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ARTIGOS DE OPINIÃO

Eu tenho cá para mim que os grandes booms literários acontecem sempre em tempos de grandes crises. Estes ocorrem justamente quando a literatura, pela sua natureza, busca retratar, relacionar, estabelecer rupturas, ou mesmo consertar dialecticamente as fissuras do mundo. E tenho dito, inclusivamente, que, para a literatura, tal como a própria vida nos ensina, todos os tempos são tempos de conturbação, de contrariedades, tempos estonteantes. No entanto, não importa se tais crises são de cariz político, económico ou social, ou simplesmente se são de índole emocional, existencial, identitário, climático ou epidemiológico, como a doença que a humanidade enfrenta neste momento, desde que esses tempos nos possam emprestar algumas reminiscências de esperança e felicidade, no plano individual ou colectivo.

E se olharmos para a própria história da literatura, encontraremos exemplos que atestam, em certa medida, o meu raciocínio. Temos o caso da “Geração Perdida” que, face às crises geradas pela primeira guerra mundial e, logo a seguir, pela recessão, produziu alguns dos grandes nomes da literatura do século XX. Aqui podemos trazer, à guisa de exemplo, Ernest Hemingway, John dos Passos, William Faulkner, entre outros.

Um pequeno extracto de “SARTORIS” de William Faulkner:

“… e desde que a essência da Primavera é a solidão, uma vaga tristeza e um sentimento de frustração atenuado, suponho que se consegue uma purificação mais profunda quando se lhe acrescenta um pouco de nostalgia como preventivo. Em casa encontro-me sempre a recordar as macieiras ou azinhagas verdejantes ou a cor do mar noutros sítios e entristece-me não poder estar em toda a parte ao mesmo tempo e que a Primavera não seja toda a mesma Primavera, como a boca das senhoras, de Byron.”

(In “SARTORIS”, 1958, EDITORA ULISSEIA, pg. 393)

Outrossim, temos a geração do pós segunda guerra mundial (a que eu chamo de geração da Guerra Fria), onde encontramos escritores como Sartre, Pablo Neruda, Gabriel Garcia Marques, Júlio Cortázar, Wole Soyinka, entre tantos outros.

Ilustremos aqui com um poema de Pablo Neruda:

Poema 5.

I

É a manhã cheia de tempestade

No coração do verão.

Enquanto lenços brancos de adeus viajam pelas nuvens,

O vento os sacode com as mãos que viajam.

Incontável Coração do Vento

batendo no nosso silêncio apaixonado.

Zumbindo entre as árvores, orquestral e divina,

como uma língua cheia de guerras e canções.

Vento carregando a serapilheira rapidamente

e desvia as flechas dos pássaros.

Vento que o derruba numa onda sem espuma

e substância sem peso e fogos inclinados.

Quebra e submerge seu volume de beijos

lutou na porta do vento do verão.

(In “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, 1924)

No caso de Moçambique, podemos anotar os precursores da literatura moçambicana, como são os casos de Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, entre outros, que são produto da resistência colonial, da contestação da dominação estrangeira em Moçambique. Alguns destes até são transversais aos períodos críticos subsequentes, como os da luta de libertação nacional e do pós-independência, períodos esses caracterizados por grandes transformações políticas, económicas e sociais.

Vejamos este poema “África, surge et ambula” de Rui de Noronha:

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.

Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…

O progresso caminha ao alto de um hemisfério

E tu dormes no outro sono o sono do teu infindo…

 

A selva faz de ti sinistro eremitério,

onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo…

Lança-te o Tempo ao rosto estranho império

E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo…

 

Desperta. Já no alto adejam corvos

Ansiosos de cair e de beber aos sorvos

Teu sangue ainda quente, em carne sonâmbula…

 

Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno…

Ouve a Voz do teu Progresso, este outro Nazareno

Que a mão te estende e diz-te: — África, surge et ambula!

(in «Literatura moçambicana: as dobras da escrita», de Fátima Mendonça -2008)

Ou este de José Craveirinha:

Grito Negro

 Eu sou carvão!

E tu arrancas-me brutalmente do chão

e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!

E tu acendes-me, patrão,

para te servir eternamente como força motriz

mas eternamente não, patrão.

Eu sou carvão

e tenho que arder sim;

queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão;

tenho que arder na exploração

arder até às cinzas da maldição

arder vivo como alcatrão, meu irmão,

até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão.

Tenho que arder

Queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!

Eu sou o teu carvão, patrão.

(In “Karingana Ua Karingana, 1982)

Já no período pós-independência registamos ainda o surgimento da geração “Charrua” da qual eu próprio faço parte, que se faz à luz na década 80 do século XX, emergindo de um contexto histórico particularmente conturbado para Moçambique. Este movimento literário não se circunscreve somente aos fundadores da Revista com o mesmo nome, como Hélder Muteia, Juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Tomás Vieira Mário, Eduardo White, Pedro Chissano, Idasse Tembe, pois alarga-se igualmente aos escritores como Paulina Chiziane, Aldino Muianga, Suleiman Cassamo, Filimone Meigos, Marcelo Panguana, Carlos Paradona, entre outros, cujo feito principal foi a ruptura estético-temática, com o que então estava em voga como, por exemplo, a chamada literatura laudatória e panfletária que, exaltando as conquistas revolucionárias, descurava, por assim dizer, o lado estético da criação literária.

Eis aqui um excerto de “UALALAPI” de Ungulani Ba Ka Khosa:

“(…) Mas ficai sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vossos vizinhos, increpando-os pelos males que padecerão nas palhotas sem idade (…)”

(In “UALALAPI”, 1987)

Escutemos também este poema de Juvenal Bucuane:

RECUSAM

 Recusam

que esta flor desabroche,

deflagre de esplendor

e encha os olhos do mundo de espanto!

 

Adiam apenas

a explosão telúrica

destas pétalas recalcadas…

Abrir-se-ão cheias de cor

num dia de sol!

 

(In “REQUIEM com os olhos secos”, 1987)

E este de Eduardo White:

Da Ínfima gota

 A tarde se destende toda nua

Unicamente no pó ou nas coisas que me bastem

Então, eu me afasto despido e tão evidente

Como a límpida clareza do grito

 

E sou de repente

A ave apedrejada

A ave ferida

Com as asas largas

Largas e compridas

Fugindo célere ao arremesso.

 (In “AS PALAVRAS AMADURECEM”, CADERNOS “DIÁLOGO”, 1988)

Embora não fazendo parte do grupo “Charrua”, eu incluo também Mia Couto, Calane da Silva, entre outros, cujas obras traduzem, em grande medida, aquilo que sustento nesta alocução. A geração “Charrua” versus geração “80”, como um todo, reflectiu e muito bem, nas suas obras, a crise desses anos, caracterizada fundamentalmente pela escassez de quase tudo, pela desestruturação social, consequentes dos 16 anos de guerra civil.

Mais adiante encontramos ainda as gerações literárias pós “Charrua”,  isto é,  as da década 90 do século XX, e posteriores, que comportam autores que, sendo regulares em termos de publicação, deixaram traços dessas crises nas suas obras, tais como Adelino Timóteo, Sangare Okapi, Aurélio Furdela, Lucílio Manjate, Rogério Manjate, Mbate Pedro, Japone Arijuane, Hirondina Joshua, Álvaro Taruma, entre outros. Estes são alguns desses autores que nas suas obras estão patentes marcas da busca duma identidade nacional, das contrariedades da vida, dentre as quais, as das guerras sucessivas que o país tem vindo a experienciar na sua história recente.

Aqui temos um poema de Adelino Timóteo:

1.

Reparo no amor com virtude de um pássaro

que quer voar em direcção

à larga linha do horizonte,

com tanta gente aqui neste país que o anuncia

e o desperdiça a feri-lo em disputa,

a magoá-lo, a alvejá-lo,

quando o mesmo pode ser uma dilecta criação do peito.

Um amor por si, vale tanto,

vale mais que nada, vale tanto como a vida,

exprime a cor da sua sede,

ao alto dois pássaros a voar.

O amor não merece as pedras

que todos os dias lhe atiramos.

Em vez de acusares a inconstância com que o invocas,

se amas, e não te correspondem,

desde já não lhe ponhas freios,

não uses travões nem borracha.

Pelo Contrário,

desse pouco lucro que te dão as estrelas

contenta-te até,

que o amor é assim mesmo,

sempre a transportar a dor ao âmago.

(In “Os segredos da arte de amar”, 1998)

E ainda do Japone Arijuane:

1.

O machuabo em mim

não é senão um

matchangana disfarçado

a sonhar-se makonde

com engenho da sua arte

se esculpir ndau

n’siro na fé

pintar a crença makwa

adormecida nos chewas,

nyungues e yaos

da minha diáspora.

(In: ”Dentro da pedra ou a metamorfose do Silêncio”, 2014)

O substracto comum nas literaturas produzidas por estes e outros escritores de diferentes gerações e espaços geográficos, em tempos de crise, é o de estabelecer permanentemente rupturas com o seu tempo. Tal como afirma o brasileiro Leomir Cardoso Hilário: “… a negação do mundo vigente abre espaço para a possibilidade de outro mundo. Com esta noção, pretendo reafirmar, no quadro histórico actual marcado pela crise estrutural, a especificidade, potencialidade e relevância da literatura para a produção de uma crítica radical do presente”. O futuro da literatura estará sempre associado aos processos históricos dum país, em particular, ou do mundo, em geral. Eu penso que, sem turbulências sociais e existenciais, pode ser difícil produzir-se literatura, tal como a concebemos. Falo de turbulências visíveis e invisíveis, duas dimensões das crises, a partir das quais o escritor descreve ou reinventa o seu mundo. Vale então sublinhar e prognosticar que a literatura continuará associada ao compasso dos processos e realidades sociais. Assim foi, assim é, e assim será sempre, pois essa é a razão pela qual ela se realiza, consequência directa ou indirecta da perfeita imperfeição do mundo em que vivemos. Quero crer então que a partir de 2021, em Moçambique e noutros lugares do mundo, testemunharemos grandes bums literários, como corolário da grande crise epidemiológica , causada pela doença designada por Covid-19.

 

* Intervenção do autor sobre o tema em referência no quadro da Feira do Livro de Maputo.

 

Livre directo, pouco depois da linha do meio-campo. Luís, no auge da sua forma, dobra os calções e toma balanço, gerando expectativa. Os adversários desconfiam. Será que dali, vai rematar directo? À confiança, fazem a barreira. O bombardeiro arma o remate e “solta” a bomba. O guarda-redes tanzaniano, de tanto espanto sorri, enquanto recolhe a bola no fundo das redes. Foi este homem que acabou de deixar o convívio dos vivos.

Estamos em Dar-Es-Salaam, Março de 1978. Simba-Costa do Sol. Jogo ao início da noite, com luz artificial. Resultado na altura: zero-a-zero. Com a conversão daquele livre, o avançado canarinho tornou-se a estrela no dia da vitória canarinha. O público e os adversários, ficaram espantados. Alguns colegas correram a felicitá-lo, outros nem por isso, pois já estavam habituados aos remates do pé-de-canhão, sobretudo nos treinos.

ESTRELA NO MEIO DE ESTRELAS

Viviam-se os tempos áureos do Costa do Sol, o ex-benfiquinha. Martinho de Almeida tinha conseguido montar um time jovem, que através do seu valor, ia substituindo algumas das estrelas tradicionais do clube, como Moiana, Ibraimo e Afonso Eusébio.
A nova vaga era composta por Nito, Gil, Ramos, Sergito, Caldeira, Artur Semedo e, naturalmente, Luís Siquice, uma estrela no maior esquadrão futebolístico que surgiu no pós-Independência, conquistando dois títulos seguidos: 1979 e 1980.

O nosso personagem poderia ter sido um dos maiores futebolistas moçambicanos no pós-Independência, muito por conta da força do seu excepcional pontapé. Sobretudo de bola parada. O destino assim não quis.  Desde a sua juventude, quando surgissem pontapés livres, alguns colegas queriam que ao invés de rematar, ele enviasse a bola a “pingar” para a área. Diziam: é longe. Pinga lá”. Mas Luís chutava e a bola entrava.

Importa porém referir que o dianteiro canarinho tinha outras capacidades e características. Não era um homem de “viver” no interior da grande área, mas aparecia para fazer miséria, através das imprevisíveis acelerações, ou dos seus pontapés de surpresa. O apogeu foi atingido muito cedo. Alto, a rondar o metro e oitenta, espadaúdo, não virando a cara à luta, travou duelos interessantes com os centrais contrários, que se viam com dificuldades para marcá-lo, pois actuava ao estilo “vagabundo”.

Juntamente com Artur Semedo, em 1977 foi convidado “a saltar o arame”. Não para a África do Sul, mas para Portugal. Houve troca de correspondência mas o pai não o deixou sair. Depois veio a lesão.

A 21 de Agosto de 1978, jogou pela Selecção Nacional pela primeira e única vez, no Estádio da Machava, diante de Cuba. Pelo nível de exibições e desequilíbrios que colocava nas partidas pelo Costa do Sol, esperavam-lhe muitas mais internacionalizações. Porém, esse sonho e provavelmente outros, acabaram por ser cerceados devido a uma gravíssima lesão, que reduziu claramente os seus atributos, particularmente a superior capacidade de fazer o gosto ao seu poderoso pontapé, que colocava em pânico as defensivas contrárias.
Como foi a lesão?

Aconteceu numa disputa de bola com Joaquim Gonçalves, do Sporting (hoje Maxaquene). Luís tinha invadido a área adversária e na altura em que já havia ensaiado o seu fortíssimo pontapé, o duro central adversário opôs-se, de pé em riste. O choque, apesar de violento, parecia sem grandes consequências. Puro engano. Acabou reduzindo as capacidades e a carreira do jovem avançado.

Ainda tentou continuar a jogar, arrastando-se, enquanto se submetia a tratamentos. Os nossos hospitais não possuíam aparelhos para diagnosticar com exactidão a lesão. Uns diziam que era no joelho.

Outros, menisco. A verdade é que não era nada disso. Foi uma ruptura de ligamentos. Soube-se mais tarde que se tivesse parado uns meses e com a tecnologia que existe hoje, teria voltado à ribalta. Foi jogando, esforçando-se, mas… não deu. As intervenções e tratamentos a que foi sujeito, no país e no estrangeiro, permitiram-lhe um regresso aos campos, mas sempre receoso em meter o pé.

No Costa do Sol, passou a alternar a titularidade. Jogava a coxear, denotando grande empenho, mas era visível a redução das suas faculdades. Sem jogar regularmente nos canarinhos, aos 21 anos, transferiu-se para o Maxaquene, tendo jogado durante uma época.

Cedo, muito mais cedo do que o futebol moçambicano merecia, Luís teve que pendurar as chuteiras, quando os voos que lhe estavam pré-destinados eram bem altos. Ao despedir-se, ficou na retina de quem o viu actuar, a potência e eficácia do seu fortíssimo pontapé.

Recordemos: falta assinalada na zona do meio campo. Luís ajeitava a bola no pelado ou relvado. Tomava balanço. Cinco/seis passos para trás. Olhava para a baliza. Ajeitava os calções. Dava entre três a quatro biqueiradas no chão. Arrancava para a bola e chutava com tremenda violência e imenso jeito. O resto ficava à responsabilidade dos locutores e comentaristas desportivos que cobriam o evento.

Pois foi esta ex-estrela do futebol nacional que nos deixou. Uma referência dentro e fora dos campos. Um bom jogador e um bom homem. Foi-se o futebolista, ficou a sua obra! Descança em paz, Luís Siquice!

Quando você se apaixona por correntes de prata, você pode se apaixonar por correntes de ouro.

Você pode se apaixonar por belos estranhos e pelas promessas que eles fazem.

Dire Straits

 

 

Zaiby Manasse pode até ser um escritor pouco conhecido, mas já tem três livros lançados. Depois de O mel do meu passado presente (poesia – 2013) e Devaneios ensanguentados pela globalização (poesia – 2014), em Junho estrou-se como ficcionista com A caneta do balcão 1. Chancelado pela editora Kulera, a obra literária aduz uma história de amor entre Inácio e Felícia. Ambos se amam, no entanto, entre eles existe Ernesto, marido de Felícia, o maior entrave na relação entre os protagonistas. Ernesto é áspero e infiel, porém, para a família da esposa, isso nem é um problema, pois há um outro adjectivo a qualificar aquele vilão: rico. Por isso, sem qualquer limite, Ernesto ofende, humilha, viola e violenta a parceira sempre que o apetece. Logo à partida, está aqui uma história sobre realidades comuns, destacando-se personagens que se apaixonam por correntes de prata e por belos estranhos.

  1. Aspectos negativos

Bem ou mal, Zaiby Manasse tem fôlego para escrever uma história interessante. O escritor goza de boa imaginação e até consegue atribuir a pequenos acontecimentos relevância fictícia oportuna. O problema (grave) é a falta de consistência narrativa. Em A caneta do balcão 1 estão reunidos elementos que tornam o exercício do autor frágil. Honestamente, o livro não deveria ter sido publicado como está, com gritantes erros ortográficos ou atropelos à boa pontuação. Além disso, Manasse, muitas vezes, precipitou-se na urgência de aproximar os protagonistas. A grande consequência disso é simples: Inácio e Felícia encontram-se exageradamente em contextos dispensáveis, tornando alguns episódios supérfluos, principalmente quando o autor tenta introduzir imagens sensuais à história através de má selecção vocabular.

A caneta do balcão 1 tem um problema de verosimilhança acentuado, para um texto bem assente à realidade. Paralelamente, mesclam-se no mesmo universo diegético muita falta de apuro lógico aos encontros entre os protagonistas (em lugares e horários pouco prováveis, considerando o tipo de matrimónio de Felícia) e uma perspectiva redutora do narrador em relação às outras personagens. O princípio, o meio e o fim da ficção é Inácio e Felícia. Logo, o narrador desvaloriza, por exemplo, o passado de Ernesto, o que poderia até ajudar a compreender o seu carácter. Na verdade, o passado das personagens, neste livro, quando surge, é fugaz e próximo ao presente da história. Por conseguinte, a construção de Ernesto e da sua amante Cátia, importantes como vilões, falha frequentemente devido à essa urgência em aproximar os protagonistas.

Os diálogos entre as personagens também merecem atenção, devido à inconsistente elaboração discursiva. Neste aspecto, pode-se reparar no caso da velha Alzira, a avó de Felícia, ou nas intervenções dos familiares de Inácio. Faltou precisão, aquele toque mágico que cativa e deslumbra. Manasse poderia ter trabalhado mais as personagens (explorando mais as suas histórias), o discurso do narrador e investir em anacronias, por exemplo, pois isso impediria a ficção ser tão linear.

  1. Aspectos positivos

A representação do espaço é dos aspectos bem conseguidos em A caneta do balcão 1. Através do livro, percorre-se os bairros das cidades de Maputo e Matola, retratados como são, numa espécie de registo do lugar no tempo. Esta abordagem, de facto, é capaz de estimular alguma imaginação no leitor, levando-o a conhecer espaços reais através da ficção ou a repensar nesses mesmos espaços estando virtualmente distante.

No retrato do espaço não escapa à mira do narrador particularidades sociais quotidianas dos munícipes personificados pelas personagens. Nisso é possível observar-se o drama do transporte, as fragilidades do Sistema Nacional de Saúde, os comportamentos das ruas e dos lares moçambicanos. Não obstante, a escrita de Zaiby Manasse projecta elementos propícios para um debate sobre a tradição, a família e o lugar da mulher enquanto sujeito (que se pretende) emancipado. Felícia é um modelo de alma esclarecida, todavia encarcerada pelo fardo que a família a coloca nos ombros. Sem poder de escolha em relação ao homem com quem quer se casar, a personagem é obrigada a hipotecar a sua própria felicidade em troca do bem-estar dos seus. Nesta condição, a história de Manasse lança um alerta sobre que tipo de sociedade os moçambicanos estão a construir ao condicionarem o futuro das raparigas, quando são ensinadas a servir sem questionamentos. Na história, esta asserção tem uma consequência. Conhecendo a família, Felícia, mesmo agredida e humilhada pelo marido, resiste até ao limite à infelicidade, sem denunciar a violência.

Pecando em questões atinentes à forma, em A caneta do balcão 1 Manasse acerta na contextura ficcional aparentemente dedicada a um certo público literário, provavelmente menos preocupado ao rigor estético. Este não é um livro para satisfação de leitores exigentes. É daquelas histórias românticas juvenis, carregadas de fragilidades, é certo, mas que entusiasmam leitores com outro tipo de interesse narrativo.

A caneta do balcão 1 é uma história com peripécias rápidas, como que a acompanhar o ritmo da vida urbana actual, sobre a esperança e sobre o amor enquanto pretexto para a liberdade. Na narrativa, a solidariedade e o perdão são outras qualidades destacadas. Certamente, Zaiby Manasse sabe como vai o mundo materialista e, por essa razão, adiciona à sua ficção uma personagem que nunca desiste de amar, mesmo quando o amor parece impossível. Felícia carrega consigo os destinos de várias mulheres moçambicanas, condicionadas por uma falsa ideia de bem-estar. Felícia não se apaixona pelas correntes de prata e nem de ouro ao casar-se com Ernesto, como Cátia, mas por um belo estranho e pelas promessas que ele faz: Inácio. Neste sentido, há muitas lições enriquecedoras n’A caneta do balcão 1.

 

Título: n’A caneta do balcão 1

Autor: Zaiby Manasse

Editora: Kulera

Classificação: 11,5

 

O homem que desempenha um papel num acontecimento

histórico nunca compreende o seu significado.

Tolstoi

 

Quem se interessa por Líbano deve saber que há muito tempo que aquele território é alvo de vários interesses. Persas, romanos, otomanos e, mais recentemente, franceses, sírios e israelitas encontraram naquele país asiático um importante espaço para exercerem a sua influência política. Talvez, por isso, ao longo da sua história, os libaneses têm lidado com muita dor e consternação, enquanto tentam construir uma nação ideal.

Um dos momentos mais difíceis para o Líbano aconteceu entre 1975 e 1990. Nesses 15 anos de guerra civil, a opor cristãos e muçulmanos, morreram milhares de  pessoas e grande parte das infra-estruturas locais foram destruídas. Sete anos depois da guerra iniciar, em Junho de 1982, Israel invade Líbano, oficialmente, com a pretensão de acabar com os ataques da Organização para Libertação da Palestina (OLP). Esse movimento, na altura liderado pelo falecido Yasser Arafat, tinha no Líbano apoio das milícias muçulmanas e do exército sírio. Já os israelitas relacionavam-se com as Forças (cristãs) Libanesas, de Bashir Gemayel, que, curiosamente, tendo sido eleito presidente em Agosto de 1982, foi morto dias antes da tomada de posse num atentado à bomba reivindicado por um partido pró-Síria.

Este episódio é usado como pretexto por Israel para que o seu exército se desloque à parte Oeste de Beirute, de maioria muçulmana, oficialmente para evitar qualquer tentativa de desforra em relação à morte de Gemayel. Entretanto, milicianos cristãos libaneses, com o apoio do exército israelita, invadem os campos de refugiados palestinos, em Sabra e Shatila, e massacram milhares de pessoas, entre crianças, mulheres e idosos. Os relatos de corpos amputados e esmagados chocaram a toda gente sensata, inclusive moçambicanos. Por isso, passados 30 anos, a JC Editores salvaguarda a memória dos libaneses que sofreram em 1982 ao lançar, a título póstumo, o livro Tâmaras azedas de Beirute, de José Craveirinha. A obra poética é uma solidariedade em verso do autor para com os libaneses e palestinos que minguaram com as acções dos seus vizinhos israelitas, desde cedo hostis à criação do Estado da Palestina.

Em 31 páginas, o livro de Craveirinha é, igualmente, um acto de repugnância, mais uma vez, contra à injustiça e contra à opressão. Como fez a vida toda, o poeta usa a escrita para denunciar, despertar, consciencializar e, deste modo, exercer a sua expressão na qualidade de cidadão, enquanto homem do mundo. Assim, em Tâmaras azedas de Beirute, José Craveirinha posiciona-se no lado dos que sofrem, criticando veemente a barbárie e as quizumbas orientais no outro lado do planeta. Nesse ofício, logo no primeiro poema, que dá título ao livro, há um sujeito de enunciação vertical, que diz quem são os israelitas invasores que geram terror em território alheio: “Plagiando a ‘blitzkrieg’ dos seus saudosos tempos nazis/ soldados judeus em apropriados dromedários de aço de/ nefastas patas blindadas/ assolam o Líbano/ E MATAM!” (p. 11).

Com efeito, para o autor, a solidariedade poética é uma questão de sensibilidade e honestidade imprescindíveis, por lhe ser impossível resistir calado ao assassínio de crianças na capital libanesa: “Neste papel estarei quite com a minha consciência/ mas as crianças assassinadas terão outra vez vida? (P. 11)”. Certamente que não. Nem os menores voltarão a viver e tão-pouco as balas/ os misseis disparados reconstruirão o que a tragédia destruiu. Esta situação faz com Beirute esteja no livro como um lugar de angústias, no qual a representação do que pode ser desumano está eficientemente sintetizado em artefactos que destroem o amor no limiar da felicidade. Isso é o que nos sugere o poema “Os penúltimos”: “Projécteis de várias estirpes/ ornamentam as corbelhas/ de jovens/ noivos (p. 15).

Quando Craveirinha recorre aos armamentos, nos poemas que compõem Tâmaras azedas de Beirute, em parte, a pretensão crítica é mesmo de exprimir isso: quanto mais sofisticada for uma arma, mais dor irá causar a pessoas inocentes, no caso libaneses e palestinos apoiantes da OLP, para quem dedica toda a sua ternura. E no meio da crise, dos bombardeiros e dos mutilados, atento ao pormenor, Craveirinha não deixa de nos trazer a beleza da capital libanesa retratada na mulher: “As lindas raparigas palestinianas/ são extraordinariamente flexíveis/ agonizantes nas ruinas de Beirute” (p. 12).

Do mesmo jeito que aquelas raparigas aparecem com a beleza incólume nos derradeiros momentos da vida, sendo o centro do universo poético de Craveirinha, Beirute está configurado como espaço histórico, é certo, e, principalmente, como resistência à destruição.

Ao compararmos os eventos aludidos em Tâmaras azedas de Beirute com as explosões do dia 4 deste Agosto, na capital libanesa, fica-se com a sensação de que a história se repete de forma cíclica, afinal o mundo continua a produzir bombas e engenhos dessa natureza. Ora, com Craveirinha observamos, primeiro, que a dor está além dos territórios nacionais. Logo, a solidariedade só pode ser um factor de união. Segundo, Craveirinha revela-nos que os países estão ligados por afecto ou por ódio mais do que se possa imaginar. Por isso mesmo, um episódio distante, aparentemente desligado do nosso contexto, pode-nos trazer muitas surpresas. E viu-se. Uma explosão no Porto de Beirute, no dia 4, tem repercussões em Moçambique quando se fica a saber que as 2,7 toneladas de nitrato de amónio tinham sido encomendadas pela Fábrica de Explosivos de Moçambique (FEM). Aí, os ventos do Oriente passaram a interessar ainda mais os moçambicanos que não deixaram de exagerar ao deduzirem que a carga apreendida há sete anos na capital libanesa poderia ter explodido no Porto da Beira. Mas isso até entende-se. O Idai deixou-nos em alerta máximo em  relação à fatalidade.

No quarto volume de Guerra e paz, de Tolstoi, uma entidade afirma: “O homem que desempenha um papel num acontecimento histórico nunca compreende o seu significado”. Será o caso José Craveirinha, um poeta profético que sonhou com um país que depois existiu? Além de se manifestar contra os invasores do Líbano, terá sido interesse de Craveirinha manter-nos implicados com os libaneses através da literatura? Um revolucionário, defensor da soberania dos povos, dos direitos humanos ou da fraternidade revela-se em relação a Cabo Delgado, Mogadíscio ou a qualquer espaço do planeta. O pensamento de que a dor de qualquer ser humano deve ser sentida como nossa está presente no livro póstumo de José Craveirinha, que, mesmo tendo partido desta para outra dimensão, continua a enviar-nos mensagens sobre ideais e compaixão.

Tâmaras azedas de Beirute não é apenas um livro de 31 páginas, é o jeito como Craveirinha se posiciona em relação aos eventos macabros, resolutamente, como agente activo da oração. O livro de Craveirinha coloca-nos Líbano nos nossos próprios pés, exaltando a liberdade sempre, seja onde for, através de um afecto cada vez mais escasso em tempos de tantos extremos: “Este mísero poema ateu nas catedrais diz:/ Deus esteja convosco ó meus irmãos libaneses de/ Beirute.// Este mísero poema infiel nas mesquitas diz: Salam Aleikum/ Ó meus irmãos libaneses de Beirute”. E mais, num tom conciliador: “(…) Apertai as mãos ó/ concidadãos do Mundo./ Em nome da Bíblia e do Corão largai os morteiros/ e apertai as mãos nas ruas de Beirute” (p. 30 – 31).

 

Num contexto de alta tensão política e social no Líbano, que já resultou em demissões em bloco no governo local, no mínimo, Tâmaras azedas de Beirute, mesmo inspirado na invasão israelita, é um livro actual, sobre “nós no mundo”.

 

Na semana em que ocorreu o rapto do filho da Alicinha um outro fenómeno abalou todo o bairro do Chamanculo. Há quem diga que uma espécie duma maldição ali caíra, como o sopro de um vento que em breve iria dissipar-se. Todos estavam já acostumados a estes eventos cíclicos, que iam e vinham, nem que fosse para quebrar as rotinas dos residentes e colocar-lhes nas bocas novos temas para conversas.

O caso foi que um sujeito de nome Artur acabara de abrir uma agência funerária a que dera o nome inspirado de “Agência Funerária Boa-Viagem”, cuja sede instalara mesmo ao lado do snack-bar Twist. Naquela manhã, ele próprio, o senhor Artur, fora recolher o corpo de um homem na morgue do Hospital Miguem Bombarda – não aparecera ninguém ainda para a vaga de motorista do carro funerário, sabido é que ninguém está na disposição de lidar com defuntos sem prévios e competentes tratamentos. O caixão encontrava-se no interior de um veículo Peugeot 404, station, rodeado e abraçado pelos parentes mais próximos do defunto que, assim, sentiam-se mais aconchegados ao seu ente querido nesses últimos momentos de contacto. Outros parentes, vizinhos e conhecidos aguardavam pelo féretro e pelo cortejo aos portões do Cemitério de Lhanguene. Passava pouco das dez horas da manhã. O cortejo ia em marcha fúnebre, se assim se poderia dizer. O tráfego na Avenida do Trabalho entupia. Os motoristas de camiões com atrelados a abarrotar de mercadorias, machimbombos e veículos ligeiros buzinavam, atrasados nas suas actividades.

“O que se passa lá adiante?”, questionavam os motoristas que se encontravam no meio da longa fila, por  detrás do carro funerário.

“Um palerma de condutor dum kwerre conduz a uma velocidade de quem anda a pé. Esse é que é o problema”, respondeu outro que se dirigia em sentido contrário, em direcção ao Alto Maé.

Assim iam os humores naquele troço da Avenida do Trabalho.

A inexperiência do senhor Artur fizera com que escolhesse essa via, em vez de utilizar a Estrada das Estâncias para alcançar a brigada Montada e daí ir directamente ao Cemitério. Em chegando às proximidades do Hospital da Missão Suíça resolveu acelerar a velocidade do veículo. Fê-lo, mas sem prestar a devida atenção. Quis ultrapassar um machimbombo e, para sua surpresa, colocou-se frente a frente com um camião que circulava em sentido oposto a uma grande velocidade. Numa manobra de emergência para evitar o embate, guinou à esquerda, galgou o passeio e voou directamente para varanda da cantina do Gingador. Embateu em duas colunas com um estrondo que espantou os transeuntes e alarmou os pacientes do Hospital. A violência do impacto cuspiu os passageiros e o caixão para fora do veículo. Como se o incidente fosse de pouca monta, o caixão, por sua vez, executou três piruetas no ar e foi cair por cima dos vendedores que mercavam produtos sobre a varanda. O cadáver do pobre homem foi cuspido da urna e aterrou à porta de entrada da loja onde ficou estatelado de ventas para o ar. Foi um dos acidentes mais espectaculares e mais macabros jamais presenciados pelos utentes daquela via e pelos fregueses do Gingador. Este, alarmado pela comoção, interrompeu o matabicho de vinho com chouriço e saiu para testemunhar aquele que seria um dos motivos principais para encerrar as portas do estabelecimento e transferir os negócios para locais menos propensos a ter guarnições de cadáveres à porta da sua loja.

A notícia de que um morto ressuscitara na varanda da cantina do Gingador, e que lá penetrara para umas compras, correu como poeira ao vento, do Chamanculo ao Cemitério, do bairro Fajardo ao Minkhokwene.

O senhor Artur saiu miraculosamente ileso do acidente. Passadas as primeiras vertigens, mas desorientado no espaço e no tempo, retirou-se do volante e eis que – para surpresa de todos! – deu às-de-vila-Diogo, numa corrida desenfreada, atravessou a estrada e introduziu-se no cinema Tivoli cujos portões se encontravam abertos para limpeza e arejamento. Foi lá onde o acharam, trémulo e agachado, debaixo de um assento, lá à frente junto às filas da plateia. Era um ser semi-morto, rendido à evidência de que para certos mesteres era indispensável uma protecção segura por via de especiais preparos. A agência funerária encerrou portas temporariamente – umas tréguas para reflexão e replanificação.

Para quem estiver céptico sobre a veracidade destes episódios convido a que se dirija à antiga loja do Gingador porque lá testemunhará, – até hoje por reparar – os prejuízos causados pelo Peugeot do senhor Artur ou escutará dalgum velho residente da zona a narração da estória empolgante do morto que, tanto quanto pôde, protelou a sua chegada aos portões do Cemitério de Lhanguene onde iam decorrer as exéquias do seu próprio funeral.

O senhor Artur era uma pessoa de têmpera dura, que se não deixava abalar por desaires do género que se narram acima. Forjara-se numa vida de dificuldades e daquelas aprendera que, se queria ser bem-sucedido na vida, muito tinha de batalhar. E assim fez. Empreendedor como poucos, desviou temporariamente as atenções do negócio funerário para abrir um tasco, o snack bar “Senta Baixo” e uma serração onde vendia sacos de carvão, lenha e material de construção, que é o mesmo que dizer estacas, barrotes, molhos de caniço e outros acessórios complementares.

O negócio da taberna ia de vento em popa. Daí que, e servindo-se da disponibilidade dos materiais da serração, juntou o útil ao agradável. Num terreno baldio anexo à sua residência construiu um componde de doze casas alinhadas três a três, num quadrado perfeito. Parecia a residência de um soba. A demanda de habitação era enorme, sobretudo por emigrantes que vinham do campo, nomeadamente raparigas, até mulheres adultas, à busca de oportunidades de trabalho na cidade. Assim nasceu aquele prostíbulo, o componde do Twist que, emparelhado com o “Senta Baixo” inspirou poetas, alimentou romances de amor, testemunhou memoráveis combates, assim como noites de música e de dança ao som de agrupamentos musicais e dum  dju-box.

Twist era o lugar de referência para todo o bairro do Chamanculo, o núcleo aglutinador das populações que por ali se cruzavam, provenientes de ou com destino ao Clube Desportivo de Beira-Mar, da Ufa ao terminal das carreiras do Sá, daí ao Matadouro Municipal, do bazar do Diamantino ou a caminho da Missão de S. José. Deixou de ser o bar, o compone ou a agência funerária, para ser o lugar de encontros, epicentro do mapa de actividades socias, de intersecção de geografias e caleidoscópios de etnias e de culturas.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

Há duas versões relativamente ao Moçambola, em tempo e no pós-Covid.

A primeira, aponta para o regresso a uma competição mais consentânea com o momento difícil no país, em que a maioria dos clubes que já (sobre)viviam do desembolso dos patrocinadores, viram a situação “apenas” agravada pela pandemia. Assim sendo, apontam para um passo atrás e, daqui a uns anos, dois em frente;

A segunda, mais ousada, revê-se no inverso: dois passos em frente com todos os riscos inerentes, para depois, se tudo correr bem, não haver necessidade de recuos!

FUTEBOL É UMA COISA DESPORTO É OUTRA…

Em tempos, cometeu-se no país um erro gravíssimo, cuja factura ainda está a ser paga: o corte de fronteiras, que cerceou a carreira de muitos atletas com potencial para levar o futebol do país ao Mundo.

Nalguns países da Europa, faz-se a distinção entre futebol e… desporto. Com alguma razão, uma vez que, por exemplo, o salário de um futebolista de gabarito, pode pagar a movimentação de todas as outras modalidades num clube!

Daí que nós, realisticamente, não podemos fugir muito deste tipo de paradigmas, se nos queremos beneficiar da força motivadora que o desporto-rei, cada vez em maiores doses, proporciona em alegria e outras “nuances”, a toda uma nação.

Na antevisão de um país em paz e em alta, com a exploração de recursos minerais, é impensável Moçambique não poder ‘galgar” lugares no “ranking” FIFA, com as nossas estrelas a serem, cada vez mais, objecto de cobiça dos grandes clubes e, em simultâneo, motivo de orgulho e satisfação interna.

Isso poderá não acontecer se desaparecermos dos altos fóruns, investindo apenas na juventude – os ditos alicerces – saindo porém dos “radares” da FIFA, e, consequentemente, do acesso aos respectivos apoios. Por outro lado, perder-se-ão factores motivadores para as nossas crianças e respectivos pais, que subalternizariam a opção pelo desporto competitivo.

Daí que o “edifício” poderá ser projectado com alicerces, mas do tejadinho para baixo. O que pretendo dizer?
Com um Moçambola que motive o envolvimento das multinacionais – e não só – abrindo portas para a contratação e “propagandação” de craques nos OI’s, poderemos ganhar tempo e espaço para a criação de BEBEC’s em massa, culminando em Academias. A partir daí, num curto prazo, o talento já provado e comprovado em períodos não muito distantes, irá despertar do adormecimento em que se encontra.

E a realidade actual tem demonstrado que a festa que o desporto-rei proporciona, semana a semana, traz ventos de emoção e esperança – tal como o gás – a soprarem do Norte, onde o Moçambola monopoliza conversas e exacerba paixões, ao contrário do que acontece na capital onde, mesmo em dias de derby, dificilmente se registam enchentes.

No dia 31 de Julho passado, a RTP (televisão pública de Portugal) exibiu no programa “Linha da Frente” uma reportagem intitulada “Cabo Delgado: Nascer para (Sobre)Viver”. Nela retrata-se a violência que se vive naquela província do norte de Moçambique, que já regista mais de 200 mil deslocados, que fogem dos distritos mais afectados para as zonas consideradas seguras.

O trabalho dos jornalistas Pedro Martins e Gabriel dos Santos mostrou com exclusividade as acções do Exército moçambicano no quartel de Mueda – o posto de comando das Forças de Defesa e Segurança na região norte -, segundo descreveu o comandante do Exército Ezequiel Muianga, entrevistado no teatro operacional pela RTP. Na verdade, parece que é a primeira vez que um dirigente militar de topo fala à imprensa desde que começaram os ataques em Outubro de 2017.

