“O que tu fizeste daquilo que te fizeram?”
Jean-Paul Sartre
A história somente existe para servir-nos de lição e, quando nós nos recusamos a aprender dela, propositadamente ela se nos repete. Moçambique ruma pela sexta vez a eleições gerais e, mais uma vez, o povo é chamado a renovar as suas esperanças quinquenais de um futuro melhor. Mas quando as esperanças do povo são quase as mesmas dos tempos anteriores e continuam frustradas, urge perguntarmo-nos o que tem falhado. Terá o povo votado o errado?
Julgo que a resposta para esta inquietação seja a condição sin qua non para um voto consciente. Assim como a pior forma de celebrar a vida é brindar aniversários sem conquistas, a pior forma de hipotecar o futuro de uma nação seria dar enésimas oportunidades de governar a um partido cuja reputação é sobejamente desqualificada. Nada é tão ilógico que um povo que confia o mandato de combate à corrupção a um grupo de pessoas que enferma do mesmo problema. A democracia requer cautela e prestação de contas. Se a maioria dos eleitores que tem dado legitimidade à mesma elite de sempre para governar o país, paradoxalmente, sente-se traída nos seus interesses, há que repensar os motivos da sua fiel escolha.
Afigura-se-me que haja dois motivos capazes de mover um povo frustrado a eleger o mesmo governo de cinco a cinco anos. Numa primeira hipótese, pode-se avançar que apesar de o velho partido no poder manifestar-se decadente, a oposição não demonstra maturidade suficiente para governar. Dai o povo não ver uma alternativa a que recorrer. A segunda hipótese seria que o povo continua a manter um vínculo de fidelidade com o partido no poder por questões de afinidade histórica relativas à luta de libertação. Dai haver o medo de mudança da parte do povo que se confunde com a prova de resiliência. Afigura-se-me que só dentro desses parâmetros se pode compreender o comportamento de um eleitorado frustrado, mas que continua a vergar-se perante o mesmo carrasco.
Porém, se a maioria dos eleitores frustrados com falsas promessas, de cinco a cinco anos, tem votado contra o governo do dia, mas, incrivelmente, os resultados revelam-se contraproducentes, então a única hipótese a avançar é de que o velho partido só se mantem no poder por meio de fraudes eleitorais. Se este for o caso, a questão mais urgente a ser resolvida é que mecanismos podem ser acionados para impedir-se um processo eleitoral fraudulento?
Enquanto não se resolver a problemática das fraudes eleitorais, haverá sempre garantias suficientes de que o partido no poder perpetue-se à revelia da vontade popular. E assim as eleições não serão nada além de um meio irônico e burlesco de o partido no poder usurpar a legitimidade. Se a sociedade civil e especialmente a oposição mostram-se incapazes de impor a justiça eleitoral, então de modo algum se pode esperar a queda do partido no poder por meio das eleições. Sendo assim, para conquistar o poder, a oposição devia entregar-se à hibernação de trabalhos intensivos de justiça eleitoral, ou dedicar-se à revolução ou ao golpe do Estado – as duas últimas alternativas são menos recomendadas, excepto em Estados autoritários onde as eleições não expressam a vontade da maioria.
Este espectro de um povo frustrado, mas que continua incapaz de afastar o partido corrupto do poder vislumbra-se em Moçambique. O descrédito da FRELIMO, o velho partido no poder, tornou-se exponencial, desde a revelação pública das dívidas ocultas em 2014, as quais mergulharam o país na pior crise económica da sua história. Do partido libertador e servidor público, a FRELIMO passou a ser vista popularmente como um grupo da máfia que vendeu a pátria por conta da ganância de alguns. E perante este golpe bilionário contra o Estado, todos os membros frelimistas deviam ser considerados no mínimo coniventes, pelo facto de eles nunca terem adoptado uma posição clara e firme sobre a necessidade de haver uma investigação transparente seguida de uma responsabilização exemplar sobre o caso de dívidas ocultas. Todos os camaradas activos e passivos tomam parte da culpa desta fraude financeira, excepto aqueles que desde início se mostraram publicamente indignados pela contratação destas dívidas ocultas que pouco depois foram tornadas soberanas – para este caso, Sérgio Vieira é digno de alusão como um frelimista contestatário.
Entretanto, quanto mais se esperava que a FRELIMO somasse grandes derrotas nas eleições autárquicas de 2018 por conta dos seus escândalos de corrupção, o tiro voltou a sair pela culatra, dando-nos a desconfiar que o povo eleitor tenha memória curta sobre um passado tão presente no nosso dia-a-dia. Embora a oposição parlamentar se tenha mostrado desorganizada para gerir assuntos internos, tais como a sucessão do falecido líder da RENAMO, Afonso Dlhakama, e as deserções inesperadas das cabeças do MDM, num momento tão crucial para ela conquistar o eleitorado frustrado com o partido no poder, ainda assim se torna difícil justificar as vitórias municipais da FRELIMO sem causar estranheza, após a sua conexão com o fenômeno das dívidas ocultas que ameaça varrer quaisquer esperanças de um futuro próspero em Moçambique.
