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O quinquagésimo voo

Sentado na sala de embarque, com a mão envolta da minha pequena pasta de cabedal, me vem à memória sucessivas imagens da difícil jornada percorrida até aqui chegar. Durante anos, foram inúmeras as tentativas de alimentar aquele sonho da mais tenra infância: voar. 

Vivo há menos de dois quilómetros do aeroporto e, diariamente, contemplo os aviões a chegar e partir. Sempre me perguntei, como será estar dentro daquele engenho? Cabem todos lá dentro? Enjoos? Medo de altura? O som do avião a abalroar nas nuvens? Os relâmpagos? Hoje eu teria respostas para todas questões.

Continuo a viajar na minha memória e recordo-me da linda moça que fez o meu check in. Era o meu nome lá nas máquinas deles, não contive a emoção, eu estava dez vezes mais sorridente que ela, afinal de contas eu ia finalmente voar. Entraria num avião e de lá do alto contemplaria os céus, a minha casa, o meu bairro e, o mais lindo de todos, o mar. Foi ela, logo depois do check in, que me apresentou esta lendária sala de embarque. Daqui, apenas alguns metros me separavam da glória.

Uma sensação desconfortável me veio à mente quando olhei para o meu extracto do cartão da companhia aérea. Eu recebera um prémio por fazer o meu quinquagésimo voo como cliente. Fiquei petrificado, sem jeito, envergonhado por ter espalhado tanta emoção. Eu já tinha feito esse trajecto dezenas de vezes, provavelmente centenas, porém, o meu coração agia como se fosse a primeira vez.

Tendo consciência da situação senti-me cansado. Era demais voar cinquenta vezes pela mesma companhia? Quantos outros voos terei feito pelas outras companhias? Sempre a mesma coisa, sair de casa, ir até ao aeroporto, fazer o check in, caminhar até a sala de embarque, de onde habitualmente oiço o meu nome nos alto-falantes, porque sou, de natureza, atrapalhado com o número de voos e com as entradas. De seguida, caminhar até ao interior do avião, ouvir as instruções do comandante e dos comissários de bordo para depois ouvir os motores do avião rugirem com toda potência que levará a mim e aos outros passageiros a um outro porto, digo, aeroporto.

Verdade também seja dita, não há o porquê de me sentir assim tão cansado. As viagens não foram todas similares. Em cada viagem, houve sempre uma história por contar nas varandas das barracas que ornamentam o meu bairro. Houve vezes que não terminei de fazer a mala, atrasei-me ao aeroporto e perdi o voo. Nalgumas vezes, saí até a porta de casa e a boleia plantou-me até perder a viagem. Das raras vezes em que a boleia chegou, algo aconteceu pelo caminho. Uma vez perdemo-nos e fomos parar no lado da cidade oposto ao aeroporto. Da outra vez o carro avariou e numa outra vez o engarrafamento impediu-nos de chegar a tempo ao aeroporto. Parece que o aeroporto mudava de endereço em cada viagem.

Teve, sim, vezes em que cheguei ao aeroporto. Fiz o check in e depois perdi-me nas enormes instalações do aeroporto, de tanto apreciar os enormes aviões que ali atracavam. Me enchia os olhos aquela vista dos motores a rugirem, os comandantes e os mecânicos de voo a avaliarem o trem de pouso, os flaps, os níveis de combustível, os pesos previstos na decolagem e no pouso, as cartas meteorológicas, os passageiros, orientados pelos comissários de bordo, todos sorridentes a tomarem os seus lugares, os camiões cisternas devidamente estacionados perto dos aviões, os manobristas a taxiarem os aviões para a pista de manobra de onde rolavam até a pista principal e os comandantes na expectativa de receberem, de lá do topo da torre de controle, uma autorização para invadirem a pista de decolagem e rezando para que nenhuma aeronave estivesse em final aproach  o que atrasaria, em minutos, a sua partida. Nessas vezes, acabei, também por perder o voo.

Os eventos incomuns sucedem-se sempre quando, finalmente, cumpro com sucesso todos os procedimentos e chego ao interior do avião. Nesses casos olho para a janela sorrindo e digo para mim mesmo, desta vez vai dar tudo certo. Aqui, agora, sentado na sala de embarque pela quinquagésima vez, não consigo explicar o que de facto ocorreu, mas, por mais difícil que seja acreditar, eu perdi o voo nesses casos também.

Não tenho tempo de pensar mais ou continuar a reviver amargas memórias, o meu nome já se ouve nos alto-falantes. Sou eu, trapalhão, mais uma vez. Olho novamente para o bilhete e o passaporte, é realmente o meu nome. Pego na minha bagagem de mão, sorrio levemente e caminho em direcção ao avião que se encontra ancorado na pista. Vejo os passageiros, algumas faces são conhecidas. Se algum dia eu pudesse convidar alguém para voar, seriam, de certeza, as primeiras a receber o convite.

Alguns dos passageiros estão emocionados. Vão voar pela primeira vez, rio-me deles pois eu vou voar pela quinquagésima vez. É verdade que antes de me dar conta do número de vezes que vim voar estava, também, emocionado, por isso eu lhes entendo, voar deve ser emocionante. Principalmente quando é a primeira vez.

 Estou novamente no avião, encaixo-me na cadeira certa, sigo com rigor todas as instruções de segurança, sorrio novamente, é tudo igual ao que vi na televisão e na internet, podia jurar que era uma cópia genuína ou uma recriação minha do original.

Depois de apertar o cinto de segurança o comandante anuncia que o voo vai partir, olho pela janela, a visão é turva mas tenho certeza que estou dentro do avião o que me faz ver, à distância, a extensão de todo edifício do aeroporto. Sorrio novamente e digo em tom baixo: finalmente parece que vou voar.

Os motores rugem, o coração bate forte, é a emoção do primeiro voo. Os motores rugem com mais intensidade, viro a cabeça para abafar o som na tentativa de viver o meu voo. O meu quinquagésimo voo. O meu primeiro voo. Mas os motores mantêm-se vigorosos, são fortes, o seu ruído é intenso, dá-me cabo das memórias.

Por uns instantes sinto-me inerte, acedo à última réstia de memória que quase me escapava pela janela do avião, apego-me a ela e aí recordo-me, este som é familiar. Mas faz todo sentido, afinal de contas é o meu quinquagésimo voo. Não, é familiar de outras galáxias, este som, é o som do despertador. Que me faz despertar. Que faz despertar, em mim, a angustia e a amargura de nunca ter voado.

 

 

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