A equipa de reportagem teve privilégio de acompanhar uma acção de treinos, com disparos de vários tipos de armamento, com direito a entrevista aos militares que iam explicando os detalhes do armamento e até o peso das munições, no exacto momento em que treinavam; para além do acompanhamento do trabalho dos médicos militares no combate à pandemia da COVID-19, onde fiquei a saber que, regularmente, os militares são submetidos ao teste do coronavírus para evitar possível contaminação generalizada.

Não quero tirar mérito ao brilhante trabalho jornalístico dos meus colegas da RTP e a crítica não é direccionada a eles. Mas confesso que aquele era o sinal que faltava para concluir que o nosso Governo nutre um certo desprezo pelo jornalismo moçambicano e o povo que o elegeu, ao permitir que os moçambicanos continuem a ter a informação mais importante da vida do seu país através de jornais e televisões estrangeiros.

Aconteceu o mesmo em relação às dívidas ocultas. Foi assim em relação aos mercenários sul-africanos contratados para combaterem os terroristas em Cabo Delgado e pagos com o dinheiro dos impostos de cada um de nós. Foi assim em relação à presença de militares russos que entraram no nosso país para reforçar o Exército moçambicano em Cabo Delgado, em nome de uma cooperação militar que não sabemos quais são as contrapartidas disso.

O sociólogo Elísio Macamo lançou uma crítica recentemente, denunciando a “orfandade” e abandono a que estamos sujeitos por parte de quem nos dirige. Macamo foi ao ponto de dizer que “cada um de nós tornou-se num potencial ratinho, à procura do seu buraco para se proteger, porque o Governo e aquele que jurou defender a unidade nacional decidiram que não somos suficientemente adultos para sermos informados com honestidade e transparência sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado. Nunca houve um pronunciamento à nação naquela hora nobre do telejornal para falar de Cabo Delgado. Lemos por aí que eles foram pedir ajuda fora do país; que contrataram mercenários para nos defender, que as Forças de Defesa e Segurança se batem com valentia, etc. Só que certeza mesmo não temos, porque nunca ninguém nos informou com a mesma pompa e circunstância com que nos informam sobre a prorrogação do Estado de Emergência. Talvez por medo de causar pânico ou talvez por vergonha de reconhecer que não têm ideia de como lidar com a situação. Ninguém sabe ao certo”.

Pessoalmente, não sei ao certo o porquê desta grande preferência pelos órgãos de comunicação social de fora e pelo estrangeiro. Nunca dissemos, como jornalistas moçambicanos, que não temos coragem suficiente para irmos cobrir o conflito em Cabo Delgado. Aliás, somos nós jornalistas moçambicanos que cobrimos a guerra civil dos 16 anos e demos a conhecer ao mundo os horrores que estavam a acontecer em Moçambique.

Ademais. Nunca os nossos militares vieram em público dizer que não tinham capacidade para combater os terroristas em Cabo Delgado para se optar pelos mercenários sul-africanos ou pelos russos.

É esse mesmo Governo que assobia ao lado e faz ouvidos de distraído quando o Major-General Samuel Luluva disse numa aula de sapiência na Academia Miliar em Nampula que o nosso Exército precisa ser modernizado e equipado para melhor servir os desafios do momento.

Para quem está fora do contexto até pode pensar que estou a levantar um “não-assunto”. Entretanto, os argumentos abaixo podem ajudar a entender o sentido da minha ira.

Primeiro, é preciso entender que os jornalistas moçambicanos não estão a cobrir o que está a acontecer nas zonas de conflito em Cabo Delgado porque o Governo não permite que isso aconteça. Não se vai a uma zona de conflito militar sem garantia de segurança por uma das partes envolvidas. Razão pela qual o jornalista português José Rodrigues dos Santos, que cobriu sete guerras importantes no mundo, disse claramente que não existe imparcialidade na cobertura jornalística de uma guerra, porque ou o jornalista entra no teatro operacional sob protecção do Exército governamental ou sob protecção da contra-parte no conflito. Para este caso, estou a falar das próprias Forças de Defesa e Segurança que têm a obrigação de garantir a nossa segurança neste tipo de situações, tal como o fez com a equipa da RTP.

Olhando especificamente para Cabo Delgado, a única vez que a televisão pública nacional (TVM) cobriu aquele conflito foi no dia 5 de Novembro de 2017, quando os terroristas protagonizaram três ataques sucessivos contra igual número de bases das Forças de Defesa e Segurança na vila de Mocímboa da Praia.

O jornalista Florberto Fernandes e o seu colega de imagens saíram de Pemba quando souberam do sucedido e chegados a Mocímboa da Praia ainda estava-se em combate aberto, tendo valido muito a protecção da Polícia. Depois disso houve uma espécie de ordem invisível de “no go”!

Pessoalmente, enquanto jornalista da media privada, tive a sorte, repito, sorte, de ir por três vezes fazer cobertura das zonas atacadas e não mais que isso, porque o cenário de segurança foi-se deteriorando e seríamos um alvo a abater se fóssemos sem qualquer tipo de protecção.

Os colegas que se aventuram de alguma forma terminam da forma como terminou Amade Aboobacar que foi detido em Janeiro de 2019 por militares, na vila de Macomia, e levado ao quartel de Mueda (o mesmo sítio onde foi a RTP), onde foi interrogado por militares e agentes do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), sob acusação de que colaborava com os insurgentes e que era dono de uma conta no Facebook com o nome de Shakira Letícia Júnior, que publicava o que estava a acontecer no terreno. Amade viu-se privado da liberdade durante 108 dias e até hoje, mesmo já em liberdade condicional, a acusação ainda não conseguiu provar o que diz no processo.

O mesmo aconteceu com o jornalista Germano Adriano e quem sabe não seja a mesma motivação que levou ao desaparecimento, há mais de três meses, do jornalista Ibraimo Mbaruco.

Hoje em dia há uma espécie de ordem para não fotografar e/ou filmar no espaço público na cidade de Pemba, capital de Cabo Delgado. Quem se aventura desafiar essa ordem invisível tem o tratamento que teve o meu colega Hizidine Achá, no dia 14 de Abril deste ano, quando em pleno exercício de jornalismo, devidamente identificado, foi interceptado por agentes da Polícia, arrancaram-no o celular, apagaram as imagens que tinha feito de polícias a torturarem indiscriminadamente as pessoas no bairro de Paquitequete, e acabou retido numa esquadra.

Um dos valores nobres de um Governo é comunicar-se com o seu povo. A Constituição da República de Moçambique (2018) determina que o Presidente da República é o Chefe do Governo; é o Comandante-Chefe das Forças de Defesa e Segurança e como tal fica difícil o dissociar do que está a acontecer. Para os jornalistas da RTP terem acesso ao teatro operacional-norte claramente que foi informado e terá anuído o pedido dos jornalistas lusos.

Ao mesmo tempo, fica claro que tem informação de que não se deixa os jornalistas nacionais cobrirem o conflito. Até porque há um dado curioso: quase que de todas as vezes que o Chefe de Estado foi visitar as posições militares no terreno apenas é convidada a TVM e por vezes inclui-se a Rádio Moçambique. A media privada nunca é levada para fazer parte da cobertura.

O artigo 158 da Constituição da República de Moçambique define como competências gerais do Chefe de Estado dirigir-se à nação através de mensagens e comunicações; informar anualmente a Assembleia da República sobre a situação geral da nação. A mesma “lei-mãe” diz que o Presidente da República é o garante da Constituição da República.

Ora, um dos direitos fundamentais que cada moçambicano tem é o direito de acesso à informação. Porém, esse mesmo direito pode estar a ser limitada pelos argumentos que acima expus, numa atitude anti-democrática.

Cabo Delgado também é Moçambique e precisamos ter acesso ao que está a acontecer com os nossos concidadãos e fazermos chegar ao povo “patrão”.

O mês de Julho, de 2009, marcou o início do turbilhão académico da Universidade Lúrio. Primeira instituição pública de ensino superior, nascida fora da capital. Logo, se convergiram as exigências e vontades. Os sonhos e as promessas. Chuiba e Wanaangu, no triângulo Pemba, Sanga e Nampula, se prontificaram para as novas bases do saber.

Estas sedes abriam novas páginas de conhecimento. As ditas “Hard Sciences” vinham desafiar o establishment. Entre medicina e engenharias, florestas e agricultura, biologia e tecnologia. Um começo titubeante, porém, seguro, com jovens originários de todo o país, mas muito poucos destas Províncias.

Não eram, apenas, os estudantes que se auto-desafiavam. Eram, igualmente, seus docentes, jovens, inexperientes, uns buscando seu primeiro emprego, outros, mais calibrados, procurando seu espaço. Professores estrangeiros, amiúde, remavam com velocidades distintas. O mais sensato, por vezes, deixou marcas para descrença. Quantas vezes isso passou-nos pela cabeça?!

De Lichinga para Sanga, foi um ápice. As condições iniciais, radicalmente, se transformaram. Mudança de tempos e de vontades. Lichinga, pacata e pouco hospitaleira, fez nascer o interior agreste de Wanaangu. Wanaangu que, em tradução livre, significa meu filho, não poderia ser filho de ninguém. Era apenas um filho no imaginário de Samora Machel. Um provérbio local dizia que no mundo, ninguém nasce pobre, mas todos que nascem encontram a pobreza no mundo. Se não cremos, somos pobres.

Wanaangu sempre foi a proposta de cidade que só cresceu para o tamanho de cidadela. Despida de intelectualidade, porém, com enorme conhecimento e saber tradicional. Foi normal e aceitável perder alguns, motivar outros e criar, sobretudo, arrependimentos e desistências.

Das primeiras aulas, das experiências de convidar os camponeses para conhecer o campus universitário, da montagem de laboratórios convencionais e híbridos, da captura de espécimes de gafanhotos e outros bichos praga. O respaldo teórico conformou-se com a prática. A verdejante paisagem conheceu, aos poucos, a soja e o seu leite, o morango e os pequenos campos de ensaio que mais se confundiam com espaços lunares.

Não tardou, vieram as jornadas científicas e as empresas florestais, Green Resources, que vasculharam capital humano, essa combinação entre inteligência pura e talento por desbravar. Também a internet chegou. Com ela a transformação dos hábitos e da convivência de hábitos. Os jogos da liga profissional de basquetebol da NBA criaram seu espaço e, na serenidade da noite, despontaram os conflitos de manter, em clausura, jovens com voraz apetite de acasalar. As noites de lua cheia trouxeram quizumbas.

Depois, vieram os festivais culturais. Sukumas, Neymas e Valdemiros, emocionaram plateias mistas. Pela sua voz, requebraram as ancas das rainhas locais dos políticos e curiosos. Também pelas suas vozes chegaram os conselhos de prevenção do HIV e de tantas outras doenças. Nos dias de hoje, eles cantariam contra o Covid-19. Só mais tarde, foi construído o pavilhão de desportos. Ex libris de Sanga. Imponente, o pavilhão conquistou todos os corações e milhares de emoções. Por ali passam os presidentes e os ilustres. Wanaangu ganhou sua bandeira, seu mural e eternizou-se como a cidadela da paz.

Em 2013, o primeiro grupo de estudantes recebeu seus diplomas. Era só o começo de uma multifacetada jornada. Os diplomas tinham algo superior que o seu próprio significado original. Não significavam nem título, nem o fim. Apenas uma permissão para continuar a sonhar e prosperar. Um recomeço para novas etapas e outras estações. Rosalina Tamele e tantos outros jovens fizeram parte dessa fornalha. Não tardou que os mais habilidosos fossem, como consequência, escolhidos para ingressar no corpo docente. Transitar de uma experiência de monitoria gratuita, para outra, minimamente, remunerada. Com os contactos e a abertura ao mundo, Wanaangu se tornou conhecida além-fronteiras.

No Oriente, da terra do sol nascente, Japão, chegaram os primeiros jovens deste país, ávidos por redescobrir os segredos milenares da agricultura africana, a cultura africana e a cultura Yao. Eles aprenderam a língua e os modos de ser e estar. Viveram em quartos duplos, cristalizaram as amizades e fizeram planos para o futuro.

Misaki, uma das mais talentosas japonesas que passou pelo campus do Wanaangu, transformou-se em irmã de alma e de coração da Rosalina Tamele. Começaram a escrever um futuro diplomático e científico. A parceria cresceu silenciosamente, assim como a semente, que quando cresce não faz ruído. Rosalina, anos mais tarde foi seleccionada para fazer a pós-graduação no Japão.

Existe um simbolismo histórico neste percurso. Uma marca de uma geração de múltiplas vontades, moldadas no sacrifício e empenho. Esta dimensão que ultrapassa barreiras e preconceitos, que sobe montanhas e afirma-se como a liderança do futuro que teima em ser presente.

Agora Wanaangu ganha filhos. Os filhos da terra prometida. Nobres. Ilustres. Cultos e formados ao mais alto nível. Wanaangu se converte num re-significar de destinos e infinitos. Uma nova página e correntes filosóficas que farão desta terra o céu e, trarão de volta o homem novo que tarda a surgir. Wanaangu se veste de lentes cor-de-rosa e penteia as suas esperanças.

Wanaangu ganhou a sua primeira Doutora. Rosalina Tamele. Uma jovem que estudou florestas e que mescla conhecimento, aptidão, talento e vontade de triunfar. Um exemplo de quem saiu do desconforto e procurou na ciência, uma forma de estar. Esta Rosalina, algumas vezes Rosa, outras Lina, continua sendo uma jovem tímida e insegura, porém, destemida, inteligente, delicada e perspicaz.

Ainda ecoam os relatos do final do seu mestrado, na mesma cidade japonesa, onde mesmo tendo as notas para progredir para o Doutoramento, ficou sem os recursos necessários para se manter. Não virou a cara a luta e acreditou. Foi trabalhar para um pequeno restaurante japonês e, aí, procurou subsistência. Japão ficou a conhecer culinária moçambicana. Estes, os exemplos que alguns de nós temos vergonha e complexo de passar por eles. Depois, e de forma natural, voltou a convencer que o seu talento não poderia ser desperdiçado. Ganhou a bolsa e progrediu.

Hoje, com o Covid-19 validando a nossa caminhada e os nossos passos, Rosalina voltou às distinções, como uma marca que lhe parece ser comum. Doutorada com distinção e pleno reconhecimento. Vai continuar na Universidade para mais uma estadia, agora como assistente.

O que quer que seja que a vida lhe reserve, esta menina é uma vencedora. Ela não vence apenas os cânones académicos, mas deixou que o seu coração, também, ganhasse o amor. Estudar só tem sentido quando valorizamos o meio circundante. Aqui estava a dupla vitória. Em Wanaangu ou em Japão, aqui está o sentido da vitória.

Wanaangu rejubila, academia moçambicana engrandece-se, família Tamele vai assistindo, sentada numa plateia especial, tudo aquilo que sonhou, mas nem sempre acreditou. A história de Wanaangu escreve-se com Machel, o mês de Julho com centenário de Mondlane e a Lúrio da Rosalina escrevem estas etapas histórias em seus corações, para os reverenciar. A cada um de nós, caberá, apenas, agradecer a Wanaangu e Rosalina por existirem e acreditarem.

Cara avó Tavasse

É sempre um prazer escrever uma carta para ti, avó, e espero que te encontre em perfeitas condições de saúde. Lembro-me das noites do inverno em que ficávamos até mais tarde, à volta da fogueira, a conversar e a contares aquelas histórias engraçadas sobre o coelho, sempre o mais esperto e manhoso do que os outros animais. Animavam muito.

Hoje, não consigo fazer isso do mesmo jeito que a vovó para os meus filhos mais novos, sobrinhos e netinhos. A vida aqui na cidade é muito agitada. Não há tempo para nada. A luta pela sobrevivência é grande, pois o custo de vida está insuportável.

Os preços dos produtos da primeira necessidade estão sempre a subir. Pior agora com o coronavírus. A culpa é atribuída ao vírus por quase tudo que anda mal, apesar de, em alguns casos, sabermos que não corresponde à verdade, mas como não fala… pronto. Temos que engolir.

Com os choques que está a sofrer, o salário está cada vez magro e não chega para pagar todas as contas, nem para garantir a cesta básica. Não estou a exagerar avó.

É que aqui compra-se tudo, incluindo folhas de cacana que crescem sozinhas ai nas machambas da aldeia. Esse é o preço de viver nas grandes cidades.

O Governo, os empregadores e os sindicatos vieram a público dizer que este ano, devido ao maldito coronavírus, não haverá mexida nos salários, mesmo os mínimos nacionais como o meu. Que tristeza avó. Todo o mundo está a murmurar, mas nada a fazer. Odeio aquele que originou o virus!

Vovó, recebi a tua carta que me enviaste há dias em mão do senhor Muthacathe, cobrador do autocarro da transportadora Cossa. Tenho que confessar que fiquei surpreendido com as questões que me colocaste.

Afinal, apesar de não teres tido a oportunidade de estudar muito, compreendes muito bem algumas das coisas que estão a acontecer na sociedade. Se calhar melhor do que pessoas que eu conheço que se sentaram na carteira. Podem faltar-te alguns argumentos. A capacidade de interpretar alguns fenómenos, mas a visão está lá. Os meus parabéns vovó.

Em primeiro lugar queria reconhecer que as suas perguntas são pertinentes, mas algumas delas são difíceis de responder. Espero que me compreendas se eu não puder satisfazer cabalmente as tuas expectativas.

Querida avó. A senhora quer saber donde vêm os 3.5 mil milhões de meticais que o Governo anunciou recentemente para investir na criação de condições higiénicas nas escolas com vista à retoma das aulas. Confesso que não sei. Duvido que a fonte seja o deficitário Orçamento Geral do Estado (OGE).

Juro que acompanhei o debate do documento na generalidade e na especialidade, na Assembleia da República, e estou seguro de que não há lá nenhuma rubrica específica para esta finalidade.

Alguém apareceu na TV a dizer que o dinheiro era do OGE, mas não disse claramente de que rubrica saiu. Por isso, vovó, não fiquei muito convencido com a explicação dada, mas…paciência. Vovó. O melhor é nós ficarmos calados para não sermos mal interpretados. Não achas?

É que aqui no país pessoas que perguntam muito. Sobretudo os que falam a verdade, não são bem vistas. Quando identificadas, são afastadas dos seus postos, se forem chefes. É assim mesmo e eu sou chefe da limpeza.

Sabes vovó. Uma comandante provincial da PRM em Maputo foi exonerada alguns dias depois de dizer que há polícias que usam a farda e os meios da corporação ao serviço de bandidagem e que há dentro da polícia chefes de bandos de criminosos que actuam um pouco pelo país. Alguns polícias dizem que ela falou a verdade que lhe custou o posto.

Avó, por falarmos dos 3.5 mil milhões de meticais para as escolas, há uma coisa muito curiosa que está a acontecer. É que este dinheiro está a ser usado sem nenhum concurso público. Até parece regra e não excepção. Porque tanta pressa afinal? Será que todos os processos de reabilitação de escolas são gêmeos, não justificam o lançamento de concurso público e têm que ser por via de adjudicação directa? Que bela coincidência vovó! É melhor eu calar-me para não deixar de ser chefe da limpeza.

Mas avó, desculpa, o Tribunal Administrativo não gosta nada deste tipo de procedimento. Alguns gestores públicos já foram censurados por causa disso. Será porque havia pressa de aprontar as obras para que viabilizassem aquela aventura do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano da reabertura de escolas a 27 de Julho? Mas a lei não admite atropelos em caso de urgência. Lei, é lei, tem que ser cumprida.

Vovó, não sei se percebeste. O Estado de Emergência já acabou. Legalmente não há mais medidas que limitam as nossas liberdades como cidadãos. Praticamente regressamos ao período anterior ao de coronavírus em que se podia viver ou trabalhar sem restrições.

Significa que tudo pode reabrir, nomeadamente barracas, bares. As festas de aniversário e de casamento podem ocorrer sem a limitação dos convidados, enfim tudo aquilo que no estado de emergência era proibido.

Mas, vovó, é claro que não vamos fazer isso. O Estado de Emergência acabou, mas a doença continua. O coronavírus está a afectar cada vez mais gente no país. As estatísticas, assustadores, mostram isso.

Quer dizer que cada um de nós tem que tomar a consciência de que se deve prevenir contra a doença. Perto de dois mil moçambicanos são o rosto de coronavírus em Moçambique.

Não precisamos de ser policiados. Não é necessário que esteja escrito num decreto presidencial. Não é preciso esperarmos por uma nova comunicação do Presidente da República à Nação para sabermos quais são os passos a seguir.

Todos nós, vovó, sabemos o que se deve fazer. O que falta é todos nós cumprirmos como deve ser as medidas, nomeadamente a higienização das mãos, o distanciamento social, o uso da máscara, a etiqueta da tosse e outros protocolos do Ministério da Saúde. Se fizermos isso estaremos a contribuir para a redução de casos de contaminações com o vírus.

Não há decreto nenhum ou estado de emergência que resolva isso. Nem o estado de calamidade pública irá evitar a propagação de coronavírus no país. A solução está nas nossas mãos. Na nossa obediência. Na nossa entrega à luta contra a doença.

Se não fizermos isso, podemos ter a certeza de que estaremos a nos condenar a nós próprios. Tudo que nós fizermos é para o nosso próprio bem. Da nossa família. Do nosso bairro. Da nossa comunidade. Da nossa aldeia. Da nossa localidade. Do nosso posto administrativo. Do nosso distrito. Da nossa província. Do nosso país.

Tudo depende do comportamento de cada um de nós em relação à doença. O que fizermos e o que deixamos de fazer vai ser determinante para o regresso tardio ou mais cedo à nova normalidade. O regresso aos cultos religiosos. O regresso aos nossos negócios que nos fazem melhorar o nosso poder de compra. O regresso em segurança das nossas crianças às aulas. A retoma da nossa vida sem grandes restrições. Tudo isto é possível se nós nos empenharmos com afinco no combate a este mal.

Independentemente da decisão que vier do Presidente da República, o mais importante, o segredo de tudo, está na obediência. Em plena guerra contra o coronavírus no país e no mundo não deve haver quem vacile.

Vovó é inconcebível que numa altura destas em que o covid-19 está a dizimar gente no mundo e devíamos estar mais unidos para sermos mais fortes na luta contra a doença, alguém não acredite ainda na existência da doença. Infelizmente há pessoas assim em Moçambique que acham que tudo sobre coronavírus não passa de uma simples brincadeira ou invenção do governo alegadamente porque, tirando Eneas Comiche e esposa, ninguém mais apresentou-se como doente.

Avó Tavasse, termino por aqui. Espero não ter sido longo. Olha, proteja-te ai. A senhora é a coisa mais preciosa que eu tenho na vida. É melhor ficares em casa se não tiveres nada a fazer fora. Caso tenha que sair, usas a máscara. Nada de a colocar no queixo. Até mais vovó. Amo-te vovó.

Moçambique foi obsequiado por uma música de um cantor que usa o nome de “Irmão Mbalua”. É natural do distrito de Lugela, província da Zambézia, em Moçambique.

Tem um jingle e um refrão muito simples, que se fixa facilmente nas nossas memórias: o culpado é o namorado dela. Este jingle “bate”, “está em alta”, é “a música do momento”, como se diz na gíria popular. E tudo isso se deve também ao refrão e à restante parte da letra da música, que também gera polémica.

Diz a música, do jeito e até onde pude apreendê-la:

“Aquela moça sempere quando passa aqui, anda isolada, ninguém dali compania, eu admiro do jeito que ela vive mali, parece que ninguém toma conta dela. 2x

Vê o telefone que usa aquela moça usa , é moviteli amarrado com borracha, eu admiro do jeito que ele a vive mali, parece que ninguém toma conta dela.

Culupadu é o namorado dela. 2x. Avarento é o namorado dela, que não satisfaz as necessidades dela.  [Repete-se refrão].

Se fosse quase as garrotas lá na banda iam pulir curação daquele mano, até que ele juraria na verdade, que nunca farei desperezo deste, porque já leva tempo aquela moça soferendo uma tortura perigosa de amore. Contuto isso continua li amando, seu namorado apesar de tudo. Já leva tempo aquela moça soferendo uma tortura perigosa de amore”…

Em diferentes comentários que li, a música foi intitulada “Culupado”. Algumas pessoas são da opinião de que se trata de uma “não música”, porque a letra não diz nada ou, porque está pejada de erros linguísticos. Outras, afirmam que o conteúdo é demasiado machista e outros ainda, têm-na como uma boa música, porque descontrai, ie, “anima”, tal como se tem afirmado entre nós Moçambicanos.

Consultando o dicionário Priberam da Língua Portuguesa (acesso em Julho de 2020), constou-me que música é uma “Organização de sons com intenções estéticas, artísticas ou lúdicas, variáveis de acordo com o autor, com a zona geográfica, com a época, etc; é também a arte e a técnica de combinar os sons de forma melodiosa ou uma composição ou obra musical”, entre outros.

Se considerarmos essas definições, “Culupado” é uma música. Tem sons harmoniosos, que dão um ritmo, não só agradável ao ouvido, como também, bons para se dançar. Os sons foram combinados de “forma melodiosa”, é por isso que o jingle se fixa ao longo do tempo. Essa música até mereceu uma encenação cantada e dançada de Alcy, um artista cómico moçambicano. E a oferta de dois telemóveis ao autor, por parte da Movitel. É lúdica.

E é uma música que diz muito. E que muito é esse? E aí vamos a uma outra definição que diz: “Organização de sons com intenções estéticas, artísticas ou lúdicas, variáveis de acordo com o autor, com a zona geográfica, com a época, etc”. Essa música faz um registo sobre a civilização e mentalidade vividas em Lugela e muitas outras partes do nosso país, nos quais os rapazes, nos ritos de passagem, que incluem preceitos sobre a sexualidade e sobre usos e costumes ligados à vida conjugal, que são realizados tanto para meninos, quanto para meninas, marcando a sua passagem para a vida adulta, é lhes ensinado que devem cuidar e prover as suas mulheres. Sendo que cuidar, significa criar condições para que ela ande sempre bonita, na maior parte dos casos, em Moçambique, deve-lhe comprar sempre capulanas, por exemplo, entre outros bens, para manter ou melhorar a sua beleza e apresentação. A elas cabe, cuidar e seduzir o marido, atraindo-o, encantando-o e mantendo-o sempre enamorado. E cuidar, passa por alimentá-lo devidamente.

Vêm daí as afirmações na música: “eu admiro do jeito que ela vive mali”, “O culupado” é o namorado dela. Pois, se a moça já se encontra em idade de casar, pelo menos é o que aparenta a representação em vídeo, ela já tem namorado. E nessa civilização, o namorado é um noivo, é o homem com o qual a moça se irá casar. Nessa filosofia de vida, não se namora, com a ideia de depois se passar para um outro namorado e por aí em diante. Os meninos e as meninas, nessas civilizações são educados a namorar para casar. E, por causa disso, estando em idade de se casar, assume-se que tenha namorado que deveria cuidar e prover bens com qualidade. É a tradição daquele local. Que é diferente, não melhor, nem pior, que a ocidental ou que aquela que começa a aparecer em alguns círculos nas zonas urbanas, em Moçambique, nas quais, se debatem as questões de igualdade e de equidade de género.

Entretanto, devo acrescentar, que nesses círculos urbanos, mesmo as pessoas que não tenham sido educadas com a ideia de que os homens são provedores, fazem uso disso, para satisfazerem diferentes caprichos, mesmo assumindo, de antemão, que não se casarão com o/a visado/a. Esse capricho é de ambas as partes, homens e mulheres. E nesses contextos, a assumpção, por parte dos homens, é a de que se pago, posso usufruir da mulher e do seu corpo, como e quando desejar. E a que existe, por parte das mulheres, é, se o homem quiser dispor do meu corpo, deve pagar por isso. Acaba sendo um contrato implícito ou explícito, dependendo dos casos. E repito que estes posicionamentos são diferentes dos enunciados na música de Irmão Mbalua.

O que o cantor pretende destacar é a etiqueta cultural da sua tradição. Cuidar e prover a namorada, fazendo que ela se sinta a melhor de entre as outras mulheres. Acompanhá-la, sempre que possível e dar-lhe insumos de que possa dispor com qualidade. Neste caso, o tal insumo é representado pelo telemóvel, que não sendo da sua tradição, já faz parte. E não cuidar e não prover, é um desprezo, tal como o enuncia em: “Se fosse quase as garrotas lá na banda iam pulir curação daquele mano, até que ele juraria na verdade, que nunca farei desperezo deste, porque já leva tempo aquela moça soferendo uma tortura perigosa de amore”.  Para o cantor, a moça está a ser torturada, mas ainda assim ama o seu namorado. Por causa disso, julgo que a música é um apelo ao cuidado pela mulher, pela sua beleza, pelo seu bem-estar, no contexto daquela tradição e civilização.

O conteúdo da música é machista para as pessoas ocidentalizadas ou para os que acreditam na equidade e igualdade de género. Mas no contexto em que é cantada por Irmão Mbalua, naquela sociedade, cada um tem o seu papel a desempenhar. As dinâmicas de estruturação social definem papeis por género e nem se discutem. Há, entenda-se, uma troca. Provavelmente não seja equitativa, mas é o que ficou definido entre os membros daquela comunidade. E é aceite. Admito que com o tempo isso possa mudar, porque as culturas não são estáticas.

No contexto de divisão de papeis por género ou na partilha de deveres e de responsabilidades, para mim, o problema surge, apenas quando se atentam os direitos e a dignidade humana. Parece-me que, tanto no ocidente, quanto nas nossas sociedades tradicionais, nunca será possível que esses deveres e responsabilidades sejam partilhados de modo equitativo, nem igual. Haverá sempre alguma desigualdade. Além disso, o problema surge ainda, quando a desigualdade gera injustiça, submissão ou exploração de uns por outros. Se não for o caso, se houver aceitação, o caminho é continuar-se com o relacionamento. Ou então, em contextos de introdução de novas dinâmicas sociais, nas quais se alternem ou se alterem os papeis sociais, desde que aceites, não vejo motivo para alaridos. Faço essa afirmação alicerçada pela perspetiva de um princípio, dos Estudos Culturais, que preconiza que a análise das culturas deve optar por descrevê-las e não estabelecer subalternidade entre umas e outras.

A outra questão colocada relativamente a essa música é a dos erros de língua. Não vejo problema algum neles, porque a língua é o que os falantes falam e não o que a gramática pretende que seja. Por mais tratados gramaticais que existam, as pessoas sempre falarão em função dos seus contextos e do que aprenderam. E no caso de uma música, há representação de um falar de um determinado contexto, pelo que nada há a protestar. Haverá, se assumirmos que faz parte da beleza estética o bem falar. Mas o bem falar é relativo pois, se se tratasse de um texto de carácter oficial, para ser utilizado numa escola ou numa instituição, aí, sim, em Moçambique, a norma exigida é a europeia. E aí, os erros linguísticos seriam um assunto a ser corrigido, nesse contexto oficial. Mas digo isso com “todas as pinças na mão”, porque me pergunto: corrige-se uma obra de arte? Não sei. Além disso, mesmo em contextos profissionais, há ressalvas a serem feitas, por exemplo, no que diz respeito à publicidade, área na qual se tem estado a adequar a linguagem ao contexto no qual ela é utilizada. Portanto, esse assunto é discutível.

Por estas e por outras questões, que agora não me ocorrem, julgo que o Irmão Mbalua, anima os corações dos seus fãs, especialmente, nesta época em que diferentes formas de provocar alegria são aceitáveis; pelo que ele não se deveria sentir culpado pela polémica em torno da sua música! Os culpados somos nós que não conhecemos os contextos e as subtilezas das nossas culturas. A sua música é uma obra de arte. Agora, se o produto é de “alta qualidade” artística, ou se é uma “grande” obra de arte, eis a questão! Que se discuta, a partir de pressupostos estéticos.

 

Sara Jona Laisse, docente de Cultura Moçambicana. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

 

Vem de Movitel, companhia provedora de telefonia móvel.

É do conhecimento de todos que as autoridades policiais, nomeadamente a Polícia da República de Moçambique e a polícia municipal, são entidades sobre quem recai a responsabilidade de zelar pelo cumprimento das medidas restritivas no âmbito do estado de emergência.

A polícia devia, por isso, encarar todas as medidas em vigor da mesma forma e atribui-las o mesmo peso quando se trata de fiscalizar o seu cumprimento. A higienização das mãos com água, sabão ou cinza, o distanciamento social e o uso da máscara em lugares públicos são inegociáveis.
Infelizmente não é o que está a acontecer no terreno. Na hora de fazer cumprir com estes protocolos do Ministério da Saúde, a polícia parece mais preocupada com algumas áreas em detrimento das outras.

Ela é mais vista a fiscalizar os chapeiros, o que não seria nenhum problema se o objectivo fosse o de combater os atropelos que se verificam neste sector de actividade em que alguns operadores transportam para além do número autorizado de passageiros. Estão mais preocupados em ganhar dinheiro do que proteger os seus utentes.

Era suposto que este sector, por ser um dos maís privilegiados na actuação policial, fosse o que mais cumpre com as medidas do estado de emergência.

Mas, infelizmente, continua a ser o mais problemático. É que alguns excessos ou violações são resolvidos com um simples “refresco”.

Alguns agentes desonestos envergando a farda da polícia de trânsito e da municipal, pouco se importam com o risco que as pessoas estejam a correr com o incumprimento das regras estabelecidas. São capazes de deixarem passar irregularidades desde que ganhem algum dinheiro com isso.

Enquanto prevalecer este tipo de comportamento no seio de alguns agentes da polícia, que consideram o coronavírus como uma oportunidade para ganharem dinheiro, continuaremos a ter muitas infecções.

No calar da noite, a polícia tem feito rusgas à caça dos que teimam em vender bebidas alcoólicas para o consumo no local. Desde que começou o Estado de Emergência, centenas de pessoas foram detidas nestas operações, um pouco por todo o país, acusadas de violação do Decreto presidencial e os seus produtos, apreendidos.

No lugar de responsabilizar os prevaricadores de acordo com a lei, são, mais tarde, soltos e tudo fica como se nada tivesse acontecido. São pouquíssimos os casos que vão parar no tribunal e isso tira seriedade ao processo. É que não vale a pena prender pessoas se não é para responderem pelo crime cometido.

A acção da polícia em si está correcta. As rusgas devem ser feitas. Não se deve permitir a perpetuação deste tipo de situações arriscadas. É correcta sobretudo quando é para colocar tudo em pratos limpos. Prender e responsabilizar os infractores sem subornos ou extorsão pelo meio.

O que causa estranheza nisto tudo é o facto de a polícia fiscalizar o cumprimento de algumas medidas de prevenção de coronavírus e, aparentemente, ignorar outras, também de carácter obrigatória, que exigem o mesmo rigor no controlo por parte das autoridades policiais.

É quase nulo ou pouco visível o papel da polícia, na via pública, no que se refere à fiscalização do uso da máscara. As pessoas circulam num à vontade. Frequentam lugares públicos. Até passam junto à polícia sem máscara e nada lhes acontece, nem uma chamada de atenção.

Os agentes policiais encaram esta situação com normalidade. Não usar máscara não parece para eles um risco ou uma violação do estado de emergência, o que é errado, muito errado. Se não sabem, informam-se.

É grave que a polícia não tenha percebido ainda que circular sem máscara é perigoso quanto não higienização das mãos. Não observância do distanciamento social e da etiqueta da tosse, promoção de convívios, consumo de bebidas alcoólicas em grupo e outras situações.

Tudo isto representa um risco de contaminação com o coronavírus e, por isso, deve ter igual tratamento por parte de quem tem a responsabilidade de fazer cumprir estes protocolos: a polícia.

Continuamos com os mesmos problemas. As mesmas fragilidades na implementação das medidas. Os mesmos focos de infecção. Defeitos que transitam de um mês para o outro do Estado de Emergência porque, em alguns casos, não se faz sentir a mão dura da polícia. A falta de controlo rígido propicia o relaxamento. Infelizmente algumas pessoas só reagem com uma pressão policial nas costas.

A polícia tem que se fazer sempre presente. Tem que estar em cima dos acontecimentos. Informar-se e formar-se para poder fazer leituras correctas sobre qual deve ser a sua forma de ser e estar em cada momento, sobretudo num Estado de Emergência como a que nos encontramos. Não se deve admitir o vazio do poder.

O que é para cumprir, é para cumprir. O que é obrigatório, é obrigatório para todos, sem excepção. Tudo aquilo que é um risco, é sempre um risco. É assim como a polícia deve olhar para o Decreto presidencial. Para as medidas de prevenção estabelecidas em respeito aos protocolos do Ministério da Saúde e garantir que todas sejam cumpridas.

Não estou a pedir que a polícia violente os cidadãos, mas que se sintam, a todo o momento, pressionados, vigiados e, acima de tudo, obrigados a respeitar a lei que é o decreto, uma vez chancelado pela AR.

O papel da polícia não é só de prender as pessoas. Vai para além disso. Passa também pela educação do cidadão.

Não há cadeias suficientes para tantos violadores do Estado de Emergência. Por isso é pertinente que a acção da polícia seja acompanhada pela componente educativa, particularmente no que diz respeito ao uso da máscara que é uma das fraquezas no país. Educar e, ao mesmo tempo, obrigar ao cidadão a usar a máscara em lugares públicos.

Os outros países como a China socorreram-se das tecnologias para mobilizarem o público e fazê-lo cumprir com a decisão de que todos têm que usar a máscara. Colocaram no ar dezenas de drones, equipados com alto-falantes, a veicularem a mensagem sobre a obrigatoriedade do uso da máscara.

Moçambique não dispõe desses equipamentos, mas pode usar a força humana como a polícia, activistas dos direitos humanos, voluntários da Cruz Vermelha de Moçambique, agentes da medicina preventiva, pessoal do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades, escuteiros e outras pessoas que possam se interessar em abraçar a causa.

Nas localidades, postos administrativos e distritos podem juntar-se os régulos ou os líderes comunitários, pessoas influentes e respeitadas na comunidade que podem ser ouvidas e acatadas pelas populações.

Não temos os drones, mas um exército suficiente de pessoas para o que se pretende: desencadear uma campanha nacional de educação cívica, com o apoio dos órgãos de comunicação social, de modo a elevar a consciência dos moçambicanos perante a covid-19 e acabar com casos de pessoas que ainda não acreditam na existência da doença no país.

O trabalho devia incidir sobre as áreas onde ainda há fragilidades no cumprimento das medidas de prevenção de coronavírus. Nos mercados, paragens, terminais de autocarros e na via pública, para garantir que é observado o distanciamento social e o uso da máscara. Nos cemitérios, para assegurar que é respeitado o número autorizado para assistir a um funeral. No transporte de carga, para garantir que os camionistas provenientes de alguns países vizinhos estão sob controlo e não representam nenhum risco de propagação da covid-19 em território moçambicano.

Os partidos políticos, na sua maioria ausentes deste processo da luta contra o coronavírus, podem integrar o grupo e estenderem a sua mão aos seus membros e simpatizantes. Produzir e distribuir máscaras aos necessitados e deixarem de só se lembram destes quando é para lhes pedir o seu voto.

Os políticos têm aqui uma grande oportunidade de mostrar o quanto se preocupam pela saúde e bem-estar dos seus fiéis votantes. Os defensores das suas cores políticas. Os guardiões dos seus interesses políticos. Por essa razão, eles merecem uma atenção especial.

Sim! A culpa é de todos nós! Todos que aceitamos, sem questionar, os namorados que nos prometeram o futuro melhor e, como se não bastasse, deixaram-nos viver mal como se ninguém cuidasse de nós.

