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O sonho da liberdade “em Marcha” com Iveth

As liberdades exercem-se conquistando-as e conquistam-se exercendo-as, pacificamente ou em força…

Falamos de futuro, e de tudo que dela provém. Chega-me a imagem de um futuro sombrio, difícil, cheio de penumbras. As incertezas só tendem a aumentar a cada raiar do velho sol, que já presenciou tanto dos humanos. De várias posições e disposições em contrário com o renomado escritor Mia Couto, nada nem ninguém lhe pode tirar a razão no que disse à agência Lusa quando afirmou que o próximo governante irá governar ruínas, físicas como humanas. Com a crescente onda de violência, já começamos a ver marcas de futuras ruínas…

Escrevi que tudo nesse país tendia ao caos, em análise da obra “a pomba não pousou”, de P’fuka. Talvez, tudo não passava de um pequeno prenúncio de tempos em que o caos reina. No meio de fumo, de lágrimas, de dores, de opiniões e tudo que caracteriza Moçambique actualmente, a rapper Iveth Mafundza lançou, no último 23 de Outubro, a obra musical intitulada “em marcha”, como um guia para um futuro, em que pela situação actual, parece utópico, feito de liberdades.

“Em marcha seguiremos/ Em marcha alcançaremos liberdade/ Em marcha venceremos / Em marcha alcançaremos liberdade” (Coro, por Zezé Christ)

Iveth não foi diferente daquilo que já nos habituou, directa e pontual, mas, dessa vez, colocou em música os discursos que cada dia que passa se levantam de diferentes lugares sociais, ora são médicos em marcha, rogando que se pare com a matança do povo, ora são advogados pedindo justiça, ora são artistas que se juntam.

Iveth recoloca-se como mais uma voz que se levanta contra tudo que acontece, principalmente a ameaça da liberdade. Tudo move-se, talvez estejamos todos em marcha. Como nos lembrou Severino Ngoenha, conquistadas as independências, segue-se o caminho às liberdades, numa perspectiva filosófica. De todas as formas de liberdades, Severino Ngoenha imagina as liberdades ‘historicizadas’. Na dificuldade de explicar esse posicionamento, limito-me a relacionar a mesma com o verso de Iveth, em que [os novos governantes africanos] “Promovem boladas e magnitude; e aniquilam o então sonho da negritude”.

Iveth diz que o que outrora foi o sonho que conduziu as nações africanas com seus intelectuais, e sua ideologia de soberania e identidade própria (negritude), acompanhado de ideais de igualdade, liberdade e justiça, foi aniquilado. E isso, para Ngoenha, é um erro: “[…] é também errado não avaliar suficientemente ou destruir os vestígios do passado” (Ngoenha, 1993).

O país está em marcha, isso só não vê quem não quer ver. Mas, não sei se dou razão a Mia Couto ou a Iveth, a indecisão acompanha-me e não sei por onde passa o futuro cada vez mais arredio: Vitória ou ruínas? O que se sabe, até então, é que o país continua em marcha. Pegando os nossos vestígios do passado, não sabemos se é esse surge et ambula que o nosso Noronha tanto cantou para a África.

Iveth principia o segundo verso da seguinte forma: “Sonho de Nkrumah e os demais, que ficou nos anais, da história que olvidais”

O sonho de Nkrumah passava por unidade africana, cidadania comum (socialismo?), e uma África onde nenhum africano seria estrangeiro em qualquer parte de África. O que se fez com esse sonho de Nkrumah? Ficou apenas nos anais e enterrado, como a própria Iveth afirma, aniquilado. Parece que, aos olhos de Ngoenha, ainda cometemos os mesmos erros, como continente, e, em particular, como moçambicanos, quando enterramos o sonho de Samora Machel e, com ele, foi-se o sonho de uma república popular, sem desigualdade social.

