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Os recriadores da tradição II – uma escuta aos grandes

Ao Wamin

Axinene arivava

Os músicos cabo-verdianos, de funaná à morna ou de tabanca à quizomba, encontram sempre motivos para cantar o seu país com uma apetência rala em África e no mundo. Chega a parecer que os filhos daquela “terra-mar” são ensinados, logo na meninice, a louvar o seu espaço líquido e físico como se disso dependesse, primeiro, a felicidade individual, e, depois, social. Atentos ao fenómeno, poderíamos dizer que o facto de Cabo Verde ter tantos filhos no estrangeiro contribui para a emergência de uma saudade que, sendo tantas vezes manifesta musicalmente, parece contribuir para minimizar a dor causada pela distância. Mas isto não é de todo linear, afinal, cabo-verdianos a viver no arquipélago, igualmente, lembram-se de musicar, com afecto, o sentimento que nutrem pelo seu lugar identitário. Além de que ter muitos emigrantes não constitui única razão para um país ser tão celebrado. Ainda assim, é uma condição preciosa, tanto que nos poucos músicos que nós temos para lá do Índico a saudade, tão dominante nas letras dos nossos irmãos crioulos, aparece com algum destaque. Vejamos, por exemplo, os casos de Deodato Siquir, Cremildo Caifaz, Samito, Albino Mbié e Ivan Mazuze.

Seguindo a ordem dos artistas apresentados acima, no álbum Balanço, Deodato Siquir tem uma música intitulada “A kaya”, o mesmo que em casa, traduzido do rhonga para português. Nesse tema, temos uma voz de enunciação que pede a alguém implícito, que até pode ser quem escuta, para mandar cumprimentos às pessoas do seu lar (pais, filhos, irmãos, avôs e etc). É um lar enorme, que se enleva para ideia de país quando, a certa altura, temos na voz musical a extensão dos cumprimentos para vizinhos e para o povo inteiro. Portanto, estando-se fora, a saudade é motivo suficiente para ser cantada numa composição típica de quem espera sempre voltar aos seus lugares, que, deduzimos nós, mesmo humildes, batem dez a zero aquela Suécia na qual o músico mora, do ponto de vista simbólico. 

À imagem do Balanço, em Ciconia ciconia, de Cremildo Caifaz, guitarrista que respira ares alemães, Moçambique é cantado. Não diríamos no sentido de uma lembrança taciturna causada pela saudade, como acontece bem com Siquir, aqui, essa celebração do país é mesmo em termos da representatividade, manifesta num orgulho ao país a que se pertence. Por isso, entre o inglês e o rhonga, Caifaz diz aos quatro ventos que é filho de Moçambique, espaço territorial e cultural de que é adepto. A pretensão não poderia ser outra, no álbum Ciconia ciconia o guitarrista almeja colocar a sua terra de origem na boca do mundo, relacionando o seu talento à pátria amada que o gerou, numa espécie de causa e efeito, como se tudo o que se é fosse consequência dessa mesma relação.

No norte da América, há também um filho do país: Samito, um talento absoluto a viver no Canadá. No single “Tiku la yina”, o sujeito de enunciação configurado pelo músico, falando da sua terra, sublinha que espera um dia voltar. Logo se entende que a mensagem vem do estrangeiro e resulta, igualmente, da saudade de casa, por aí ter o que não se encontra em nenhum outro lugar. “Tiku la yina” significa nosso país e, se calhar, não teria como a composição existir se essa experiência no estrangeiro fosse algo por acontecer.

Ainda nas Américas, ali ao lado de Canadá, temos Albino Mbié, no país do Tio Sam. O autor do álbum Mozambican dance vive nos Estados Unidos lá vão bons anos. Deve ser por isso que se escreve na lista dos que, sentido saudade do seu país, canta-o como sabe, numa suavidade só dele. Assim, Mbié reservou “Mbilo & Kaya”. Nesse som, o músico é claro: “Meu coração sente saudade de casa”.

Se, por um lado, os músicos a viverem fora de Moçambique são dominados pela nostalgia, vontade de regressar sem terem que partir, por outro, esse sentimento dúbio concorre e bem para os artistas derramarem as suas lágrimas nas músicas, como forma de se autoconsolar, suavizar o coração, estar perto da sua gente – ainda que forma fictícia –, e, o mais importante, transformar a saudade em arte. Este também é o cenário que caracteriza Ivan Mazuze, a viver na Noruega, no álbum “Ndzuti”, no qual encontramos a música “Mosambik”. Sem palavras necessárias, o saxofone e outros instrumentos parecem configurar imagens infantis, feitas de brincadeiras ao estilo “hamatue tué”. Percepções apenas. A verdade é que estes cinco músicos juntos contribuem para não enxergarmos apenas problemas no nosso país. Bem dito, fazem de Moçambique um lar bom de se estar. Talvez, para se atingir esse nível de entendimento é mesmo preciso estar-se fora, alheio a tudo o que pode corromper a imaginação e o sonho. Os músicos são guardiões desse sonho.   

 

 

 

 

 

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