Sim! Todos nós que aceitamos sob olhar impávido a musicaria da dita nova geração, cuja génese remonta dos tempos do Mc Roger, e deste seguiram-se outros e mais outros, sempre confundido o talento com a indumentária, os arranjos musicais com efeitos, videoclipes para lá da realidade, onde a mulher é banalizada e a aparência ganha um destaque importantíssimo, onde a poesia é escamoteada e a melodia gripada, enquanto isso os verdadeiros músicos são resumidas ao vazio, sucumbido dentro de um silêncio assustador.

Onde o poder económico e as influências de certos não-artistas são, quase em todas as vezes, o suplementar dos talentosos artistas. Obrigando-nos a ouvir cantantes que, em vez de cantar “miam”, que em vez de exibir os seus timbres vocais exibem os já gastos traseiros, como se para se tornar artistas isso fosse critério imprescindível, como fazem essas bailarinas que se tornaram cantantes, desde as lizas e Lilocas, o cúmulo da nossa ridícula musicalidade, o que me coloca a questionar com qual das bocas encantam.

Sim! Todos nós, que não dizemos basta, quando uma tal desavergonhada Melancia de Moz começou a “excrementar”, até chegar aos “trapistas” mudos que dizem cantar, passado por todos outros tão ridículos que aceitamos como músicos moçambicanos, e sob esse rótulo deixamos que nos representassem além-fronteiras. Não há dúvidas que é sóbrio o cenário da música jovem em Moçambique, independentemente do estilo, não se encontra aqui qualquer estilo, além deste ruído produzido em garagens.

Sim! Todos nós que não exigimos uma educação artística de facto nas nossas escolas primárias e nem nas universidades, onde saem jovem artisticamente deformados, sem qualquer sensibilidade com a arte, seja ela música, literatura, pintura e todas outras manifestações artísticas. O que leva a que, hoje em dia, o belo se transforme a tudo isso que fingimos não existir, permitindo, pela indiferença de todos, a proliferação de palhaços que se assumem de músicos. Cujas músicas só agradam pessoas quando ébrias. Não é por acaso que anda tão embriagada a nossa juventude.

É nesse contexto onde o ridículo ganha espaço e destaque, onde assistimos uma coerente ausência do belo, em que aparece o “culpado” de Lugela como um produto altamente artísticos, e de noite para o dia o idolatramos. Não quero com isso dizer que a música do jovem zambeziano não seja boa ou que não mereça o que tanto se diz, mas a verdade é que esta música, para mim, vem mostrar o quão vago está a caixa onde guardamos a nossa sensibilidade artística, mostra o quão vazio vivemos. Esta música mostra que estávamos ávidos de qualquer coisa que nos acalentasse a alma, nesse país de eternas guerras.

Talvez sejam as guerras a razão para tanta euforia, uma vez que esta música consegue ser o espelho fiel daquilo que somos enquanto moçambicanos, sem maquiagens e arranjos. Todos nós que temos a paz amarrada com borracha e sofremos como se ninguém cuidasse de nós. Talvez sejam as guerras o motivo para tanta exaltação uma vez que a música transmite a pobreza, a ganância, a avareza, a prepotência dos homens e, como é óbvio, a dependência da maioria da população (as mulheres) a estes mesmos homens, que uma boa parte deles está sucumbindo em Cabo Delgado.

Talvez seja essa música a metáfora das nossas vidas por isso tem o sucesso que tem, mas para mim o culpado de tudo isso, não é o namorado, o Governo, mas a namorada, nós que aceitamos todas as promessas sem duvidar e nem questionar? Por isso não nos resta mais nada que dançar as “batucadas” do Irmão Mbalua, vivendo mal e sem cuidados de quem nos prometeu que o faria. Mais não disse.

Lurdes Mutola estava com um tempo fantástico mas a segunda marca mundial pertencia a Tina da Glória. Na corrida final do Mundial de Estugarda na Alemanha, 1993, Moçambique terá perdido a oportunidade de concretizar um feito para a história: os títulos de Campeã e Vice de todo o Mundo, nos 800 metros. E por mais incrível que pareça, a dúvida residia apenas em qual das duas cortaria a meta!

O que aconteceu então? Um “tropeção” da nossa número dois na chinesa Lo Ping, na penúltima curva, deitou tudo por água abaixo. Nessa altura, as moçambicanas já se lançavam em direcção à meta, com o ouro e a prata no horizonte. Argentina da Glória caiu, quase desistiu da prova, acabando por cortar a meta numa das últimas posições.

Lurdes venceu, pela primeira vez, o título máximo, mas ficou amargurada pelo facto de a sua prima não ter sido uma das damas de honor.

MANCHA FATAL?

Essa corrida terá marcado a carreira desta grande oitocentista, que antes já havia deixado indicações muito seguras de uma carreira ao mais alto nível, que terá ficado duramente marcada pela queda que destruiu um sonho.

Após a final, apesar dos fortes incentivos de Marcelino dos Santos, do técnico Stélio Craveirinha e, de uma forma geral de todos os moçambicanos que acompanharam o evento, Tina estava inconsolável. Pelo momento de forma em que atravessava, sabia que a luta naquela prova era “apenas” para saber qual dos lugares do pódio iria ocupar.

ASCENSÃO METEÓRICA

Na primeira prova em que participou numa competição “a doer”, os Campeonatos de Portugal de 1992, conseguiu o tempo de 2.03:84 minutos. Era o prelúdio de um salto que permitiu que, em Maio de 1993, após uma série de vitórias no circuito sul-africano e no meeting de Nova Iorque, alcançasse 1:56.62, tempo só superado pelos 1:56.56 m de Mutola. Na altura, era a 50.ª melhor marca mundial de sempre!

Após aquele infeliz dia, nunca mais foi a mesma. Continuou a correr os 800 metros com marcas bem mais modestas, tentou os 1.500… mas o factor motivação já não era o mesmo.

Radicada em Itália de há uns anos a esta parte, de Argentina Paulino pouco se sabe. Ao que tudo indica, a atleta, que tinha potencial para atingir patamares idênticos aos da sua prima Lurdes, já não tinha a motivação de outrora.

Nascida na província de Inhambane, começou por ser praticante de basquetebol e só aos 18 anos optou pelo atletismo, por influência do treinador e antigo recordista nacional de salto em comprimento, Stélio Craveirinha.

Foi, na realidade, uma das maiores estrelas nacionais, um “boom” que não foi maximizado. Poderia ter ido mais longe, provavelmente com mais perseverança e acompanhamento.

Até que naquele fim do mês de Setembro a Alicinha deu entrada na maternidade do Hospital da Missão Suíça para o parto que já vinha com a data atrasada. Na sala de partos ela contorcia-se de dores. Apesar dos encorajamentos das enfermeiras, ela tinha muitas dificuldades em ter um parto espontâneo. Teve de ser operada à barriga-aberta para extrair o bebé. E deu à luz um rapaz a quem, de imediato, deu o nome de Martinho. Doutro modo nem poderia ser. Era a reencarnação do seu noivo, a perpetuação do nome da família.

Na manhã do segundo dia depois da operação-cesariana a Alicinha aprontava-se para ir à sala de pensos, na companhia duma enfermeira. Era a estas horas do fim da manhã que, por rotina, recebiam visitas de caridade de freiras, ou de irmãs filantrópicas; outras mulheres que vinham ajudar as parturientes em tarefas mínimas como mudar as fraldas dos recém-nascidos, aconchegá-los ao colo quando as mães se deslocassem à casa-de-banho; enfim, uma mãos caridosas ao serviço das mães que delas necessitassem.

A senhora enfermeira Judite, que era a chefe do turno da manhã na sala das parturientes operadas, chegou e, com aquele seu sorriso espontâneo, já tradicional, convidou a Alicinha para a rotina da mudança do penso. “ … Deixa lá o bebé com esta nossa amiga…”, dissera, a oferecer os serviços daquela irmã que era já figura quase obrigatória naquele sector. Todas conheciam a irmã Cacilda, uma mulher que habitualmente frequentava a enfermaria em missão de filantropia. Esta nem hesitou porque essa era uma das suas missões: oferecer o seu gesto de entrejuda às parturientes.

Quando, vinte minutos depois, que foi o tempo em durou a mudança do penso, a Alicinha regressou ao quarto, não viu a tal irmã Cacilda, nem o seu bebé recém-nascido! Teve um baque no coração. Olhou ao redor e não viu a mulher a quem confiara a guarda do bebé. Gritou pelo seu nome; o espanto do pessoal e doutras parturientes foi a resposta. O alarme sobre o desaparecimento daquela mulher e do rapto da criança foi lançado. Havia uma emergência no hospital. Foi um corre-corre, desde as casas-de-banho à sala de partos; desde os corredores ao portão de saída da instituição. Em vão, tudo em vão: a dita Cacilda raptara o filho da Alcinha e levara sumiço do hospital sem deixar rastos. Foi um escândalo numa instituição que se prezava pela qualidade dos seus serviços e pela segurança dos seus utentes.

Dizer que a Alcinha ficou abalada é minimizar a dimensão do seu sofrimento. Nada havia que a consolasse. Havia perdido grande tesouro, o mesmo que lhe legara o seu falecido noivo, o mesmo que era uma promessa de uma vida confortada com a companhia desse filho que acabava de perder. Agora, com desaparecimento deste o que restava mais senão entregar-se à morte, porque de que valia viver se não usufruiria do direito de casar e do privilégio de ter filhos? Uma angústia profunda acabrunhou-a e quase levou-a à loucura e ao suicídio.

irmã “Cacilda” era uma mulher de meiaidade que fazia estadias sazonais no bairro do Chamanculo. Poucos conheciam a sua morada certa ou donde provinha. O que se sabe é que, por vezes, embarcava nas carreiras dos Oliveiras com destino a Chibuto, ou de lá vinha em viagens de curta duração a Lourenço Marques. Quando aí estivesse oferecia-se para pequenos serviços no Hospital da Missão Suíça, onde era acolhida com simpatia. Era uma mão extra para pequenos trabalhos nas enfermarias, nos cuidados a doentes acamados. Enfim, quando não comparecesse até chegava a fazer falta. As enfermeiras estimavam-na, era já considerada um membro activo da sua equipa.

Esta “irmã Cacilda”, por aquilo que se poderia apurar, era uma mulher que vinha elaborando um projecto de raptar uma criança da maternidade do hospital. Para dizer a verdade, ela tinha problemas de conceber e ter filhos. Casara-se fazia três anos com um mineiro que todos os anos descia à terra natal em Mabunganine, com a esperança de que esposa lhe concederia a felicidade de lhe dar um filho. O tempo passava e ela sem dar sinais de que, um dia, aquele sonho viria a materializar-se. Vivia na angústia permanente de ouvir recriminações dos familiares, farta das chacotas das vizinhas e, o que era mais grave, das ameaças de expulsão de casa pelo marido. Do íntimo vinha também uma voz que lhe dizia que algo tinha de fazer para ganhar a honra de ter uma criança a que chamasse sua. E então, meticulosamente, elaborou aquele plano. O esposo regressara ao Djone em princípios de Janeiro daquele ano, depois de uma estadia de cerca de um mês. Fora para as celebrações das festas do Natal e do Ano Novo. O casal não poupou tempo ou esforço. Entregou-se em efusões na cama até ao esgotamento. No fim de cada contacto ficava nos espíritos de que ao cabo dum mês os resultados far-se-iam revelar, os de que ela concebera e ao fim dos nove meses outra felicidade entraria no lar.

Dois meses depois do regresso do esposo à África do Sul, a “irmã Cacilda” escreveu uma carta ao marido, ou alguém fê-lo por ela, para anunciar que “estava de grávida” e que aguardava o parto para a última semana de Setembro. Escusado é imaginar quanta alegria encheu o espírito do esposo. Lá nas minas, entre os colegas, começou a anunciar a novidade de que, se tudo correr bem, passaria as próximas festas do Natal com um filho ao colo. O seu filho! Porque já muitos lá na aldeia, e mesmo nos compondes, já duvidavam da sua virilidade e fecundidade. Nada diziam abertamente, mas caçoavam à socapa: “…ah, esse nunca pode ter um filho porque foi mordido por um coelho!…”. E ser “mordido por um coelho” era o mesmo que ser impotente sexual, incapaz de reproduzir um filho.

Durante o período do desaparecimento do filho da Alcinha o Hospital da Missão Suíça entrou em estado de sítio. A administração da instituição considerava que a ocorrência daquele incidente era um enorme vexame, uma grande nódoa à sua reputação. Como se explicava que uma pessoa estranha tivesse acesso às enfermarias, se introduzisse nas equipas de trabalho com aquela facilidade e, mais!, fosse capaz de cometer aquele acto? Tal só seria possível com a conivência de alguém de dentro. E essa era a enfermeira Judite, a mesma que aconselhou à parturiente a deixar o bebé com aquela mulher que se intitulava “irmã” Cacilda.

A enfermeira Judite penou tormentos às mãos da Polícia Judiciária. Foi levada aos calabouços de Ka-Mussana e submetida a intermináveis interrogatórios. Como não confessasse torturaram-na com sessões de palmatoadas, de manhã, à tarde e ao deitar. Como insistisse em dizer que de nada sabia sobre aquele assunto, os detectives resolveram ministrar-lhe o mesmo castigo nos pés e no já magro traseiro.

“ Quem é a mulher que levou o bebé? Onde ela vive? Como entrou no hospital?”, eram as perguntas para as quais ela não tinha resposta. Apenas choramingava e lamentava-se:

“ A única verdade que conheço é que não sei de nada!”.

Como a enfermeira era uma mulher crente em Deus, que sempre vem ao socorro dos injustiçados, os eventos sobre o desaparecimento do filho da Alicinha tomaram novos contornos, dos quais resultou a sua soltura, os mesmos que passo a relatar.

O marido da “irmã” Cacilda, o senhor Muthakathe, regressou da África do Sul para as festas do Natal revigorado pela ansiedade de ver e aconchegar o filho varão ao colo. Claro que recomendara que dessem ao mesmo o seu nome: Jonas César Muthakathe. Desembarcou da carreira dos Oliveiras, no terminal da vila de Manjacaze, ajoujado de bagagens em que abundavam roupas e outros mimos para o recém- nascido, e para a esposa, é de se ver. Daí embarcou numa camioneta que o transportou até ao destino: a localidade de Mbunhane, na povoação de Mabunganine. A recepção foi efusiva, cheia de ululações pela parte dos familiares. A “irmã” Cacilda, porém, não parecia partilhar do contentamento geral. Havia um certo retraimento em toda a sua pessoa, como se a chegada do esposo significasse o fim de um bom sonho, ou o final de uma jornada feliz. O caso é que a criança apresentava feições que se não assemelhavam a nenhum dos parentes próximos, ou mesmo distantes, seus ou do marido. A avó deste, de olhos ramelosos mas aquilinos e com muita experiência da vida sobre os ombros, manifestara a sua desconfiança quando o bebé tinha apenas um mês de idade. Este chorava que até metia pena, durante o dia, e durante as noites, o que, na óptica daquela, significava que “comeram” o apelido do menino, que é filho de alguém estranho à nossa família”. Sem poder conter-se, porque também já corriam boatos na povoação, disse à nora-neta que “…esta criança não parece ser do meu neto… na nossa família não há ninguém com esta cor ou com cabelo tão liso como o dele… parece mais filho dum indiano ou dum mulato… ná, aqui há gato!…”. E por aí ficou-se. O resto ver-se-ia com o tempo. Escusado será dizer que as relações entre as duas mulheres não eram de molde a considerarem-se afectivas e pacíficas.

A avó do Muthakathe já vinha desconfiando dos procedimentos da mulher do Jonas desde que este regressara ao Djone na época anterior. Esta viajou para Lourenço Marques onde se fixou e dizia viver num bairro chamado Hlamanculo. E mais, que arranjara emprego num hospital como auxiliar de serviços. O estranho é que das poucas vezes que viajou para Mabunganine vinha embrulhada em panos e vestidos-à-mamã, como se estivesse “de grávida”. Mas a avó, que já vira milhares de mulheres grávidas, e até ajudara muitas em trabalhos de parto, não enxergou na nora-neta sinais de que na verdade estivesse naquele estado. Mesmo a cara era a mesma, sugada, de mulher esfomeada, nada que se parecesse aos rostos das grávidas, que são arredondados e com algumas borbulhas; as pernas, em vez de mostrar algum inchaço, continuavam fininhas como as das dançarinas de massesse; nunca se queixou de faltas de apetite, ou do seu exagero, nem de vomitar durante as manhãs, embora deglutisse torrões de matope. Para a avó, toda aquela representação era uma farsa, uma tentativa de convencer a toda a gente de que estava grávida. E a verdade veio ao de cima com o “ nascimento” daquele bebé mulatinho. Das duas uma: a nora-neta estava mesmo “de grávida” e a gravidez era de um homem mestiço, ou o mais certo era ter roubado o bebé dalgum lado porque grávida não estava. Qual era a verdade? Como a paciência é a mãe de todas as virtudes, e porque uma gravidez é como um furúnculo que um dia vai rebentar, resolveu esperar para ver. A verdade ia falar por si. E falou.

Naquela mesma tarde do desembarque, o recém-chegado Muthakathe exigiu que lhe depusessem o filho ao colo, o que a esposa fez a contragosto, deve-se confessar. Aquele descobriu a cobertura da cabeça e do rosto do bebé e não gostou do que viu. Não se achava nenhum papalvo, nem tão cegeta que não descobrisse que aquela criança tinha um cabelinho liso, escuro, a pele francamente pálida, como é a dos mestiços. Era, e porque doutro modo não poderia ser, filho de pai ou de mãe mestiça. E estes não os havia na família. Devolveu-a à mãe, carregou o sobrolho e trovejou:

“ Matildana, és capaz de me dizer quem é o pai desta criança?”. Meteu a cabeça entre as palmas das mãos e escondeu-a entre os joelhos. Estava aniquilado de desapontamento, crucificado na cruz da humilhação, um animal enclausurado na jaula da vergonha.

A resposta veio sob a forma de silêncio.

“ O que eu quero saber é: quem foi o homem com quem tiveste esta criança. Só isso. Do resto trato depois”, Jonas persistiu no interrogatório, a ranger os dentes. As mãos estremeciam e os traços do rosto crisparam-se, evidência de uma ira que crescia.

Da boca da pretensa “irmã Cacilda” as palavras saíram atropeladas, um balbuciamento de falsidades mal forjadas: “…hã… porque eu…, hã… porque a mãe da criança morreu…, hã…porque já não sabia o que fazer…”. Era a queda do embuço, a confissão pronunciada do crime de rapto que cometera e da mentira que pretendera impingir ao marido para ganhar o direito ao lar e sustentar o orgulho de ser mãe.

E a bomba explodiu em Mabunganine: a Matilidana sequestrara aquele bebé dalgum hospital em Lourenço Marques, o mesmo que declarara ser seu. E que, pobre da mãe – sabe-se lá quem é, e onde estará – a penar as angústias do Inferno pelo desaparecimento do filho.

A notícia chegou acelerada aos ouvidos das autoridades na vila de Manjacaze através dos arautos do régulo.

Quando os agentes da Polícia Judiciária chegaram a Mbunhane, lá nos matos recônditos da povoação de Mabunganine, encontraram a falsa irmã Cacilda à beira da morte, da sova monumental que o marido lhe ministrou. Com eles levaram a criança raptada e, com brevidade, devolveram-na ao colo da Alicinha que, assim, ressuscitou do estado de desespero e de depressão em que já vivia.

 

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

Debaixo d’água tudo era mais bonito
Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar

Debaixo d’água se formando como um feto
Sereno, confortável, amado, completo
Sem chão, sem teto, sem contacto com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
(…)

Debaixo d’água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar

 

“Debaixo d’água/ agora”

Maria Bethânia

 

Ver e ouvir Maria Bethânia é qualquer coisa que sobressalta a pele e a emoção. Há quatro anos, a cantora esteve em Maputo para um sarau de poesia com participação de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, no Centro Cultural Universitário da Universidade Eduardo Mondlane, e lá deixou os seus predicados, como se justificasse o título de Abelha Rainha da Música Popular Brasileira. Certamente, uma noite memorável.

Ponho-me a pensar em Bethânia depois de ver o espectáculo Dentro do mar tem rio, no qual, entre várias músicas, a brasileira cantou “Debaixo de água/ agora”, uma lindíssima composição de Arnaldo Antunes. A água, nessa letra de um dos integrantes dos Tribalistas, de facto, é o centro de tudo: da beleza, da vida e da contradição que nela existe.

Esse espectáculo disponível no YouTube, com hora e meia de duração, veio mesmo a calhar, pois contribuiu para que decidisse escrever este artigo sobre água, líquido imprescindível e escasso no quotidiano de milhões de moçambicanos. Em Bethânia, a água é tão comovente que, não fosse a impossibilidade de se respirar por debaixo, seria o melhor sítio para se estar: fora do perigo, sem medo, sem fome e sem pranto. Na música da cantora brasileira, a água é um lugar, ao contrário da música “Mati”, de Selma Uamuse. Nesse tema que intitula o álbum de estreia da autora moçambicana residente em Portugal, a água é alimento do corpo, do espírito e da mente; é cura, terapia e vida que merece ser conservada.

Ao cantar sobre a água, com subtileza, Selma Uamusse configura um jogo metafórico, inserindo na música uma entidade disfarçada naquele líquido. A composição é leve e cíclica. No entanto, traduz uma relação recíproca entre a voz que nos comunica, que precisa de água tanto quanto a água precisa dela para ser vital: “You are water/ Water for my mind/ Healing?water/ Water?for my soul”. Ou seja, através de um texto simples, mas não simplista, Uamusse consegue alcançar dois propósitos em simultâneo. Primeiro, num mundo demasiado esbanjador, chama à razão a urgência de se preservar o que se tem de mais relevante: a natureza e os seus encantos, sempre postos em causa a cada descoberta de combustíveis fosseis. Segundo, “Mati” (do cicopi, água), coloca-nos a viajar no poder das palavras ditas ora em cicopi, ora em inglês. Quando isso ocorre, o propósito de Selma Uamusse parece ser o de se apresentar pró-ambientalista, como quem usa a música para exercer um activismo a favor da protecção ecológica. Esta acepção ganha relevo quando, por exemplo, a música diz repetidas vezes: “saving water”. É provável que o interesse da cantora passe manifestar alguma preocupação pelo planeta. Na verdade, nem se deve negar que a música comporta tal dimensão ecológica. Entretanto, à natureza Selma Uamusse parece ir buscar uma matriz a essência do que afinal revigora uma relação humana.

Seja como for, em “Mati” a água é purificação, bênção, a dose certa de hidrogénio e oxigénio na (re)activação da força anímica. A passagem “You are mati/ (…) Mati yo bassissa/ Moya, ndlondo ni mizi” é determinante na hierarquização dos níveis em que o significado da água actua.

Ao contrário de “Mati”, de Selma Uamusse, nas histórias “Nuvem de espuma” e “Na pena de um pássaro”, de Bento Baloi, ambas publicadas na coluna Arca de não é, do jornal O País, a água é uma corrente de dor e maldição. Afinal, é por causa da água que os protagonistas das narrativas perdem os que amam e ainda tudo o que têm. No primeiro texto de Baloi, logo no princípio, o discurso do narrador introduz:

A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada. O Búzi nega em deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila (“Nuvem de espuma”).

A referência aos mochos, no excerto, revela que a água não chega como solução. Longe disso, é uma arma da morte na origem de sinais agourentos. Tal se nota quando, depois de deixar para traz a sua palhota a fim de se refugiar na copa de uma árvore, fintando assim a fúria do rio Búzi, Nyaswa, a protagonista, perde para água parte do que a mantém viva, justamente no momento em que um helicóptero chega para a salvar. O sentimento com que a personagem fica  ao ver a filha ser levada pelas águas é o mesmo que envolve o protagonista de “Na pena de um pássaro”, que, desalentado, diz:

Este céu nem parece o mesmo que deixei no dia em que, acocorado numa barcaça, parti com a minha crença no amanhã submersa em águas turvas. Águas que me roubaram sonhos. Águas que me tiraram a espinha dorsal da vida. Águas que suprimiram toda a razão do meu ser. Só Deus sabe para onde estas águas da morte terão levado a minha família: esposa e filhos (“Na pena de um pássaro”).

Nesta narrativa de Bento Baloi, igualmente inspirada na tragédia criada pelo ciclone Idai, no Centro do país, em Março do ano passado, o protagonista e a água ocupam o epicentro da história. O primeiro, como vítima de uma catástrofe: “Foi aqui que nasci, cresci e fiz a família que a água levou. Este é um reencontro comigo próprio. Um raio frio fulmina-me a alma”; e o segundo elemento como a causa da catástrofe pessoal e colectiva. Também nessa história a água (cheias) é destruição, angústia e frustração. Se quisermos, antónimo de esperança.

Em Bento Baloi, debaixo ou sobre a água, o mundo não é nada bonito. Vai carregado da crueldade da natureza, arrasando, em breves instantes, o que se levou uma vida inteira a construir. É como nos diz um sujeito poético de Nónumar, de Júlio Carrilho: “É isso a água. Uma modelação infinita da superfície. A pôr a lei no caos e o caos na lei de sermos” (p. 20).

Quem também trabalha a sua ficção, tendo água como sustentáculo é João Paulo Borges Coelho. No seu livro Água – uma novela rural, o líquido constitui a maior preocupação das personagens, numa comunidade completamente dependente do que a natureza oferece, quando pode. A água mexe com todos, muitas vezes expondo as personagens ao risco que não supõem correr. Maara, a protagonista, é exemplo disso. Sem sequer supor, conquista o coração de Waaser, que a concede a escassa água importada da cidade nus camiões-cisternas. Numa aldeia pequena, a acção do Engenheiro cria algumas animosidades, com os manipuladores Laago e Praado a descarregarem as suas desilusões na eleita de Waaser.

Ora, num primeiro momento, com a seca a ameaçar a sobrevivência das populações, Laama, uma espécie de sábio da aldeia, enxerga na escassez da chuva algo anormal, isto é, um castigo dos deuses. Já para o seu companheiro, Ryo, a falta de água é um castigo do vento. Conforme observa o narrador, os dois velhos

Estão portanto de acordo, ambos concluem que a falta de água é um castigo. E chegar ao castigo é chegar ao início da resposta, ao início do caminho que é preciso percorrer para atingir a explicação. Reconhecido o castigo, é só retroceder um pouco para chegar à culpa, culpa de algo que havemos de ter feito. Que fizemos nós? A quem desobedecemos? (Água, p. 56).

 

As duas perguntas são pertinentes para a compreensão da mensagem que João Paulo Borges Coelho, Bento Baloi e Selma Uamusse nos trazem, como veremos.

Na novela rural de Borges Coelho, a escassez da água afecta as relações do Secretário da Aldeia  com Praado, quando este a vai roubar no estaleiro do Engenheiro Waaser, e entre Maara e o namorado Ervio. O líquido funciona como uma parede invisível, fazendo com que, de um lado, se tente compreender a falta e, do outro, apenas se deseje. Ervio não tem como estar na aldeia o tempo desejado, pois, na cidade, tenciona chegar rapidamente à conclusão que o permita saber quando a chuva volta para refrescar a vida da sua gente.

Não obstante, em Borges Coelho, sem água, o sentido e a lógica da existência esmorecem simultaneamente com solidariedade comunitária. A harmonia na aldeia deixa de ser constante e passa a intermitente consoante as motivações individuais. Há assim, com efeito, um abalo do conceito comunidade, já que, diante de uma preocupação comum, a ambição de uns e outros aldeões fundamenta-se como o princípio de uma crise social. Daí surgem intrigas, ciúmes, artimanhas e descrenças.

Num segundo momento, na novela, a situação da seca muda numa velocidade asfixiante. De repente, as cheias chegam augurando a morte e a água deixa, paradoxalmente, de ser o maior desejo da aldeia. Na nova condição, todos poem-se a fugir. Sobreviver é nova preocupação. Por isso, os que podem e conseguem refugiam-se na encosta da montanha. Tudo fica para traz, quando o leito do rio, feito hidra realmente malvada, devora a estabilidade social. Aí, igualmente, a história de Borges Coelho é bem realista ao demonstrar como as populações ribeirinhas são vulneráveis à demasiada precipitação. Quando as cheias atravessam a aldeia, submergem o que encontram: o lugar e as histórias desse mesmo lugar, quase apagando, assim, o passado ancestral. A grande consequência disso, em termos narrativos, é a nova orientação da história, que se torna mais colectiva, diminuindo sobremaneira o protagonismo de Maara, enquanto centro do amor de Ervio, do que parece atracão de Waaser ou da presunção de Laago. Na narrativa, as novas pontes da esperança passam a ser os helicópteros que chegam de algum lugar desconhecido para salvar os sobreviventes. Uma descrição que se repete muitas vezes em Bento Baloi, conforme se observou em “Nuvem de espuma”.

Em geral, a água é bênção nas comunidades africanas. A sua escassez, muitas vezes, precipita interpretações da ordem os deuses ou antepassados estão aborrecidos com os humanos. Ou será a natureza enfurecida? A ser, voltam aquelas duas perguntas colocadas pelo narrador de Água: “Que fizemos nós? A quem desobedecemos?”. Ambas as perguntas podem ter a mesma resposta: maltratamos e desobedecemos a própria natureza. Parece ser esta a grande chamada de atenção das narrativas de João Paulo Borges Coelho e Bento Baloi, quando retratam a seca e/ ou as cheias que se repetem todos anos em Moçambique. A escrita dos dois autores mostram-nos um desequilíbrio natural, uma degeneração da vida forçada pela ambição humana. Pode a natureza estar enfurecida? Seja qual for a resposta, a ficção, neste contexto, é uma luz para se repensar o planeta e a protecção das populações carenciadas.

Borges Coelho e Baloi levam à escrita esses outros Moçambique, recônditos na distância do esquecimento. Nos dois casos, a água acaba sendo maldição, pois, ao invés de saciar a sede das personagens, as destrói interiormente, fisicamente e psicologamente. Em nenhuma das duas narrativas as personagens estão preparadas para enfrentar as cheias. Claro que este cenário é diferente em “Mati”, de Selma Uamusse. Nessa música, a água é valiosa em todos os aspectos e não se adivinham máculas. É essa a grande razão de a voz que nos canta sugerir a sua preservação. Satisfeita.

Embora as abordagens sejam diferentes, nos textos de Uamusse, Baloi e Borges Coelho há uma proposta de reflexão sobre a natureza enquanto parte integrante das motivações humanas. A música e as histórias trazem essa lembrança para, quiçá, o Homem perceber o seu lugar e a sua insignificância nos projectos da Terra. Há aí um sopro que espalha no ar um grito inaudito, por isso inefável. Não se descreve esse grito ecológico, apenas ouve-se. Depois, escolhe-se o que se com isso.

Por fim, “Mati”, “Nuvem de espuma”, “Na pena de um pássaro” e Água – uma novela rural são aproximações aos ensinamentos primordiais sobre cuidar, prevenir e amar a matriz tangível da nossa existência: a natureza.

 

Não foi o rádio que tocava, em alto e bom som, as últimas houses durante toda a noite algures em uma das barracas que transformou em pólvora aquela manhã de Dezembro dos moradores dum dos becos do bairro do Chamanculo.

Nem se pode pensar que foi a falta de água nas torneiras mesmo sendo, o beco, um vizinho fronteiriço com o SMAE, onde presumia-se que era tratada e distribuída a água às cidades de Maputo e Matola. Não foi de forma nenhuma o Txaia que, como todas as manhãs, subiu ao poste para dizer à todos que Cahora Bassa já não era nossa, mas que não devêssemos nos preocupar, pois, voltaria a ser no final do dia. Nem foi a Modjane que, mais uma vez, foi ordenada que retornasse para onde tinha passado a noite. Nenhum desses eventos corriqueiros e ordinários seria capaz de transformar a manhã daquela singela zona (uma war zone) em pólvora.

Não foi, também, a carrinha de duas rodas à tracção humana que, visivelmente, carregava no seu regaço alguns sacos plásticos de xinquas, favos de ovos, um kit de mantas, uma ventoinha e mais alguns pepabag’s cujo conteúdo era indecifrável. O que transformou o bairro em pólvora foi quem vinha atrás da carrinha, com uma pasta de costas empanturrada, uma calça com refletores nos joelhos, botas e uma camisa com os três primeiros botões abertos, deixando a vista o peito que expelia um suor com odor estrangeiro. Era o mano Txarles que, desde o seu primeiro regresso, deixara de ser mano Carlitos. Na verdade, não era ele quem aguçava a curiosidade e a inquietação dos vizinhos, mas o que o ele trazia na mão, a maior das últimas novidades da época, o símbolo de uma estadia de sucesso nas terras do rand, prosperidade e visão: um DVD.

Foi o DVD que, em escalas apertadas, juntou os vizinhos do mano Txarles na sua pequena sala cujo quintal, que desaguava num beco, era dividido com outras três famílias. Madala Bêbado, Comando salva-filha, Van damme e Ndvove, Ivon Dragon, Alex, Bruce lee, Bude xpense e Trinintal já poderiam ser vistos em um único disco sem necessitar daquela troca maçante ao minuto 58 que era imposta pelo VCD. Era vizinho a entrar, demorar-se por três a quatro horas e depois sair para dar lugar a outro vizinho que vinha saudar o recém-chegado que, sem excepção, também demorava entre três a quatro horas só a “saudar”. Alguns até repetiam a visita no mesmo dia. Sinceras eram as crianças que frontalmente diziam: viemos assistir.

Mas o fim estava a vista e, infelizmente, seria dramático. Não porque o mano Txarles fosse regressar para Jobeque com o seu DVD ou que o fosse arrumar numa mala em que a chave estaria apenas com ele. Nada disso. Mano Txarles era boa pessoa e todos gostavam dele na zona. Talvez fosse exactamente por isso, por ser boa pessoa. Não foi de alguma forma o cheiro dos ovos fritos que nunca eram servidos aos visitantes, mas apenas ao mano Txarles e aos seus filhos e sobrinhos. Cunhada Clarinha, esposa do mano Txarles, era muito criteriosa nisso, caso contrário os ovos não durariam nem sequer uma semana.

O problema esteve nas crianças, aquelas criaturas tão suaves e sinceras. Não esteve em todas crianças, esteve numa criança apenas, uma curiosa criança que, sentada no chão, distraiu-se do filme, lançou um olhar para baixo da cama do quarto do mano Txarles que estava permanentemente aberto, talvez para exibir a nova roupa de cama ou a ventoinha, e reconheceu uma peça de roupa, uma peça que a sua mãe tinha dado por desaparecida havia alguns meses mas que ninguém nunca conseguira explicar o misterioso desaparecimento. Inconsequente e ingénua, a criança gritou:

– Camisa de papá ali em baixo da cama de tio Txarles.

Dona Clarinha deixou cair uma panela de caril de frango que estava já em fase final de ebulição no fogão apagando quase todo carvão, alguns mais velhos presentes tentaram abafar o eco das palavras da criança, outros fingiram estar muito atentos no aluno do madala bêbado que enchia um tambor com um copito, outros não conseguiram fingir, o seu olhar os denunciou. Outra inocente e sincera criança berrou:

– Sim, é aquela camisa de tio Xande…..

Mano Txarles não era burro. Rapidamente estudou a reacção de todos. Olhou para Cunhada Clarinha que não conseguiu balbuciar sequer uma palavra enquanto o pouco carvão que não tinha sido atingido pelo caril teimava em abrasar. Confessou com os olhos.

Talvez, o bom de tudo, é que mano Xande, que morava no mesmo quintal mas em outra casa, não precisou de um último banho, pois, foi surpreendido na casa de banho untado de sabão. Foi rápido. Antes disso houve gritos, apelos, advogados que tentavam defender mano Xande, ou talvez a cunhada clarinha, mas todos eles foram infelizes. Mano Txarles estava decidido. O Martelo foupause, também recém-chegado, deixou-se cair com ímpeto na cabeça de mano Xande que nem teve tempo de tentar se explicar. O escuro ou a luz devem ter chegado logo a seguir.

Consciente do que acabara de fazer, mano Txarles, sem falar com ninguém, entrou no quarto, levou a sua pasta, calçou as suas botas, pegou no seu passaporte, atirou o DVD a parede deixando-o em pedaços, atirou os discos no carvão aceso, foi-se embora e nunca mais foi visto no Chamanculo.

 

Há dias, a Secretaria do Estado do Desporto, Federação Moçambicana de Futebol, Liga Moçambicana de Futebol e os clubes que irão disputar o Moçambola renuniram-se e, desse encontro, saiu uma realidade assustadora: apenas três, dos 14 clubes que vão disputar o campeonato nacional é que estão licenciados.

Afinal, teria ou não começado o Moçambola 2020, se o Covid-19 não invadisse as nossas vidas? E se tivesse começado, conforme o programado e até com calendário, como ficaria a exigência rigorosa de todos os participantes estarem devidamente licenciados? Seria apenas jogado entre 3 clubes? É que a FMF garante que nenhum não licenciado poderá (ou poderia?) tomar parte na competição máxima.

Os clubes, através do seu porta-voz, Jeremias da Costa, dizem que a direcção máxima do nosso futebol tem a cabeça na realidade de outros países africanos.
A não ser – dizemos nós – que possa sair, em poucos dias, “um coelho da cartola” de tal sorte que os clubes, que se desdobram em busca de dinheiro para pagar salários, de repente passasem a poder responder à exigência da CAF…

UM ASSUNTO COM BARBAS

Uma das ilações que se pode e se deve retirar da pandemia é que teremos, todos, que cair na real. Tal como noutros sectores da sociedade, sem buscar culpados, nem pôr de parte que poderemos, eventualmente, ter que dar um passo atrás para depois, com vigor e certeza, dar dois em frente. Tal como muitos aconselham, nas áreas da Educação ou Turismo.

Nos clubes, a maioria dependentes de integrações e das sensibilidades dos respectivos gestores, sempre se foram acumulando saldos negativos, ao estilo… depois se verá. O mesmo se foi passando com a Liga, que chegou a necessitar da intervenção do Chefe de Estado para concluir um Moçambola.

E agora, com a pandemia, quantos passos atrás estão a acontecer na quase totalidade das empresas integradoras e na publicidade que ajudava a alavancar a prova?

Além disso, haverá que enfrentar novas implicações, face aos caríssimos testes e restrições, além dos jogos terem que ser realizados à porta fechada!

UM LADO OBSCURO?

Um lado que parece obscuro na situação, é que os eventuais recuos, ou não cumprimento nos licenciamentos, podem representar corte nos apoios financeiros internacionais.

Porém, analizada com os pés bem assentes no chão, a realidade mostra-nos que o segredo deverá estar no meio-termo e não no radicalismo. Se o figurino era já insustentável, e os balancetes fechavam sempre com “déficits” crescentes, agora já não parece possível continuar a piscar para a direita e virar para o lado contrário.

Salvo raras e honrosas excepções, as colectividades, cujo número não ultrapassa dos dedos de uma só mão, estão, “de tanga”.

Essa é a verdade. Pensar em obrigar o Matchedje de Mocuba, por exemplo, a criar, entre outras obrigaçõess, um gabinete de imprensa bem apetrechado para 20 jornalistas… se não é ficção, alguém terá a amabilidade de me dizer o que é?

O coronavírus, desde o surgimento do primeiro caso, na cidade chinesa de Wuhan, em Dezembro último, tem-nos mostrado o quanto a Ciência é um verdadeiro tabuleiro de convicções e atrevimentos, de controvérsias, tropeços e resiliência.

