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Pão nosso de cada noite

Nasceu a 15 de Fevereiro de 1924, na vetusta Lourenço Marques – passam hoje 94 anos -, morreu a 11 de Junho de 2009, aos 85 anos. Era conhecido, sobretudo, como fotógrafo – repórter fotográfico ou fotojornalista -, dos mais talentosos que Moçambique viu nascer. Chamava-se Ricardo Achiles Rangel. Tinha origem afro-asiática, filho de enfermeiros, o que lhe permitiu deambular por muitas províncias do país. Viveu também com a sua avó negra durante grande parte da sua juventude. Desde muito cedo que tinha a paixão pela imagem, o que fez dele, mais tarde, um grande fotojornalista, com um olhar sublime, não só para a bitola do país, mas ao nível do continente africano. As suas fotografias, os instantes que capturou são surpreendentes e reveladores. Ele ajudou a fazer o primeiro rascunho da História numa determinada época, história de grande parte do último quartel do século XX moçambicano. A despeito, cultivava outras paixões e hoje, ao recordá-lo, quero referi-lo como amante vigoroso de jazz. Assinalo, porém, que fui editor de dois dos seus livros: Pão nosso de cada noite, título dado pelo José Craveirinha, que lancei na Marimbique, em 2004, e, em 2014, justamente dez anos depois, iria publicar Ricardo Rangel: Insubmisso e Generoso, edição coordenada pelo ínclito Luís Bernardo Honwana, numa iniciativa da Henny Matos, da Kulungwana. A despeito do título, pilhado do seu livro, quero falar do jazzista. Aliás, seria despiciendo argumentar que na Rua Araújo também se ouvia jazz, blues, marrabenta, entre outras expressões musicais. Há belíssimos poemas, desde o Reinaldo Ferreira ao José Craveirinha, sobre as bêbadas, lascivas e estereofónicas noites daquela rua onde esplendiam os seus lupanares e as personagens que a fizeram.  

Foi através de um marinheiro – dos muitos que expendiam os seus dias em Lourenço Marques -, oriundo de frotas que protegiam os comboios navais da rota da Cidade do Cabo, que Ricardo Rangel se ria defrontar com uma das suas paixões electivas – o jazz. A sua “afición” pelo jazz é lendária. Foi um jazzista exemplar sem tocar um único instrumento. Foi também um coleccionador impenitente de LP de jazz. Impenitente e intransigente, digo. Talvez seja o moçambicano que mais discos de jazz de 78 rotações deteve. Conhecia – até pessoalmente – alguns dos maiores jazzistas da sua época – de todas as épocas. Posso dizê-lo – e isso não significa nenhum afoito – que Ricardo Rangel é um dos responsáveis pela introdução e disseminação do jazz em Moçambique. Aqui está outra dívida que o país tem para com ele.

Ricardo era um rebelde, um iconoclasta, não abdicava de intervir, rebelava-se contra a injustiça, denunciava-a, um homem probo (lá está um vocábulo raro no dicionário da nossa contemporaneidade!), um repórter genial, absolutamente genial. Cartier-Bresson, que fundou em 1947 a famosa agência Magnum, com Robert Capa e outros, falava no “instante decisivo”, como um dos fautores da História. As imagens do Ricardo são-no cabalmente. Tem fotografias que estão nos anais da História. Instantes brutais. Fotografias corajosas. Ter convivido com ele, a despeito do seu génio difícil, foi um dos privilégios da minha vida. Ouvir as histórias que estavam na origem daquelas imagens inolvidáveis. Por vezes, era colérico. Irascível. Abominava o que era mediano. Vi-o muitas vezes vituperar a mediocridade que grassava – e grassa ainda hoje! – na nossa pátria, desde o paupérrimo jornalismo que se praticava, ou se pratica, à ausência dele – dizia-me o Ricardo que o jornal “Notícias” se tinha transformado num jornal de anúncios classificados. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas – o lamentável estado das coisas, digo eu. Muitas vezes, fui testemunha de conversas entre ele e o José Craveirinha, ali na Mafalala, na casa do Poeta – tantas vezes na companhia do inesquecível amigo Dr. Óscar Monteiro (o médico) -, algumas das quais, absolutamente hilariantes – então sobre os malefícios da idade nos homens, nem vos falo! Era um grande conversador. Um homem enfático. Um homem que sublinhava as coisas. Um homem vigoroso. Obstinado. Sempre insatisfeito com o que fazia, procurava superar-se. Sabia ser afectuoso. E era-o.

