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José Mucavele Atravessando Rios

Voltei a ouvir o disco Atravessando Rios de José Mucavele. Sinto o mesmo sobressalto e o mesmo espanto do miúdo de 18 anos quando, em 1985, surgiu este belíssimo disco e tocava na Rádio Moçambique. Tenho 50 anos e o mesmo assombro daquele miúdo que fui e que continuo a ser, por certo. Estes acordes, esta melodia, por vezes pungente, estes solos de saxofone, estas congas, estes timbales, estas guitarras, estas letras exultadas e exultantes, enganosamente datadas, esta belíssima voz, poderosa e talvez melancólica, arrebatadora, levam-me implacavelmente àqueles anos – os anos 80. José Mucavele é um dos meus cantores e compositores imprescritíveis. Há sete anos que não ouvia, assim, este disco. Com diligência. Recordo ainda hoje o dia em que entrei, em Lisboa, numa vetusta loja da Valentim de Carvalho, hoje desaparecida, e comprei este CD. Foi um dia jubiloso, um dos meus dias felizes, naquele tempo em que eu expendia os meus anos na capital portuguesa e tinha pouco dinheiro para aceder a livros ou discos. Este é, por conseguinte, um dos meus discos electivos. Guardo-o ciosamente. Não só pelo significado afectivo que tem, mas sobretudo pela densidade ontológica que transporta. Estas músicas fazem parte da banda sonora não só da minha vida. Como moçambicano, posso afirmá-lo: este disco ilustra o meu orgulho de pertencer a esta Pátria. Não sei explicar isto, mas é ouvindo este e outros cantores, que dizem aquilo que me pareceria inexprimível, que cantam a dor infinita deste povo, que traduzem na magia das suas letras e canções o ser moçambicano, que eu melhor realizo o ser moçambicano. Aqui há tempos cheguei a afirmar que, mais do que a escrita, era no canto e noutras artes performativas que era possível capturar aquilo que se pretende que seja ser-se moçambicano. Tenho ouvido os nossos cantores dos anos 80 e 90 e creio não estar longe da verdade.

Os anos 80 têm para mim o que há de mais trágico e dramático nas nossas vidas e o que há de mais belo e puro e surpreendente. Falo de mim. Estou dividido entre estes dois sentimentos aparentemente contraditórios. Naqueles brutais anos, a Independência era o nosso orgulho supremo. Vivêmo-la com emoção incontida. Mucavele interpretou, como poucos o fizeram, esse sentimento na sua música “Nkhululeko”, composta justamente em 1975, o ano em que nos tornámos livres. Esse sentimento de um homem livre. Esse júbilo pelo qual eu havia de içar, à porta de casa, ali no Bairro Indígena, uma bandeira que desenhara nas folhas centrais do meu caderno, e pregar num caniço. Esse sentimento que vejo por vezes postergado, derruído, nestes dias, por estes dias de desespero, estes dias obsidiantes, esse sentimento era para nós um sentimento irrevogável e inegociável. Cresci, por conseguinte, adepto da bandeira e do sentimento de liberdade. Cresci com esse sentimento único de ser um homem livre. Por isso, mais do que tudo, eu amo a liberdade. Tenho dificuldade em aceitar tudo o que seja contrário à liberdade. Sou um implacável amante da liberdade.

Oiço este Atravessando Rios e viajo pelas estradas livres do meu país. “Xibomba xa Romos”. A Romos era a metáfora da possibilidade deste país. A Romos era o sonho possível e o sonho improvável. A derrota da Romos foi também a derrota desse sonho. Da possibilidade de o alcançar. O machibombo da Romos de Mucavele ia para Manhiça, ia para Xai-Xai, ia para Quissico, ia para Inhambane. Ia por este país afora. Outras extensões da companhia, no centro e norte do país, atravessavam Moçambique. Quando a estrada se transfigurou num cenário do apocalipse e os autocarros da Romos começaram a arder, também ardeu esse espantoso sonho que tínhamos de percorrer esse país. José Mucavele cartografa esse sonho em 1979, quando o nosso sonho não tinha sido ainda dilacerado. Seria, na década ulterior, que iríamos viver ou defrontar as impossibilidades de percorrer este país, que iríamos defrontar a aporia desse sonho. Também, ali, naquela metáfora, soçobra, por assim dizer, o devir moçambicano. Oiço-o com melancolia por esse país que teríamos sido, por esse sonho que sonhávamos – passe a redundância. Oiço-o e não me contenho. Explico o significado destas músicas à minha filha. Falo-lhe daquele tempo onde o júbilo e a depressão se cruzam. Parece um paradoxo. Mas quem atentar ao melhor da nossa música, naquela época, é isso que encontra.