A primeira grande controvérsia foi com relação ao uso da hidroxicloroquina em pacientes em estado avançado da doença. Alguns especialistas pensaram, e o medicamento foi sendo usado; outros contra-pensaram, e descobriu-se o contributo zero deste e de outros fármacos antimaláricos para o tratamento da Covid-19. Feito papagaio de linha arrebentada em meio ao vendaval, voou para o espaço o protótipo de fé de muitos de nós, africanos, que, abençoados de malária desde a nascença, melhor, desde o ventre, pensaram que tivessem imunidade garantida. No lugar de sangue, correm em nossas veias, na mesma coloração vermelha, doses carregadas de cloroquina, fansidar e coartem com que combatemos o amor tropical e sempre fiel dos mosquitos da tribo anopheles. A cloroquina era tomada em doses que lembram o estilo clássico de alinhamento de um time de futebol onze. Aquele 4-4-2 fazia a terra girar, comprovando, em ritmo mais rápido, a teoria de Galileu Galilei. Mais do que isso, o malariado podia até jurar que o céu estava na posição errada. Não quis o destino que arrancássemos um graças a Deus por uma maldade de tamanho universo na fuga a sete pés do coronavírus. Uma ironia a menos para o continente berço da humanidade.

Mais tarde, veio o baile das máscaras, inicialmente tidas como necessárias apenas para o pessoal da Saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) e os indivíduos já infectados pelo vírus. Não tardou para se repor a verdade sanitária e fazer-se da máscara um acessório de uso mundialmente obrigatório. Não é que está sendo uma fonte de renda para muitos da nossa banda? Uma costura rápida em pedacinhos de capulana, uns dois centímetros de elástico nas extremidades para dilacerar as orelhas e uma paciência de seguir as pegadas dos já expulsos vendedores ambulantes da baixa podem render um pão seu de cada dia. Para vender máscaras, certamente, os polícias deixam aquela gente circular por ruas e passeios assediando aos que têm medo de morrer. O preço, inicialmente, era 3-100, marca registada do consumidor nacional. Mas porque algumas pessoas vieram com chiliques, querendo aliar o sofrimento à moda, as máscaras foram tomando cores de partidos, de clubes, de fatos, blusas e bolsas, e aos poucos custam mais caro. Esta é outra patologia, mais grave, velha como a idade do próprio tempo, que atravessa as etapas todas da evolução humana: os homens lutam para estar em cima uns dos outros, não importam as circunstâncias. E no que seria apenas uma máscara de protecção contra o vírus, hoje é vaidade e diferenciador social. Será leve a dor quando se morre elegantemente?

Entre tantas idas e vindas, ditos por não ditos, surgiu a ideia dos túneis de desinfecção. Tudo fazia crer que se tratava de um mecanismo bastante avançado no que à prevenção diz respeito. A ideia foi comprada e viajou pelos quatro cantos do mundo. Através do edil de Chimoio, o “todo terreno” João Ferreira, Moçambique deixou de ser uma ilha no uso desta ferramenta. Depois foi o que se viu: corrida de “100 metros barreira” entre os Presidentes de vários municípios nacionais. Entre compromissos de Saúde Pública e Epopeias Eleitoralistas, as nossas cidades foram-se equipando de túneis de desinfecção como no passado estiveram os nossos impérios cercados de aringas para a protecção contra as invasões de inimigos. O inimigo hoje é um batalhão invisível de vírus.

As peripécias da Ciência não pararam, e não tardou que o caldo do desperdício fosse entornado: afinal, os túneis de desinfecção em nada servem, senão como armadilhas para nossa própria destruição. Aquele banho, que faz a gente parecer viaturas em um “car wash”, é completamente desnecessário. Mais do que isso, é uma fonte de infecção. Cinzas e borrões! Hajam rabos para colher perante tamanha desilusão. Mais uma hecatombe financeira para uma nação que corre atrás do desenvolvimento.

A vida ensina a andar para trás, quando se está à beira do precipício. Humildemente, sob o peso da responsabilidade, assim procedeu o Ministério da Saúde. Serão abandonados os túneis, tornar-se-ão elefantes brancos, uma lembrança a enferrujar-se sorrateiramente como canhões que de uma fortaleza apontam para o mar do tempo. E o mérito dos edis? Fica-se pela intenção. A Ciência é assim, foi sempre assim. Graças à resiliência dos cientistas, o progresso jamais parou. E depois de tantas cambalhotas virais, chuva de lágrimas, o sol voltará a brilhar, esculpido de bonança da esperança, certamente.

Caro Presidente da República, excelência
Pensei muito se devia ou não escrever-lhe esta carta. Se não estaria a aumentar lhe o stresse. Compreendo que tem em cima da mesa muitos problemas por resolver. Sei que está preocupado com o assunto das dívidas ocultas que, de certra forma, prejudicaram a sua governação.

Com a sua descoberta, Moçambique perdeu o apoio da comunidade internacional ao Orçamento Geral do Estado. O Banco Munidial e o Fundo Monetário Internacional também ficaram longe. Outros doadores ficaram em cima do muro.

O antigo ministro das Finanças do país, Manuel Chang, está detido há cerca de dois anos na África do Sul e o seu governo luta pela sua extradição para Moçambique. A nível interno, há 19 pessoas detidas em conexão com o crime. O caso está longe de ser esclarecido.

Sei, senhor presidente, que o senhor às vezes não apanha sono por até agora não ter conseguido pôr fim aos ataques sistemáticos da Junta Militar da Renamo (JMR) em Manica e Sofala, comandada pelo General Mariano Nhongo. A solução militar à guerrilha feita por estes homens vai tarde, mas a via de diálogo, essa, está sempre a sorrir para si.

Estou informado, e lamento, que tenha falhado a mediação das Nações Unidas, que aconteceu com o seu consentimento, em busca de solução para o problema. A ONU diz que Nhongo é “inflexível”, mas não desista.

Quase todas as semanas há notícias de morte, destruição e saque de bens públicos, a exemplo de medicamentos, e da população. Tudo da responsabilidade da JMR cujo líder diz que só aceita conversar consigo. O que aconteceria se aceitasse ouvi-lo?

Estou consciente da sua preocupação em relação aos ataques em Cabo Delgado atribuidos a terroristas que, segundo o senhor disse noutro dia, estes estão a ser manipulados para servirem elites internas e externas.

Senhor presidente, confesso que quase não lhe escrevia esta carta quando pensei que, se calhar, não era um bom momento porque tinha muito que pensar nestes e noutros problemas ainda sem desfecho à vista. Soluções que tardam a aparecer, apesar de noites e noites de pesadelos. De noites e noites em claro a tentar descobrir saidas para os mesmos.

Quase desistia ao pensar que depois de quatro meses de estado de emergência está sob pressão para relaxar algumas medidas restritivas e permitir o regresso do país à nova normalidade, numa altura em que a subida galopante de casos de infecções com o coronavirus exige o agravamento das mesmas na tentativa de cortar cadeias de transmissão. Senhor presidente, juro que não gostaria de estar na sua pele.

Foi conversando com os meus botões que acabei chegando à conclusão de que o melhor seria mesmo escrever para estar bem comigo mesmo. Para que, como cidadão atento e preocupado com o que se passa no país, possa deixar a minha singela contribuição acerca do que lhe quero falar.

 

Senhor Presidente, excelência

Resolvi escrever-lhe esta carta para exprimir a minha preocupação quanto ao movimento tendente à reabertura das igrejas. Será, mesmo, boa ideia levantar a proibição dos cultos religiosos numa altura em que casos de infecções estão a multiplicar-se dia-pós-dia com maior velocidade e recomenda-se que haja menor mobilidade das pessoas, senhor presidente?

Para começar, os líderes religiosos não se organizaram o suficiente para baterem a sua porta. Estão a cometer os mesmos erros que da Educação. Correm atrás da galinha com o sal na mão. Antes de sonharem com a retoma, não acha que deviam ter feito um trabalho de casa como deve ser? Tinham que avaliar primeiro os prós e os contras e produzirem uma proposta concreta para ajudar a analisar o assunto e tomar melhor decisão. Proposta que apresenta garantias de que não há o risco de propagação de coronavirus.

Pensei que a transmissão das missas através de canais de televisão que tanto aplaudi pela criatividade e pelo uso das tecnologias de comunicação e informação disponíveis, particularmente no domingo da páscoa, fosse algo para durar. A nova forma de ser e estar das congregações religiosas moçambicanas enquanto continuar a situação de coronavirus no país.

Senhor presidente, excelência

O argumento que os líderes religiosos apresentam parece-me pouco convincente ou, pelo menos, não é suficiente para forçar uma decisão favorável ao seu pedido. Pegam-se em coisas básicas como a garantia da colocação de baldes com água e sabão à porta da igreja, distanciamento social e o uso da máscara para justificarem que as missas realizar-se-ão num ambiente de segurança.

Se isso bastasse, então não teria sido necessário o governo mandar fechar os locais de culto quando os casos de infecções começaram a crescer no país. Está claro que há alguns problemas de profundo que podem contribuir para a propagação do vírus.

Um deles é que faz parte do estilo de algumas igrejas o contacto fisico entre os crentes e estes com os pastores durante a missa. Essa prática, nos dias de hoje, é perigosa e não recomendável porque pode levar à contaminação entre as pessoas.

Há o caso das correntes que são feitas em que toda a igreja fica de mãos dadas enquanto o pastor prega.  O contacto físico é igualmente inevitável, sobretudo nas igrejas protestantes, quando alguém manifesta em plena oração, encarnando espíritos maliciosos, em missas específicas de libertação, com o envolvimento de pastores e obreiros.

Não me parece forte a tese de que a reabertura dos locais de cultos é para permitir que as igrejas participem na mobilização ou educação do público para elevar a consciência do público em relacão ao coronavirus. É que para fazer isso não é preciso abrir as portas das igrejas.

Há várias formas que podem ser usas, desde as tecnologias de comunicação e informação, passando pela transmissão de missas pela TV, ao uso de outras ferramentas.

Senhor presidente, excelência

O senhor tem a consciência de quantas igrejas existem em Moçambique? Claro que não. Nem eu tenho. Andam aos milhares. Agora pegou moda. Qualquer um, querendo, abre uma igreja na sua casa, ao lado ou noutro sítio. O segredo está na caça aos dízimos. Alguns saem-se bem e ganham dinheiro com isso.

Para terem popularidade, esse tipo de congregações usa meios de comunicação social como jornais e canais de televisão. Produzem cartazes ou panfletos a dizerem que curam o SIDA e outras doenças sobre as quais a ciência ainda não tem resposta. Outros enchem a sala através de milagres atrás de milagres. Seria tão bom que as doenças fossem curadas com uma simples oração.

Como pode imaginar, a maior parte dessas igrejas actua fora da lei. Os seus donos não só não estão licenciados pelo Ministério da Justiça Assuntos Constitucionais e Religiosos, como não têm qualquer formação em teologia para estarem em frente de uma igreja. Eis a razão por que temos hoje muitos charlatões no país.

Excelência.

O senhor não acha que as condições exigidas para autorizar a abertura de uma igreja são simples demais? Juntar 600 assinaturas é muito pouco para termos qualidade. Para termos igrejas que podemos respeitar pelo seu papel na educação e moralização da sociedade. Parece que vamos passar para 16 mil. Mesmo assim, o número continua baixo.

Alguns países do mundo exigem que o pedido para a abertura de uma igreja seja acompanhado por 600 mil subscritores. Como se isso não bastasse, o proponente tem que provar, através de um diploma ou de um certificado, que é doutorado em teologia.

Uma decisão sobre a retoma dos cultos religiosos vai significar, também, a reabertura daquele género de igrejas. O mais grave é que algumas delas não têm as mínimas condições para o funcionamento, como água canalizada e casas de banho condignas, o que representa um risco de propagação de coronavirus.
Uma vez levantada a proibição, quem vai impedir que estes locais de cultos regressem igualmente à normalidade se eles em si já são ilegais? Como é que o Estado vai garantir que eles são fiscalizados e que cumprem com as medidas de prevenção contra o coronavirus? Como chegar a eles se não há nenhum registo sobre a sua existência ou localização? São perguntas que se levantam e que nos levam a uma reflexão profunda sobre a possibilidade de reabertura das igrejas no país.

Todos gostamos de rezar. Creio que o senhor também. Anseamos regressar às nossas igrejas onde fomos baptizados e crismados. Onde foi celebrado o nosso casamento. Locais de culto onde louvamos a Deus, salvador da humanidade, mas temos que esperar pelo melhor momento. Temos que aguardar até que a retoma não represente nenhum perigo para todos nós e que a decisão acerca do assunto seja de consenso.

Enquanto isso, cada um vai rezando no seu canto porque, afinal, igreja não significa um espaço físico, mas pessoas e o resto, segundo os próprios líderes religiosos, é uma questão da fé.

Senhor presidente, desculpa por eu ter sido longo. Deixei-me levar pela emoção. Até outro dia

Alvoroço. Multidão, vozaria e braços gesticulando descoordenadamente. Catanas, panelas e terrinas cortam os ares. Mas é o som picante das vozes – a primeira, segunda e a terceira voz fazem lembrar um coro bem desafinado – que atrai a atenção. Há uma rumaria. Todos os caminhos vão dar ao alvoroço.

Um réptil está no centro do furacão. Enorme. Quatro a cinco metros de cumprimento. Barriga farta, justificando um peso de não menos de trezentos quilos. Há um misto de emoções: de um lado está um monstro em cujas garras e dentes afiados vários humanos terão sucumbido; do outro, uma bocarra que se abre, a espaços, como que em busca de clemência.

O animal desistiu de tentar movimentar-se. Está entalado no lodo deixado pelas enchentes do Búzi, muito longe do leito para onde o rio se recolheu. Vozes dissonantes desencontram-se. Uns querem cataná-lo e resolver os problemas do estômago que grassam sobre a comunidade neste pós-ciclone. Outros refugiam-se na metafísica para ocultar os seus temores:

«Este não é um crocodilo qualquer!», exclamam, «é maldição!»

E o animal não é de facto qualquer. Não tem nada a ver com os outros crocodilos alguma vez vistos na aldeia. Ao invés de quatro, tem apenas duas patas. As traseiras. As patas frontais não existem. Será que é possível a um crocodilo faltar duas patas por má formação congénita? Ou as patas inexistentes escondem segredos ocultos?

«Isto é mesmo maldição!», voltam a ecoar as vozes, «que crocodilo é este que se perde da água e se encalha no matope? Estranho!»

«Vamos matá-lo!», dizem outras vozes.

«Yhuu!? É possível matar-se uma maldição? Maldição não se mata!», a tradição ensina que as maldições devem ser tratadas com sapiência. Elas são a personificação de um espírito demoníaco que, se maltratado, depois do ciclone pode até gerar secas, pragas, pestes e outros males sem fim. A única sabedoria preparada para lidar com isto é a de um curandeiro bem experimentado.  Apenas ele pode dialogar com os mortos e pedir-lhes que enxotem a maldição para bem longe da comunidade. E o mestre da comunicação com o além tem que ser trazido de uma outra aldeia bem distante. O da comunidade local foi arrastado durante as enxurradas e o seu corpo esmagado e arremessado sem regresso para a foz oceânica do Búzi.

As vozes não param o seu debate sem regra nem moderador. Mas uma coisa é consensual: enquanto o curandeiro não chegar ninguém mexe no animal.

O curandeiro vem a rufar gases de cansaço por todos os buracos, com seus olhos vermelhos completamente esbugalhados, reclamando uma altivez disfarçada por uma enorme corcunda que se eleva no topo das suas costas.

Não precisa de um grande exercício para contar uma história que toda a comunidade já conhece: a aldeia foi sempre assombrada por um enorme crocodilo de duas patas que degola pessoas e gado. Na calada da noite, o réptil abandona as águas do Búzi, mete-se pela povoação adentro e até bate a porta das palhotas das suas vítimas. Quando acoiçado, o crocodilo fica de pé, como um bípede, e foge a todo o galope de volta ao rio.

Para muitos, essa história é um mito. Porém, convencionou-se na aldeia a nunca se abrir a porta para ninguém assim que o sol se escondesse.

«Não é mentira nenhuma, é a mais pura verdade!», sentenceia o curandeiro, «o crocodilo existe e hoje está aqui. Aos olhos de todos.»

Ajoelhado a poucos metros do animal, o curandeiro mexe e remexe os seus búzios, e continua: «este crocodilo tem dono. É um feiticeiro. O mesmo em que se transforma quando ganha a forma de um homem e foge para o rio. É alguém aqui da aldeia!», os cabelos de todos ficam em pé, os olhos arregalam-se e os ares são dominados por sussurros a roçar uma histeria silenciosa.

«É um velho magrinho, com meia dúzia de fios de cabelo perdidos na sua careca e a boca quase desdentada. Sobram-lhe apenas dois dentes frontais. Os outros caíram, um a um, durante o consumo de carne humana na penumbra de várias noites de feitiçaria», palavras sábias do curandeiro.

Como que obedecendo a uma hipnotizante alavanca, as palmas das mãos dos aldeões elevam-se todas em simultâneo para a cara. Umas para tapar a boca e outras para se esbarrarem contra os olhos, o nariz e as feições. É a expressão de um espanto colectivo: a descrição do curandeiro não podia ser mais assertiva. O feiticeiro é o velho Dilone.

«Vão buscá-lo!», ordena o curandeiro.

Nova equação sem solução. O velho Dilone desapareceu sem deixar rasto na algazarra do ciclone. A sua casa foi destruída. Ninguém sabe se morreu ou se salvou-se. Até pode ser que esteja em algum centro de acomodação algures nesta Sofala.

«O melhor é matarmos esse crocodilo», voltam a dizer as vozes da multidão.

Até parece que o animal também escuta. Não se mexe. Apenas os seus minúsculos olhos rodopiam e a bocarra se abre e se fecha em expressão de desespero. Está longe de parecer a mesma boca que algum dia esmagou presas.

«Mas desde já vos alerto», volta a falar o curandeiro, «se a vossa decisão for de matar o animal, saibam que se o feiticeiro ainda estiver vivo, não interessa onde ele se encontra, morrerá assim que o crocodilo estrebuchar. Metade do seu corpo encher-se-á de escamas rugosas e transformar-se-á em partes de crocodilo. Se o feiticeiro já estiver morto, matando o animal, será a metade do seu dorso que ganhará a forma humana.»

O curandeiro olha para a cara petrificada do chefe da aldeia para quem transfere o ónus da decisão.

«Penso que o feiticeiro já morreu e é por isso que o seu crocodilo ficou maluco e veio se encalhar aqui», ecoa uma voz entre a multidão.

O curandeiro encolhe os ombros e nada diz. Continua de olhar fixo no chefe da aldeia. Este respira fundo, franze o sobrolho percebendo que chegou a hora de assumir o rumo dos acontecimentos. Olha de relance para as pessoas em seu redor, que o fitam com um esgar de ansiedade esculpido nos rostos. Dá a sua voz de comando: «vamos matar o animal.»

A vozaria reergue-se. Golpes de dezenas de catanas aterram em simultâneo sobre o dorso do réptil. Não há sequer tempo para que partes do crocodilo ganhem a forma humana. Em poucos minutos a carne do animal é recolhida em dezenas de tigelas e terrinas para o interior das palhotas em reconstrução. Nunca mais houve notícias do velho Dilone.

Retomamos a nossa série incidente sobre o Direito Digital – plausivelmente interrompida em virtude da necessidade de abordagem de matérias cuja premência e actualidade assim o ditavam, designadamente, relativas ao Estado de Emergência ou aos Códigos Penal e Processual Penal que se preparam para iniciar os respectivos períodos de vigência no ordenamento jurídico do solo pátrio – centrando, neste artigo opinativo, a nossa atenção numa realidade que, curiosamente, conheceu o seu manuseamento, através dos hábitos e costumes mercantis, antes mesmo da fixação do regime jurídico específico a ela aplicável.

Referimo-nos aos estabelecimentos virtuais entanto que instrumento de realização de actividades vinculadas ao comércio electrónico.

O comércio electrónico, também, comummente, denominado de “e-commerce” ou “e-comércio”, constitui um dos campos paradigmáticos de incidência do Direito Digital – ramo multidisciplinar do Direito que possui como finalidade tutelar as relações que se desencadeiam entre as pessoas (singulares/colectivas) em ambientes digitais, através do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s), sendo que esse ambiente [digital], tal como o ambiente “real”, é também caracterizado por comportamentos, acções, omissões, originadores de direitos e obrigações, quer numa perspectiva unilateral quer bilateral ou multilateral, cuja susceptibilidade de ocorrência de conflitos de interesses, ocasionados quer pela natural dissonância entre sub-interesses particulares dos respectivos intervenientes quer pela violação das regras decorrentes dos direitos e obrigações emergem nesses ambientes, é sempre provável –, advindo, dessa factologia, a necessidade de adopção de normas destinadas a disciplinar as relações jurídicas [d]aí criadas.

Sem, nunca, nos olvidarmos da Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (doravante “CUACPDP”), ratificada pelo Estado moçambicano através da Resolução n.º 5/2019, é insofismável que a Lei de Transacções Electrónicas (doravante “LTE”) – Lei n.º 3/2017 – consubstancia-se no “centro normativo nevrálgico” regulador do comércio electrónico, que, nos termos do respectivo glossário, é definido como sendo «a actividade económica ao abrigo da qual uma pessoa oferece ou garante através de um meio electrónico a prestação de bens e/ou serviços», sendo que “meio electrónico”, sob a égide do sobredito glossário, é «todo o meio tecnológico usado para a obtenção de dados no formato analógico ou digital, seu processamento, armazenamento, transmissão bem como a sua apresentação».

Merece realce que, paralelamente à definição que nos é trazida pelo glossário indexado à LTE, a CUACPDP, que também possui um capítulo específico que versa sobre a mesma matéria, traz uma definição corporizada por um conteúdo diferente, sem, no entanto, se opor àquela, definindo o comércio electrónico como sendo o «acto de oferta, compra ou fornecimento de bens e serviços através de sistemas de computadores e redes de telecomunicações tais como a internet ou qualquer outra rede através de meios electrónicos, dispositivos ópticos ou similares para a troca de informações à distancia».

Tendo, as normas corporizadas no texto da CUACDPD, sido recepcionadas no ordenamento jurídico moçambicano tal e qual foram adoptadas naquela Convenção e, sendo certo que a partir da respectiva ratificação, tais normas assumem uma natureza infraconstitucional, em igualdade de circunstâncias com as demais leis aprovadas no solo pátrio, isto em consonância com a forma da respectiva recepção – pela AR – coexistem, neste caso duas normas de valor idêntico versando sobre a mesma matéria. O que aduzimos atrás possui supedâneo legal no disposto no n.º 2 do artigo 18 da Constituição da República que assevera-nos que «as normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção».

Poder-se-á, assim, considerar que o capítulo referente às transacções electrónicas – onde se insere a disciplina do comércio electrónico – previsto na CUACPDP revoga o relativo ao comércio electrónico estabelecido na LTE, ao abrigo do princípio “lei nova revoga lei velha”?

A resposta, neste particular caso de aparente confronto – que, definitivamente, não chega a sê-lo – deverá ser inequivocamente negativa, pois, ao se compulsarem microscopicamente os dois capítulos, infere-se, sem dificuldades acrescidas, que a “nova lei” não versa de forma contrária à “velha”, mas, sim, com recurso a enunciaçõessemântico-linguísticas diferentes, traz, na essência, um conteúdo similar, não prevalecendo, por isso, a regra segundo à qual “lei nova revoga lei velha”, pois este postulado só prevalece se a “lei nova” versar num sentido antagónico comparativamente ao estabelecido na “lei velha”.

Ainda que o estabelecimento virtual não seja objecto de definição na LTE, podemos, através de um raciocínio lógico-interpretativo desenhar as componentes conducentes à sua definição, a partir dos elementos que nos são fornecidos no artigo 44 da LTE.

Com efeito, o artigo 44 da LTE, consagra que os contratos relativos ao comércio electrónico celebrados entre empresas comerciais e os consumidores devem fornecer informação precisa, suficiente, clara e de acesso fácil para permitir a identificação das partes contratantes. Conforme se denota meridianamente, a norma acima reproduzida consideraimprescindível que o consumidor tenha, à sua mercê e ao seu dispor, todos os elementos identificativos das empresas que desempenham o comércio electrónico, com as quais celebrará contratos conducentes a adquirir bens e/ou solicitar serviços. A norma enfatiza que os elementos daquelas empresas devem ser precisa, clara, suficientemente identificados e identificáveis ou de fácil acesso.

De entre os elementos mais sonantes de que aquela lei faz depender os obrigatórios requisitos em que se desenvolverá a actividade subordinada ao comércio electrónico, destacam-se os seguintes: designação da firma sob a qual a actividade da empresa comercial é desenvolvida; principal endereço físico para o exercício da actividade, endereço de página de internet, endereço de correio electrónico, número de telefone ou outra forma de contacto; se uma das partes for uma entidade legal, o seu número de registo, os nomes dos seus representantes e o local de registo.

Bem vistas as coisas, esses elementos encimados coincidem, com as necessárias adaptações (diminuições e aumentações), com a definição legal de estabelecimento comercial ínsita no artigo 69 do Código Comercial, tida como unidade dos elementos constitutivos da actividade comercial, representados pelo capital e trabalho, valorizados pela organização, a fim de que o empresário comercial possa exercer, com eficiência, a sua actividade, sendo que, ao abrigo do disposto no artigo 16 do mesmo Código, constituem obrigações especiais dos empresários comerciais adoptar uma firma, escriturar em ordem as operações ligadas ao exercício da sua empresa; fazer inscrever na entidade competente os actos sujeitos ao registo comercial; prestar contas.

Assim, depois de este exercício lucubrativo, podemos afirmar que o estabelecimento virtual consiste num siteacessado virtualmente – por intermédio da internet – pelos clientes, através do “nome de domínio” (que inicia com a popular expressão cibernética “www”) no qual os empresários do comércio electrónico exercem sua atividade, assumindo facetas equiparáveis com as exercidas com os estabelecimentos “reais” (presenciais e físicos, em contraposição aos virtuais), tais sejam, difusão da actividade, emissão de publicidade, com o fim último de realizar, a partir desse espaço virtual, a venda dos seus bens e/ou prestação dos seus serviços.

Parafraseando as muito bem conseguidas palavras de Pierre Levy (sic): «virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do obje[c]to considerado». O mesmo insigne autor traz-nos uma delapidar conceituação, ao advertir-nos sabiamente que (sic): «é virtual toda entidade “desterritorializada”»

Visando conferir uma homogeneidade de tratamento legal e coincidência de soluções jurídicas às relações que brotam e se desenvolvem no mundo digital, com as que se sucedem no “mundo vivencial real”, dando-lhes, assim, umafisionomia, anatomia e morfologia idênticas, em respeito a unidade do sistema jurídico (n.º 1 do artigo 9 do Código Civil), encontram-se convergências solucionatórias no que concerne ao regime que disciplina as obrigações dos estabelecimentos virtuais, se comparados com o que regime vigente nas relações comerciais desenvolvidas no mundo real.

A título meramente exemplificativo, tal como se sucede no mundo real (em contraposição ao mundo digital), onde, ao abrigo do n.º 1 do artigo 26 do Decreto 27/22016, que aprova o Regulamento da Lei de Defesa do Consumidor, o consumidor pode, ao abrigo do seu “direito de retractação”, «desistir do contrato no prazo de sete dias uteis a contar da data da sua assinatura ou do acto de recepção, do produto ou serviço, devendo para o efeito, devolver o produto ou serviço nas condições em que o recebeu de forma a não prejudicar o fornecedor, que deve aceitá-lo sem reservas», de igual modo, no mundo digital, ao abrigo do n.º 1 do artigo 46 da LTE, o consumidor goza do privilégio do “período de arrefecimento” e do “direito de livre cancelamento” sendo-lhe atribuído o «direito de cancelar a transacção electrónica ou qualquer contrato com lela relacionado, sem obrigação de fundamentar, devendo suportar apenas os custos de devolução dos bens pelo fornecimento de bens dentro de um período de sete dias após recepção dos bens ou pelo fornecimento de serviços dentro de um período de sete dias apos a data de conclusão do acordo».

Em ambos os cenários exemplificados supra, surpreende-se a manifestação de um autêntico direito potestativo – direito subjectivo cujo respectivo titular, através de prerrogativa conferida por lei, possui a faculdade de o exercer unilateralmente, recaindo sobre terceiro[s] o dever de se resignar ao respectivo exercício – aplicável quer ao estabelecimento comercial (artigo 69 do Código Comercial) quer ao estabelecimento virtual, unificando-se regimes jurídicos emergentes de transacções electrónicas com as transacções mercantis de carácter geral, sendo, entretanto, e fruto do reconhecimento das especificidades intrínsecas dos labirintos do mundo digital, curioso notar que o mesmo legislador, no artigo 45 da LTE, como forma de proteger de forma específica o consumidor nas relações emergentes no seio digital, concede-lhe o “direito à livre resolução do contrato” – em condições completamente diversas das referidas acima –, manifestado na faculdade deste consumidor em cancelar a transacção (compra de bens ou benefício de serviços pela internet) num período de 14 dias úteis após da recepção dos bens ou serviços, se tais contratos não estiverem em consonância com as obrigatórias normas conducentes ao dever que os empresários que desenvolvem o comércio electrónico possuem de colocar o consumidor clara, precisa e suficientemente informado (n.º 1 do artigo 44 da LTE) sobre todos os aspectos fulcrais inerentes quer à empresa quer ao negócio que lhe dá causa, factologia que, por si só, evidencia a autonomia da disciplina jurídica a que estão sujeitos os estabelecimentos virtuais, comparativamente aos tradicionais estabelecimentos comerciais de substracto relacional físico e presencial, constituindo, aqueles, realidades próprias – do mundo digital –  capazes de gerar manifestações jurídicas próprias, sendo, por isso, objecto de tutela jurídica específica e própria, não obstante os pontos de consonância e convergência que, por razoes vinculadas à homogeneidade e unidade do sistema jurídico, são [e devem] estar patentes entre o comercio electrónico/digital e a actividade mercantil tradicional, baseado no Código Comercial, assente nas relações físico-presenciais.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

 

MIKHAIL GORBATCHOV, estadista e político russo, nasceu na Rússia  em 1931. Foi secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e oitavo e último líder da União Soviética. É mentor e responsável da política da Perestroika (reestruturação) e da Glasnost (transparência) que acabaram descambando na desintegração da união soviética. É igualmente autor do livro “Perestroika “, 1987.

Nos últimos anos da década de 80 e princípios da de 90 do século transato, eu era assistente dos secretários para as relações exteriores, designadamente, Pascoal Manuel Mocumbi e seu adjunto José Luís Cabaço. Foram anos decisivos tanto para Moçambique, no quadro do processo de paz e das transformações políticas, económicas e sociais, quanto para o bloco soviético em relação às reformas no âmbito da perestroika e da glasnost. Lembro-me que discutia, em privado, tanto com um como com outro, sobre diversos assuntos relacionados com estes processos. Tive o privilégio de pertencer aos círculos restritos de ambos. E como tal, conversávamos abertamente, sem preconceitos e nem aqueles pruridos característicos dos meandros políticos. Pessoalmente, confesso que devo também a estes intelectuais parte da minha formação política. Mas sobre as reformas soviéticas havia algo que ainda não estava claro para nós outros, os da periferia. Não sabíamos exactamente se tais reformas visavam a uma espécie de capitulação “velada” ou simplesmente à potenciação do sistema socialista em si. Isto, em parte, devido à rapidez com que o processo ia se desenrolando e, ao mesmo tempo, ao caos que aparentemente ia criando no seio da própria sociedade soviética. E o livro “Perestroika” veio de certo modo ajudar a compreender o processo.

Li este livro em 1999 (edição portuguesa, 1987, Publicações Europa-América, 280 páginas). Andava tão sedento por esta obra que comecei a lê-la a partir da própria livraria onde a comprara, em Lisboa. Lembro-me de ter sido eu a dar a boa nova, em primeira mão, ao poeta e político moçambicano Marcelino dos Santos (1929 – 2020) da sua referenciação no livro de Gorbatchov, aliás, um dos poucos líderes africanos nele citados. Quanto a mim, “Perestroika” é um documento histórico que sistematiza os princípios e objectivos que se pretendiam com as reformas consubstanciadas na política da perestroika e da glasnost, mau grado a história ter sido mais célere que as próprias reformas então preconizadas. O próprio autor do livro defende que “Perestroika não é uma obra científica ou um panfleto propagandístico, ainda que as perspectivas, conclusões e abordagens que o leitor nela observará sejam naturalmente baseadas em valores precisos e em premissas teóricas. Constitui, antes de mais, uma recolha de pensamento e reflexões sobre a perestroika, os problemas que enfrentamos, a amplitude das mudanças, assim como sobre a complexidade, responsabilidade e singularidade do nosso tempo” (p.17).

“A perestroika é uma necessidade urgente surgida dos profundos processos de desenvolvimento na nossa sociedade socialista. Esta sociedade está madura para as mudanças. Há muito que ansiava por ela. Qualquer demora no lançamento da Perestroika poderia conduzir, num futuro próximo, a uma situação interna exacerbada que, para colocar as coisas com franqueza, estaria carregada de crises sociais, económicas e politicas muito serias” (p.25).

E é justamente isso o que veio a acontecer. A implementação da perestroika foi demasiadamente lenta face à insustentabilidade da situação que então se vivia na união soviética. O que terá, então, falhado no processo de construção do socialismo na União Soviética?  Gorbatchov justifica as suas reformas afirmando: “Ao mesmo tempo, falhámos no que respeita à utilização de todas as potencialidades de socialismo para responder às crescentes necessidades de habitação, qualidade e por vezes quantidade dos produtos alimentares, na devida organização dos transportes, nos serviços de saúde, educação  e na resolução de outros problemas que, muito naturalmente, surgem no decurso do desenvolvimento da sociedade” (p.29).

Mikhail Gorbatchov continua com a sua justificativa acrescentando que “Também no plano ideológico o mecanismo de travagem trouxe consigo uma cada vez maior resistência às tentativas de exame construtivo dos problemas emergentes e às novas ideias. A propaganda do sucesso ? real ou imaginado ? sobrepunha-se a tudo, os panegíricos e o servilismo eram encorajados” (p.30).

“A alguns níveis administrativos surgiu o desrespeito pela lei e o encorajamento da lisonja e dos subornos, do servilismo da glorificação. O povo trabalhador mostrava-se justamente indignado com os abusos do poder, supressão da critica, com as fortunas feitas, e em certos casos tornou-se até cúmplice ? se não organizador ? de actos criminosos.” (p.31)

É realmente indiciador de revolução quando, numa sociedade, a situação resvala ao ponto de ser o próprio povo trabalhador a ser cúmplice de actos criminosos. É o cúmulo da desestruturação dessa sociedade. E Gorbatchov conclui a sua justificação: “Uma abordagem sem preconceitos e honesta conduziu-nos à única conclusão lógica, a de que o país estava à beira da crise” (p.32).

O autor do livro reconhece o papel das artes e da literatura que sempre desempenharam um importante papel na vida espiritual do país, sendo impiedosas para com todas as manifestações de injustiça e de abuso do poder. Gorbatchov acrescenta que “Nas suas melhores obras, os escritores, realizadores de cinema e produtores teatrais, bem como os actores, tentaram impulsionar a crença do povo nas realizações ideológicas do socialismo, na esperança de conseguirem um renascimento espiritual da sociedade, e, apesar de todos os impedimentos burocráticos e até perseguições, prepararam moralmente as pessoas para a perestroika (p.33).

Gorbatchov sublinha que “Perestroika é uma palavra com muitos significados. Mas, se escolhermos entre os seus muitos sinónimos possíveis aquele que constitui o seu conceito-chave e exprime a sua essência com maior exatidão, podemos dizer o seguinte: a perestroika é uma revolução. Uma aceleração decisiva do desenvolvimento socioeconómico e cultural da sociedade soviética que envolve alterações radicais na via para um estado qualitativamente novo é inegavelmente uma tarefa revolucionária (p.60).

Como sempre, toda e qualquer mudança pressupõe coragem e sacrifícios. Pressupõe igualmente firmeza e tenacidade, pois “O desaparecimento de qualquer coisa habitual provoca protestos. O conservantismo não quer ceder, mas tudo isto pode e tem de ser ultrapassado se quisermos satisfazer os interesses de longo prazo da sociedade e de cada indivíduo (p.63).

“À semelhança da revolução, a perestroika não é algo com que se possa brincar. É necessário levar as coisas até ao fim e todos os dias fazer progressos para que as massas sintam os seus resultados e o processo possa continuar a ganhar ímpeto, quer material quer espiritualmente” (p.64).

Em política, afinal, tudo é uma possibilidade. É preciso avaliar científica e cuidadosamente todas essas possibilidades quando se pretende delinear programas e tarefas, visando a grandes transformações. E Gorbatchov sublinha de facto que “A politica é a arte do possível. Para lá dos limites do possível começa o aventureirismo” (p.76)

A política da perestroika e da glasnost veio, como não podia deixar de ser, levantar inúmeros debates dentro da intelectualidade soviética, principalmente no seio dos escritores. A respeito, Gorbatchov afiança que “Houve uma dada altura em que o tom acalorado cresceu na comunidade literária” (…).  “A  pior coisa que poderia acontecer era se a intelligentsia criativa, nestes tempos revolucionários, se permitisse envolver em coisas mesquinhas e  ridículas, dando largas a ambições pessoais e gastando as suas energias em palavrões insensatos em vez de se lançar em empreendedorismo criativos” (p.94/95).

Gorbatchov entende que a intelligentsia criativa está dotada de um sentido de responsabilidade cívica e que aguentou aos ombros o peso de uma larga fatia do esforço de reestruturação. Ademais, o maior problema do socialismo foi como combinar os interesses pessoais com os do colectivo. E, sendo este um problema de fundo, Gorbatchov diz que “Acreditamos que combinar os interesses pessoais e socialismo continua a ser o problema fundamental. Referimo-nos, evidentemente, a interesses pessoais em sentido lato e não só no sentido material” (p.109).

Sobre a segurança mundial, Gorbatchov entende que “A nova visão política exige o reconhecimento de um outro axioma simples: a segurança é indivisível. Ou é segurança igual para todos, ou não é nenhuma” (p.158).

E o autor assegura que era convicção aceite de que a origem das guerras mundiais se encontrava nas contradições entre os dois sistemas sociais (capitalismo e socialismo).  “Antes de 1917 havia apenas um sistema no mundo ? o capitalismo ?, mas esse mesmo sistema. E também houve outras guerras” (p.163).

Gorbatchov sustenta este pensamento recorrendo à primeira Guerra Mundial que provocou uma verdadeira tempestade revolucionária, ao  culminar com  a revolução de Outubro no seu país. E vai mais longe acrescentando que “A segunda Guerra Mundial desencadeou uma nova onda de revolução na Europa oriental e na Ásia, assim como uma poderosa revolução anticolonial” (p.164).

Mikhail Gorbatchov nega que a URSS tenha exportado sua revolução a outros cantos do mundo e consubstancia isso citando Marx «O proletariado vitorioso não pode impor o seu próprio ideal da vida feliz a qualquer outra nação sem causar danos à sua própria vitória» (p.167).