Recordo que o Ricardo Rangel tinha um grande prazer na vida, em viver a vida. Recordo-me do seu riso, da sua expressão, dos seus olhos orientais enquanto ria. Dos zigomas marcados no rosto. Tinha alegria e vivia com alegria e isso não contradita em nada com o homem, por vezes ríspido, que nos confrontava profissionalmente. Era doce no convívio. Não esqueço uma festa em casa dele, uma festa de anos, com bom jazz, vinho e a vista sobre o Índico, somado a isso as suas magníficas histórias. Era um belíssimo contador de histórias. Um repórter conta histórias e ele foi-o toda a vida. Deve ter-lhe custado horrores a última fase, quando teve amputada uma perna. Mas não ficou em casa. Continuava a dirigir o Centro de Fotografia que fundara, tendo a mulher, Beatrice, como braço direito. Aliás, quando o Mestre morreu, foi ela quem o substituiu na direcção daquele Centro – agora também afastada pela doença. Eu fui frequentador do Centro. Ali admirava o país, as suas metamorfoses, as suas idiossincrasias. Ali organizei alguns livros de fotografia. O Ricardo um dia ofereceu-me uma fotografia, da série que eu viria a editar, de uma mulher, cujo olhar melancólico atinge-me, com contundência, ainda hoje. Uma mulher de uma beleza incrível, de vestido e gabardina, com a mão esquerda na cintura, na Rua Araújo – hoje Bagamoio, rua que frequento amiúde, em horário diurno (sublinhe-se) pois nela se situa uma das melhores tascas da baixa, onde um orgulhoso ferroviário, como eu, pica o ponto ao almoço. Aquela imagem daquela mulher ainda hoje me dilacera e, quando percorro aquela rua melancólica, recordo-me daquele seu olhar tímido e penetrante, no entanto perturbador. Naquele olhar ressoava um velho blues. Naquele olhar ficou inscrito um gesto de amizade do Ricardo. Guardo a fotografia e a dedicatória.

Alguma da nossa “tradição” (à falta de melhor termo) jazzística devêmo-la a ele – disse-o e repito-o. Foi um activista do jazz, divulgou-o, organizou sessões de jazz ao vivo, comentou o estilo musical na rádio, num programa remoto com o John Marley, foi um comprador compulsivo de discos de jazz, viajou ao encontro dos seus mitos, esteve com Dizzy Gillespie, Miles Davis, Theleonious Monk, Ornette Colleman, entre outras legendas do jazz. Fotografou-os. Os lugares de culto de jazz nesta cidade guardam a sua presença: o Topázio, o Zambi, o Sanzala, o restaurante da Costa do Sol ou a Princesa, ou até mesmo o Espaço Arco Íris do pintor Noel Langa, na mítica Munhuana da minha infância, ou no Chez Rangel, na velha e hierática estação dos Caminhos de Ferro, na baixa, onde labuto. A sua presença, em todos os lugares, era inspiradora. Incondicional do Bebop, conhecia os mais diversos estilos de jazz. Como ninguém.

Memphis Slim (pianista, blues man americano – morreu em 1988), Chris McGregor (compositor e pianista) e Dudu Pukwana (saxofonista), ambos sul-africanos, desapareceram no mesmo ano (1990) ou Dollar Brand (hoje Abdulah Ibrahim, que encontrei aqui há tempos e com ele falei brevemente no aeroporto de Joanesburgo, sob o olhar espantado da minha filha que nos tiraria uma fotografia), quando visitaram Moçambique e aqui tocaram, cumpliciaram com Ricardo Rangel. Dollar Brand, aliás Abdullah Ibrahim, descobriu em casa do Ricardo Rangel um exemplar do seu primeiro disco, que ele próprio não possuía. Não o vi tocar, mas ouvia “Mannenberg” obsessivamente. Era o hino anti-apartheid e isso diz muito à minha geração. Só muitos anos depois, em Joanesburgo e na Cidade do Cabo, eu iria ver tocar o legendário pianista.

