O vento empurrou a cortina. Maimuna estava sentada, sozinha, a fazer aquilo que as mulheres fazem quando estão sozinhas: cuidar da beleza.
Segurou no caule de mussiro, pressionou-o sobre uma pedra esculpida pela erosão de séculos de monção e outros ventos, acrescentou-lhe água, moeu, moeu, moeu, até tornar-se pastoso. Era o mussiro, o creme com que se maquilhava, alisando a pele, adiando as rugas, eliminando as acnes, tornando-a muthiana orera e reforçando a ideia de que a principal tarefa das mulheres é serem belas, toda a engenharia delas está maquinada para lhes suportar o peso da beleza e torná-las infalíveis sedutoras.
Deslizou os dedos pela face, levemente, pincelando mussiro. Os gestos delicados demoravam na pele, untando-a com muito cuidado, para não quebrar a preciosa porcelana do rosto. Na mão menos destra, um caco de espelho orientava-a. Virava a cabeça para um, depois outro lado. Ora para cima, ora para baixo. Arrastou o mindinho, ao detalhe, pelos trilhos onde as expressões da face acentuavam as marcas do tempo. Dobrou os dedos em pinça e desenterrou as ervas daninhas, os pêlos rebeldes que lhe desenjardinavam a face. Multiplicou demãos onde as borbulhas insistiam em carimbar cicatrizes…
Um suspiro do vento empurrou a cortina. A luz aproveitou-se e entrou, sem pedir licença, sem dizer koshukuro. Uma lagartixa assustada com o clarão, fugiu para a fresta onde morava. A luz espalhou-se pelo chão, trepou pelas paredes lascadas, pela madeira preciosa dos móveis antigos, pelas canelas que despontavam das vestes da cor de tufo… Quando lhe tocou o rosto, a mulher tirou o olhar do espelho, sem interromper os gestos de untar a pele, e olhou num soslaio desconfiado, para a cortina. Puxou instintivamente o pano que vestia e cobriu o joelho. Incomodava-a este modo secreto, silencioso com que o vento empurrava a cortina e se intrometia na sua intimidade. Ainda mais agora, véspera de eleições, em que toda a gente parece suspeita. Ainda se soubesse de que partido é o vento…
O vento voltou. Empurrou a cortina. A luz aproveitou-se e entrou sem pedir licença nem dizer koshukuro. Assustou a lagartixa. Espalhou-se pelo chão. Pelos móveis. Pelas paredes lascadas. Trepou as canela. Tocou no rosto da mulher.
Com o vento chegavam os sons inconfundíveis da campanha eleitoral. A animação louca dos eleitores, o desespero rouco dos canditados. “O vento e a luz, assim indelicados, pareciam os políticos em campanha”, pensou Maimuna, “entrar na intimidade das pessoas para dizer em quem devem votar, como se as pessoas não tivessem consciência, não soubessem o que querem. Ntlha!”
Acariciou com o creme os edifícios da face. Percorreu as ruelas da face como se lhes cobrisse os buracos com o mussiro. Untou a pele até à periferia, os subúrbios do rosto. E o vento voltou.
O vento voltou. Empurrou a cortina. O mussiro formava agora uma máscara dura. Esbranquiçava e gretava à medida que secava. Maimuna levou a mão ao cesto de palha, sua bolsa. Vasculhou e trouxe, entre indizíveis coisas femininas, os documentos pessoais. Com o dedo indicador, o mesmo que empurra o boletim de voto para as goelas abissais das urnas, passou mussiro na fotografia do cartão de eleitor.
O vento não parava de empurrar a cortina. A luz aproveitava-se e entrava sem pedir licença nem dizer koshukuro. Assustou a lagartixa. Espalhou-se pelo chão. Pelos móveis. Pelas lascas das paredes. Pelas canelas. Tocou no rosto da mulher.
Maimuna olhou para o mussiro a secar na foto do cartão de eleitor. Sorriu e concluiu, para si mesma que, democracia é mussiro a renovar a pele no rosto bonito de um país.