Depois o autor remata asseverando que “As revoluções e os movimentos de libertação emergem no solo nacional. Surgem quando a pobreza e a opressão das massas se tornam intoleráveis, quando a dignidade nacional é humilhada e quando a uma nação é negado o direito de decidir por si o seu próprio destino. Se as massas se erguem para lutar, isso quer dizer que os seus direitos vitais foram suprimidos” (p.168).

Gorbatchov volta a realçar o papel da literatura, desta feita, citando o notabilíssimo escritor latino-americano, Gabriel Garcia Marquez, a quem considera um homem de grande intelecto. “A extensão do seu pensamento é global; basta ler um dos seus livros para o verificar. Aconteceu então que, ao falar de reestruturação a processar-se na união soviética, se pode mergulhar em qualquer problema internacional e social dos nossos tempos. Pois todo mundo precisa de reestruturação, isto é, de alterações qualitativas e desenvolvimento progressivo” (p.172).

Gorbatchov reconhece existirem conflitos um pouco por todo lado, principalmente nos países em vias de desenvolvimento, e que apesar de a essência desses conflitos divergir, tal como a natureza das forças  que se digladiam, “o seu surgimento a nível local é uma consequência de conflitos internos ou regionais que radicam no passado colonial dos países, em novos processos sociais ou no recurso a políticas predatórias ou nos três factores  simultaneamente” (p.193).

E para o gáudio de Moçambique, Gorbatchov referencia um dos seus melhores filhos quando afirma, a dado passo, que “A cerca de um ano e meio, tenho vindo a contactar e a manter profundas discussões com vários dirigentes políticos africanos (com alguns deles mais do que uma vez), entre os quais se contam Robert Gabriel Mugabe, Mengistu Haile-Mariam, Marcelino dos Santos, Oliver Tambo, Moussa Traoré,  Marthieu Kérékou e Chandli Bend-jedid. Trata-se de dirigentes nacionais influentes e amplamente reconhecidos. Das nossas conversas fiquei com a impressão de que a África está a atravessar um período activo do seu desenvolvimento, que exige uma atitude responsável. A África é um continente agitado, que enfrenta problemas de grande acuidade e no qual se encontram em embrião modificações vitais” (p.207).

Que me interessa a mim se Gorbatchov é ou não acusado, por alguns sectores internos e externos, de ter sido o autor principal do golpe mortal da União Soviética e do seu sistema socialista? A verdade, porém, é que, mesmo revestido de poder (aquele que geralmente cega a muitos), ele soube fazer leitura do seu tempo e espaço, cujo vector temporal indicava precisamente que estava eminente o fim do sonho soviético. A perestroika pecou, em minha opinião, não por ter sido mal ou lentamente implementada, mas sim por ter vindo tarde demais quando a situação, já de per si, era insustentável e reforma nenhuma podia salvá-la.

Há muito que se aprende lendo “Perestroika” de Mikhail Gorbatchov. E também há muito que se diga sobre o mesmo livro. Muitas das questões e análises trazidas ao de cima mantêm-se actuais. Se o processo moçambicano pode ou não aprender com a perestroika, eu diria que sim, e muito!, uma vez haver, em muitos aspectos, semelhanças e dessemelhanças.

na estrutura dos textos de Xidiminguane existem modelos rítmicos comuns […] mas não se pode dizer que exista uma matriz única com base na qual é feita a construção textual

Cândido Elias Macaringue

 

Xidiminguane é daqueles poetas que dispensam apresentações, pois a sua poesia não passa despercebida, tal como acontecerá, entre poucos, com Fanny Mpfumo, Rosália Mboa ou Mahekwane. Este será também o entendimento de Cândido Elias Macaringue, ao dissertar sobre o poeta de Vuthu, em 2008, no Curso de Linguística e Literatura da Universidade Eduardo Mondlane, com o tema «O modelo rítmico do verso de Xidiminguane».

Motivado pelo discurso narrativizado de Xidiminguane, onde é saliente o recurso a diálogos entre personagens, entre as quais o sujeito enunciador, homónimo do «autor», Cândido Macaringue apresenta-nos um trabalho que procura analisar a estrutura dos textos musicados do poeta.

Até aqui tenho falado, indiscriminadamente, de poesia, verso, discurso narrativizado e música, como se fossem a mesma coisa. E podem ser, de facto, se pensarmos no que A. Kibédi Varga chamou de estágio sincrético das artes, ou seja, o momento em que elas andavam de mãos dadas. Para restringir o campo de referências, pensemos no verso. «O verso é expressão rítmica da linguagem verbal.» Esta definição é particularmente interessante porque abre o conceito de arte (verbal) às formas, digamos, não canonizadas. Portanto, pode haver verso no romance (aliás, é assim desde a Idade Média) como nas pregações religiosas ou nos pregões de rua das vendedeiras de alface, pão e carapau.

Mas, como diria Amorim de Carvalho, não haverá poesia nas músicas de Xidiminguane, nas histórias dum romancista, nas preces dum padre ou nos pregões das vendedeiras pelas portas dos subúrbios, se o verso, pelo seu ritmo, não for capaz de deleitar, de sugerir a quem oiça ou leia pensamentos e sentimentos elevados, profundos, sobrenaturais. Não é o caso do poeta de Vuthu (e, enquanto escrevo, ocorre-me que não deve ser também o de Eugénio Mucavele ou do angolano Paulo Flores).

Em Xidiminguane temos o verso a cantar histórias que nos marcam porque são poesia. Falemos, então, de lirismo narrativizado, isto é, de sentimentos que nos chegam sob a forma de histórias e cuja estrutura Cândido Macaringue procurou descrever, na expectativa de que outros investigadores moçambicanos da área da literatura possam investir em alargar o campo de pesquisa (geralmente circunscrito ao domínio da ficção literária) às produções textuais musicadas, escritas nas línguas moçambicanas, quer nas de origem bantu, quer na variante moçambicana do Português.

A contribuição de Macaringue obriga-me a abrir parênteses e pensar que a sua proposta de alargamento dos objectos de análise por parte dos estudiosos e dos críticos, e sua consequente divulgação, pode trazer outras implicações, desta feita ao nível da produção. Por exemplo, pode fazer crescer a consciência daquele sincretismo a que fiz alusão, levando a que haja maior interesse dos dançarinos pela literatura, dos escritores pela música, dos músicos pelas artes plásticas e por aí em diante, afinal um bailado pode ser baseado num conto ou novela, como um romance pode aproveitar-se do ritmo, das «camadas» estruturantes de uma música ou o músico pode também interessar-se pelos movimentos ou pelo cromatismo de uma tela. No entanto, estes interesses estão dependentes da capacidade de síntese por parte do artista. Esta capacidade de síntese resulta, naturalmente, de um processo de fruição e/ou aprendizagem de determinadas formas de arte e concretiza-se pela associação e transposição de códigos, imaginários e ideias que mais tarde vão dar em peças de teatro, romances, músicas… Enfim, é um vasto campo de possibilidades a explorar tanto por quem analisa e critica como por quem produz, cruzando saberes, experimentando teorias, reavaliando paradigmas aparentemente estabelecidos e propondo outros.

Este campo de possibilidades recordar-me a polémica gerada pela atribuição do Nobel de Literatura a Bob Dylan. Uns não gostaram porque era um músico que recebia uma distinção que desde 1901 tinha sido destinada a escritores apenas. Outros, subscrevendo os argumentos da Academia Sueca, disseram que o prémio era atribuído a um poeta, ou seja, à sua poesia, que, nas palavras de Sara Darius, secretária permanente da Academia, «é um exemplo extraordinário da sua forma brilhante de rimar e do seu pensamento pictórico». Quem tem razão e quem não a tem provavelmente pouco importa, pois os argumentos foram colocados e serão válidos também em função dos contextos e dos interesses de cada cabeça. Quanto a mim, interessante seria provar o pensamento pictórico do músico e, assim, ver a música e a pintura de mãos dadas.

Entre nós, embora não me seja difícil adivinhar alguns olhares de esguelha, é saudável lembrar que o músico Hortêncio Langa também escreveu narrativa, como Malangatana escreveu poesia; Filimone Meigos é poeta, mas também actor, cantor e músico, como Paulina Chiziane, romancista, publicou recentemente um livro de poesia e um disco com as músicas dessa poesia. E poderíamos dar outros exemplos, exemplos de como algumas artes conseguem estar, em síntese, em alguns de nós, aparentemente como disciplinas indisciplinadas, nutrindo-se antropofagicamente, mas em harmonia. Uma questão que se pode colocar é a seguinte: que intersecções existirão entre as representações dessas «diferentes» formas de arte e como elas configuram o pensamento… de Hortêncio Langa, Malangatana, Filimone, Paulina? Fechar parênteses.

Como disse no início, no seu trabalho, Cândido Macaringue procura perceber como se estruturam os textos musicados de Xidiminguane. A partir de uma análise estrutural do tom e com base na transcrição que fez de versos em Changana (Xichangana), o autor descreveu a ocorrência do tom em cada texto, analisou a sua métrica, ou seja, a medida do verso, em função de tons altos e baixos, procurou descrever a macroestrutura de execução, os modelos rítmicos de repetição semântica e gramatical de cada texto, os modelos rítmicos comuns a todos os textos e procurou ainda verificar a possibilidade de existência de uma matriz única entre as músicas do compositor.

Partindo do princípio de que, à época da sua pesquisa, a bibliografia parecia dar indicações de que, em Moçambique, não haviam estudos sobre a versificação em Changana, e por esta ser uma língua tonal, Macaringue optou por estudar «a possibilidade de o tom estar no centro da construção do verso.» (p. 9) Com base no Relatório do II Seminário Sobre a Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas (2000), organizado por Bento Sitoe e Armindo Ngunga, Macaringue estabeleceu para a sua pesquisa que

 

em Changana o tom pode ser alto ou baixo e é contrastivo, tanto a nível lexical como a nível gramatical. O tom alto é graficamente marcado com acento agudo (?) sobre a vogal da sílaba com tom alto, e o tom baixo, com acento grave (?) sobre a vogal da sílaba com tom baixo. […] Foi proposto que, por na língua Changana o tom alto ser o mais frequente, seja marcado o tom baixo.

 

Com base ainda no modelo de análise da estrutura semântico-gramatical de Daniel P. Kunene, Cândido Macaringue estabeleceu também o seguinte:

 

As matrizes resultam da comparação de traços semânticos e gramaticais que ocorrem num verso, com os que se verificam nos versos precedente e subsequente. O ritmo, neste caso, deriva da frequência da ocorrência de repetições, que interliga os versos através da ideia ou modo de expressão. É, normalmente, baseado na repetição de uma palavra-chave no verso a seguir, ou de uma ideia, através de uma expressão sinónima. Este tipo de repetição é remanescente das que se verificam na poesia heroica sutho. (p. 10)

Depois de analisados os versos de Xidiminguane, Cândido Macaringue conclui que estes

 

não obedecem a uma métrica regular feita em função do tom, podendo dizer-se, portanto, que são construídos com base em “verso livre”, e segundo a prosódia da língua. […] A nível semântico-gramatical, a análise conduz à conclusão de que na estrutura dos textos de Xidiminguane existem modelos rítmicos comuns […] mas não se pode dizer que exista uma matriz única com base na qual é feita a construção textual, já que que estes modelos rítmicos não se submetem a uma ordem de ocorrência fixa. (p. 35)

 

Xidiminguane não é poeta regular. De resto, toca os estilos Marrabenta, Madjikha e Makwhaie. Desde o princípio da sua carreira, nutriu-se do ritmo da própria vida, como terá acontecido, aliás, com outros da sua verve. Domingos Bernardo Honwana, de seu nome verdadeiro, nasceu no povoado de Vuthu, distrito de Bilene-Macia, província de Gaza, no dia 3 de Agosto de 1936. Em 1970 passa a viver na Cidade de Maputo, no Bairro de Maxaquene. Aprendeu a tocar viola em 1949, tendo como a sua primeira gravação a música «A nwana wa noyi angana utsongwana», datada de 1964. Xidiminguane trabalhou nos Caminhos de Ferro de Moçambique, de 1962 a 1996, e nas minas da República da África do Sul durante 18 meses.

Pelo ritmo com que decanta a vida, um grande bem-haja ao poeta de Vuthu!

 

 

 

 

 

Carvalho, Amorim de (1987), Teoria Geral da Versificação. Vol. 1. Lisboa: Editorial Império, p. 17.

O dossier das dívidas ocultas, que parecia ofuscado pelo coronavírus, ganhou um novo ímpeto, quer a nível jurídico, quer do ponto de vista político. É que o Conselho Constitucional surpreendeu à opinião pública ao divulgar, semana finda, um acórdão a declarar nulidade de todos os actos de contratação das dívidas da Proindicus e MAM, equivalente a 60 por cento do total das dívidas ocultas.

O CC fê-lo em resposta a uma petição de 2018, subscrita por duas mil pessoas e submetida àquela instância de justiça por algumas organizações da sociedade civil moçambicanas lideradas pelo Fórum de Monitoria do Orçamento (FMO).

Com o acórdão voltamos a ouvir os partidos políticos da oposição com assento no parlamento e ONGs nacionais, a exemplo do FMO e do Centro de Democracia e Desenvolvimento (CDD), a levantarem voz a exigir ao governo para não pagar os 2.2 mil milhões de dólares das dívidas ocultas em cumprimento da decisão.

A expectativa das pessoas é que com a deliberação, o governo não deve mexer mais nada que diga respeito às dívidas não declaradas. Não pode nem negociar a sua reestruturação, muito menos pensar em pagar o que o país deve no quadro da criação de Ematum, Proindicus e MAM.

Há quem acha que basta exibir o acórdão para Moçambique se livrar das dívidas e os credores dos títulos da dívida soberana esquecerem-se de tudo como se nada tivesse acontecido.

Ninguém dá-se ao trabalho de avaliar se a deliberação do CC tem ou não algum impacto a nível internacional ao ponto de isentar, de imediato, o país de honrar os seus compromissos perante os credores.

O assunto não é tão simples como parece. Para começar, o acórdão não trás consigo uma varinha mágica para resolver tudo num abrir e fechar de olhos. É uma espécie de fiscalização de actos praticados pelos agentes do Estado na contratação das dívidas, cuja conclusão é que foram ilegais. É, por isso, um assunto doméstico.

Por si só, não produz nenhum efeito jurídico junto de instituições internacionais ou de credores, o que quer dizer que tudo continua na mesma. A dívida está lá e ela tem de ser paga.

Aliás, a deliberação do CC não me parece livrar o país do pagamento das dívidas, mas é um instrumento fundamental através do qual o próprio Estado, depois de liquidá-las, possa responsabilizar aos seus agentes por prática de actos ilegais, o tal direito de regresso.

Se o Estado não pagar, podem acontecer duas coisas. Primeiro, estará a violar a Constituição da República no seu artigo 58, alínea 2, que diz que o Estado tem que reparar os danos causados por actos ilegais dos seus agentes no exercício das suas funções, sem o prejuízo do direito de regresso. Curiosamente, o acórdão do CC não entra em colisão com este dispositivo. O contrário, a decisão seria anti-constitucional.

O antigo Procurador-Geral da República, Augusto Paulino, agora mais descontraído, reforça, no seu mais recente livro “My love da fofoca jurídica II”, a posição de que o Estado moçambicano não tem outra saída que não seja pagar as dívidas em observância ao disposto na lei mãe.

Em segundo lugar, não cumprimento das suas obrigações junto dos credores pode colocar Moçambique na lista negra como um país não sério. Quando é assim, todos afastam-se. Ninguém quer fazer negócio com um país assim, sob risco de perder o seu dinheiro.

Moçambique só não pode pagar os 2.2 mil milhões de dólares das dívidas ocultas, investidos na criação de Ematum, Proindicus e MAM, com garantias do Estado, se recorrer à arbitragem internacional. E aqui, o acórdão do Conselho Constitucional pode servir de suporte importante na fundamentação do governo moçambicano.

Só que, no meu entender, a possibilidade de os juízes advogarem a favor do nosso país, pobre, é bastante remota, para além de se tratar de processos judiciais muito morosos e melindrosos em que ganham os mais fortes, os mesmos poderosos.

O ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleane, diz que o governo não pagou mais nada para além dos 38 milhões de dólares, em Outubro do ano passado, correspondentes à primeira tranche da dívida de pouco mais de 700 milhões de dólares de EMATUM.

Está claro que só não pagou porque o país não tem dinheiro. Ainda não se refez dos efeitos dos ciclones Idai e Kenneth que deixaram rastos de destruição no centro e norte e precisa de apoio dos doadores para reerguer algumas infraestruturas danificadas ou destruídas.

Para piorar a situação, há agora o problema de coronavírus que paralisou quase por completo a economia moçambicana com o encerramento de muitas unidades produtivas e o funcionamento, a meio-gás e com dificuldades, de centenas de outras, a precisarem de apoio do governo para manter portas abertas e preservarem a força de trabalho.

Como uma medida de pressão, alguns dos credores, impacientes, resolveram processar judicialmente Moçambique num tribunal de Londres, exigindo que honre os seus compromissos, pagando o que o país lhes deve.

O ministro diz que o foco do Executivo agora é a reestruturação da dívida para torná-la mais sustentável para o país. O governante deixou entrelinhas, no parlamento, o que vai acontecer daqui em diante. É que quando se reestrutura a dívida é para depois pagar. Não dentro dos prazos estabelecidos anteriormente, mas num período mais alargado ou em condições mais confortáveis.

Foi o que aconteceu com a dívida da EMATUM. Os termos acordados em Setembro de 2019 com a maioria dos credores dos títulos da dívida soberana determinam a extensão do período de pagamento da dívida para mais 10 anos ou seja a maturidade passa de 2023 para 2033.

Depois desses entendimentos, não sobra espaço para qualquer recuo da parte do governo. Não há como dizer, agora, que já não vai dar. Que não pagará a dívida porque a mesma foi declarada ilegal pelos tribunais internos. Esse é um assunto doméstico.

Fazer uma coisa dessa seria pior para Moçambique. Perderia toda a credibilidade junto dos doadores ou parceiros financeiros internacionais. Seria um total suicídio. Mais do que fazer o jogo de ganhar tempo até que o país tenha acesso aos recursos provenientes da exploração de gás natural do Rovuma para pagar as dívidas.

O Estado precisa de provar junto de parceiros internacionais de que é um pais sério e que cumpre com as suas obrigações. Tem que preservar a sua imagem perante a comunidade internacional para continuar a merecer a confiança dos seus parceiros.

O desembolso dos 38 milhões de dólares da dívida de Ematum está nessa linha de construir uma boa imagem do país e de bom pagador. Sou advogado do Estado? Não, estou a explorar as hipóteses lógicas existentes para arrumar este assunto das dívidas ocultas e todas as partes saírem a ganhar: Os credores e o estado moçambicano.

Ainda assim há quem pergunte de que lado está o governo, com este assunto do acórdão do CC? Das ONGs nacionais e dos partidos políticos da oposição com assento no parlamento, que exigem não pagamento da divida ou dos parceiros internacionais, assumindo as suas obrigações como um país responsável que deve continuar a merecer confiança dos doadores por via do financiamento à economia?

A resposta está consigo. Mas se quiser, deixe que o tempo se encarregue de responder por si. Até mais.

No dia 25 de Novembro de 2019, a UNESCO instituiu o dia 5 de Maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. A nossa língua foi, assim, o primeiro idioma a ter uma data oficial reconhecida por esta importantíssima organização das Nações Unidas.

Esta decisão inédita da UNESCO deve encher os moçambicanos de orgulho, pois deveu-se a um conjunto de factores para os quais Moçambique muito contribuiu. É considerável o contributo de Moçambique para o crescimento de uma língua que, hoje, está entre as cinco mais utilizadas na internet e é a mais falada no Hemisfério Sul. Pela sua dispersão geográfica, a língua portuguesa dá voz (e letra) a muitas culturas e a sua grandeza tem projectado os nossos escritores, os nossos músicos, os nossos académicos, mas também eles têm ajudado a projectar a língua portuguesa.

Vivemos na sociedade do conhecimento e o conhecimento vem até nós, essencialmente, através da língua e do texto. Não importa se o texto nos chega num suporte tradicional ou digital, importa que o consigamos ler, entender e dele tirar a informação necessária para o nosso progresso pessoal e colectivo.

Sabemos, igualmente, que as línguas podem ter um papel preponderante na aquisição das ferramentas necessárias a um bom desempenho profissional e académico, podendo, consequentemente, contribuir para uma melhor adaptação dos nossos jovens aos desafios que a sociedade lhes apresenta. Neste sentido, a tarefa dos investigadores, dos linguistas, dos professores, de uma forma geral, e dos professores de língua portuguesa, de forma particular, é bastante complexa e necessita do empenho e apoio de todos.

São muitos os desafios com que as nossas sociedades se deparam e as respostas a estes mesmos desafios vão exigir conhecimentos, competências diversas e soluções criativas. Para tal, é necessário que a leitura, a escrita, o trabalho colaborativo, o pensamento crítico, a adopção de estratégias de resolução de problemas, a utilização das tecnologias de informação e comunicação, a pesquisa, a produção e a difusão do conhecimento científico sejam uma prática efectiva na academia.

Os professores, um pouco por todo o mundo, queixam-se que os seus alunos não lêem. Mas por que é que os alunos não lêem? Imediatamente pensamos na atracção que a internet, o Youtube, o Facebook, o Instagram e os videojogos exercem sobre os nossos jovens e como as novas tecnologias podem afastar os nossos jovens da leitura. A estes factores, acrescentamos, em Moçambique, o custo do livro e a inexistência de uma rede pública de bibliotecas. Mas será que é só por isto que os nossos estudantes não lêem? Não estará a escola a falhar na tarefa de formar leitores competentes e apaixonados pela leitura? Considero que um dos papéis, talvez o papel mais importante da escola, seja motivar para a leitura e formar leitores.

A língua portuguesa é, pois, um activo que nos pertence e que devemos saber valorizar. Ela permite-nos comunicar e construir projectos comuns na riqueza da diversidade cultural moçambicana e concede-nos, igualmente, o privilégio de podermos comunicar, sem tradutores nem intérpretes, com povos irmãos, espalhados pelos diversos continentes.

A Universidade Pedagógica está inquestionavelmente ligada a esta história de sucesso da língua portuguesa. Milhões de moçambicanos aprenderam português com professores formados nesta universidade. É, por isso, legítimo que os profissionais formados pela UP reclamem para si uma parte do sucesso da língua portuguesa no nosso país.

Num momento em que a língua portuguesa assume um relevo cada vez maior na região e no mundo, é necessário que os seus falantes tenham consciência da importância que esta língua tem na sua vida pessoal e comunitária, assim como das oportunidades locais e globais que o domínio do português proporciona. É igualmente necessário que se assumam e implementem políticas de ensino e de promoção do português, que tornem a sua aprendizagem acessível a todos os moçambicanos.

Sendo a língua portuguesa uma língua que une povos de diferentes geografias e culturas, ela tem tido um papel determinante no estabelecimento e desenvolvimento muitas das parcerias da Universidade Pedagógica. Os inúmeros protocolos que temos vindo a firmar com universidades portuguesas, brasileiras e angolanas e a cooperação com instituições como o Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, a Embaixada do Brasil …. têm, na sua base, o estímulo de falarmos a mesma língua. Num momento em que o conhecimento é global e se desenvolve através da partilha, a língua portuguesa será, cada vez mais, uma ponte que liga a UPM às academias e aos centros de investigação do mundo lusófono.

Celebremos, pois, a diversidade que enriquece a língua portuguesa e as oportunidades que ela nos oferece!

É notório anualmente que o número de jovens curiosos e peregrinos aumenta de uma forma acentuada e na paróquia Sagrada Família da Machava de modo particular é um facto.

Anualmente nas vésperas da grande caminhada que anualmente os fies católicos da província de Maputo, de outros quadrantes de Moçambique e dos países vizinhos se submete quando chega o mês de maio.

Na paróquia Sagrada Família da Machava quando os dias da peregrinação se aproximam é notório nos corredores da comunidade sede que também faço parte a conversa ser monopolizada com os preparativos eficazes a se usar para aquela terra santa onde ao chegar devemos ter o mínimo para a sustentabilidade dos peregrinos. A formação de grupos maior parte das vezes é feita entre amigos e experientes. Sem querer me gabar já sou considerado “focal Ponit”.

Quem é jovem que tem uma história de muitos e longos anos nessa santa caminhada é um jovem que caracteristicamente falando é humilde e o seu papel é equiparada a do bom pastor porque muitos graças a ele peregrinaram pela primeira vez e ate este ano se tivessem a oportunidade para tal faria sem piedade das dores e estilos que saem como consequência. Até certo ponto se for para se dar um título de “Herói dos peregrinos”, Mundinho merece!

As histórias do “Txololoco” (traduzido para português significa Peregrinação) são muitas que apresentam uma variedade de formas, a destacar: Boas, assustadoras, de arrepiar, de bondade, caridade, generosidade, irmandade, de egoísmo, etc.

Para quem já peregrinou sabe muito bem que antes e depois da primeira decisão há sempre uma advertência relacionada com os pontos acima citados porque a caminhada não é uma coisa fácil mas sim difícil que carece sempre de um preparo físico, espiritualmente, financeiramente e acima de tudo psicológico.

Digo acima de tudo psicológico porque lá todos ganham mesmo estatuto, Peregrino, e biblicamente falando as diferenças sociais e financeiras (lá) não podem falar mais alto porque vamos ao encontro de Deus. Atenção! É bíblico também que em todo canto Deus pode se procurar e achar.

Um dado que julgo ser engraçado para os novos peregrinos e não carregrinos, essa outra forma de peregrinar segundo os mais estudados na matéria de peregrinação é feita de carro e recomendada para os mais velhos ou pessoas com problemas de saúde, entre outras activiades que não devem ser interferidas socialmente. Mas isso não nos deve tirar muito tempo.

Buscando o raciocino dizia que um dado engraçado para os peregrinos de primeira viajem é que geralmente chegam ao local de encontro sempre com pastas ou mesmo malas pesadas o que não é recomendado e até em casos extremos com roupas não pratica para a viagem de cerca de 75kilometros, à pé.

Mas para quem já é experiente no âmbito do espírito de irmandade partilha o pouco ou o muito da sua sabedoria aconselhando maior parte das vezes a deixar uma parte do que torna a trouxa mais pesada, visto que, na mesma só deve permanecer algo que será usado durante a caminhada. Felizmente anualmente há sempre bons irmãos que fazem assistência aos peregrinos e porque na mesma noite são responsáveis em ir até ao santuário fazer a reserva da habitual área em que como família que somos ficamos e guardamos os nossos pertences quando vamos as celebrações, então lá encontramos os nossos pertences logo na chegada.

Um facto que também deve ser recordado com alguma atenção é que anualmente para quem já antes peregrinou tem que reconhecer que esta num novo ano. A caminhada não é igual para ninguém mesmo saindo anualmente a mesma hora.

Para que o percurso seja produtivo e surta efeitos desejados os grupos definem pontos estratégicos para fazerem o seu descanso e abastecer as energias, isso, para o que tenho notado acontece na Paroquia Beata Clementina Anuarite em Boane (Vila) a segunda no cruzamento de Goba e a ultima à cerca de 20 kilometros da vila da Namaacha, ou melhor, do santuário isso em Mandevo. O último ponto é importante realçar que tem sido o mais longo porque antecede a cadeia montanhosa da região.

Radiografia do peregrino

O arranque da peregrinação maior parte das vezes depende muito de quem pretende. Alguns parte das suas devidas paróquias, outros da paragem João Mateus- Matola e outro ponto que também é usado é a vida de Boane, por sinal, na primeira paragem onde alguns já chegam esgotados.

O começo é sempre belo e feliz mas muita coisa começa a ganhar consistência depois de uns 10 ou 15km percorridos porque os pequenos grupos começam a ser de fácil descoberta. E isso acaba afectando também na hora de chegada na primeira paragem obrigatória Boane e até ao santuário.

O espirito de partilha começa a reinar em Boane onde cada um tira da mochila o que preparou para em família degustar e depois disso um pequeno descanso para tentar repor as forças perdidas porque até ali ainda não se fez nada! Chamando os mais estudados da matéria até exortam que é melhor se preparar para a segunda fase meio complicada do percurso.

Depois de uns 30 ou mesmo 45 minutos de descanso os grupos começam a segunda parte de um troço que é regularmente dividido com paragens (de Boane, Cruzamento de Goba e Mandevo) em 4 partes.

Quando se sai de Boane uma coisa boa é que todos os grupos recorrem ao terço e a alguns livros religiosos para fazerem a reza do rosário que é intercalado com alguns cânticos mariano.

Outras oração pessoais intercalam também a caminhada, ate certo ponto arrisco-me a dizer que a verdadeira peregrinação começa mesmo em Boane porque antes os grupos estavam na fase de formação.

Os principiantes ficam iludidos sempre quando chegam no desvio depois do quartel das forças de defesa em Boane quando se deparam com uma placa que diz: “Bem – Vindo ao Distrito de Namaacha” e pensam que em menos tempo estarão no santuário o que é uma pura ilusão mesmo de verdade.

Quando se chega a Localidade de Mafuane alguns já apresentam problemas sérios porque as pernas começam a prender e sair bolhas porque o calçado não é confortável. Ai começam os Primeiros “Bruckdown`s” a trabalharam. Ainda em Mafuane há um pequeno teste que todo o peregrino é submetido com uma subida acentuada que ate carros não bem preparados ali roncam e aquecem, imagina pessoa de Deus o que faz?

Antes do cruzamento de Goba há também um troço histórico. O peregrino deve “andar bem” e para não cansar precisa fazer umas curvas-contra-curva em espécie de “S”. Para alguns que gostam de encurtar as distancias, reza a historia segundo a qual “não há regra sem expceção” e quando se usa essa teoria, logo ali onde tem a placa a anunciar Impaputo entram imediatamente num corta-mato.

Depois do descanso rápido para um chá, uma fruta, sopa ou mesmo uma massagem inicia a terceira parte da caminhada numa linha recta em que na mesma as desaparecem e aparecem como se estivesse parrado se decidir pautar por um passo de camaleão. Esse troço segundo relatos ate não dói muito mas alimenta muita esperança de ao santuário chegar. Mas par os que saem em Boane depois das 18horas tem sempre uma novidade ou jogo para descontrair das antenas em que se manda o novato a memorizar a posição de duas tores de telefonia móvel e antes da escola com nome do Veterano Marcelino dos Santos, com alguma regularidade se pergunta a posição das tores se mudou ou não. Para quem já teve essa experiencia pode confirmar que é uma brincadeira necessária. 

Não se pode esquecer que durante o percurso há sempre “maná” que chega aos peregrinos para durante a caminhada se hidratarem e alimentar as suas energias. Pessoas de boa fé dão agua, refrescos, sumos, bolachas, sandes e outro tipo de alimento para ajudar.  

Mas uma paragem obrigatória se faz na localidade de Mandevo onde é possível achar muita gente que saiu na quinta ou mais cedo da sexta-feira. O importante ai é lembrar que de uma forma obrigatória deve-se esvaziar todas as tijelas que tem comida excepto os biscoitos que levam muito tempo porque uma parte da comida em Mandevo chega “assustada” (termo usado para distinguir comida que esta degrada parcialmente) ou completamente descartável. Ali a língua de alguns parece que já não existe e se existir não é ao mesmo gás devido ao cansaço, teimosia a tentar resistir a meio gás, vontade de desistir de alguns pode se estimar à 95% e outras situações não agradáveis de partilhar.

Depois do descanso começa o quarto e ultimo troço decisivo e complicado porque subir montanhas heiii… não é tarefa fácil. Para evitar o “C” virado para o lado esquerdo alguns voltam a activar mais uma vez a teoria segundo a qual “não há regra sem expceção” contornado a rota oficial com um corta-mato difícil e cheio de pedregulhos como tatos outros existentes na frente. Um corta-mato onde também são ativados os “Bruckdown`s” para os teimosos com muita fé, porem, um dado interessante é antes de levantar e dar seguimento com a viagem se coloca uma pergunta pontual para todos se estão ainda com forças suficientes para continuar, geralmente a mentira reina com um sim. Visto que tem pernas curtas antes de estar no pico do apelidado “Pecador” de tanto doer alguns começam em massa a se denunciar.

Por bem o mal o egoísmo não pode reinar porque se esta numa via não aconselhável porque se estivesse maior parte dos carros que por ali passam são da assistência das diversas paróquias da Arquidiocese de Maputo.

Continuando com a viagem ai deve-se eleger um Moisés ou Josué do grupo que deve saber dar ordens em coordenação com mais duas ou três pessoas experientes do grupo para que se possa fazer uma caminhada livre de assaltos e livre de muitos perigos que podem ser vividos na santa caminhada. Para alguns os corta-matos continuam, porém, depois da localidade de Germantine há uma curva acompanhada por uma subida acentuada que todos devem sentir e bem. Quem é peregrino de verdade sabe do que estou falando porque antes da cursa é possível notar que no período de construção da estrada houve um trabalho árduo, visto que, a infraestrutura passa de um pequeno túnel sem cobertura.

O espirito salve-se quem puder começa a ganhar textura porque mesmo os que ajudavam a puxar os mais cansados as forças esgotaram e estão limitados para terminar a caminhada. Há poucos minutos da vila há um controle policial montado onde os peregrinos recebe uma assistência de segurança para chegarem ao santuário salvos e com todos seus pertences porque como é sabido por todos em todo o canto há sempre oportunistas para se aproveitarem dos indefesos.

Ultrapassados todos esses obstáculos podes crer que se le uma placa logo na entrada da vila que diz: Sinta o Supuro da Montanha. Suspiro esse que resume-se com as habituais chamadas para a namorada, namorado, mãe, pai e outros familiares se anunciando a entrada triunfal ao santuário de Fátima de Namaacha-Maputo.

 

 

Cumpridos três meses desta mudança vertiginosa do nosso mundo, que nos obrigou em 24 horas a mudar radicalmente a nossa maneira de trabalhar, abraçamos este desafio, lançado pelo José dos Remédios, de testemunhar este percurso distinto. A criatividade é uma característica na qual nos identifica a capacidade para nos adaptar

Embora precisássemos de parar para nos reinventarmos e nos dedicarmos à investigação, nunca nos ocorreu que as coisas acontecessem nestes moldes, como sobreveio com a COVID-19. Custou-nos a acreditar, sairmos do trabalho naquela 6ª feira de 13 de março carregados de incertezas e com muita ansiedade a enevoar o nosso horizonte. Ao sairmos com bilhete de ida sem data de regresso, foi como se nos atirassem ao mar para aprendermos a nadar.

Senti nesta pandemia que é possível adotarmos medidas Universais pela humanidade, que valorizem o direito à vida. Partindo da frase do Miguel Torga, “Universal é local sem paredes”, apelo à reflexão sobre os problemas essenciais que o mundo vem atravessando, relacionados com a transgressão dos direitos humanos provocados pela poluição do ambiente, pela guerra,  emigração clandestina, mão-de-obra infantil e má distribuição dos alimentos que gera fome nos países subdesenvolvidos.

Há que aprendermos com a nossa história e, numa consciência colectiva, assumirmos, em algumas circunstâncias, que somos muito mais recentes do que cremos, isto não é uma maneira de colocar sobre as nossas costas todo o peso da nossa história, mais é colocando à disposição do que fazer que podemos fazer sobre nós a maior parte possível do que nos é apresentado como inacessível (Foucault, 2004 p. 11)

Nós, os artistas, na nossa individualidade, somos feitos de contextos que nos envolvem, numa reciprocidade e em constante reflexão sobre modos de envolvência e ressignificação. É desse leito que nos refazemos continuamente, sendo os problemas que envolvem o mundo grandes influenciadores do nosso processo criativo e dos contextos que actuamos como mediadores sociais.

Ao trabalharmos numa Unidade de Intervenção e Capacitação Parental do Departamento de Infância, Juventude e Família da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, foi inevitável situarmos no mundo e no contexto em que vivemos para ajustarmos as medidas aos novos desafios em prol do todo e de novas soluções.

Houve palavras-chave que vieram com as Medidas de Contingência que sentimos nelas a nossa responsabilidade junto das famílias que beneficiam da nossa intervenção. Sabíamos que não seria fácil, mas o momento que provinha pedia o melhor de nós. Sabemos que por vezes, o medo ofusca, cria neblina e tolda os nossos comportamentos, pelo que, todos devemos estar informados e conscientes dos desafios que temos pela frente, no decurso desta pandemia… É em nós que as franjas mais desprotegidas depositam a esperança e confiança. Não podemos deixar idosos ou crianças em carência alimentar, não podemos deixar famílias carenciadas sem acesso aos nossos apoios, não podemos abandonar os sem-abrigo e a sua salubridade com riscos imprevisíveis para a vida de todos os cidadãos (Sérgio Sintra 2020).

Foram palavras cruciais que nos relembraram a nossa missão, que, ao colocar em cada um de nós a responsabilidade pelo outro, nos levou a abraçarmos uma nova forma de trabalhar. A maior disponibilidade de todos os que ficaram na retaguarda foi crucial, o sentido de união que em pouco tempo foi interiorizado e ultrapassou os nossos problemas pessoais. O abraçarmos o todo numa dinâmica participativa e interdisciplinar permitiu-nos o rápido avanço das atividades, sendo, por vezes, surpreendente a facilidade de convergência, adaptação e aceitação.

O primeiro desafio, logo que passámos ao regime de teletrabalho, foi a urgência de reajustar a nossa presença física junto das famílias para uma nova realidade, ou seja, os contactos através de telemóvel ou plataformas digitais. Iniciámos um longo caminho para uma educação afectiva e humana, na qual priorizamos verdadeiramente o essencial, mesmo sabendo que as medidas estavam sujeitas a avaliação permanente.

Momentos difíceis uniram os técnicos e as famílias e possibilitaram coisas nunca antes pensadas! Aprendemos a confiar,  e em momento algum duvidámos das competências de cada um.

Mensagens simples e com sentido povoaram nos nossos telemóveis. Ajudaram a construir novos laços, a aumentar a confiança, enquanto outras contavam histórias de lugares que mudaram a roupagem, tornada história, de uma cidade como Lisboa tão presente no mundo e tão poética.

A quem teve sempre o papel de coordenar e orientar, tentando manter a maior tranquilidade possível, nestes tempos difíceis, devemos um agradecimento.

Minha Equipa, faz- me sentir tão vossa e por  vós. Acabo de descer a rua do Nova de Trindade com um misto de sentimentos, por um lado estafada de mala às costas e isolada de uma cidade atarefada de outrora, não me cruzo nem com um taxista, nem polícia, nem peões… nada. Sinto-me saída de um filme de guerra, descabelada e desajeitada, mas digo-vos, foi a melhor semana de trabalho em equipa, fantástica, e é realmente verdade que a União faz a força e que depois disto ultrapassamos qualquer coisa. Muito obrigada a todos pelo empenho e dedicação (Mensagem para o grupo Watsapp da equipa).

Podemos considerar a nossa missão difícil e que exige de nós aquilo que podemos dar a mais, mas conseguimos estar presentes em casa de cada família que acompanhamos,  de forma a sentirem que não estão sozinhas e que podem contar connosco, dando-lhes a segurança necessária para diminuir a ansiedade provocada por esta pandemia.

No campo artístico, em Março já tínhamos a selecção definitiva das peças que iriam integrar na exposição individual que inauguraria a 21 de março na Galeria Manuel Filipa no Baixo Mondego / Condeixa-a-Nova. Esta foi cancelada e ainda sem reagendamentos.

