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Do Atlântico para o Índico

Em razão da data do passamento físico do poeta Craveirinha, propus-me sair, pondo os pés na estrada, para saber a que ponto vai, em termos de cultura literária, a juventude estudantil do bairro de Benfica na urbe luandense, há quatrocentos e quarenta e dois anos baptizada com o nome de São Paulo da Assumpção de Loanda pelo capitão português Paulo Dias de Novais que, à frente de uma armada,  derrotou o resistente rei Ngola Kiluanji Kiá Samba,  embora a presença portuguesa na região datava já de há  cerca de um século, sendo mais visível e acentuada sobretudo no reino do congo, um pouco  mais a norte da ilha do cabo, onde primeiramente haviam atracado.

Como habitualmente, refaço a primeira esquina há  menos de um quilómetro do nosso pobre e humilde castelo. Para o alívio do pecador, logo encontro o quintal de uma instituição escolar de nível pré-universitário no ramo das ciências sociais e, considero que não podia ser  melhor  o palco para a avaliação dos conhecimentos litéro-culturais de uma franja da nossa juventude, supostamente apurada  para os desafios intelectuais dos tempos que se avizinham em África e no nosso mundo glocal. 

Identificada uma turma estudantil em momento de intervalo, me aprochego e, depois de muito bem identificado –por eles mesmo!-, à queima roupa interrogo os meus Wís:

-Vocês conhecem  Craveirinha?   

Silêncio.  Para meu espanto… silêncio total. Então decidi fazer a recarga.

-Quem já ouviu falar do moçambicano José Craveirinha? Os  vossos professores na escola, ou fora dela, nunca vos falaram da obra de José Craveirinha?

Por momentos reinou, entre nós, mais um profundo silêncio ensurdecedor quando o mais corajoso e iluminado jovem postou-se na dianteira de todos os outros e afirmou: -Eu já sim. Eu já ouvi falar do nome desse sujeito. Salvo o erro. Se não foi um músico antigamente parece-me que foi um grande futebolista da gloriosa selecção moçambicana no tempo do Eusébio.

 Aí o mundo calou fundo. E ao semblante do jovem concentraram-se  orgulhosos os olhares dos incrédulos colegas, como quem admira e manifesta regozijo por um amigo e coetâneo.

Estarrecido, sem saída e sem  saber o que dizer, logo cavei coragem e parti para o ataque como que palestrando numa conversa que de tão tocante e profunda provocou a “matação” da aula seguinte por parte de alguns, ávidos de saber. E tinha que ser básico. Não tinha como!…. tal como eles se expressam na gíria juvenil.      

Com certeza, na hora não foi assim tão fácil, e jamais será, falar daquele humilde Cidadão nascido, simplesmente, José João Craveirinha no longínquo ano de 1922 no sagrado espaço índico de Muíphiti.

Falar com jovens sobre uma lenda viva e imortal da dimensão de um percursor de “vaticínios infalíveis”,  do tamanho de José Craveirinha, implica e obriga-nos a falar não somente do poeta, mas principalmente do Cidadão, do inveterado polémico e do fino bem humorado provocador, do militante e das suas causas, do associativista, do desportista, do jornalista  do cronista, do folclorista local, do confrade, do companheiro e autor de MARIA, de um cometa,… aliás Poeta universal, que partindo da Mafalala internacionalizou a pátria moçambicana despertando-nos para o adocicado dAs Saborosas Tangerinas de Inhambane sem esquecer-se do azedume das Tâmaras… de Beirute tendo polvilhado por amigos e conhecidos e por distintos jornais, grande e quiçá, a maior  parte da sua poesia ainda por reunir e, (o que sei eu para dizer…), finalmente do grande  Senhor e camarada premiado, condecorado e medalhado internacionalmente.

