíduo necessariamente pertence a um grupo porque usa a língua desse grupo.

A língua, como diz Kramsch (1998), é uma arena onde alianças e fidelidades políticas e culturais são disputadas. Os indivíduos podem, desejando uma determinada identificação, engajar-se com uma determinada língua e não com outras. Esses desejos não são dissociáveis da forma como a sociedade está estruturada e dos valores atribuídos a uma ou outra identidade e à língua associada. Como sublinham Norton e Toohey (2011, p. 3), questões identitárias estão imbricadas com relações de poder na sociedade.

Pensamos que, quando se pensa sobre questões de língua e identidade no contexto dos países africanos, multiculturais, multiétnicos e multilíngues, não se pode ignorar a questão das relações de poder envolvidas nos processos de construção identitária dos indivíduos. Esta questão é muito mais relevante quando se tem em conta que, nessas sociedades, as línguas oficiais, por conseguinte de maior prestígio, são as ditas ocidentais, sem vinculação com as tradições. É nestas línguas que os indivíduos são escolarizados; são estas línguas que permitem maior mobilidade social e estão vinculadas à nova ordem global. Com efeito, é compreensível que, tendencialmente, os indivíduos se engajem com a aprendizagem dessas línguas vistas comos recursos simbólicos que conferem capital social distinto e projectam as identidades desejadas. Portanto, a relação entre língua e identidade não é natural, mas construída, social e historicamente justificada.

A legítima causa de Masekela ou “essencialismo estratégico”?!
Os fortes e cada vez mais intensos e frequentes contactos provocados pela globalização e dos quais decorrem os deslocamentos e fragmentações referidos em Hall (1992) têm efeitos à escala global. O desenvolvimento das comunicações promovido pelas novas tecnologias, a facilidade de transportes e viagens, bem como a acessibilidade  de cadeias de televisão internacionais têm possibilitado uma maior circulação de pessoas, ideias, e expostos culturas umas às outras. A África não é uma excepção e é compreensível que surjam reacções aos efeitos desses contactos e das mudanças que originam. O apelo às identidades “tradicionais” surge, como referem Bucholtz e Hall (2004, p. 371), geralmente sob condições de contactos e de desestruturação, em que membros de grupos sentem que a sua representação de identidade cultural está ameaçada. Com efeito, tendem a rectificar distinções e a atribuir uma importância particular à manutenção ou reabilitação de algumas categorias, como as suas línguas (KRAMSCH, 1998).

“What I’m trying to do is restore pride in their heritage, in their ethnic identity, in their language and in their artists”7.
Pensamos que o projecto de Hugh Masekela constitui uma dessas reacções aos efeitos da nova situação global.

Essas reacções são contraditórias em si, uma vez que, ao mesmo tempo que se celebra e reivindica a integração nessa nova ordem, cria-se, contra os seus efeitos, resistências e “proteccionismos” variados. O que fazemos notar neste texto é a incoerência de discursos que procuram essencializar as identidades africanas, num tempo em que, por força sobretudo da globalização, os indivíduos estão expostos a variadas referências.

“Today, that’s all disappeared. People in the townships – particularly the youth – have completely lost that element. And with it, they’ve lost a huge part of both who they were and who they are. Kids have no idea of their history, of what their mothers and fathers and neighbours went through, or the role music played in binding communities together and helping people survive the years of oppression. They’re listening to other music, by other artists in genres that aren’t part of township culture, and sung in English.”8

O sentimento de perda experimentado por Masekela é efeito dessa nova situação global que expõe pessoas e culturas umas às outras. Mas é, também, reflexo de que as diferentes culturas não estão dispostas simetricamente nesta nova ordem. Há relações de poder em jogo. O espaço urbano referido pelo artista é uma grande arena onde essas relações de força se exercem, onde, como diz Kramsch (1998), alianças e fielidades políticas e culturais são disputados. As línguas e outros símbolos e categorias identificação cultural participam desse jogo, e os indivíduos, com a sua capacidade de agência, agem estrategicamente engajando-se com aqueles recursos e símbolos que lhes possibilitam as identidades a que aspiram. O discurso de restauração e preservação de línguas e identidades é redutor se pretender que os indivíduos se engajem com determinadas línguas e outros recursos simbólicos por alegada conexão natural com as suas identidades, estas mesmas concebidas como fixas, coesas, unitárias e estáveis. No caso das línguas, mais do que encerrar ou reflectir identidades, elas participam da sua construção, num processo contínuo e historicamente situado. Uma leitura correcta do momento histórico parece-nos mais produtiva que quaisquer essencialismos, mesmo que momentaneamente sejam apelativos.

 

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