Há três dados fundamentais que jogaram a favor da vitória do velho partido no poder. O primeiro tem a ver com o que parece ser o eterno agradecimento pela luta de libertação. Ou seja, uma parte do povo moçambicano ainda assume a mentalidade de que qualquer partido no poder que não seja a FRELIMO, o partido libertador, só pode ser uma traição à história de Moçambique. O lema de que a FRELIMO é que fez, a FRELIMO é que faz, para milhões de pessoas, ainda constitui uma meta-justificação de que este governo do dia é o melhor, uma vez que nunca houve outro com o qual se possa comparar.
O segundo aspecto é a própria oposição em Moçambique que ainda é fraca e intrinsecamente fragmentada. É inconcebível que passado cinco anos desde a revelação das dívidas ocultas associadas ao partido no poder, nenhum partido da oposição se tenha esforçado em criar uma agenda política e pragmática com objetivo de pressionar a justiça e lucrar popularmente com este escândalo monetário. Cinco anos depois, a oposição nem sequer moveu uma moção de censura contra o governo nem tampouco se dispôs a mobilizar as massas visivelmente frustradas para ao menos protestarem, exigindo o fim da impunidade neste país e a separação efectiva dos poderes. As dívidas ocultas foram e continuam a ser um campo suficientemente fértil para a oposição prosperar em detrimento do partido no poder. Mas incrivelmente pouco foi feito tanto pela RENAMO quanto pelo MDM que limitaram a sua acção em criticar e dar vaias à FRELIMO nas sessões plenárias. Esta oposição de Moçambique afigura-se-nos mais feliz com o seu papel de opor-se do que com o desejo de governar. Parece-nos que os seus membros preferem manter os seus cargos políticos com salários gordos a mobilizar as massas a uma marcha intensiva sobre problemas sérios que afligem a sociedade moçambicana já há décadas.
Todavia, na política assim como no amor, há vezes em que os indivíduos optam por trair o seu parceiro, não porque o amante seja superior, mas devido as fraquezas ou maus tratos do amado. A declaração de que prefiro votar a oposição a votar a FRELIMO corrupta, teria sido uma das justificações séria daqueles eleitores que decidiram trocar o partido no poder pela oposição. É irrefutável que nas eleições de 2018, a FRELIMO tenha perdido um número considerável dos eleitores, mas isso não significa que a oposição tenha feito algo para conquista-los. Muitos eleitores que passaram para as fileiras da RENAMO, MDM ou outro partido da oposição não o fizeram pelo facto de eles verem os seus interesses contemplados pela oposição, mas simplesmente pelo facto de não mais simpatizar com o modus operandi da nova FRELIMO. Entretanto, se este partido continua a controlar o poder é devido à sua forte estrutura de unidade e as suas artimanhas em épocas eleitorais. O caso fraudulento das eleições na Matola em 2018 é um exemplo sobre o quão ardilosa pode a FRELIMO ser, quando se trata do poder. O seu ex-líder Armando Guebuza já dissera que o poder não se conquista, mas se arranca. Não há dúvidas que houve irregularidades tão sérias no escrutínio da Matola que exigiam pelo menos a repetição das eleições, mas porque os resultados problemáticos davam vitória ao partido no poder, a justiça foi amordaçada. Mas perante estes casos fraudulentos do escrutínio da Matola denunciados até pelo Votar Moçambique – plataforma de observação eleitoral formada por sete organizações da sociedade civil – até aonde a RENAMO que se diz injustiçada terá ido para repor a justiça? Logo que recebeu um “não” do Conselho Constitucional, a RENAMO prontamente se recolheu e voltou a sua rotina penosa de lamentação. Mas se este maior partido da oposição se mostra tão flácido para reclamar a justiça, mesmo dispondo de fortes evidências, como se pode esperar que a FRELIMO, dispondo de facilidades para cometer fraude, não o faça novamente para ganhar o poder?!
É por estas e outras razões que julgo que não vai ser em Outubro que a FRELIMO vai perder o poder, embora tenhamos de admitir que as actuais condições socioeconômicas estejam ao seu desfavor. Querendo, a FRELIMO pode manipular o processo eleitoral ao seu favor, que nada lhe acontecerá e facilmente a oposição se resignará como em outros âmbitos tem o feito. A meta-questão para eleições de Outubro não é “o que acontecerá ao país, se a oposição vencer?” – isso é provável, mas impossível de suceder. A meta-questão é “o que a oposição fará de novo perante casos de fraudes eleitorais?” De qualquer forma, as eleições de Outubro, em função do passado histórico de fraudes eleitorais não resolvidos, já estão fadadas a ser uma piada de mau gosto. E a nação devia rir até chorar ao antever que os 14.6 bilhões de meticais gastos num processo eleitoral condenado a não ser transparente poderiam ter sido investidos na educação e saúde das suas crianças.
Hélder Augusto
O Inconvencional