Um homem sem dinheiro é pior que o camaleão:
para ele todas as pessoas ficam da mesma cor.
Agostinho J. Caramelo
Um dos belíssimos contos de Clemente Bata é, seguramente, “O embrulho”, o quarto do livro Outras coisas (2016), publicado pela editora Kapulana do Brasil. Naquela história, o escritor reúne vários elementos que, em sincronia, fazem da sua escrita algo cinematográfico e comovente.
“O embrulho” é narrado pela protagonista da história. Ao enunciar o discurso, Marieta leva-nos a percorrer dois universos assimétricos – o da abundância e o da miséria –, nos quais se destacam peripécias derivadas da estratificação social. Na narrativa, a empregada doméstica, confrontada com a miséria que abala a família, tem de escolher entre deixar as três filhas a sucumbir à fome, depois de nada comerem no dia anterior, e roubar alguns produtos da casa dos patrões para alimentar as meninas e o marido alcoólatra. Nesse debate, vence a segunda situação. Estando sozinha na cozinha da patroa, Marieta coloca num embrulho de jornal duas postas de peixe carapau, três batatas e uma cebola. Mas as coisas não correm conforme o plano e a personagem acaba tendo um dia emocionalmente mais desgastante do que a fome, pois os produtos roubados, inexplicavelmente, desaparecem do seu controlo.
A história que até ali poderia ser mais uma com ricos e pobres apresenta-se como um exercício sobre o arrependimento causado por uma opção errada, ainda que com propósito nobre. Assim, no conto, Marieta é um ponto de conflito no qual se buscam respostas para dois momentos difíceis, a misturarem o delito e a razão. Há em “O embrulho” uma construção variável do comportamento humano perante à crise.
Em termos temáticos, o conto de Clemente Bata estabelece uma certa ligação com “O linchamento dos dólares”, o primeiro do livro A mulher sobressalente (2018), de Dany Wambire, também publicado no Brasil, pela editora Malê. Se no primeiro caso há uma mãe zelosa, que coloca o bem-estar das filhas acima de tudo, no segundo há um pai que no infortúnio do filho encontra um feliz acaso para sair da miséria. Esse é Valdemar. Ao perder o filho Samissone, vítima de uma explosão na empresa Camarão da Munhava, o protagonista de “O linchamento dos dólares” regozija-se ao saber que receberia uma indemnização de 2 000 dólares: “o enlutado ficou emudecido, entulhado de alegria. Não a manifestou, contrariando o hábito. Pensou que não era bom que os pobres, correligionários seus, soubessem que iam perder um membro” (p. 13).
Diante da miséria, Valdemar sacrifica até a memória que guarda do filho, pois, para ele, o dinheiro compensa tudo. Decididamente, para o protagonista de Dany Wambire nada é tão apreciável quanto os dólares. Enquanto em “O embrulho” a realização de Marieta está associada à satisfação das três filhas, em “O linchamento dos dólares” a riqueza ou a ilusão a isso relacionada é o grande propósito de vida. Por isso, quando numa certa noite Valdemar é roubado o dinheiro, a socialização e a liberdade tornam-se palavras esvaziadas de sentido.
Em “O linchamento dos dólares” está um protagonista ávido de dinheiro, sinédoque de um materialismo grave, eventualmente à medida do mundo actual. Há ali uma descrição cruel à importância dada às coisas em detrimento da fraternidade. Logo, claro está, a crise de Valdemar não é apenas financeira, é sobretudo de valores morais e éticos. Na miséria, Valdemar coloca os seus interesses em primeiro lugar. E aqui está a grande diferença com Marieta, personagem que em “O embrulho” despe-se dos seus predicados para tentar saciar a fome das pessoas que ama.
Nesta época em que se está a agravar a diferença entre ricos e pobres, os contos de Clemente Bata e Dany Wambire são dois grandes alertas para quem quer pensar o presente e futuro não muito distante da sociedade moçambicana. Através de Marieta e Valdemar é fácil compreender o que aí vem se mais famílias ficarem sem alimentos. Na dor gerada pela fome, certos pais, certamente, roubarão e matarão pelos filhos e outros venderão a alma dos que geraram para resolver uma ambição diminuta. Esta é uma leitura válida dos textos escritos há alguns anos, entretanto bem à imagem do actual contexto nacional e africano.
Nos contos “O embrulho” e “O linchamento dos dólares”, resumindo, a privação é um factor que transforma e destrói a integridade do Homem, deixando-o apenas do tamanho das suas aflições. À semelhança de Marieta e Valdemar, muitas vezes, as pessoas são consequências do meio circundante. Logo, se atmosfera está contaminar-se de pó, como ter cidadãos limpos?