Em princípio, inaugura a Expo Dubai, em Outubro, na qual nos integramos com peças na exposição não conhecendo os procedimentos que poderemos seguir nesta conjuntura.

Agendado para Outubro, e sem novas previsões, na Escola Portuguesa de Moçambique, está o lançamento do nosso conto LAMURA – uma estória que retrata o imaginário de um menino de uma aldeia em África, que, retirado do seio familiar, faz uma nova caminhada com os seus companheiros da aldeia. Numa luta pela sobrevivência, o imaginário da infância ganha espaço através do amor e da criatividade. Reflecte problemas socias contemporâneos que merecem um olhar amplo e uma resposta urgente, para um futuro numa sociedade mais humana onde a criança possa ter o direito de ser criança.

Heidegger refere que a arte não é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde. Mas poderá valer como uma ideia colectiva na qual reunimos aquelas coisas que da arte somente são reais: As obras e os artistas. Se a experiência estética é uma forma de validação da existência individual e subjetiva, ela é também a promessa e a expressão de uma comunidade (P N A 2019-2024, p.18) da possibilidade de viver e de partilhar essa experiência com os outros questionamos o lugar da Educação e Arte e sobre a forma como esta arte chega às nossas crianças e jovens e abraçamos uma investigação baseada nas artes a/r/tografia que assenta numa perspetiva crítica e comprometida com o desenvolvimento das formas de conhecimento transdisciplinar. É uma investigação do educador/artista/ investigador, que nos possibilita o entendimento e uma prática, resultante da investigação, na área de Educação e Arte, que permitem trabalharmos competências pessoais e sociais das criança e dos jovens, que, actualmente, vivem em ambientes que não lhes permitem construir vários campos afectivos. Neste presente momento, as ferramentas digitais e as diferentes plataformas como o Zoom, Teems, whatsapp, entre outras, facilitaram os nossos encontros para que

nesta primeira abordagem fosse possível criar em contexto de vida das crianças e jovens, “in loco”nos espaços potenciais de pertença, permitindo que a sua representação possa tomar diversas formas, dando-lhes voz e a possibilidade de se expressarem através da arte. Mesmo com a distância física, desafiámos as crianças com criatividade e imaginação, permitindo a partir da sua expressão criativa levar algumas crianças a vivenciarem, neste momento de contenção, experiências de criatividade, de aproximação, apoio e partilha através das linguagens criativas.

Deste modo, acreditamos que um processo articulado, envolvendo Educação e Arte, será uma força desafiadora na procura de significados que reduza naturalmente as distâncias que se colocam entre a cultura que nós apresentamos às crianças, e as que elas inventam e montam para si mesmas. Por sua vez, este processo desafia o investigador a estudar modelos e estratégias que espelhem a multiplicidade da comunidade que vive em nós, quebrando estereótipos e obrigando-nos a olhar para a criança de forma reflectida, a Investir nas crianças para quebrar o círculo vicioso da desigualdade  (20 de Fevereiro de 2013/112/UE).

Quanto à cidade que nos viu nascer, Maputo, temíamos o pior quanto à COVID-19, devido às condições dos transportes públicos (os mylove, os chapas), o aglomerado populacional em zonas urbanas, principalmente mercados e locais de venda ambulante, como os (dumba-nengue), mas Moçambique surpreendeu-nos pela positiva. Apelamos à continuidade das medidas sustentadas. As fronteiras fechadas para a África do Sul, impedem os pequenos comerciantes de sustentar a cidade, e receámos que surjam problemas de fome, pela dependência que a cidade tem dos produtos sul-africanos.

Há que mudarmos de paradigma e repensarmos no investimento numa agricultura sustentável, biológica, com objectivo de exportar alimentos saudáveis e tornarmos a nossa população mais autossuficiente. A nossa terra tem bastante potencial, seria importante a criação de iniciativas de desenvolvimento de pequenas empresas, que possibilitem trabalho dos jovens nesta área a longo prazo.

Nós, distante, vivemos a cada dia, nesta cidade de janela virada para o Tejo, carregados de esperança e a aprendermos a viver estes novos tempos. Conectados ao mundo e ao outro, com uma atenção redobrada, principalmente para aqueles que mais precisam.

Um obrigado a equipa da saúde, dos bombeiros, e todos  os que cuidaram de nós. Como a vida dos artistas é feita de processos, continuamos a fazer da recoleição dos logos fragmentário como os hypomnemata, para o estabelecimento de uma relação de si consigo próprio tão adequada e completa quanto possível (Foucault, 1992, pp.129-160). Com isto e pela vida, cuidem-se! Protejam-se, e, quando isto tudo terminar, acredito que vamos tirar muitas coisas positivas. Vamos todos ficar bem.

 

 

Lisboa 14 de Maio de 2020

SUZY BILA |Maria Suzete Bila

Educadora de Infância | Equipa de Intervenção e Capacitação Familiar- Centro

UIF- Unidade de Intervenção Familiar

Direção de Infância, Juventude  e Família da SCML

 

Zé das Abelhas é admirado na comunidade pela astúcia com que lida com os milhares de abelhas que povoam e esvoaçam sobre as suas colmeias, produzindo o mel mais doce da localidade. Ele passa os dias debaixo do sol mexendo e remexendo os favos, recorrendo a uma vara ou, se necessário, usando a técnica do fumo, e transpirando o aroma dos seus insectos.

O doce mel vem, de quando em vez, acompanhado de ferroadas. E já apanhou algumas. Ossos do ofício. Mas a aldeia toda era capaz de jurar a pés juntos que o apicultor é tão amigo das abelhas a tal ponto que não lhe fazem mal nenhum.  Há quem até diga que ele conhece o zumbido de cada uma das suas abelhas e até canta e dança a sua musicalidade.

Zé construiu inúmeras colmeias de madeira, na base de uma colina longe do centro da aldeia. Diz-se, também, que não é boa ideia ter uma colmeia junto de adegas de cabanga, porque estas atraem as abelhas e podem prejudicar a qualidade do mel. As colmeias estão assim, numa zona sossegada, perto de uma fonte de água, o Púnguè.

Não é que o rio se evadiu do leito na calada da noite! Galgou espaços e, em coligação com os ventos ciclónicos, derrubou palhotas, destruiu lares e raptou vidas para a sua corrente demoníaca.

Antes do sol nascer, Zé, que passou a noite vigiando a água que invadiu a sua casinha feita de bloco queimado, deixa a mulher e os dois filhos em lugar seguro: o cimo de uma árvore. Enfrenta a tempestade para saber das suas abelhas.

«Fica aqui connosco!», suplica a esposa, «não vais fazer nada para salvar as tuas abelhas!»

As palavras da mulher não encontram eco no coração apertado do Zeca. O mel é a fonte da vida. Sem mel não há comida em casa, nem há escola para as crianças. Mas mais do que fonte de sustento, as abelhas viraram paixão e afecto. São aos milhares, mas por cada uma que tomba, o coração de Zé destroça-se. É imperioso mitigar-se o desastre.

A caminhada é dura. Os níveis de água são elevados. Rapidamente saltam da cintura para o peito. As colmeias estão precisamente junto do rio. É do rio que todos se afastam o máximo que podem. Mas Zé quer salvar as suas abelhas de coração. 

O movimento do apicultor na água é empurrado para uma esperança que vai perdendo gás. A força de vontade aos poucos vai sucumbindo ao panorama que os lacrimejantes olhos de Zé contemplam. Começa a custar-lhe acreditar que as colmeias, de construção artesanal, tenham resistido a tanta destruição. Mas a esperança é a última que morre.

As faces de Zé das Abelhas estão ensopadas por um misto de chapiscos da chuva, que teima em não parar, e do suor resultante da excitação emocional e do enorme esforço físico que faz para seguir em frente. Nunca imaginou que algum dia fosse capaz de transpirar mergulhado na água.

Ele alcança a base da pequena colina. A sua vista pestaneja, de forma incessante, como se a sombra do amanhã descansasse nas bermas da sua vida. Os seus receios viraram realidade. As colmeias foram varridas da face da terra e substituídas por um mar sem fim. E as abelhas? Não sobra nenhuma para amostra.

«Será que as minhas abelhas lindas foram levadas pelos ventos?», questiona-se. Em si busca uma resposta para se autoconsolar: «não! Elas têm asas. Só podem ter voado. Mas voaram para onde? Voaram para a desgraça?», não tem resposta. Outro pensamento enche-lhe de pânico: «ou será que se afogaram?», nova incógnita atormenta-lhe os pensamentos, e com ela mais uma pergunta para lhe inquietar a alma: «mas afinal de contas as abelhas sabem ou não sabem nadar?», equação sem solução.

Olha em redor. Apenas vislumbra água e mais água. Apenas água. O que fazer? Há que regressar para casa. Mergulhado num manto que descomanda as suas emoções, mal se apercebe que a água lhe chega agora ao pescoço. Tenta dar o primeiro passo no sentido de regresso. Sente um chão movediço que resvala para o vazio. Está a ficar sem pé. Não sabe nadar. Se insistir, afoga-se. Assusta-se com tão macabro pensamento.

A apreensão não lhe tira o discernimento necessário para dar o passo atrás. Nada de enfrentar a água. Galga a colina e resguarda-se na sua parte mais alta. Tem de esperar que a água baixe, para voltar para casa e saber da mulher e filhos que deixou pendurados numa árvore.

À medida que o dia se clareia, a chuva aumenta de intensidade e o nível deste mar só sabe subir. Zé das Abelhas está encurralado na colina, que é o ponto mais alto da aldeia. Não tem mais para onde recuar. Sobra-lhe um murmuché empoleirado em forma de um chapéu no topo da colina. É aqui que o homem se refugia.

O apicultor está sitiado só, com frio, fome e sem as suas abelhas. A aldeia desapareceu. As copas das árvores transformaram-se em pequenos pedaços de verde que pontificam a espaços por entre a corrente.

E a sua família? Ele abraça-se a si próprio. Entrega o seu corpo à chuva. Os seus olhos contemplam o infinito da água e chora. Lágrimas de dor. Lágrimas de desespero. Lágrimas de incerteza na razão de uma vida que deixou de ter chão.

Sua alma segreda-lhe que da mesma forma que não chegou a tempo de salvar as abelhas, pode não voltar a colocar os olhos sobre os seus. O choro é agora copioso. Tão alto, tão alto, que ecoa no vento e na chuva, mas não conquista os tímpanos do mundo. Perde-se no som da água.

Ao quarto dia, o estado do tempo não dá sinais de tréguas. A chuva continua a cair e o homem continua sitiado no murmuché. São dias passados a baloiçar de um lado para o outro, em busca de equilíbrio e lutando pela vida. A fome faz-lhe fraquejar. O risco de tombar e seguir o destino da água é uma realidade.

O murmuché é a fortaleza das formigas. É aqui que elas buscam segurança, calor, conforto e espaço para procriar. A muralha está a ser corroída por baixo. A segurança e o conforto destes insectos é substituída pela água que invade, paulatinamente, os espaços do seu mundo.

As formigas fazem o óbvio. Fogem do submundo do murmuché e sobem à superfície. Encontram um outro corpo estranho no topo do seu castelo: Zé das Abelhas. Frágil, cansado e esfomeado.

As formigas não são suas amigas. Zé é amigo de abelhas. As formigas não cantam, não dançam e nem voam. Também querem sobreviver e disputam o diminuto espaço com Zé das Abelhas. Elas partem para o ataque. Invadem o seu corpo. Quer repeli-las, mas falta-lhe força e energia. Os seus gestos são tão inofensivos que não impedem que os insectos percorram, em várias filas indianas, todas as avenidas do seu corpo. Primeiro foram as pernas, depois a barriga, as costas, os braços e o pescoço. A primeira formiga ia atingir a cabeça, quando o castelo de areia, que é o murmuché, desmorona-se e, paulatinamente, dissolve-se na água.

Há quem diga que o corpo de Zé das Abelhas foi visto a navegar de bruços, totalmente coberto de enormes formigas negras, em direcção à foz do Púngué.     

 

Não se deve fingir que é uma realidade inexistente. Não se deve assobiar para o lado perante uma factualidade que, em crescendo e expansão, se vem tornando de verificação quotidiana em várias empresas, nas quais, com o argumento segundo o qual se tenciona prevenir e conter a propagação da covid-19, as entidades empregadoras possuem, à entrada das respectivas instalações, dispositivos destinados a medir a temperatura do trabalhador, sendo que, se o resultado apurado for superior à temperatura “recomendável”, o trabalhador é impedido de entrar nas referidas instalações.

Em algumas – não poucas – situações, não se fica somente por aquele impedimento. A informação sobre o resultado da testagem realizada ao trabalhador é facultada – sem o consentimento do trabalhador – às autoridades de Saúde, por se entender que se está em face de um suspeito portador de covid-19.

Conforme se antecipou acima, é uma realidade de verificação diária em inumerosas instituições e, por ser prática tão reiterada (e até banalizada), chega a ser assumida como algo completamente normal. Todavia, não é bem assim e, aqui, trataremos de escalpelizar os contornos legais, quer dos testes em si quer da consequência de apuramento da temperatura acima do “recomendável” e quer ainda da partilha desses dados, em face das normas reguladoras da protecção de dados pessoais relativos à saúde dos trabalhadores.

Com efeito, o paradoxo aqui em sindicância radica da necessidade que as entidades empregadoras possuem de desencadear mecanismos que visam obviar o contágio da covid-19 entre os seus trabalhadores, freando, dessa forma, a propagação de referido vírus. Com o objectivo de alcançar esse desiderato, emerge a preocupação de se exercer o controlo da saúde dos respectivos trabalhadores, cujo método mais corriqueiro é desencadeado através da realização de testes que consistem na recolha da temperatura corporal dos mesmos (o que, à luz da lei, equivale à recolha de dados pessoais relativos à saúde), os quais são feitos de forma indiscriminada a todos os recursos humanos sem a respectiva anuência (o que, à luz da lei, equivale à ausência de consentimento expresso do titular de dados pessoais), advindo, desse somatório de actos, que, se o trabalhador apresentar uma temperatura acima do comummente recomendável, este é impedido de se adentrar nas instalações da entidade empregadora.

Desde logo, avulta a questão de se clarificar se se poderá considerar a ausência do trabalhador nessas condições como se se tratasse de uma falta [injustificada] ao serviço. Como forma de rematar esta situação, até porque revela-se uma questiúncula e, no meio de aspectos que reclamam uma maior atenção, esta traduz-se numa pugna menor, torna-se indiscutível aclarar que a falta ao serviço ocasionada pela dispensa “compulsiva” do trabalhador, não se deve considerar falta injustificada. Nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 103 da Lei n.º 23/2007 – Lei do Trabalho (“LT”) – «são consideradas faltas justificadas em caso de impossibilidade de prestar trabalho devido a facto não imputável ao trabalhador, nomeadamente doença ou acidente». Sendo que o teste é realizado pela entidade empregadora (ou sob sua orientação) e o resultado que determina o impedimento do trabalhador se adentrar nas instalações é também por si fixado e tal factologia é que baseia a dispensa do trabalhador, não se podendo, por isso, considerar que este tenha violado, fosse de que forma fosse, o seu dever de assiduidade promulgado na alínea a) do artigo 58 da LT e, por isso, não é falta injustificada e «não determinam a perda ou prejuízos de direitos relativos à remuneração, antiguidade e férias do trabalhador» (n.º 1 do artigo 105 da LT).

Ultrapassada a questão da hipotética existência de falta [injustificada] e suas eventuais consequências, centremo-nos na legalidade desses testes.

Ao contrário do que se sucede em alguns ordenamentos jurídicos, onde estas práticas são alvas de permissão legal expressa – consulte-se, a título de exemplo, o artigo 13.º-C do Decreto-Lei n.º 20/2020 de Portugal, que, sob epígrafe “controlo de temperatura corporal”, estabelece o seguinte: «no atual contexto da doença covid-19, e exclusivamente por motivos de proteção da saúde do próprio e de terceiros, podem ser realizadas medições de temperatura corporal a trabalhadores para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho (n.º 1). O disposto no número anterior não prejudica o direito à proteção individual de dados, sendo expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, salvo com expressa autorização da mesma (n.º 2). Caso haja medições de temperatura superiores à normal temperatura corporal, pode ser impedido o acesso dessa pessoa ao local de trabalho» (n.º 3) – no ordenamento jurídico moçambicano uma norma com um teor congénere a este não se vislumbra.

O direito à protecção de dados pessoais possui, em Moçambique, dignidade constitucional, tornando-se curial sublinhar-se o teor dos n.ºs 2 e 3 do artigo 71 da Constituicao da República (CRM), inserido no Capítulo “Princípios Gerais dos Direitos, Liberdades e Garantias Individuais”. Com efeito, «a lei regula a protecção de dados pessoais constantes de registos informáticos, as condições de acesso aos bancos de dados, de constituição e utilização por autoridades públicas e entidades privadas destes bancos de dados ou de suportes informáticos» (n.º 2); No mesmo diapasão e como decorrência do comando normativo constitucional atrás citado, «não é permitido o acesso a arquivos, ficheiros e registos informáticos ou de banco de dados para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, nem a transferência de dados pessoais de um para o outro ficheiro informático pertencente a distintos serviços ou instituições, salvo nos casos estabelecidos na lei ou por decisão judicial» (n.º 3).

No que concerne a esta temática – protecção de dados pessoais relativos `a saúde, todavia, sem referência particular aos trabalhadores – ela é disciplinada pela Resolução n.º 5/2019, de 20 de Junho, que ratifica a Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (doravante “CUACPDP”), Convenção adoptada pela 23.ª sessão ordinária da cimeira dos chefes de Estado e de Governo da União Africana, a 27 de Junho de 2014, em Malabo, Guiné Equatorial.

Salienta-se que, a despeito da predita Convenção ter sido adoptada em 2014, é curial realçar-se que só a partir da respectiva ratificação pela Assembleia da República, em 2019, por intermédio da Resolução n.º 5/2019, é que ela entrou em vigor em Moçambique, na medida em que, nos termos do n.º 1 do artigo 18 da Constituição da República (“CRM”), «os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique», sendo que a sua correspectiva posição na hierarquia das leis moçambicanas, nos é indicada pelo teor do n.º 2 do artigo 18 da CRM, que promulga que «as normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção».

A CUACPDP que, conforme ficou translúcido no parágrafo precedente, constitui lei ordinária moçambicana, estabelece princípios em torno dos quais deve gravitar a recolha e processamento de dados sensíveis.  

Como princípio regra, a recolha e processamento de dados está subordinada ao consentimento do titular dos dados. No entanto, o princípio do consentimento pode ser revogado quando o processamento de dados for necessário para a execução de uma missão de interesse público no exercício de autoridade pública conferida ao controlador de dados (…) e ainda para a salvaguarda dos interesses vitais ou direitos fundamentais do portador de dados (…) – alíneas b) e d), respectivamente, do artigo 13 da CUACPDP e, no que tange ao processamento de dados sensíveis relativos ao estado de saúde do portador de dados, o consentimento pode ser afastado quando o processamento de dados for necessário para proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de uma outra pessoa (…) – al. c) do n.º 2 do artigo 14 da CUACPDP.

Desnecessário se torna discutir se os actos tendentes à contenção do contágio e propagação da covid-19 se enquadram na categoria de “interesses vitais de outra pessoa”, todavia, cremos que as entidades empregadoras, tal como exemplificamos acima, careceriam de autorização legal expressa para procederem a medição da temperatura corporal dos trabalhadores nos termos em que vêm fazendo ou, no mínimo, que houvesse a materialização do previsto no artigo 32 do Decreto n.º 12/2020, que aprova as medidas de execução administrativa para a prevenção e contenção da propagação da pandemia covid-19, a vigorar durante o Estado de Emergência, que estabelece que «os cidadãos e as entidades públicas e privadas têm o dever de colaboração, nomeadamente no cumprimento de ordens ou instruções dos órgãos e agentes responsáveis pela (…) saúde pública, na pronta satisfação de solicitações, que justificadamente lhes sejam feitas pelas entidades competentes para a concretização das medidas previstas no presente Decreto».

Como se vê, não há nem lei autorizadora nem tampouco ordens ou instruções dos órgãos e agentes responsáveis pela Saúde Pública que se direcionem no mesmo sentido. E se trouxermos à colação o disposto no n.º 3 do artigo 6 da Lei do Trabalho – que se refere à divulgação, não propriamente à recolha em si – que refere que «os dados pessoais obtidos pelo empregador, sob reserva de confidencialidade, bem como qualquer informação cuja divulgação violaria a privacidade daquele, não podem ser fornecidos a terceiros sem o consentimento do trabalhador, salvo se razões legais assim o determinarem», conjugado com o estabelecido no artigo 20 da CUACPDP que estatui que «o processamento de dados pessoais é confidencial. É efectuado exclusivamente por indivíduos que agem sob a autoridade dos responsáveis dos dados e somente sob as suas instruções», o quadro ganha contornos mais perniciosos, visto que a parte in fine do artigo citado artigo 20 somente permite que esses actos sejam praticados por quem, legalmente, lhe tenha atribuído poderes para o efeito.

No quadro panorâmico-legal em que essas medições são realizadas, só as autoridades de saúde é que podem proceder à recolha dessa informação. O médico da empresa pode avaliar o estado de saúde dos trabalhadores e recolher as informações necessárias para avaliar o mesmo, em conformidade com o que estabelecem os regulamentos internos de cada instituição, todavia, essa faculdade não é extensível à recolha de dados sensíveis relativos a saúde do trabalhador sem o seu consentimento. Não se deve perder de vista que se trata de dados sensíveis, reveladores de aspectos íntimos da vida privada do trabalhador que, em princípio, não carecem que ser do conhecimento da entidade empregadora, nem devem sê-lo por poderem propiciar discriminação

Num Estado que se pretende de Direito Democrático, as situações com implicações directas nos direitos dos respectivos cidadãos não podem ser manuseadas segundo o bel-prazer dos respectivos protagonistas. É que, por um lado, o direito à protecção de dados pessoais é expressamente consagrado na CRM e em algumas leis ordinárias, mas, por outro e em sentido antagónico, a correspondente limitação não encontra supedâneo legal inequívoco. É certo que se poderá invocar motivos de interesse público para se postergarem aqueles direitos, porém, a sua fundamentação não pode respaldar-se somente no senso comum (expressão, em si, ilíquida), na medida em que o senso comum nunca se pode se sobrepor ao primado da Lei. A segurança e certeza jurídicas exigem a existência de normas sustentadas no direito positivo (escritas, com carácter de previsão e publicidade por forma a serem antecipadamente conhecidas ou, no mínimo, conhecíveis pelos demais).

A CUACPDP – que possui natureza de lei ordinária em virtude da sua ratificação através da resolução n.º 5/2019 – preceitua que o consentimento do titular dos dados é dispensável no caso de necessidade de protecção de interesses vitais de terceiros. Aqui, acomodar-se-ia a plausibilidade de se proteger os demais trabalhadores do trabalhador infectado. As medidas conducentes à contenção do contágio e propagação da velocidade da covid-19 facilmente se inserem dentro deste quadro. Entretanto, a mesma norma impõe que o afastamento desse consentimento carece de decisão de autoridade pública conferida ao controlador de dados ou estipulação legal. Ora, não existe poder algum que tenha sido conferido às entidades empregadoras para que procedam nos termos aqui sindicados (ressalvando-se que se reconhece a plausibilidade das motivações que estão por detrás dessa actuação, mas isso, num Estado de Direito, não basta).

Vistas bem as coisas, não é tanto o acto em si (de recolha de dados) que [mais] fere a lei; é, sim, o facto dessa recolha ser efectuada sem qualquer tipo de permissão legal expressa por entidade que não possui competência (ainda que se admita que possua legitimidade) para o fazê-lo. Tal como o ordenamento jurídico português, ainda que mergulhado sob forte frenesim polémico, optou por aprovar uma norma clara que autoriza as entidades empregadoras a efectuar a recolha da temperatura corporal dos trabalhadores (artigo 13.º-C do Decreto-Lei n.º 20/2020 de Portugal), cremos que o legislador moçambicano, objectivando emprestar segurança e certeza jurídicas às normas de conduta, deveria enveredar por um trilho similar, a bem do Direito, a bem da credibilidade das actuações e a bem da seriedade dos propósitos que lhe subjazem, evitando-se, assim, a indesejável anarquia jurídica.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

 

 

 

Naquele época das batucadas choveu a valer em todo o subúrbio. Era uma ameaça renovada pela ocorrência doutro xitala-mati. Os caminhos inundaram-se, alguns barracos desmoronaram-se com a força das ventanias. Costas com costas à casa do senhor Augusto vivia um sujeito conhecido por Compadre. De quem, nunca se soube, mas chamava compadre e comadre a toda a gente. No seu quintal agigantava-se um cajueiro que dava fruta até vergar de peso. Em tempo de maturação manifestava uma generosidade rara no lugar, e ofertava cajus suculentos aos vizinhos. Mudara-se do Vulcano para o Thlavane depois de um incêndio que devorou a sua palhota. No acidente perdeu a mulher e todos os bens que possuía. Vivia com um filho menor de nome Lito, oito anos de idade cheios de travessuras, a quem as senhoras da zona tomavam como filho. Era uma criança disputada por todas as mães, pela graça da sua tagarelice e pela impertinência das suas perguntas. Ele divertia-se e aprendia com elas; elas aprendiam e divertiam-se com a inocência da sua curiosidade.

Mas eis que o destino, uma vez mais, prega outra das suas partidas ao Compadre. Naquela madrugada chuvosa o Lito saiu da esteira para a retrete a fim de fazer necessidades maiores. Acocorou-se sobre o tampo do assento e fez o que tinha a fazer. Eis senão quando, o solo cedeu e todo o assento mergulhou na profundidade da latrina. As areias deslizaram, amolecidas pelas águas das chuvas. E registou-se aquele desastre que abalou e causou estupefação em toda a comunidade.

Aquando daquele evento o senhor Compadre encontrava-se ausente. Já largara para a Estiva e deixara a criança só, pegada ao sono. Assim sempre sucedia porque era ainda cedo para a vizinha dona Nica vir buscá-lo e cuidar dele. Eram oito horas da manhã quando a Nica franqueou o portão do quintal e chamou pelo Lito. Não obteve resposta. Dirigiu-se à cabana onde habitualmente ia recolhê-lo. Na esteira apenas viu cobertores. Da criança, nem um sinal! Chamou uma vez mais pelo seu nome. O silêncio foi a resposta. Alarmou-se. Para onde teria ido a criança nesta hora tão matutina? Muito estranho porque o Lito não era criança de evadir-se para meter-se em brincadeiras nas casas da vizinhança sem a sua autorização. Estranho também porque encontrara o portão do quintal com o cadeado trancado. Vasculhou pelos quatro cantos do quintal. Quando penetrou na retrete não quis acreditar naquele horror do afundamento do assento da latrina. O terreno em redor desta aluira, quebrara e levara consigo as estacas de suporte e pedaços de madeira. À tona dos excrementos flutuava o corpo daquela criança que todos amavam como a um filho. Paz à alma do Lito!

Diziam as comadres e os seus desconsolados maridos que a morte do Lito era apenas uma etapa de um esconjuro que perseguia o Compadre e que outra tragédia estava a caminho. Dito e feito, na madrugada daquela manhã do fim da época de chuvas, o Compadre foi encontrado enforcado, pendurado por uma corda a um dos ramos do cajueiro. E foi assim que nasceu a lenda da Casa do Cajueiro Assombrado. Até hoje a casa permanece desabitada. O cajueiro, perene, continua a frutificar durante todos os anos. Os seus frutos cobrem aquele chão sagrado, intactos e suculentos, porque aguardam pelo regresso do Lito para os apanhar e ofertar a todas as mães do bairro.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

 

São duas horas, a madrugada ainda é incógnita, e eu ainda estou acordado, pese embora sinta um cansaço descomunal nas minhas entranhas, as mãos invisíveis do sono não me alcançam, nem o seu imperceptível olhar me observa, por isso, continuo aberto em espasmos acres opondo-me ao sono. E tenho uma vaga sensação que algures dentro de mim acontece uma revolta militar, sinto como se todo o exército moçambicano estivesse no âmago de mim mesmo e a manifestar-se em repúdio à banalização que se faz da vida em Cabo Delgado. Tento esquecer-me de tudo isso, até de mim mesmo, estender-me por dentro, fechar os olhos e sonhar, mas nada disso me é possível, continuo de olhos postos ao vão, engasgado no interior dessa noite longínqua.

Insisto, todavia, e chego a fechar os olhos, porém, sempre que isso acontece surge um zumbindo, lá no fundo, no epicentro do meu ser e vai-se realizando em mim, um hediondo silêncio que estrondosamente me assalta o imo, dispara contra a minha tranquilidade e vai decepando em partes insignificantes as minhas vontades de sonhar. Oiço que nem cães latem na rua a frente à minha casa. Tento levar os meus pensamentos a um esconderijo, um recanto que esteja mais longe dessa insónia, como quem quer escapulir-se da guerra, fugir de uma realidade fatal, mas sem para onde ir, imobilizo-me dentro de mim.   

Saio da cama e vou à casa de banho, como se tivesse alguma coisa importante para lá fazer, apenas levo o meu atordoado rosto ao espelho, vejo essa imagem que me aborrece, um rosto que se fecha ao sono. Vou à sala de estar, vejo a tevê desligada, como sempre está este inutensílio. Abro as pálpebras da janela, essa cortina branca, tenho acesso à rua. O silêncio é vasto e fulminante, não vislumbro absolutamente nada além do monstruoso vazio, nem os marginais nem mesmos bêbados que em tempos não tão distantes eram tão abundantes e juntos desmontávamos o silêncio da minha rua a essa hora do dia.

Sinto-me cansado dessa lucidez obrigatória e vejo que não há bêbados nesses dias de tédio a embriagarem a cidade toda, apenas um mahindra que de vez em vez cruza os trilhos, que até rola na minha rua, com homens uniformizados e enfeitados à pólvora, como se nessas ruas acontecesse a verdadeira guerra, a que mata e está a matar continuamente o futuro desse país. Ponho-me a pensar onde se meteram os cães, os marginas, os bêbados, todos os vadios, que faziam da minha rua um abrigo, nessa pandémica altura em que as casas foram transformadas em refúgios. “Julgo que um dia teremos de descolonizar o mahindra, como outrora disse Albino Magaia ao Land Rover.”

De volta ao quarto, fixo meu olhar nas paredes dessa construção colonial, abro o telemóvel, mas as redes sociais já me aborrecem de antemão o que dizer delas nessa hora tão aborrecida, desligo-o. Tento reflectir sobre a essência da vida, mas que essência tem a vida nesse severo enclaustramento que a própria vida se encontra?, eu quero apenas fechar os olhos, estender-me dentro de mim e sonhar.

Entretanto, há uma enorme vontade que me enche de futuros, ansioso procuro nesse porvir a solução para o presente dessa noite, “que noite, oh meu Deus”. Eu que sempre pensei saber dos mistérios da noite, surpreendo-me ao ouvir dizer que o tempo, esse professor que me ensinara com mestria, afinal o certificado que tanto exibia era falso e falsificado, que fazer então com este diploma de insónias que trago na âmago da esperança? E quantos professores existem, nessa vastidão de desenrascados, com certificados falsos? Por isso, eu quero apenas fechar os olhos, estender-me dentro de mim e sonhar.

Enfim, sinto-me a síntese da insonolência do mundo. Sinto mais isso a olhar à Lolita, inanimada, mais para lá que aqui, mergulhada dentro dela, sonolenta, com um aspecto de fazer inveja aos deuses. E eu continuo vegetativo adejando essa vontade que vejo ser abundante nela, e se o sono fosse um vírus altamente contagioso, um desse vírus com raízes orientais, talvez estaria eu, a essas horas do dia, estendido dentro de mim, a respirar por meio de ventiladores, mas não, apenas assisto a Loly dormindo unilateralmente como uma pedra com origem nos montes Namúli, sem sentimentos e aflições de alma, e nem do dia que provavelmente amanhã retorna. 

Volto a mim, e agora Japone? Retiro do travesseiro um livro, o do Fernando esse Pessoa que muito adoro ler, tento curar a minha insónia com esse desassossego que ele me propõe. Leio, releio e volto a ler. Entretenho-me nessa leitura animada e cheia de mim, é como se o Fernando escrevesse sobre minha pessoa. Por algum momento pestanejo, oiço o cântico do galo da zona, essa ave mantida em cativeiro no terraço da vizinha, essa mulher gorda que não aceita uma vida urbanamente vazia. Mas como disse, eu quero apenas fechar os olhos, estender-me dentro de mim e sonhar.

“Já são seis horas, não vais ao serviço?” Diz-me a Loly. Acordo ainda cheio de sono, e quase que me ia-me esquecendo que certos chefes mandaram fuder o Estado de Emergência, e eu trabalho normalmente sem a bendita rotatividade prevista pelo decreto, como certas repartições do Estado que ainda pensam em festas e outros espalhafatosos convívios. É hora de sair de casa, por mais que eu queira apenas fechar os olhos, estender-me dentro de mim e sonhar, tenho de ir ao serviço, talvez seja a falta de pão o motivo pelo qual não me faz apanhar sono. Ora bolas.

O Tribunal Judicial Provincial de Gaza tem a grande responsabilidade de julgar o caso de assassinato, a 7 de Outubro, de Anastácio Matavele, activista social e director executivo do Fórum das Organizações Não-Governamentais de Gaza (FONGA).

As audiências arrancam já com fortes desconfianças de manipulação do processo. É que há dias, a juiza do caso respondeu com um silêncio absoluto  ao pedido do advogado da família Matavele. Ele solicitou, na fase de instrução contraditória, que fossem feitas diligências para a obtenção de extractos das conversas telefónicas mantidas entre os arguidos nos dias 5, 6 e 7 de Outubro do ano passado.

O objectivo do proponente era esclarecer e completar a prova indiciária. Entendia que os áudios poderiam ajudar a descobrir a verdade material, com fortes hipóteses de chegar à posse de algumas revelações importantes para a acusação definitiva.

Surpreendentemente, a juíza, com todos os poderes ao seu dispor para indeferir o pedido caso julgasse irrelevantes as diligências, em despacho fundamentado, manteve-se pura e simplesmente calada.

Ela deixou passar uma oportunidade ímpar de autorizar o requerimento, às operadoras de telefonia móvel, para o fornecimento dos extractos dessas conversas entre os arguidos antes e no dia do cometimento do crime.

Esta atitude apática do tribunal gazense quanto ao pedido do advogado é tida como “parcial e tendenciosa” e terá, de certa forma, contribuido para a obstruição da descoberta da verdade material, sobretudo a identidade dos verdadeiros mandantes do assassinato a tiro de Anastácio Matavele.

O grande desafio deste julgamento será chegar aos mandantes porque quanto aos executantes do crime, esses, estão nas mãos da justiça. Há uma tendência por parte de alguns polícias envolvidos em dar o dito por não dito. Nos primeiros interrogatórios, revelaram, e ficou registado, que receberam instruções para não lhe matarem, mas deixarem-lhe sem a possibilidade de poder andar.

Nas fases subsequentes de instrução do processo, os mesmos disseram que não receberam orientações de ninguém para atirarem contra o activista social, como que a darem a entender que tudo foi por conta e risco próprios.

A província de Gaza, bastião do partido no poder e com uma grande dose de intolerância política, está em prova neste julgamento, sobretudo porque é a primeira vez que lida com um caso desta envergadura. Além de polícias, está arrolado o edil da vila de Chibuto pelo partido Frelimo por a viatura usada pelos criminosos estar registada em seu nome.

O assassinato ocorreu em plena campanha eleitoral para as presidenciais, legislativas e das assembleias provincias e há uma semana da votação. Anastácio Matavele era um dos observadores do sufrágio em representação da sua organização.

Este crime hediondo acabou por manchar o processo eleitoral, em geral, e na província de Gaza, em particular, esta que ainda não tinha esgotado o debate à volta da disparidade do número de eleitores recenseados para as eleições de Outubro de 2019. É que a Comissão Nacional de Eleições tinha 300 mil a mais em relação aos dados apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística, que é autoridade na matéria.

A morte a tiro de Anastácio Matavel deixou de ser um simples homicídio e ganhou uma outra dimensão, a de um crime político dado ao espaço e ao tempo em que aconteceu. Desde então, o caso está a ser vigiado por organizações da sociedade civil moçambicanas e pela comunidade internacional que se revelou chocada com o crime.

Os Estados Unidos de América, por via da sua embaixada em Maputo, a União Europeia, através da sua equipa de observação eleitoral, a Amnistia Internacionmal, órgão de defesa dos direitos humanos, e outras organizações e governos estrangeiros condenaram o acto bárbaro, exigiram o esclarecimento do caso e a responsabilização dos autores do crime.

Estes parceiros estratégicos de Moçambique, que se juntam às vozes internas,  incluindo a comunicação social, nacional e estrangeira, estão todos de olho neste julgamento e esperam que a justiça seja feita em termos de condenação exemplar aos implicados.

Dependendo do conteúdo da sentença a apresentar, o desfecho do mesmo poderá promover ou despromover a imagem já em si degradada dos órgãos de administração da justiça e a do Tribunal Judicial da Provincial de Gaza.

Se se chegar à conclusão de que o tribunal passou ao lado daquilo que era a expectativa do público em termos de justiça feita, terá disparado contra o seu próprio pé ou afundado cada vez mais a imagem do sector da justiça. A ser assim, pode dar razão àqueles que olham para a justiça moçambicana com desconfiança no sentido de que é facilmente manipulável pelo poder político.

O facto de os presidentes dos tribunais Administrativo, Supremo, Constitucional e o Procurador Geral da República serem nomeados e tomarem posse perante o Chefe de Estado, coloca-lhes numa situação de vulnerabilidade e retira-lhes o sentido de independência em relação ao poder político.

O descrédito à justiça moçambicana ficou patente no caso Manuel Chang. Vozes, internas e externas, levantaram-se a defender que o antigo ministro das Finanças, peça-chave do dossier das dívidas ocultas, preso há mais de um ano na África do Sul, devia ser extraditado para os Estado Unidos de América porque em Moçambique não havia garantias de um julgamento sério e sem interferências políticas. 

Está claro que não há nenhuma pena que possa compensar o assassinato de Anastácio Matavele, por maior ou pesada que seja.  A vida não tem preço. Mas há sentença que pode deixar a sua família confortável. O país e o mundo com a certeza de que foi feita a justica. É, o mínimo, o que estamos a pedir ao Tribunal Judicial Provincial de Gaza.

A enorme vaga de água lamacenta surpreende as três barrigudas fechadas na circular palhota que faz de “casa de mãe espera”. Hanidjo é a mais velha. Esta é a sua quarta gravidez. As outras duas são marinheiras de primeira viagem. 

Empoleirada numa carroça puxada por dois burros, Hanidjo deixou a casa, o marido e as três filhas numa remota aldeia a vários quilómetros da sede do posto administrativo. É desta que acredita que vai ter o rapaz que alimenta os sonhos e as fantasias do marido. Ele quer um filho varão para lhe ensinar a ser homem, a ir à caça, a dominar os contornos da vida e, acima de tudo, para perpetuar o apelido da família.