 “Atravessando Rios” (1978), título homónimo deste disco, é um dos seus temas mais belos. É pungente. Eu diria que este tema dialoga com “Xihomboloki” (1975). Falam da mesma ausência – da mãe. Traduzem essa dor e essa busca. “Xihomboloki” significa melancólico. O saxofone e os acordes de viola transmitem isso. Essa ideia disfórica da realidade. O que está nos antípodas do tema que se segue a este – “Nkulululeko”. A expressão da euforia. Do júbilo. O hino da nossa alegria. O rio, as estrelas, a noite, a harmonia, o amor em “Nyelete” (1983), em oposição à fome, à guerra, ao infuturo (termo pretensiosamente meu), em “Ndlala” (fome), de 1984, constituem um bom contraste e um bom diagnóstico daquela década de 80. Belíssimos e trágicos anos 80 – disse-o eu algures. Ano em que permanecíamos firmes na praça para ouvir o Presidente; anos em que madrugávamos para nos revezarmos com pedras nas bichas do pão e da carne do Botswana, do carapau de Angola; anos do repolho, cozido e recozido; anos indescritíveis. Anos de fome. O tema da fome percorre a nossa música. Para nós, no secundário, anos do queijo do Tio Reagan, cujas sandes, disputadíssimas, comíamos ao intervalo das aulas, ou da maçã do vizinho Botha, depois do Acordo de Nkomati. Anos únicos. Quando falo daqueles anos aos meus filhos, eles desconfiam de que seja o prodígio da minha criação literária.

Acontece que estes acordes, acontece que estes sons, acontece que estas letras, acontece que esta voz, poderosamente melancólica, que se atém àqueles anos, fala de um tempo que foi nosso. Um tempo único e exemplar. Porque, no meio da exiguidade, no meio da fome e do grito de fome, como ele o faz, no meio da mais abjecta miséria material, ainda havia algum humanismo, ainda éramos capazes de partilhar o que tínhamos e não tínhamos tanto como isso – fosse sal, fosse açúcar, ou uma côdea de pão duro. Os vizinhos conheciam-se e falavam-se. Eram solidários. Não tínhamos chegado a este egoísmo, a este grau exacerbado onde os que têm tudo flanam pelas ruas ou nas redes sociais os seus pertencentes, muitas vezes ilegítimos, tantas vezes gongóricos, outras tantas infelizes. Tempos em que criámos uma elite mais preocupada consigo do que com o bem comum. Onde os que não têm nada estão destinados ou condenados ao infortúnio e à infâmia. Naquele tempo todos nós ainda tínhamos esperança de haver um futuro, de vivermos um futuro que a Independência nos havia prometido, havia entre nós um desígnio, parece que tudo isso foi vencido. Espero, no entanto, que não tenha sido uma derrota.

Este disco é de um tempo anterior a este sentimento de perda e a esta angústia do desespero e, provavelmente, de resignação. Este disco é anterior a este momento deprimente. Há aqui uma felicidade e um júbilo. Retorno a este sentimento enquanto oiço, outra vez, como se fosse a primeira vez, “Nkhululeko”. Este regozijo. Este disco, todo ele, é belo. Belíssimo, quero eu dizer. Todo este disco é a expressão de um momento criativo espantoso. Quis o destino e quis a fortuna que José Mucavele não se ativesse a este momento auspicioso da sua criação. E que compusesse muito mais obras. Eu sou admirador indefectível de uma canção belíssima e também melancólica, posterior a este disco, creio eu, que se chama “Balada para as minhas filhas”. É uma obra-prima. Quando oiço esta balada, empolgo-me até às lágrimas. Tal é a sua beleza. Outro dia, traduzi-a para a minha filha, se é que é possível traduzir o que há de mais belo na invenção e na arte. Se eu fosse compositor gostava de ter feito “Balada para as minhas filhas”. É a quinta-essência da sua invenção e um dos momentos altos da música moçambicana. Voz e violão. Nesta música vê-se o grande poeta José Mucavele, vê-se o grande esteta, o grande cultor da sua língua e magistral inventor de  metáforas. O que Atravessando Rios denunciara, ou aquelas composições que lhe são anteriores, também, haviam prenunciado – anunciado. Aqui está o poeta do amor, do futuro, da bondade, da liberdade. Creio serem estes os grandes valores da música de José Mucavele, o homem que canta o amor e a liberdade, o homem que sonha a bondade – sublinho a bondade, tão deserdada de nós hoje – , entre os outros, entre todos. O futuro. É um hino ao futuro esta balada, apelo aos valores, aos grandes valores – muitos deles defenestrados no presente -, ao conhecimento como forma de liberdade, à bondade entre os homens, à esperança. Esta canção carrega dentro de si metáforas fortes de uma dimensão social, ética e estética profundíssimas e engrandecedoras, uma bela canção de amor às filhas, finalmente. Eu queria saber cantar isto para a Mayisha Imara. Oiço de novo José Mucavele, esta noite. Oiço-o – como o ouvia aos 18 anos – com veemência sublinhada, com encanto desarmado e com uma candura desprevenida.

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