Também escrevi que Moçambique tornou-se um novo campo de opiniões e cruzamento de pensamentos, reflectindo a dita democracia. Só havia me esquecido de afirmar que é um campo de forças, sangrento, e violento. Por exemplo, “se levantas, dizes o que não se diz, perdes emprego, família por dizer o que não se diz” (Iveth, Em marcha, 2024 mp3). E mais ainda, o emprego te perde, e a família acaba enterrando-te. É em nome de que todo mundo tem o direito de falar, de cantar, de pintar, de ilustrar, até de fazer o que agora faço, que é escrever, que me cresce o desespero de um país intolerante e aparências autoritárias, que abomino a morte de Elvino e Paulo. Acho que não deixaria passar, seria um auto engano se o fizesse, porque, mais do que para políticos, essa é uma ameaça ao artista, que cria e fala, sem se preocupar com a mentira ou verdade.

“Será que existe liberdade, se não tens liberdade de escolher em liberdade o que liberta? Quando optas por liberdade, libertam brutalidade, tamanha barbaridade fica alerta” (ibidem). É dessa forma que a rapper questiona um país que se diz estar blindado de liberdades fundamentais. E uma dessas liberdades que se tem hoje discutido é a dita liberdade de expressão, também não fica atrás a liberdade de reunião e manifestação, como também ressurge, aos poucos, o abuso da liberdade de circulação livre e incondicional do Moçambicano.

Parece que olhamos todos, calados, esse direito a ser arrancado nas nossas mãos quando nos é exigido uma guia de passagem. Na verdade sempre existiu, entre becos e outros lugares, as pessoas sempre foram interceptadas e questionadas o seu destino, a diferença é que hoje é feita ao céu aberto.

Em análise do discurso na linha francesa (AD), comunga-se da ideia de que uma formação discursiva é perpassada por outras formações discursivas, dentro de uma formação ideológica, acrescenta Pêcheux. Tomando essa canção como um corpo discursivo, ouvimos vários discursos que o perpassam, como o discurso de Nkrumah com a unidade africana, o discurso futurista (futurologia de Ngoenha, talvez) quando diz “para que os filhos dos meus filhos, e os filhos que tiverem os filhos dos meus filhos”.

Usando a ideia de filhos como referência do futuro, porque, naturalmente, um filho é sempre a próxima geração, então o filho do filho dela é um futuro ainda mais longínquo. Esse discurso futurista está dentro da ideologia de Azagaia. Não cá intenções de explicar o facto de eu considerar Azagaia como se fosse já uma ideologia.

Contudo, ao ver a notícia do lançamento dessa música, pensei, antes de tudo, em Azagaia. Talvez porque ele também tem uma canção intitulada marcha. Mas, também, deve-se ao facto de ele ser um guia de marcha em direção ao futuro, as suas músicas serem hinos de moralização dos que protestam. Mas, de um coisa eu tinha a certeza, ao longo da música ouvia um pouco de Azagaia, provando que todo discurso é perpassado por vários outros discursos. Em termos mais práticos, diria que o discurso de Iveth é perpassado pelo discurso de Azagaia, Nkrumah, por exemplo. Só no fim é que Iveth invoca Babalaze e Cubaliwa, quando dá o testemunho ao futuro (os filhos dos meus filhos) das batalhas travadas e que “[…] nós tombamos, levantámos, lá chegamos, nós marchamos” (Iveth, 2024).

Babalaze e Cubaliwa são álbuns discográficos do falecido Azagaia, e, lembra-se, que a causa da sua morte é epilepsia. Mais incrível ainda é que Iveth menciona a epilepsia como estudada na necropsia. Estando essa menção directamente com o verso “quando se diz o que não se diz”, levanta uma possibilidade de que a explicação da morte do Azagaia é fabricada, mas, na realidade, caiu mesmo por conta da sua verticalidade no pronunciar da morte.

Com essa música, Iveth manda uma mensagem para os que a ouvem de que as liberdades, se não existem, são condicionadas. E fica cada vez mais claro que uma liberdade condicionada não está pronta o suficiente para ser considerada liberdade.

Até então, Iveth dá imagens de um presente onde as pessoas, da liberdade, só tem apenas o sonho. E só sonho alimenta a estrada, como escreveu Mia Couto, “pois mais vale estar atrás das grades [com o sonho de liberdade], do que ser livre e se sentir atrás das grades” (Flash Enccy). Com sonhos ou outras coisas que não sei o que são, apenas sabe-se o que acontece actualmente, o país está em [grande] marcha.

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