As duas estreantes são de aldeias mais próximas. Também estão em gravidez terminal e vieram para aqui em busca de um parto seguro. O tempo é passado a ouvir as sábias experiências de Hanidjo: de como a dor do parto não tem paralelo com mais nenhuma; de como na hora da verdade todas as fantasias esfumam-se e apenas a força interior da mulher consegue demover todos os pedregulhos; e de como a mão divina está sempre por perto para dar o impulso que o novo ser precisa para se fazer à vida.

A chuva ininterrupta, os ventos e as trovoadas fortes chegaram antes dos bebés. É de madrugada. A cobertura e toda a estrutura da palhota dançam. O chão virou uma nascente. A água fervilha. Não há ninguém no posto de saúde para apoiar. 

O albergue das três mulheres vai abaixo e dissolve-se como açúcar em água quente. Não sobra nada. Todos os destroços seguem viagem ao ritmo da corrente. Relampeja. As mulheres estão agora totalmente ensopadas e entregues às vontades da chuva e dos ventos fortes. A corrente de água atinge-lhes a cintura. Ainda assim, elas mantêm o equilíbrio e, de mãos dadas, arrastam lentamente as suas enormes barrigas para o edifício principal do posto de saúde.

Não há como buscar abrigo no interior. As portas estão gradeadas e trancadas a sete chaves. É a única forma de proteger o posto dos energúmenos que, vezes sem conta na calada da noite, tomam-no de assaltado para surripiar medicamentos e vendê-los num tchungamoyo da grande cidade, e assim obter alguns trocados para comprar cabanga

As três mulheres estão agarradas às grades do portão. O seu choro, em coro, oculta-se no roncar dos céus, no uivar da ventania e no borbulhar da torrente de lama. O inferno desceu à terra!

Sem aviso prévio, as chapas de zinco, que cobrem o posto de saúde, levantam voos espontâneos e sincronizados. Uma a uma. É como se se tratasse de um esquadrão de caças-bombardeiros, que obedecem a um comando para descolar de um porta-aviões. Atravessam os ares em voo rasante, transbordando vigor e tenacidade. Difícil é saber onde cada chapa irá aterrar. Até pode ser no pescoço de qualquer incauto em fuga.

Um ruído forte abafa o som da trovoada. A estrutura do pequeno edifício estremece. Hanidjo assusta-se. Os nervos sobem à flor da pele num arrepio avassalador. As mulheres compreendem que a parede traseira cedeu. Abriu-se um acesso. Sempre de mãos dadas, fazem uma marcha lenta e sincronizada na direcção da parede que ruiu. O nível da água continua a subir.

O susto provocou sensações estranhas em Hanidjo. Entra em contracções. Começa a ser difícil arrastar os pés. Ela sente algo quente massageando-lhe as pernas e misturando-se com a água lamacenta. A experiência ensina-lhe que é a bolsa que rompeu. O seu bebé já está perto.

No interior do edifício principal do posto é um total alvoroço. A força da água precipita tudo para fora. As três mulheres buscam o equilíbrio possível. Não pára de chover. Há um enorme tampo de madeira, de meia altura, fixado junto a uma das paredes. As outras duas ajudam Hanidjo, que já não se aguenta, a trepá-lo.

A água ultrapassa ligeiramente a altura do tampo. Hanidjo deita-se de costas. Metade da barriga está submersa. A outra metade está fora. Ela quer entregar um novo ser a este mundo. Um mundo que hoje se confunde com as trevas.

Não há apoio médico. Há apenas duas jovens inexperientes que procuram ajudar. Hanidjo quer ser mãe. Quer dar ao marido o filho varão que não tem. Quer continuar a plantar rosas sem espinhos e colorir o mundo com o dom da vida.

A água turva roça-lhe as coxas num imenso turbilhão. Ela chora. Grita. As duas jovens não sabem fazer de parteiras. Também choram. São ecos que não se sobrepõem ao som dominador que a mãe natureza faz: o assobiar dos ventos, o relampejar do céu e o tamborilar de cada gota da intensa chuva.

Mas o bebé tem de nascer. Deus tem de ser misericordioso. A crença tem de prevalecer. A energia positiva das três mulheres tem de vencer. O ciclone tem de deixar espaço para que a vida sorria, e que o raio que risca os céus ilumine a pétala de uma voz que quer ser ouvida.  

O bebé sai disparado do ventre de Hanidjo num mergulho directo para a água turva. Não precisa da tradicional pancada no rabinho para chorar. Solta a sua voz de macho e anuncia-se ao mundo. Sobreviveu, tal como a Rosita do ano 2000.

 

Quando convém, a comunicação social é parceira do governo. Dos partidos políticos. De organizações da sociedade civil. Há rasgos elogios destes ao seu trabalho a nível do discurso político, talvez para conquistarem simpatias junto dos jornalistas e saírem bem na fotografia.

As palmadinhas nas costas e todo um palavreado bonito não faltam a 11 de Abril, dia do jornalista moçambicano, e a 3 de Maio, dia internacional da liberdade de imprensa. Elas vêm do Presidente da República. Dos ministros. Dos governadores e de outras “excelências”.

É tida como aquela que educa. Que contribui para a formação do homem novo. Que mantem a sociedade informada sobre o que se passa no país e no mundo. A comunicação social até fica encabulada com tudo isto.

Como se de elogios fúnebres se tratassem, ninguém fala dos seus defeitos. Dos seus erros, que até são públicos, deferentemente dos cometidos noutras profissões ou funções e por outros actores na governação. Na gestão da coisa pública e noutros campos de actuação.

Muitos dos erros na tomada de decisões e não só morrem nos gabinetes. Nas secretarias. Nas províncias e noutros lugares, se escaparem das redes sociais. Dos olhos de jornalistas e das denúncias dos defensores da boa governação, igualdade de oportunidades e de uma sociedade livre de todos os males.

Quando a vida resolve virar as costas, tudo muda num ângulo de 360 graus. As mesmas pessoas que antes esgotaram os adjectivos qualificativos sobre o papel da comunicação social na sociedade, aparecem a atacar a torta e a direita. A chamar nomes à comunicação social. A considera-la “Persona non grata” e, por isso, um inimigo a abater.

Vítima do seu próprio trabalho, ela é tida como aquela que desinforma. Que desmobiliza. Aquela que veicula informação manipulada. Esta é a mais recente visão do ministro do Interior em relação a notícias produzidas pela imprensa sobre os insurgentes em Cabo Delgado.

Não apontou casos concretos de manipulação da informação, os órgãos de informação implicados e não disponibilizou a versão correcta da história para repor a honra e bom nome do seu sector. Ele, definitivamente, coloca toda a comunicação social no mesmo saco.

O governante quase culpou à classe jornalística pelo insucesso das vitoriosas e gloriosas forças de defesa e segurança no teatro das operações, num país que tem tudo para dar certo.

A situação parece-me mais grave do que as suas declarações contra a classe jornalística. É que o sector privado de comunicação social começa a ser discriminado em coisas simples como o briefing semanal com o porta-voz do Comando Geral da Polícia. Esta é a parte oculta das declarações venenosas do ministro.

Qualquer pessoa está livre de criticar o que julgar errado no trabalho de jornalistas. Mas no caso particular do chefe da polícia, antes de atacar, devia ter avaliado o desempenho do seu sector para verificar como é que está a comunicar o assunto dos terroristas em Cabo Delgado. Se está a comunicar bem ou não e corrigir o que estiver errado.

Com este exercício, chegaria a uma rápida conclusão: Que afinal o seu sector não está a comunicar o suficiente para contrapor as investidas inimigas. Os tabus estão a ensombrar tudo. Reage lentamente e na defensiva ao invés do ataque. Fica calado quando todos estão à espera de ouvir a versão oficial da história.

Este é o pano de fundo da questão. O velho problema que nenhum governo conseguiu resolver no país. O Ministério do Interior é apenas parte da questão. Há uma dificuldade enorme em comunicar mesmo quando a informação é favorável ao governo.

Na semana passada, o executivo anunciou 129 baixas nas hostes do inimigo, algo raro desde que iniciaram os ataques terroristas a aldeias recônditas de Cabo Delgado que já vitimaram cerca de 500 pessoas e provocaram mais de 160 mil deslocados.

O governo, em geral, e Ministério do Interior, em particular, perderam uma grande oportunidade de fazer “show” com a notícia. Não conseguiram tirar proveito da informação. O facto é que se limitou a anunciar o número de mortos e mais nada. Ninguém se deu ao trabalho de mostrou o corpo de pelo menos um dos terroristas abatidos. Matou-se a história e retirou-lhe a credibilidade.

O comando das FDS não só não comunica o suficiente, como também não deixa comunicar. Os jornalistas que se interessam pelo assunto dos insurgentes são perseguidos, ameaçados e presos em Cabo Delgado. Quando soltos, são obrigados a apagarem as imagens, vezes sem conta, inofensivas captadas em alguns distritos alvos de ataques e a verdade sobre o que está a acontecer no terreno fica por apurar.

Infelizmente, os terroristas saem-se melhor nesse aspecto. Relatam a sua versão dos factos nas redes sociais falando das suas incursões. Pousam para a posteridade nas sedes distritais que assaltam e ocupam por algumas horas e colocam a informação em circulação.

Para convencerem as pessoas dos seus actos criminais, usam os mesmos canais de comunicação para publicarem vídeos em que estão a fazer e desfazer a seu bel-prazer. Alguns, gravados no interior das residências de administradores distritais. Outros, diante dos comandos distritais da PRM. Anunciam números elevados de baixas que dizem ter infligido às forças de defesa e segurança e como sempre nada se diz oficialmente.

As guerras ganham-se não só no teatro das operações, como também na imprensa. Tudo depende da capacidade de cada uma das partes em explorar os vários canais de comunicação disponíveis a seu favor para criar uma boa imagem perante o público e fazer uma demonstração de força.

Para quem vive fora daquela província pode ter a falsa impressão de que está tudo bem. Milhares de camponeses estão a abandonar as suas aldeias e a viverem como deslocados, num clima de medo e terror, algures em Cabo Delgado, uma autêntica crise humanitária.

O melhor em tudo isto é a abandonar a política de hostilização de jornalistas no exercício da sua actividade. Na verdade o foco das FDS devem ser os terroristas. Esses, sim, são inimigos. A comunicação social, não. Apesar de reflectir o pensar diferente, é patriota e está preocupada com tudo que está a acontecer em Cabo Delgado.

Saibam trabalhar com ela na defesa dos interesses nacionais, um objectivo comum. Aliás, o Presidente da República, Filipe Nyusi, bem disse, nas suas palavras de carinho à classe jornalística por ocasião do seu dia, 11 de Abril, que o jornalista é um parceiro.

A parceria a que o PR se refere tem que se desenvolver na base do respeito mútuo para que a mesma possa se fortalecer e tornar-se saudável. Deve desenvolver-se sem ameaças, intimidações, muito menos detenções e confiscação de materiais de trabalho.  

 

O Presidente da República (PR), nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 3 do decreto-presidencial n.º 11/2020, que declara o Estado de Emergência, determinou a suspensão do ano lectivo de 2020 ao ordenar, de forma expressa, o seguinte: «na pendência do Estado de Emergência, e na medida do necessário para a prevenção e/ou combate à pandemia do covid-19, devem verificar-se as seguintes medidas restritivas gerais: suspensão das aulas em todas as escolas públicas e privadas, desde o ensino pré-escolar até ao ensino universitário».

O decreto-presidencial que acima se faz alusão foi ratificado pela Assembleia da República (AR) através da Lei n.º 1/2020, ao que se sucedeu a respectiva prorrogação, através do decreto-presidencial n.º 12/2020, que, por sua vez, foi também ratificado pelo mesmo órgão de soberania (AR) por intermédio da Lei n.º 4/2020, sendo que aquela norma que suspende as aulas foi literalmente transplantada para o “decreto-presidencial prorrogador”.

Entretanto, os estabelecimentos de ensino “revogaram” uma norma aprovada por um decreto-presidencial e ratificada por uma Lei, determinando, imagine-se, que o ano lectivo tem, sim, continuidade, com recurso a critérios unilateralmente fixados por esses mesmos estabelecimentos de ensino.

Além de ter ocorrido algo impensável em Direito (um estabelecimento de ensino “revogar” uma Lei), estes mesmos estabelecimentos de ensino, determinaram que as aulas, que o PR havia mandado suspender como medida restritiva geral, terão continuidade com recurso a meios virtuais/digitais, através do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

Sem perder qualquer tempo, estes estabelecimentos de ensino passaram da ideia à acção: os estudantes, através do Whatsapp ou emails ou outros mecanismos on-line, recebem matérias lectivas produzidas pelos preditos estabelecimentos que, assim, encontraram uma forma sorrateira de obrigar os estudantes a pagar por um serviço que o PR tinha mandado suspender.

Entretanto, entre os elementos das turmas, aqui e acolá, que recebem essas lições digitais, nem todos têm computadores/computadores pessoais e, de entre aqueles que têm, nem todos têm acesso ilimitado à internet.

Aliás, em Moçambique, a maioria dos estudantes com acesso pessoal a internet o fazem através dos respectivos telemóveis (que agora, por ordem dos estabelecimentos de ensino, são obrigados a lerem, num dispositivo minúsculo como o é um telemóvel, uma multiplicidade de páginas, sendo completamente despiciendo convocar argumentos para demonstrar a desumanidade destas práticas) ou nos computadores implantados nas respectivas entidades empregadoras.

Da suspensão decretada pelo PR, decorrente da necessidade de se mitigarem os efeitos funestos da pandemia do covid-19, resulta que, chegará o dia em que a mesma, será levantada pelo PR. Dito de outro modo: quando as circunstâncias que inspiraram o decretamento das medidas de restrição voltarem a normalidade, o PR levantará a suspensão que decretou.

Significa isto dizer que, nesse dia, alguns estudantes (os privilegiados possuidores de laptops e acesso a internet) estarão num nível diferente comparativamente àqueles, coitados, que cometeram o pecado de não terem nem computadores e muito menos acesso a internet para poderem estar no mesmo estágio de aprendizagem que os colegas que os possuem, significando que, na mesma turma, alguns estarão no segundo semestre e outros ainda no primeiro.

Colocadas as coisas como estão, os estabelecimentos de ensino introduziram em Moçambique um novo conceito de acesso à educação. A educação passa, ao arrepio da lei, a ser um serviço de carácter elitista, somente à mercê de quem possui computadores e acesso a internet.

Entretanto, o n.º 1 do artigo 88 da Constituição da República (CRM) estabelece que «na República de Moçambique a educação constitui direito de cada cidadão».

O n.º 2 do referido artigo vai mais longe, determinando que «o Estado promove a igualdade de acesso de todos os cidadãos ao gozo deste direito»

O que se disse acima está intimamente ligado com um princípio basilar em Direito – princípio da universalidade e igualdade – entre nós, consagrado no artigo 35 da CRM que salienta que «todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da (…) posição social (…)».

Cremos que não são necessárias virtudes de genialidade para se chegar a fácil conclusão que os estabelecimentos de ensino ao leccionarem suas aulas virtuais somente para um grupo de estudantes – os agraciados com computadores e acesso a internet –, estão, de forma acintosa, a violar o princípio constitucional da universalidade e igualdade, e ainda atropelam violentamente o direito à educação, também ele de cariz constitucional.

Além disso, verifica-se as normas constitucionais acima citadas, além de conferirem direitos aos cidadãos, também atribuem deveres ao Estado – de garantir que esses direitos [dos cidadãos] sejam respeitados.

Parafraseando as memoráveis palavras de Salvador Allende: “não basta que todos sejam iguais perante à lei; é também necessário que a lei seja igual perante a todos”. Pelo que nos é dado a reparar, não é o que se sucede em Moçambique.

Agora, em Moçambique, por determinação dos estabelecimentos de ensino, o acesso a educação é determinado pela posição social, ou seja, só goza desse direito quem tiver acesso a computadores e internet, sendo que, no último senso realizado sobre o uso de internet no país, extraiu-se que nem 10% da população moçambicana tem acesso a este meio, o que significa dizer que, a partir de agora, o direito a educação, por determinação dos estabelecimentos de ensino que se arrogam a detentores de poderes para revogar leis aprovadas pela AR, 90% da população deve ficar a espera que as circunstâncias que determinaram a suspensão, pelo PR, do ano lectivo voltem a normalidade.

Mas as atrocidades jurídicas em torno deste paradoxo não se ficam por aqui…

Ao abrigo do contrato firmado entre estudantes e estabelecimentos de ensino, as aulas (objecto do contrato) são presenciais (modo de prestação do objecto do contrato).

Entretanto, os estabelecimentos de ensino numa desenfreada atitude visando continuar a auferir os rendimentos mensais que colhiam antes do decretamento do Estado de Emergência, modificaram, unilateralmente, a forma de prestação do objecto do contrato (pois não se conformam com as consequências do Estado de Emergência). Assim,

Os estabelecimentos de ensino têm impingido aos estudantes o pagamento de valores referentes a propinas, relativos a um serviço – aulas virtuais – que não foi solicitado pelos mesmos estudantes.

A este respeito, à luz do artigo 92 da CRM, os consumidores têm direito à protecção dos seus interesses económicos e, ao abrigo do que dispõe o n.º 4 do artigo 11 da Lei de Defesa do Consumidor – princípio da protecção dos interesses económicos do consumidor refere que – «o consumidor não fica obrigado ao pagamento de serviços que não tenha previamente solicitado, ou que não constituam cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua compensação». Mais ainda,

Essa actuação dos estabelecimentos de ensino enquadra, simultaneamente, os conceitos de “prática abusiva” e “cláusula abusiva”.

A “prática abusiva” «consiste no fornecedor prevalecer-se da fraqueza e ignorância do consumidor para impor os seus serviços» (alínea d) do n.º 1 do artigo 29 da Lei de Defesa do Consumidor), e no que se refere às “cláusulas abusivas”, «são nulas e de nenhum efeito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas e abusivas que coloquem o consumidor em desvantagens exageradas ou sejam incompatíveis com a boa-fé e equidade» (alínea d) do n.º 1 do artigo 22 da Lei de Defesa do Consumidor), sendo que o conceito de “vantagem exagerada” nos é fornecido pela alínea c) do n.º 2 do referido artigo 22, que refere que presume-se exagerada a vantagem que se mostra excessivamente onerosa para o consumidor considerando a natureza e conteúdo do contrato (aqui não se pode perder de vista que estes estudantes que são obrigados a pagar por um serviço que nem solicitaram, já vêm suportando as terríveis consequências financeiras que se originaram nas suas vidas, em virtude do decretamento do Estado de Emergência, que, pela peculiaridade de algumas das restrições decretadas, retirou capacidade de ganho a generalidade das pessoas). 

A conduta observada pelos estabelecimentos de ensino viola as regras da boa-fé, previstas quer no n.º 1 do artigo 227 quer no n.º 2 do artigo 762 e constitui, ainda, “abuso de direito” ao abrigo do artigo 334, todos do Código Civil.

Sobre o abuso de direito, o citado artigo 334 do Código Civil assevera que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

Como se tudo isso não bastasse,

Esse comportamento dos estabelecimentos de ensino constitui “crime de usura”, previsto e punido nos termos do n.º 1 do artigo 305 do Código Penal, que promulga que «quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, (…) inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometer, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão e multa», chamando-se atenção que, os crimes cometidos pelas pessoas colectivas, repercutem-se também nos seus representantes (artigo 30 e 31 do Código Penal), pois é através deles que as pessoas colectivas materializam os seus actos.

E se aliarmos o crime previsto no artigo 305 do Código Penal ao disposto no artigo 6 do decreto-presidencial que prorroga o Estado de Emergência, que refere que «o desrespeito às medidas impostas pelo presente diploma legal será considerado crime de desobediência e punido com as penas correspondentes», tendo sempre em atenção que a punição da desobediência é realizada ao abrigo do artigo 412 do Código Penal, de uma sentada, temos, por parte dos [representantes dos] estabelecimentos de ensino, a perpetração de dois crimes (usura e desobediência) contra uma multiplicidade de estudantes.

No meio do contorcionismo em que os estabelecimentos de ensino mergulham, chegam ao ponto de tentar criar a ideia de que quando o PR disse que as aulas estão suspensas, o PR não quis dizer que as aulas estão suspensas, violando, conscientemente, um princípio básico – bem básico – de interpretação jurídica, estabelecido no n.º 2 do artigo 9 do Código Civil que nos ensina que «não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso». Violam aquela norma do Código Civil ao trazerem interpretações que não possuem qualquer correspondência semântico-linguística com a norma que, de forma clara, diz: «na pendência do Estado de Emergência, (…) devem verificar-se as seguintes medidas restritivas gerais: suspensão das aulas em todas as escolas públicas e privadas, desde o ensino pré-escolar até ao ensino universitário».

Voltando à génese do problema,

Um diploma legal só pode ser revogado por outro de igual posição hierárquica ou superior. Isto que se disse atrás traduz-se num princípio mestre do Direito Administrativo – “princípio do congelamento do grau hierárquico” – que estabelece que as normas de um diploma legal só podem ser alteradas, modificadas e revogadas por outro diploma de igual ou superior grau hierárquico. Ex: só uma lei pode revogar outra lei; um decreto não pode revogar uma lei. Se um decreto não pode revogar uma lei, porque esta é hierarquicamente superior àquele, imagine-se então instruções de estabelecimentos de ensino…

Mas aqui, no nosso país, aconteceu o impensável: estas instruções “revogaram” uma ordem do PR (que manda suspender o ano lectivo de 2020 em todas as escolas públicas e privadas, desde a creche até às universidades), constante do decreto-presidencial que prorroga o estado de emergência e ratificado por lei proveniente da AR, e tais instruções já estão a ser implementadas à custa da ignorância, fragilidade, desconhecimento de direitos, dependência e necessidade dos estudantes, num acto que se traduz numa espoliação criminosa dos direitos de propriedade dos estudantes, o que, para além da colecção de ilegalidades acima evidenciada, faz emergir a figura do “enriquecimento sem causa” previsto no artigo 473 do Código Civil que determina que «aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

Portanto, a lei proíbe que uma das partes “enriqueça”, “se locuplete” “ganhe vantagens financeiras” de forma ilegítima (entendido, sem causa justificativa para enriquecer, se locupletar, ganhar vantagens financeiras o ganho de vantagens financeiras sem causa idónea para o efeito).

Isto significa dizer que, à luz da Lei, estes estabelecimentos de ensino estão obrigados a restituir aos estudantes os valores ilegalmente recebidos destes (algo que só aconteceu devido à exploração da fraqueza, ignorância, fragilidade, dependência dos estudantes que pagaram por serviços não solicitados achando que são obrigados a pagar, quando, conforme vimos em algumas reproduções legais expostas acima, não são).

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

 

 

ROBERT ESCARPIT (França, 1918 – 2000) foi um académico, escritor e jornalista. Publicou vários livros entre artigos científicos e romances de ficção. Um dos livros que me interessou, aliás, o único que li deste autor, chama-se “Carta Aberta a Deus”, edição portuguesa (Editorial Pórtico, Lisboa, 1971, tradução de José António Nunes de Carvalho, 140 páginas).

 

***

As minhas preocupações existenciais remontam ao tempo da minha adolescência. Minha mãe era religiosa, frequentadora assídua de uma das igrejas da família dos protestantes, praticadas em Nauela. Sempre que ela me convidasse a acompanhá-la à Igreja eu apresentava “dificuldades” de vária ordem, tudo para escapar da difícil tarefa de ter que me fazer à casa de Deus. O mesmo acontecia com meus amigos e outros familiares que também me convidavam à igreja católica. Aliás, Nauela tem o histórico de ter sido um dos centros das missões tanto das igrejas protestantes quanto da igreja católica, a nível da Zambézia. Portanto, era embaraçoso, do meu ponto de vista, ir a uma Casa cujo Dono era todo poderoso e sem igual. Confesso que essa ideia me apavorava bastante. Isto é, era um misto de pavor e resignação.

Sendo Ele omnipresente, liberdade em potência e acção, eu receava que eventualmente Deus me perguntasse, ainda que silenciosa e secretamente, se eu o amava ou não. E isso certamente seria complicado para mim, uma vez que não saberia responder ao certo, e com a sinceridade e honestidade requeridas, sem temer pelas possíveis represálias. Porque dele eu só sabia que era Dono do mundo e de todas as coisas nele contidas. Por isso, senti que necessitava de tempo para interiorizar com profundidade a noção da sua existência, antes dessa importantíssima visita à Casa do tão Ilustre e Invisível Anfitrião. Daí em diante passei então a cogitar sobre Ele e a possível relação entre mim e Ele, exercício esse que se mantém até aos dias de hoje.

Tenho dito vezes sem conta que sou um agnóstico em matéria de religião e quejandos. Nunca tenho certeza de nada, principalmente em assuntos tão complexos quanto os da Fé religiosa. Em brincadeira com os meus próximos, tenho dito igualmente que se fosse para fundar uma igreja esta chamar-se-ia de “Igreja da Dúvida”. Mas também não me parece que a igreja seja o único lugar de encontro com Deus, sendo este omnipresente. Ocorre-me agora citar aqui a famosa afirmação de Sócrates: “Só sei que nada sei”. Por conseguinte, nunca pus em causa a existência desse Ser Supremo, e também nunca fui um devoto da sua existência. Ou seja, sou uma espécie de anfíbio, esse espécime ora vivendo na água ora na terra. Tanto me sinto bem com aqueles que o acreditam quanto com aqueles que não o apoiam. Assumo que a vida é uma viagem estonteante e, como tal, Deus afigura-se-me simplesmente como uma possibilidade.

***

Voltemos ao livro de Escarpit, “Carta Aberta a Deus”. É uma daquelas obras que só se sugerem a alguém com a mesma linha de raciocínio, aliás, por razões óbvias. Pessoalmente li-o sugerido apenas pelo seu título. Para quem se interessar digo apenas que é um livro que deve ser lido de consciência livre e sem preconceitos de espécie alguma. A busca pela verdade exige-nos abertura total de mente e espírito. Independentemente das nossas vertigens, a realidade é hirta, alheia e impassível! Cada um de nós, dentro da sua liberdade, faz dela o que melhor lhe aprouver. Por conseguinte, Deus é, em última análise, uma manifestação individual. E é por essa razão que não posso ignorar e muito menos repudiar aquilo que meus semelhantes têm por verdade inalienável.

Na “Carta Aberta a Deus” Escarpit começa com uma advertência ao suposto portador que, neste caso, é o director geral das telecomunicações: “Confio-lhe esta carta sem a franquia e suponho que o destinatário deverá pagar multa. Ele não regateará. Conheço-lhe a reputação: se lhe perdoar a franquia, retribuir-lhe-á cem vezes mais.” (p.9)

O autor adverte ainda àqueles que eventualmente o lerão já com ideias preconcebidas, com laivos de radicalismo, digo eu, nos seguintes termos: “Não tenho interesse algum em ser lido pelas pessoas que lêem com um só olho, o esquerdo ou o direito, é indiferente, ser-me-á desagradável ouvir dizer que este livro é um chorrilho de blasfémias pretensiosas e primárias, e ainda me custará mais ouvir dizer que Escarpit está a deixar-se levar pelos padrecas, que mudou muito, que já tínhamos previsto isso há muito tempo.” (p.11)

Depois disso, Escarpit entra já na parte do diálogo directo com Deus, confessando que, “Dito isto, não penseis que tento iludir as obrigações que tenho para convosco. Que eu creia ou não em vós não é de importância capital, mas o facto é que necessito de vós, nem que seja como tapa-buracos.” (p.15)

Mais adiante o autor afiança desconfiar que Deus seja um intelectual de esquerda. E a razão desta desconfiança está no facto de ambos desejarem ardentemente a revolução. “O intelectual de esquerda tem tanto mais coragem quanto mais se apega às suas ideias. É tudo o quanto tem a mais que os outros e é muito.” E diz mais: “Não me surpreenderia se houvesse no Paraíso muito mais comunistas que padres.” (p.25/26)

Robert Escarpit compara a intencionalidade de Deus com a de Marx, cuja comunhão de atitudes corresponde a uma certa convergência dessas intenções, “Com bastante lógica e mesmo bom senso, Marx coloca a realização do fenómeno humano nos próprios homens. Mas vós recuais diante dessa lógica, temendo que ela vos deixe de fora e vos condene à inutilidade (…).” (p.28)

“O vosso achado, há dois milénios, foi o de vos proclamardes simultaneamente imanente e transcendente e dissimulardes a incompatibilidade dessas duas naturezas sob o véu do mistério sagrado. Top secret. É proibido compreender. Streng verboten!” E explica mesmo que “É isso que o diabo não vos perdoa. Ele quer compreender.” (p.29). Mas Escarpit não quer saber se compreende ou não, o que lhe interessa, isso sim, são os resultados e não os métodos. É a isto o que se chama de “pragmatismo existencial”. E a vida exige justamente isso.

Em contrapartida, diz Escarpit, “Ser da direita é não ser nem humilde nem modesto e, sobretudo, nunca o confessar, nem a si próprio nem aos outros. É pertencer a um sindicato de interesses que disfarça a vontade de domínio universal sob uma ideologia geralmente piedosa, por vezes sedutora e sempre brilhante.” Por isso, diz ele a Deus para não se espantar por, nestas condições, o pensamento político dominante ao longo de séculos ter sido quase que exclusivamente o de direita. (p.35)

Num outro capítulo, Escarpit, consciente da não abrangência em todos os cantos do mundo, pergunta a Deus se, por ventura, não sente já a ironia patética de um ecumenismo que só respeita uma parte apenas das terras habitadas pela humanidade, enquanto o seu nome pretende abranger e designar todo o conjunto da humanidade, e o autor justifica que “Mesmo que os cristãos conseguissem restabelecer a unidade, ainda que cristãos, judeus e muçulmanos descobrissem que adoram sob três nomes um único e mesmo Deus, as terras que habitam só representam uma fracção da terra dos homens.” (p.52)

Dizia alguém que leve o tempo que levar, o homem conhecerá Deus! Como que a fazer jus a isso, Robert Escarpit tem a esperança de que, “chegaremos a conhecer a vossa criação melhor que vós próprio a conheceis, porque a teremos recriado átomo por átomo, segundo por segundo, com as nossas mãos e cérebros.” (p.82)

Diz ele, Escarpit, que qualquer atitude religiosa é primeiro uma atitude de culpa. E que a oração começa pela purificação. “Claro que cometemos todos, dia a dia, erros de comportamento de que podemos sentir-nos responsáveis, mas de que poderíamos ser colectivamente responsáveis como homens?” (p.90/91)

“Quanto ao assunto da maçã, devíeis ter plantado a árvore noutro sítio ou não ter criado Adão à vossa imagem.”

“Se queríeis que o homem continuasse no estado de inocência, não devíeis ter posto ao seu alcance os meios e, nele, a ambição de sair dele.” (p.91).

Escarpit não acredita no amor universal. Isto é, para ele não é possível amarmo-nos uns aos outros simultaneamente. “É possível amar-se uma coisa ou pessoa sem se recusar outra?”

 “É possível amar ao mesmo tempo em muitas direcções, mas como amar em todas as direcções simultaneamente? Como amar tudo? O amor universal é a universal indiferença.”

“Eu compreenderia muito bem que não amasseis o diabo. Também não gosto dele e tenho tendência para preferir-vos. Amar é preferir.” (p. 113/114)

Escarpit termina o livro pouco se importando se Deus é produto mais ou menos mórbido das suas angústias ou uma realidade que se desenrola nas suas aparências. O facto, porém, diz ele, é que o diálogo por ele iniciado com Deus só terminará com a sua  morte. “No dia, se chegar, em que nos encontrarmos cara a cara, prometei dizer-me o que tendes a dizer.” (p.138)

Como se pode depreender, o livro é um diálogo exteriorizado do autor com Deus, dele, quiçá, nosso. É um livro descomplexado, dum filho que dentro da sua inocência coloca questões ao pai invisível sobre a sua própria invisibilidade. É uma obra que levanta problemas existenciais mas que, ao mesmo tempo, trás ao de cima as contradições “ideológicas” mais profundas entre o ser humano e o seu criador.

Há 563 anos antes de Cristo nascia um dos primeiros profetas, o Buda; há 2020 anos nascia o próprio Cristo; e 571 anos depois de Cristo nascia Maomé. Com a actual multiplicação de seitas religiosas no seio da humanidade, assistimos igualmente a proliferação de profetas que até fazem questão de “ombrear” com clássicos como Buda, Jesus, Maomé, na busca de espaços e ovelhas para a sua pastagem. Cá por mim, resta-me somente, em meio deste cenário delirante que se vive nos tempos actuais, demandar, nos papiros apagados pelo tempo, os calendários dos já prometidos regressos sempre adiados. 

Dom Manuel Viera Pinto foi alguém que nos habitou às múltiplas despedidas, tantas foram as vezes que partiu e regressou. Quando recebi a notícia do final da sua missão, ainda consternado, tratei de ligar ao Padre Filipe Couto e, acto continuo, conversamos sobre um sem número de facetas e episódios. 

Uma trilogia de memórias me vem à cabeça, sempre que falamos no Bispo Dom Manuel Viera Pinto, que nos deixa uma saudade e o sentido de que a sua missão está distante do final.

Primeiro, quando foi expulso de Nampula, ali no aeroporto, bem próximo de sua residência, em 1974, afirmando para os microfones da rádio “…saiu pela porta grande e com as minhas malas, todavia, quem me expulsou, sairia pela janela e sem nada em suas mãos…”. Não foi apenas uma saga, pois, meses depois se confirmava o que antes parecia sonho.

A minha geração ainda teve o privilégio de escutar muitas das homilias. Falava com sentido de oportunidade e de forma convincente. Repetia, bem alto e em bom tom, que gostaria de morrer em Nampula e de ser sepultado à entrada da Sé Catedral, para continuar próximo de seus fiéis. 

Em segundo lugar, me recordo da famosa carta dele e dos sacerdotes da sua diocese, sob o título "Imperativo de Consciência", que eu nunca cheguei a ler, aparentemente redigida pelos padres Combonianos, um documento demasiado famoso para ser ignorado, em contexto moçambicano. Aliás, essa carta não agradou ao Governo de Marcelo Caetano, ao exigir uma resposta corajosa aos problemas graves do povo moçambicano. 

Finalmente, a carta que Dom Manuel Viera Pinto escreveu a Samora Machel, em Setembro de 1986, um mês antes do factício acidente que o roubou do nosso convívio. Esta carta, aliás, merece uma releitura.  Samora e Vieira Pinto conversavam e debatiam este país com profundidade e respeito. Assim, com a devida vénia, transcrevo à carta. Oxalá, um dia o seu maior desejo em vida, seja satisfeito e regresse à sua cidade de coração, Nampula. 

O povo não sabe onde pôr o coração

A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobrem de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, as n…. e as torturas.

Massacres: 

As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não são um boato ou uma pura invenção, mas sim uma triste e dolorosa realidade. Sabemos que, ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes, mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos executados e pergunta, igualmente, por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral. 

O povo entende que, na guerra, há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito. Mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?

Perguntas fundamentais: 

O povo pergunta se, na origem destes actos brutais, não estará uma ideologia de violência e de desprezo pela vida e direito da pessoa humana, não estará uma estratégia de liquidação e de extermínio, não estará uma política de posições obstinadas e irredutíveis. O povo pergunta se, na base destas atrocidades, não estará o princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se, na origem destes abusos, não estará a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética, da moral, do direito e da própria cultura. O povo pergunta se, os massacres e outros actos abomináveis, são apenas um atentado contra a vida das pessoas e das populações ou, igualmente, um atentado contra a vida e a alma da própria Nação.

 

Crueldades: 

Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais atrocidades são cometidas com requintes de crueldade e de cinismo. Muitos, com efeito, têm sido os massacres perpetrados, com um desprezo absoluto pela dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana e também com requintes de terrorismo e de extrema crueldade. Basta pensar nos massacres de pessoas frágeis e inteiramente indefesas, como são as crianças, os velhos, as mães lactantes ou grávidas, nos massacres de populações, convocadas e reunidas ao engano e, em seguida, encurraladas pelas armas e, barbaramente, destroçadas e assassinadas. Basta pensar nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas à golpe de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.

Estas, e outras, vergonhosas crueldades põem, de facto, em causa a civilização e a cultura e levam-nos, necessariamente, a concluir que tais crimes não seriam possíveis se, a par da irracionalidade e brutalidade da guerra, não houvesse um processo de degradação e de corrupção dos valores éticos, morais e espirituais do homem e do povo moçambicano. O povo preocupa-se e, diante destas vergonhosas e infames manifestações de violência, não deixa de perguntar se, a par das armas que massacram as pessoas, não há outras armas que tentam liquidar e destruir a alma e a vida do País.

Execuções: 

As execuções sumárias constituem uma outra violência degradante e criminosa. Estas execuções sumárias, tenham a justificação que tiverem, são sempre um crime, um atentado à legalidade, uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano, bem como ao direito de todo o homem a que, uma vez acusado, a sua causa seja examinada, com equidade e publicamente, por um tribunal independente e imparcial. Muitas foram as execuções sumárias, ocorridas nestes anos, por sentença de tribunais improvisados e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns destes julgamentos e execuções, mercê da crueldade que os caracterizou e acompanhou, transformaram-se num horroroso espectáculo de sangue. Seria longa e chocante a enumeração destes lamentáveis espectáculos de sangue. 

Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.

Sentimo-nos, por isso, obrigados a lembrar às Forças em presença que tais execuções corrompem a cultura e a civilização do País, põem em causa a personalidade e a alma da Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade, seja de quem for.

Assassinatos: 

Os assassinatos, a partir, sobretudo das áreas afectadas ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda praticar, num acontecimento sem qualquer responsabilidade moral. Matar não é nada: assim se exprime quem comete tais crimes. Parece, com efeito, que a vida das pessoas não é mais um valor que mereça respeito, não é mais um direito que mereça defesa. O assassinato torna-se vulgar. A vida, o valor, o sentido da vida estão postos em causa. As pessoas sentem-se inseguras e, mais ainda, quando vêem pela frente homens armados. 

Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação “os homens da Renamo desprezam e matam”, “os homens da Frelimo desprezam e matam”, uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando, muitas vezes, métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas, ainda vivas, obrigando-as, previamente, a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem a face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio povo.

Maus tratos e castigos desumanos: 

O clima de violência engendra e autoriza mais violência. Os maus tratos, os castigos humilhantes, são actos de violência degradante e, como tais, não deveriam ter lugar em Moçambique. A Constituição do País, a própria cultura do nosso País, não deveriam dar lugar a práticas desumanas e primitivas, como são os maus tratos e os castigos humilhantes. Infelizmente, estas práticas estão presentes no dia a dia das populações. Há maus tratos, há medidas político-militares e administrativas que magoam e humilham o povo. Os castigos desumanos e os maus tratos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o melhor da consciência universal dos povos, tão clara e corajosamente manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Contra a Tortura e Contra Tratamentos e Castigos cruéis, desumanos e degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Novembro de 1948. 

Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável e, igualmente, o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar, qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.

Torturas: 

As torturas são actos imorais e criminosos. São graves atentados contra os Direitos do Homem, contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a tortura. Uma causa que pretendesse defender ou consolidar o seu direito e a sua justiça, um Regime que tentasse assegurar a sua continuidade ou estabilidade, usando tais medidas, estaria a provocar a sua própria degradação e ruína. A tortura, os maus tratos, o desprezo sistemático pelo homem, não consolidam o poder constituído, antes o corrompem e o põe em grave perigo. Tais abusos e crimes, também não concorrem para a unidade, a reconciliação e a paz nacional, antes as destroem e dificultam.