Estranhamente, ou por timidez, ou por algum complexo, não sei, no meu longo convívio com ele, falei pouco de jazz com o Ricardo. Dou-me conta hoje de que gostava de ter conversado com o Ricardo Rangel sobre o deus do trompete Miles Davis, ou sobre o pianista Count Basie, o trompetista Dizzy Gillespie, ou sobre o pianista Theleonious Monk e do seu genial “Hacksensack”. Ter-lhe-ia perguntado sobre Herbie Hancock, o que ele achava de “Maiden Voyage” ou “ Cantaloupe Island”. Vi-o tocar. Como vi Ron Carter tocar “So What”, em honra do velho Miles. Ambos foram companheiros de Davis. Como foi do jovem Marcus Miller: oiço-o tocar “Full Nelson”, “Tutu”, “Gorée” e, sobretudo, “Maputo”. Poderia ter perguntado sobre outro genial saxofonista – John Coltrane (sou indefectível de “Naima” ou “Blue Train”). Ou de Bill Evans, outro exímio pianista que tocou com Miles em Kind of Blue. Poderia ter ouvido com ele “Take Five”, de Paul Desmond, tocado pelo quarteto de David Brubeck, ou Dizzy Gillespie e Thelounious tocando “A Night in Tunisia”. Ou mesmo Miles, do “All Blues”, cujo som me espantou em pleno passeio na Greenwich Village, em Nova Iorque, certa vez. A minha memória de Nova Iorque é o trompete de Miles Davis. Que ele achava de Billie Holiday a cantar “You´re my Thrill”, ou Nina Simone em “I loves you Porgy”. Tê-lo-ia ouvido falar de “St. Louis Blues” na voz de Louis Armstrong. “Take the a Train” na gravação de Duke Ellington. Queria tê-lo ouvido falar das composições de Cole Porter ou de George Gershwin. Haveria muito para ouvir dele. Não o fiz por acanhamento. Diante de um vulto tão grande ficamos paralisados e não sabemos discernir. Nunca discuti ou falei de poesia com Craveirinha, ou com Knopfli, ou com Noémia. Falávamos das coisas banais da vida e eu ouvi-os com denodo. Não me permitia pôr-me em bico de pés e querer discutir literatura com eles. Foi assim também com o Ricardo. Como discutiria jazz com ele? Bastava ouvi-lo e agradecer essa benesse.

Um dia, contou o Ricardo Rangel ao falar do seu encontro com os magos do jazz, estivera num espectáculo, em Portugal, nos anos 70, onde o contrabaixista americano Charlie Haden dedicou a sua “Song for Che” aos combatentes pela liberdade em Angola, Moçambique e Guiné, o que originou a sua prisão no aeroporto de Lisboa no dia seguinte. Esse episódio é mítico e seria lembrado quando Haden morreu em 2014. Na época da minha conversa com o Ricardo Rangel eu ouvia “Nocturne” e não me atrevi a dissertar sobre aquele outro vulto do jazz que inspirava as minhas noites nos anos 90. Poderia ter falado da minha paixão pela bossa nova e por António Carlos Jobim. Ou do encontro de Jobim e Frank Sinatra. Eu ouvia Abbey Lincoln (regresso amiúde a “A Turtle´s Dream”), Dianne Reeves, Diana Krall, Dee Dee Bridgewater, entre tantas outras. Não lhe falei delas. Hoje eu falaria do americano Gregory Porter, do camaronês Richard Bona, da norueguesa Inger Marie, da brasileira Luciana Souza, do cubano Roberto Fonseca ou do americano Kenny Garrett. Ou da Lizz Wright ou da Norah Jones ou da Esperanza Spalding.

Enquanto faço esta breve evocação do meu bom amigo Ricardo Rangel – porque a vida permitiu-me o privilégio de ter entre amigos gente de boa cepa e eu sou grato a essa verdadeira prebenda – oiço um belíssimo CD, que me acompanha há séculos, que junta os talentos de Herbie Hancock, Michael Brecker e Roy Hardgrove – Directions in Music – Celebrating Miles Davis & John Coltrane. O alinhamento é fabuloso: “The Sorcerer” (Hancock), “The Poet” (Hargrove), “So What/Impressions” (Davis-Coltrane), “Misstery” (Hancock, Brecker, Hargrove), “Naima” (Coltrane), “Transition” (Coltrane), “My Ship” (Well-Gershwin), “D Trane” (Brecker).  Acho que o Ricardo ouve comigo, lá onde está, este disco, esta noite.

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