Uma particularidade do cidadão do mundo que consideramos o mais telúrico  poeta moçambicano de sempre, reside no facto de que, enquanto levava a realidade cultural e, especificamente, a poesia moçambicana além fronteiras, Craveirinha escrevia e escrevia muito. Dedicava e, – já o dissemos!-, oferecia versos aos conhecidos e amigos que fazia mundo fora.  Na Itália, África do Sul, Rússia, Cuba, Suazilândia, Portugal e Alemanha dentre outras paragens, escreveu os poemas, reunidos,  editados e publicados  póst mortem em Maputo no ano de 2012 no  livro intitulado, Vila Borghesi e Outros Poemas de Viagem.

Luanda, Lucala e o seu caudaloso rio, «as belas águas de Kalandula», os cantares e os choros dos filhos de Malange (cidade que viu nascer o progenitor da Pantera Negra moçambicana), a «gente assassinada na Baixa de Kassange» em Janeiro de 1961, o «sagrado chão de Cuíto Cuanavale» enquanto marco histórico da África austral, as intensas e históricas batalhas nos «decabaçadoscéus de Cuando-Cubango» e o verde e sacrificado capinzal do Cuíto,  são motivos da avultada poesia que em Angola escreveu e  dedicou a íntimos amigos dentre os quais destaco os nacionalistas e escritores Luandino Vieira, António Jacinto, António Cardoso,  Pepetela, Fernando Costa Andrade, Aires de Almeida Santos  e também ao poeta e crítico literário David Mestre que sobre ele escreveu em 1996 no Suplemento  Vida & Cultura do Jornal de Angola: “…há três décadas que a poesia de José Craveirinha exerce sobre mim um fascínio sempre acrescentado… nenhum outro poeta africano lusófono empreendeu com tão alucinante rigor o mergulho em profundidade na alquimia do fenómeno poético em sua dimensão transcultural, das atónitas fundações do verbo à matriz de autenticidade que constitui a marca de água dos clássicos e dos que, antes de o serem, já eram”.

Entretanto, eis a questão: Luanda é das maiores e supostamente mais intelectualizadas, metrópoles litorâneas de África, tendo registado, a impressão e publicação do primeiro livro ao sul do deserto do Saara no longínquo ano de 1849. É a cidade capital da República de Angola, país africano que oficialmente se expressa em português e como tal, membro da comunidade de países de língua portuguesa  que no continente tem a cultura moçambicana como cultura de um país irmão mas, quando perguntamos, -e assistimos por via da comunicação social-, aos jovens estudantes até mesmo universitários, algo relacionado com motivos identitários e fraternais, em termos culturais, nada «que» resulta.

Para o caso referente ao domínio ou o simples conhecimento da vida e obra de um dos maiores vultos da palavra poética africana, da língua portuguesa e,  agraciado com o Prémio Camões em 1991, pensamos ser incrível e inadmissível que um «dito» quadro licenciado superiormente, professor de língua portuguesa, autoproclamado escritor e crítico literário faça só, e somente, uma vaga  ideia de um único poema de Craveirinha  incluído  há já alguns anos numa colectânea de Textos Africanos  de Expressão Portuguesa editada já no período pós independência e no final dos anos setenta, justamente com fins pedagógicos.

De José Craveirinha, «faço somente uma pequena ideia de um texto que falava de negros e de carvão», disse-nos o professor, circunstancialmente, nosso interlocutor.

É triste e  doloroso ouvir isto e, assim. Indubitavelmente, algo vai muitíssimo mal no nosso sistema e universo pedagógico e por isso mesmo é que não raras vezes temos afirmado e reafirmado que quanto a agentes, acções, propostas estéticas, projectos e estudos, em termos litéro-culturais , depois da geração angolana de 80 que para Moçambique corresponde à geração da Charrua ou dos «charrueiros», por aqui, pouco ou nada mais de realce aconteceu. Exceptuando, naturalmente, alguns casos pontuais, para que justiça seja feita.

Craveirinha, como todos os grandes poetas, é universal, incomparável, insubstituível e, como tal, imortal. Cabe-nos divulgar constante e permanentemente o seu legado artístico-literário para o constante e maior aperfeiçoamento da humanidade, material e espiritualmente, em estado caótico.

                           Luanda Fev./2018

 

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