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Liturgia à palavra perfeita!

Depois de ler “A descrição das sombras” de M.P. Bonde confirmei a frase do escritor espanhol Camilo José Cela: “a literatura não é uma charada: é uma atitude”. A poesia é mais que fazer da palavra um instrumento de leituras de sentimentos ingénuos.

A poesia de Bonde é um produto (in)finito dum poeta que sabe que um verso não condensa o sentido e que ser poeta é uma transformação constante e não um estado permanente. O que Bonde busca em cada verso não é a realização dum poeta, mas sim a de um verso no poeta.

Se o poeta russo Konstantino Balmont em seus hinos e versos catolizava o culto supremo ao sol; Bonde encrava uma liturgia à palavra perfeita. Escala o monte da palavra com suspensórios de insatisfação. Sabe que a palavra é o monte Psilorítis e a poesia é o Zeus.

“A descrição das sombras” é um testamento poético de um poeta intimista fantástico. O intimismo desse livro não é simples; como aquele que se encontra em poetas ligeiros que extrapolam a linguagem na sinfonia do “eu”. A radicalidade do intimismo desse poeta transpõe a linguagem [poética] e dispersa-se harmonicamente em cada página onde o “eu” mostra-se resultado de uma multiplicidade poética e estética.

Em prosa a forma de contar tem mais importância do que o que se conta. Essas “sombras” sugerem-nos que menear a palavra no sentido e no sentimento conta na poesia entrelaçada com a prosa [prosoema ou prosema no dizer de Patraquim].

Théophile Gautier, escritor francês, disse que a música era o mais custoso dos ruídos; e cá penso que a poesia talvez seja o mais afanoso esforço de deter o movimento da palavra. Bonde consegue, muito bem, realizar esse labor. “A descrição das sombras” é, também, um diário íntimo[tal como o de Henri-Frédéric Amiel] de um poeta que lê e escreve silêncios [Rimbaud], que sente as sombras que a sua presença cria nele mesmo: “Não posso roubar as sombras que se refastelam dentro de mim”.

“O poeta não é poeta se não volta ao espanto e à frescura fantástica de menino” [Papini]; Bonde vai à infância e cria sua vista de vê-la: descreve com o espanto de poeta o espanto de menino que sempre foi poeta: “Hoje na roda-viva dos balões coloridos construimos um sonho, uma jangada para os dias”.

Bonde pela sua liturgia e siderurgia na palavra sabe que: “Ah! A poesia. Nasce abrupta entre os milhares de palavras”. A palavra é o seio por onde goteja o leite da poesia. O gotejar harmonioso desse leite depende de como a carne da palavra é posicionada no berço do papel: “Uma pétala sangra o pólen, uma palavra cai na boca, restrinjo os silêncios no chuvisco”. A palavra que se trabalha transcende qualquer estultície poética e estética.

O escritor é cúmplice do tempo, uma besta de sofrimentos insuspeitáveis, um animal de resistência sem fim, disse Camilo Cela [Nobel de Literatura 1989] na sua obra-prima “A Colmeia”. M.P. Bonde é cúmplice do seu tempo e cada verso seu, cada proema seu constitui um ponteiro do grande relógio que é o seu hermetismo.

Em termoquímica [Henri Gess] diz-se que a quantidade de calor libertado durante uma reacção química depende apenas do estado inicial e do estado final. A poesia que é liberta por Bonde subordina-se ao estado inicial bruto da palavra e ao estado final da palavra quando é siderurgicamente trabalhada.

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