Aspirações do povo:

Continua.

Fonte: (O Jornal. 16-09-1986), Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

– Dos requisitos para o seu decretamento em face da introdução da “prisão domiciliária”

Conforme é que-farte sabido, Moçambique aprovou, através da Lei n.º 25/2019 um novo Código do Processo Penal (CPP), publicado no Boletim da República (BR) em 26 de Dezembro de 2019, cujo período de vacatio legis é de 180 dias, significando que esse horizonte temporal se perfará nos finais do mês de Junho (isto, partindo do inseguro princípio que a data da publicação constante do BR coincide, efectivamente, com o real dia em que o diploma em apreço foi disponibilizado ao público na Imprensa Nacional).

A prisão traduz-se na consequência simultaneamente mais paradigmática e mais extremosa em decorrência de lesões a bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. É, indesmentivelmente, a manifestação mais sonante do poder punitivo do Estado, na sua função de guardião dos valores axiológicos que nos são aprovisionados pela consciência moral colectiva, cerceando-se um dos mais nucleares direitos de que são titulares os cidadãos – o direito a liberdade – universalmente concebido como um direito umbilicalmente vinculado à dignidade da vida humana.

É precisamente devido a natureza superlativa do direito a liberdade – que pede meças ao direito à vida e à saúde – entre nós constitucionalmente consagrado no n.º 1 do artigo 59 da Constituição da República (CRM), que a respectiva restrição deve obedecer a critérios rigorosíssimos de apreciação, visto que, dessa restrição, se coarta tão sacrossanta dádiva, atribuída a todos os seres pensantes como elemento inerente à sua inalienável condição de ser humano.

O Direito Penal, na prossecução das suas finalidades, tem conhecido, ao longo dos tempos, uma evolução que se direcciona no sentido de amolecer as características mais sancionadoras que sempre lhe foram intrínsecas. Se tradicionalmente, apontavam-se-lhe as finalidades “preventiva especial”, “preventiva geral” e “retributiva”, hoje é escancaradamente visível em vários ordenamentos do universo que as citadas finalidades se vêem enfraquecidas após lhes terem sido impostas a companhia de outras três finalidades/funções representativas do Direito Penal moderno: a “justiça restaurativa”, a “função reparadora” e ainda a “função ressocializadora da pena”.

O que se disse acima, consubstancia-se no conteúdo plasmado no artigo 58 do actual Código Penal (CP), aprovado sob os auspícios da Lei n.º 35/2014, nos termos do qual «a aplicação de qualquer medida ou pena criminal visa garantir a protecção dos bens jurídicos, a reparação dos danos causados com a infracção praticada, a reinserção do agente na sociedade e prevenir a reincidência», conteúdo que também foi transplantado para o artigo 59 do novo CP, aprovado sob a égide da Lei n.º 24/2019, que cura ainda de fazer menção que aquelas finalidades são perseguidas sem prejuízo da finalidade repressiva da pena.

Claro se torna, que estas últimas particularidades se enquadram numa visão de humanização, quer do Direito em si e quer também do tratamento dos arguidos/presos, e constituem afloramento da Doutrina do “Direito Penal Mínimo” que, essencialmente, nos ensina que a prisão de um individuo, exprimida como medida mais gravosa que lhe pode ser imposta por uma pena (ou medida de coacção), só pode ser levada a cabo se outras medidas mais conservadoras não se mostrarem adequadas a consecução dos objectivos das penas.

Moçambique, à luz do CP ainda vigente – diploma que caminha aceleradamente para o respectivo sepulcro e lá jazerá para dar lugar ao novo CP – já carreava os princípios do Direito Penal Mínimo, concretamente, no artigo 57 do actual CP ao estipular que «a privação da liberdade apenas ocorre ou se mantém quando, através da aplicação doutras medidas ou penas não privativas da liberdade, não for possível prevenir a prática futura de crimes pelo infractor ou pelos restantes membros da comunidade em geral ou garantir a protecção dos bens jurídicos», princípios que foram herdados pelo artigo 67 do novo CP, que prepara a sua estreia no panorama jurídico nacional, que vai mais longe do que o seu “diploma antecessor” ao estabelecer, no referido artigo 67, sob epígrafe «prevalência das penas e medidas não privativas de liberdade» o seguinte: «na função individualizadora de fixação da pena, privilegiam-se as medidas substitutivas à pena de prisão, com realce no seu carácter de ressocialização, colocando-se, sempre que possível, nos termos da lei, o agente em liberdade monitorado pelo Estado e pela comunidade».

Atrelados ao princípio atrás mencionados, foram, no CP ainda vigente, introduzidas as figuras das penas alternativas à pena de prisão e medidas alternativas à pena de prisão, institutos que, repete-se, densificam o princípio segundo o qual, só se podem aplicar penas privativas da liberdade se outras medidas ou penas de carácter mais sensual não se mostrarem legalmente convenientes para garantir o estabelecido no encimado artigo 57 do actual CP.

Toda esta lucubração efectuada supra, incidente sobre o direito penal substantivo (que qualifica os crimes e estabelece as respectivas penas), serve de mediação destinada a uma melhor compreensão do que pretendemos esgrimir, no que concerne aos [novos] requisitos da prisão preventiva, enxertados no novo CPP.  

Assim, flui, com toda a naturalidade, que, da homogeneização dos citados princípios do direito penal substantivo (CP), o direito penal processual (CPP) também se deve harmonizar com a fisionomia daquele, pois este, que adjectiva àquele, fixando a ritologia processual e procedimental que deve ser obedecida na prossecução das finalidades daquele – e não é por coincidência que os novos CP e CPP entrarão em vigor em data idêntica – deve tratar de concretizar, no percurso do processo-crime, os princípios respaldados naquele.

Compulsando-se o regime instituído no novo CPP respeitante à disciplina das medidas de coacção, a prisão preventiva (artigo 243) continua sendo a medida mais gravosa, todavia, ao lado dela, e com feições similares a ela, surpreende-se, no artigo 242, outra medida de coacção, entre nós inovatória: a “obrigação de permanência na habitação”, também denominada, na Doutrina, de “prisão domiciliária”.  

Apesar de o novo CPP também prever outras medidas de coacção como o “termo de liberdade e residência”, “caução”, “obrigação de apresentação periódica”, “suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos”, e “proibição de permanência, de ausência e de contactos”, e,

Sobretudo,

Apesar de estabelecer, no seu artigo 245, que nenhuma medida de coacção à excepção da relativa ao termo de identidade e residência (TIR), poder ser aplicada se em concreto se não verificar (i) fuga ou perigo de fuga; (ii) perigo de perturbação do decurso da instrução ou da audiência preliminar do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou (iii) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa, de entre o rol das medidas de coacção elencadas, destaca-se que a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação (ou prisão domiciliária), diferenciam-se largamente das demais, em virtude de ambas se caraterizarem pela aplicabilidade da restrição da liberdade do arguido, que se vê, em ambas, compelido a permanecer num espaço diminutamente delimitado, circunscrito e confinado, ou seja, em autêntica situação reclusória (distinguindo-se, entre ambas, somente o local: estabelecimento penitenciário ali, domicílio aqui).

O início do problema…

Relativamente a medida de coacção “prisão domiciliária”, o n.º 1 do artigo 242 salienta que «se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a 2 anos, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de se não ausentar, ou de se não ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida». O n.º 2 do sobredito artigo adverte que «para fiscalização do cumprimento da obrigação referida no número 1 podem ser utilizados meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos na lei»

Por sua vez, no que concerne a medida de coacção “prisão preventiva”, a alínea a) do n.º 1 do artigo 243 assevera que «se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a 2 anos»

Conforme se pode concluir com meridiana facilidade, quer a prisão preventiva quer a domiciliária, para além dos requisitos delineados no artigo 245 (que faz menção expressa que devem ser observados “em concreto”) – que são comuns a todas medidas de coacção à excepção ao TIR –, ambas possuem como requisito basilar e indeclinável para os respectivos decretamentos, a existência de “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a 2 anos”.

A pedra de toque determinativa da opção pela prisão preventiva ao invés da prisão domiciliária, será no caso de o juiz considerar inadequada ou insuficiente a prisão domiciliária. É, laconicamente, só isto que a lei processual diz.

Quando é que ela é inadequada ou insuficiente? A lei não tratou de elucidar.

Ora, um ponto de destrinça colocado nestes termos tão perfunctórios, possui todas as condições para se transformar num perigoso foco gerador de problemas a nível decisório, sob o ponto de vista processual, com repercussões nocivas ao nível dos direitos, liberdades e garantias dos arguidos, isto para além de colocar o próprio juiz numa autêntica camisa-de-onze-varas.

Sendo que os requisitos gerais para o decretamento de ambas as medidas são as mesmíssimas (fuga ou perigo de fuga, perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de perturbação da instrução), o requisito especial respaldado na moldura penal aplicável aos crimes a ela sujeitas é similar (crimes superiores a 2 anos) e, por fim, a modalidade de culpa envolvida é idêntica (só se aplicam a crimes dolosos), tememos, honestamente, que o arguido saia profusamente prejudicado pelo simples facto do Tribunal não possuir os meios técnicos de controlo à distância idóneos a garantir o controlo e fiscalização do cumprimento, por parte do arguido, das obrigações que lhe são impostas na prisão domiciliária (n.ºs 1 e 2 do artigo 242).

Pois, colocadas as coisas como estão no novo CPP, que proíbe a aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção ao TIR, se “em concreto” não verificarem os requisitos delineados no artigo 245, o juiz está a partir de agora – na verdade, sempre esteve, mas, agora, está mais do que nunca – obrigado a fundamentar a real existência dos elementos concretos que determinam a decisão de decretar a prisão preventiva.

Não valerão nem suposições, nem presunções e muito menos desconfianças inspiradas na subjectividade do juiz. O despacho que determinar a prisão prisão preventiva (ou a sua manutenção), não só deverá fundamentar, como também deverá provar – na verdadeira acepção da palavra – que concorrem situações insuficientes e/ou inadequadas para optar pela prisão domiciliária.

Não nos podemos olvidar que o nosso CP (quer o actual quer o vindouro) é inspirado pelos postulados do Direito Penal Mínimo (no sentido de se dar primazia às medidas punitivas mais modestas, antes de se lançar mãos às mais gravosas); e se partirmos do inafastável princípio que o CPP adjectiva aquele diploma, lógico se torna que a medida de coacção mais gravosa (prisão preventiva) só poderá ser manuseada se as medidas mais conservadoras se mostrarem, numa apreciação sempre casuística, irrecomendáveis.

Por outras palavras, fica claro que a prisão domiciliária passa a ter preferência comparativamente a prisão preventiva, sendo que, concorrendo, entre si, os requisitos para o decretamento de ambas as medidas coactivas (que, conforme vimos, são mesmíssimos), a prisão domiciliária traduzir-se-á na regra e a prisão preventiva consistirá na excepção colocada na “retaguarda das medidas”, que somente será convocada se, fundamentadamente, ilustrar-se que aquela se mostra insuficiente e inadequada para a realização dos seus fins.

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

 

Os braços estão levantados como que buscando súplica divina. A torrente de água roça-me as axilas. Não me faz cócegas. Faz-me chorar. São lágrimas que me nascem no coração, trituram-me a alma e desembocam continuamente na própria água assassina.

Passei horas lutando por proteger a minha palhota. Ela desabou. Os seus destroços flutuam errantes e ajudam a água a fazer mais vítimas.

Passei horas lutando por salvar a Marina, minha filhota linda. Ela sucumbiu. A sua alma ainda habita o meu ser, mas o corpo está a caminho do oceano à velocidade da torrente.

Passei horas lutando pelo meu filho Chomunoha. Também partiu. Tentava ajudar-me a salvar a irmã quando tropeçou e se perdeu debaixo das águas. 

Passei horas lutando pela minha esposa Ndakayiyenyi. Chorávamos juntos pelos nossos pequenotes, quando uma chapa de zinco num voo rasante resolveu aterrar precisamente no seu pescoço. Ainda tentei acudi-la, mas a água fez o resto. Arrastou-a num rasto de sangue contra o qual nada pude fazer.

Agora luto pela minha vida. Luto pelo futuro. Mas que futuro? O futuro é cada minuto que se segue. É cada passo que dou. É cada lufada de oxigénio que inspiro.

A água já não só me roça as axilas. Galga-me os ombros a caminho do pescoço. Em breve vou perder o chão. Tenho de tomar uma decisão de vida. Decisão rápida. Não há nenhuma árvore por perto. Estou rodeado de pequenas plantas que há muito se renderam à fúria das águas. Sobra-me o edifício da sede do Posto Administrativo que é para onde todos os caminhos vão dar. Vejo-o a reluzir à distância de uma vida. Nunca soube nadar. Arrasto-me rezando para que nunca deixe de ter pé. Há dois focos nesta caminhada. Primeiro são os pés, que a cada passo se devem manter firmes num chão movediço. Depois é a cabeça, que deve fintar cada pedaço do entulho que vem com a água.

O nível do líquido da morte atinge-me rapidamente o pescoço. Apenas a cabeça subsiste fora.  A muito custo alcanço a escadaria do edifício. Está apinhada de gente. Homens e mulheres.  As crianças há muito que deixaram de ter pé. Foram todas içadas para o tecto, a única tábua de salvação.  

Procuro um ponto de apoio numa janela escancarada. Por ela descubro que o interior está completamente inundado. Documentos oficiais levitam na água. Com toda a força que me resta, pego na aba superior do edifício e num impulso hércule coloco-me fora da água. Uma ampla placa de betão, completamente repleta de gente, enche-me a visão. O tecto está despido de chapas de cobertura. Todas elas seguiram viagem pelos ares. Terá sido uma delas que vitimou a minha Ndakayiyenyi? Só Deus sabe.

Sobra pouco espaço para anichar-me. Tanta é a gente que busca cada milímetro quadrado deste tecto para salvar a própria vida. Há alguma solidariedade para com os que ainda trepam. Muitos, sobretudo mulheres e idosos, precisam de nossa ajuda cá em cima para lhes dar o impulso que falta para subir. Uma mão segurando na do outro é o gesto suficiente.

Volto a olhar para baixo tentando uma vez mais estender o meu apoio. Surpreendo-me com o brilho de uma careca famosa aqui da povoação. É a cabeça do Chefe do Posto: o homem mais importante. O mais poderoso. O mais temido. O homem que anda sempre de ombro esticado e queixo levantado para encurtar a distância com Deus, de quem se assume seu representante na comunidade. Hoje os seus galões murcharam e pede ajuda. Quer que lhe estenda a mão e lhe dê a força que necessita para alcançar o tecto.

Dou-lhe a minha mão sim. Ele segura-a com toda a firmeza. A sua vida está agora nas minhas mãos. Todo o seu poder agora de nada vale. Toda a sua petulância de nada conta. Toda a fanfarronice murchou. Se eu o largar ele cai que nem uma pedra e morre afogado porque, como eu, não sabe nadar.

Puxo-o para mim com toda a energia e o homem tomba no tecto. É das últimas pessoas que aqui chegam. Lá em baixo a água já ultrapassou a aba superior. Ninguém mais tem pé. Quem não está aqui connosco ou conseguiu pendurar-se em alguma árvore ou foi então arrastado na direcção do abismo.

Nada mais nos resta que não seja esperar ou que as águas parem de subir e vazem rapidamente, ou por alguma ajuda que venha dos céus. Enquanto isso vamo-nos agarrando uns aos outros numa espera que pode durar dias ou semanas.  

O Chefe do Posto está aqui connosco. Também em pânico. Também ofegante. Trémulo, segurando a minha mão. O seu futuro é tão incerto quanto o meu. Novas questões emergem do meu pensar. Afinal de contas o que será o poder? São as pessoas? Os edifícios? Os carros? Ou as construções que erguemos na nossa consciência?

Seja qual for a resposta, o ponto é que pela primeira vez, sinto que o poder não é mais que uma abstração. O temido Chefe do Posto aqui choraminga comigo. Aqui apanha chuva comigo. Aqui sofre com o vento comigo. Aqui passa fome comigo.

Estamos todos aqui apinhados. Homens, mulheres e crianças. Agarrados uns aos outros, respirando o mesmo ar, vivendo a mesma agonia e todos decalcando na calçada do desespero um amanhã sem horizonte à vista. Pior ainda: estamos todos por cima do edifício da sede do Posto Administrativo. O edifício do poder. Esfomeados, frágeis e esfarrapados, mas por cima do poder! Sorrio de esguelha e abafo a alma.

 

Estou praticamente a terminar um mestrado em Contabilidade. Durante dois anos de estudos naquela área de conhecimento, infelizmente, não tive o privilégio de trocar qualquer tipo de conversa com colegas na minha língua materna: o xitswa. Tal não aconteceu, quer na sala de aula, quer no átrio da faculdade onde me formei. Na verdade, isto não é nenhuma novidade. Quando era pequeno, lembro-me que na escola primária era proibido falar dialecto ou língua materna no recinto escolar. Muitos da minha geração cresceram ouvindo dizer que a língua materna (referindo-se à língua bantu) não servia para nada e, quando se contrariavam estas regras, meninos do meu tempo apanhavam muita tareia dos professores ou dos funcionários da escola que na altura tinham poder paternal sobre os alunos.

Por causa das proibições dos professores nas classes inicias, aprendi a conter o prazer de falar o xitswa na escola primária e, mais tarde, na escola secundária. Até que chegou a vez de me matricular na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Ali vivi uma experiência diferente. Habituado a conter a minha herança cultural, admirei-me várias vezes ao ouvir doutores, meus guias na aprendizagem, sem receios de se dirigirem à turma em xichangana. Recordo-me que no princípio da minha formação em Linguística, alguns dos meus professores dirigiam-se a mim em xichangana. Com os traumas e preconceitos que me foram impostos na infância, eu não os respondia em xichangana, apesar de ser fluente nesta língua. Afinal, sempre fui ensinado, na escola primária, que a língua portuguesa é que era oficial e que somente esta devia ser usada em locais públicos e principalmente no ensino.

Quando me habituei à nova realidade da Faculdade, à medida que os casos se foram repetindo, passei a falar em xichangana não apenas com os meus professores, como também com colegas estudantes. Tal não foi a minha surpresa quando alguns deles chamaram-me de ignorante, chegando a vaticinar-me reprovações e insucesso universitário de toda a natureza. Aí percebi melhor a situação. Como quase em tudo, há sempre dois lados da moeda. Se, para uns, a liberdade nacional é acompanhada de liberdade cultural e, consequentemente, linguística, para muitos, existem elementos da cultura moçambicana que podem ser ignorados. Por exemplo, as línguas bantu.

Não há dúvidas de que Moçambique é um Estado independente, ao nível político. Há 45 anos, de forma heroica, os moçambicanos libertaram a terra e o Homem da dominação colonial portuguesa. Entretanto, ainda há um grande trabalho por fazer de modo que a liberdade política possa estender-se a outros domínios sociais, no caso, o da cultura, ou das línguas, mais concretamente. Quem não tem o prazer de falar a língua local do seu país (tendo condições para o efeito), não somente nega-se essa liberdade, como também, recusa-se a aceitar parte de si e da sua identidade. O que nos faz únicos no mundo não é a beleza da fauna ou da flora; não são os recursos do nosso subsolo ou o nosso território extenso. O que faz de Moçambique único é a cultura, evidentemente, assente nos hábitos, costumes, na religiosidade, mundividência, e etc. Tudo isto só é enaltecido de geração em geração através da língua bantu, porque, como dissemos nos artigos anteriores, há elementos de uma cultura que não podem ser traduzidos para uma outra língua.

Por isso, a todos os que desvalorizam ou julgam inferiores as línguas moçambicanas, línguas bantu, digo-lhes que é depreciativo recusarem-se o direito de serem bitongas, nyungues ou makondes, ou qualquer bantu. De outro modo, iremo-nos tornar lobos das nossas próprias línguas, dando, assim, continuidade ao projecto colonial de menosprezar o património linguístico bantu. Sejamos, compatriotas, meus caros, uma janela de esperança e canto de memória para as futuras gerações, sobretudo neste contexto em que, mais do que nunca, o inglês, o francês ou o mandarim vêm se tornando cada vez mais apetecíveis do que qualquer outra língua moçambicana ou não. Devemos resistir a esta tendência e impedir que a globalização signifique o fim das nossas singularidades. E, para não ficarmos atrás neste “progresso” tão almejado, é necessário aprendermos a globalizar as especificidades que nos definem, com educação e cultura. Só assim poderemos acabar com os preconceitos e alcançar a liberdade linguística que sonhamos.

   Dissipada a tempestade, sobrevieram tempos de bonança.

   O senhor Ruben e a esposa, a dona Sara, exilaram-se no bairro de Thlavane, longe das murmurações dos residentes do Bairro Indígena, que outra coisa não sabiam fazer senão maldizer e propalar boatos. O senhor Ruben é muito cauteloso na escolha de companhias e de amizades, dado também o facto de pretender esquecer as circunstâncias da perda do dedo, que ele sempre atribuiu a “um acidente de trabalho”. Prefere o recolhimento do lar, embora corra o risco doutras mutilações mais radicais, dado o carácter irascível e imprevisível da consorte. De peso maior na mudança de hábitos_ diga-se a verdade_ é a vigilância permanente com que a esposa o cerca. Não vá dar-se o caso dela distrair-se e, às tantas, inventar ou saber doutros envolvimentos dele com outras galdérias fingidas de comadres que, já se sabe, o que querem é destruir o seu lar e andar atrás dos maridos das outras. Porque maridos, nos dias de hoje, custam a apanhar!

   Thlavane pode significar muitas coisas. Se perguntássemos ao senhor professor Carlos, que lecciona na Escola Nova, o que thlavane quer dizer, ele divagaria do seguinte modo: ”…etimologicamente, thlavane, é um vocábulo pertencente ao idioma  ronga. Deriva da palavra xitlavana, que em Português quer dizer pico! Ora, como é do conhecimento de todos e está também patente debaixo dos nossos olhos, nesta área a planta predominate é a espinhosa, um arbusto que dá flores roxas e folhas ovais, e que cresce abundantemente em lugares de savana, ou semi-desérticas. É uma variante de cacto. Por outras palavras, espinhosa pode estar na origem da designação deste território. Outra possibilidade é que aqui neste lugar era comum haver assassinatos de cidadãos, por malfeitores provenientes do campo, principalmente da província de Gaza. (Aqui, o professor Carlos descuidou-se e não pôde evitar a denúncia de tendências tribalistas visto que era um maronga empedernido; para ele a única etnia digna de ser assim chamada era a sua, a ronga). Então, thlavane pode significar “o lugar onde se esfaqueam pessoas”, porque esfaquear é picar, penetrar com um instrumento perfurante. Não sei se me estão a entender. Duma maneira ou doutra, ka-Thlavana, é o lugar onde se pica, seja por cerdas das espinhosas, seja por usar facas e punhais para assassinar gente”. E estaria dada a explicação por um dos mais destacados eruditos dos que já houveram em todo o subúrbio de Lourenço Marques.

   O casal Ruben foi viver num barraco por detrás da Fábrica de Tabacos Velosa,  à distância de um assobio da cantina de Manhamele. Tinha vizinhos singulares: o senhor Augusto, um curandeiro matswa proveniente da Maxixe, negociante da vida e da morte dos seus concidadãos. A sua casa era frequentada por gente de muita categoria, como os assimilados, funcionários públicos e, até, brancos da cidade. Vivia com uma senhora mestiça de nome Maria Cafusa, antiga beldade, reformada da Rua Araújo, e que então tivera a sorte de encontrar algum encosto para a velhice no ombro  do adivinho. Mudara-se para a casa deste com uma filha,  a Maninha, um vitelo em miniatura. Assim, aos treze anos, a menina exibia um corpo anafado, redondo, com banhas para dar e vender. Nela, na Maninha, o que contrastava com a carinha de felino era uma voz de falsete esquisitamente timbrada. Chamava “mano” e “mana” a toda a gente com sonoridades que muito se assemelhavam ao miar dos gatos. Daí que a meninada da zona a atribuiu-lhe a alcunha de Maninha, a Gata.

   O outro vizinho dos Rubens era outro curandeiro, o papá Josefate, especializado em exorcismos. A sua residência assemelhava-se ao reduto dum mago, onde se espalhavam potes de plantas medicinais, caudas de búfalos, caveiras de macacos, peles de répteis, cabeleiras barradas de tinturas, eish! e outros objectos de aspecto medonho a que ele chamava “chaves para abrir as portas do sobrenatural”. Era um colégio de formação de adivinhos para onde afluíam jovens possessos de espíritos,  encaminhados àquela tenda para a aprendizagem das artes de adivinhação. O seu posto era o de nhamussoro-mor que formava futuros nhamussoros.

   O terceiro dos eminentes vizinhos do Ruben era o senhor Alberto Sithói, trabalhador da Estiva, na ponte-cais e pastor duma seita zione. O que mais se salientava deste  cidadão era o facto de que, mesmo em época em que o calor abrasava, de Janeiro a Janeiro, era visto sempre encasacado, de sobretudo comprido, envergado como se fosse a sua própria pele ou debaixo da indumentária pretendesse ocultar algo. E fazia-o com essa intenção, se quisermos trazer a verdade dos factos ao conhecimento de toda a gente. Muitas vezes regressava dos piquetes com os bolsos a abarrotar de  produtos, como garrafas de bebidas, alguns utensílios domésticos e, enrolados no corpo, como se de roupa interior se tratasse, faixas de tecidos caros, os mesmos que, sabe-se lá como, retirava dos armazéns da ponte-cais, ou dos porões dos navios que descarregava; um autêntico armazém ambulante!

   Ao contrário da Maninha Gata que era aversa a amizades, os filhos do senhor Alberto eram camaradas afáveis, que não regateavam esforços para partilhar com os vizinhos dalguns dos benefícios que o seu estatuto permitia. O irmão mais velho chamava-se Aliberto, não Alberto, mas era xará do pai. Pessoa um tanto ou quanto obtusa, nunca se deu bem com livros, motivado este facto por algum tipo de retardamento no desenvolvimento mental que, segundo o pai Sithói, nisso saía à mãe. O Aliberto marcou passo numa segunda classe e ficou por lá enterrado até a tropa filá-lo e despertá-lo para o real da vida nas matas do Norte. Entrou soldado-raso para o exército e mais raso de lá saiu. Não se lembra de nada do que por lá aconteceu.

    A irmã do Aliberto chamava-se Julia, não Júlia com acento agudo no “u”. Havia  algo de exotismo e disparidade entre a sua figura e o seu carácter. Como o pai, era cortês e carinhoso para com os amigos. Tinha aquele sorriso fácil que sempre cativava os que com ela conviviam. Possuía; porém, uns olhos que procuravam ser ternos e encantadores; contudo, o destino enviezava-lhe o direito enquanto o esquerdo fitava  de frente. Se o direito fitava o interlocutor, o esquerdo seguia a sua marcha mais para  o mesmo lado, evidência de um estrabismo que tirava toda a graça à fisionomia do rosto. Tirando isso, era um anjo de rapariga. De quando em vez, na casa do senhor Sithói recebiam a visita duma prima chamada Alicinha, que vivia com uma avó na zona do Vulcano. A Alicinha, vista de perfil fazia adivinhar maravilhas. Todavia, quando se achasse de frente apresentava uns olhos que, a fitar, ficava-se sem saber para que objecto o faziam, tal como a prima Julia, indício de alguma doença de transmissão familiar.

   A estas três famílias vizinhas do senhor Ruben acrescia-se um cortejo de nomes-sem-nome, gente que deambulava pelos becos, todos os dias, entre as bhangas de xidangwana, de ntho-ntho-ntho ou de uputso, ou assentava posto aos balcões do Manhamele, à procura dum canto donde pudessem erguer alguma dignidade e respeito.

  No meio desta multidão como é possível esquecer a Fatinha que, na tenra idade dos dez anos, já se revelava uma ninfa insaciável de sexo, sempre aturdida de paixões por adultos solteirões, a quem se ofertava para labores domésticos, como varrer o quintal, sacudir o pó aos móveis e outras tarefas que exigiam alguma intimidade pessoal. Claro, daí à gravidez foi uma mera questão de tempo. De quem era a gravidez só Deus é que sabe, porque os nomes das pessoas para quem ela apontou o dedo eram vários, e algumas daquelas nem viviam nas proximidades. Enfim, a pequena Fátima tornou-se adulta sem perceber quanta malvadez existia nas pessoas ou que sentido tomava a rotação da roda da vida.   

   Como também esquecer aquele respeitado estudante, sempre a sobraçar calhamaços de livros, a exibir-se todo, nos machimbombos, nos caminhos, a falar português fino, extraido de dicionários, só para dar nas vistas e ganhar reputação na zona?

   Mas o pior nas relações entre os moradores está para se contar. Por vezes sucedia que na residência do exorcista Josefate se executavam os rituais de expurgação de espíritos aos instruendos. Em simultâneo realizavam-se orações na “capela” do pastor Alberto Sithói, assim como outras na casa do curandeiro senhor Augusto. Em todas elas as cerimónias decorriam com as habituais evocações de deuses e de espíritos de defuntos, sempre ao ritmo de batucadas. E o inferno vinha instalar-se, com todo o seu peso, naquela pequeno aglomerado ao redor da cantina do Manhamele. Os batuques iniciavam em dó maior, tum-tum-tum. Parecia a senha de chamada para o concerto de tan-tans. Os sons subiam de nota, cada qual o mais alto, sempre em competição com o da casa vizinha. Da casa do Sithói o ritmo das batucadas era acompanhado de coros de cantigas de glorificação a Deus. Da residência do Josefate eram vozes graves umas vezes; agudas outras, as dos exorcismados, trêmulas no transe da possessão. Os concertos prolongavam-se noites dentro, ensurdecedores, para desconsolo do estudante que não conseguia concentrar-se nos compêndios. E dizia até: “…se eu chumbar a culpa será destes analfabetos meus vizinhos…”, manobra de táctico desvio. Toda a gente sabia que os livros ele só os carregava, e não os compulsava, porque consumia o tempo nos becos dos quintais abraçado a raparigas ou em farras de que era frequentador assíduo e participante activo.

   De nada valeram os esforços dum senhor assimilado de nome Bambo que, usando do estatuto de ser agente da Pide-DGS, procurou esfriar o calor dos cultos com ameaças de prisão. Em vão. Quanto mais ele reclamava “pelo barulho ensurdecedor que polui a atmosfera do nosso bairro e não deixa ninguém gozar do direito ao descanso, nem sequer os bebés e os enfermos”, o entusiasmo das celebrações redobrava de intensidade, e à meia-noite atingia o auge. Caso estranho é que apartir de uma determinada altura a área começou a ser policiada por agentes da Polícia de Choque. Semanas depois do início das operações soube-se da morte de um dos agentes, que era também um residente da zona. Aquela foi atribuída à insatisfação dos espíritos, enviados por um dos curandeiros, por tentativa de travar o curso harmonioso dos cultos. O patrulhamento abrandou, para depois prosseguir em lugares mais distantes; não vá o Diabo tecê-las, porque nestas coisas sempre é melhor estar precavido e jogar no seguro.

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

A avó Ndindaza está à caminho de 80 anos de idade e ainda assim parece mais nova do que alguns jovens da aldeia. Com apenas 30 anos, estes não conseguem esconder os sinais de desgaste físico estampados na sua cara.

As suas buchechas grandes, longe de significarem bem-estar, denunciam a malnutrição de tanto beberem e alimentarem-se mal. Geralmente os alcoólatras não têm apetide de comer.   

O seu hálito é um misto de cigarros e aguardente puro de massala ou de caju da adega tradicional do velho Tsambe, negócio de anos através do qual criou os seus sete filhos, educou-lhes e hoje assumem posições importantes na sociedade.

Não estudam. Não trabalham. O seu único divertimento é beber e fazer filhos, atrás de filhos, em casamentos prematuros, característicos das zonas rurais. Às vezes fazem biscatos. Carregam coisas para ali. Carregam coisas para acolá. Constroem latrinas. Reabilitam coberturas de capim removidas por ventos fortes que se têm feito sentir na aldeia.

Trabalhos deste género abundam nos meses de Dezembro e Janeiro em que quase toda a gente tem poder de compra. Uns, porque ganharam dinheiro com a produção de aguardente de caju e pela venda da castanha de caju a comerciantes da zona. Outros, sobretudo estes, porque um membro da sua família regressou das minas da África do Sul.

Na casa da avó Ndindiza, viuva, as coisas são diferentes. Aqui vive-se da agricultura. Os seus filhos e os netos estão espalhados pelo país, mas a maior parte reside e trabalha em Maputo. Todos os filhos estudaram e estão bem na vida.

Teimosa, orgulhosa e com a sua mania de não querer depender dos filhos, Didi, como é carinhosamente tratada pelos seus netos e por pessoas mais próximas de si na aldeia, apesar da idade avançada, não abandonou a sua enxada de cabo curto. Pendurada no ombro esquerdo, com botas nos pés para se proteger de cobras e lenço na cabeça, canta enquanto se dirige à machamba, numa rotina diária que começa as 05:00 da manhã.

Quando chega o tempo da colheita, é inacreditável. Enche os celeiros. Uma parte dos produtos manda para a família na cidade. O excedente, vende na aldeia e às vezes a clientes da vila.

Ela, pouco ou nada sabe do que se passa no país. Os filhos lá na cidade ainda não lhe falaram de coronavirus e sobre a necessidade de se prevenir da doença. Acham que a doença não pode chegar lá no interior da província onde nasceram.

O Estado de Emergência vs quarentena é caso para esquecer, numa comunidade que festeja o regresso de seus filhos das minas da África do Sul e não só. Os casamentos, os funerais e as cerimónias religiosas movimentam uma aldeia inteira.

O pequeno rádio da avó Ndindiza através da qual acompanhava os noticiários em língua tsonga, avariou faz tempo e não disse nada aos filhos. Não se pode falar da televisão porque a energia da rede nacional ainda não chegou à aldeia, apesar de promessas sucessivas de políticos em períodos eleitorais de caça ao voto.

Há uma semana, dois idosos, um de sexo feminino, com mais de 60 anos de idade e outro, do sexo oposto, com 70, perderam a vida depois de se queixarem de febre e tosse. A notícia espantou a aldeia inteira. É que muitos já apanharam gripe, mas ninguém antes morreu por causa disso.
Eram pessoas muito respeitadas na comunidade dado à sua honestidade e amor ao próximo. Por causa disso, os seus funerais, realizados em ocasiões diferentes, foram muito concorridos. Centenas de aldeões não quiseram perder a oportunidade de se despedirem deles.

Como manda a tradição africana, depois das demoradas orações no cemitério da aldeia, debaixo de um calor intenso, orientadas pelo pastor Mabunda, os presentes foram juntar-se nas casas dos malogrados para lavarem as mãos e tomarem o habitual chá antes de se dispersarem.  

O seu telefone, a “bombinha” através do qual se comunica com os filhos, recarrega na banca de Mutchatcha, um jovem empreendedor que, para o efeito, instalou um conjunto de batarias. São dez meticais de cada vez e o serviço ajuda a muita gente. Logo pela manhã, a banca até parece uma loja de telemóveis. Fica cheia de telefones de várias marcas e tamanhos.

Didi não sabe ler e escrever. O seu neto, o Joãozinho, de 9 anos, inteligente, a frequentar a quarta classe debaixo da sombra de uma árvore, é quem lê as mensagens enviadas para si por parentes, em língua portuguesa, e traduz para a sua avó. Todos confiam nos serviços do miúdo porque não sabem escrever em xichangana.

Na aldeia, todo o mundo se conhece bem. Através das pegadas dos pés, qualquer um sabe dizer para que direcção foi algum membro da comunidade. Já passavam das 8:00 horas da manhã de segunda-feira e avó Ndindiza, ela que acorda diariamente muito cedo, ainda não tinha sido vista, o que causou espanto e preocupação entre os aldeões.
 
Doía-lhe a coluna. Tossia muito e com febre. Quando lhe bateram a porta, meio aberta, continuava deitada na sua cama e o seu neto, a fazer alguns trabalhos domésticos correspondentes à sua idade. A doente foi acompanhada para o centro de saúde local, mas não ajudou em nada: não havia medicamento e a província acabava de anunciar roptura.

Os seus filhos, netos e a família em geral não foram informados sobre a doença para não lhes preocupar. Tudo está a ser gerido localmente com a certeza de que logo a velha ficará bem.

Uma semana depois, para a surpresa e preocupação da aldeia, o estado de saúde da avó Ndindiza complicou-se. Tem dificuldades de respirar e o hospital de referência dista 120 quilómetros daquela comunidade.

Eram 17:00 horas de domingo quando alguém da comunidade, mais próxima da doente, resolveu ligar a informar sobre a situação de Ndindiza à família em Maputo. Já era tarde para viajar e quando chegaram no dia seguinte, ela tinha perdido a vida três horas depois do telefonema do dia anterior sem poder despedir-se dos seus filhos e netos.

Ela morreu sem conhecer a doença que lhe arrancou a vida, a covid-19. Deixou este mundo sem ter tido a oportunidade de se proteger, como os outros, contra o Coronavírus que invadiu a sua aldeia ante a ignorância daquela comunidade em relação à pandemia.

Ndindiza e os outros dois idosos, Macucule e Mucavel, desapareceram do mundo dos vivos deixando ficar muitas sementes espalhadas pela aldeia que germinarão no seu tempo: dezenas de pessoas infectadas com o Coronavírus transportado para aquela comunidade por alguns dos regressados da África do Sul há cerca de um mês sem passarem por uma quarentena.

 

 

Xi-cau-cau

Que foi o primeiro campeão nacional, já todos sabíamos; que forneceu imensas glórias futebolísticas ao país, também; que enquadrou jogadores na primeira linha nacional, como José Luís, Mambo, Ângelo, Miguel, Adelino Jorge e outros, é uma realidade.

O que talvez poucos esperávamos, é que…
Em tempo de pandemia e após sinais de queda que punham em risco a sua participação no Moçambola, os fabris do Chimoio – graças a uma nova direcção chefiada pelo empresário Quinito – ganhassem uma dinâmica tal, que no Chimoio e numa grande parte de Manica, o azul do seu equipamento viesse a ser a côr preferida, um pouco por todo o lado.

Dia após dia, respeitando as regras do isolamento individual, o clube de Manica demonstra uma nova dinâmica, apoiada num princípio que vai, seguramente, ser um exemplo para outras províncias: a união em redor do seu representante.

O sucesso, que parece estar no embrião, vai dando sinais positivos: equipamentos e símbolos repletos de originalidade, “banners” colorindo a cidade, reparação de recintos desportivos, organização dos departamentos com a adesão do empresariado e entidades locais ao projecto.

Paralelamente, um caminhar, a passos largos, rumo a uma meta até há pouco impensável: a do sócio mil! Quem diria!
 

PEDRA NO SAPATO
 
Diferentemente da capital do país, algumas províncias têm que repensar e interiorizar que a herança do benfiquismo, sportinguismo e por aí em diante, já não faz sentido. Porque é que, zambezianos ou nampulenses, não se unem em redor do seu representante na nação, indepedentemente das cores das camisolas?

Unidos ficamos fortes, desunidos, acontece o contrário. A pandemia veio colocar mais a nu essa realidade, em todas as áreas e sectores. O desporto não foge à regra. Somos um dos poucos maus exemplos que se conhecem no mundo. Atente-se nos casos do Manchester, Barcelona, Porto, Braga e outros, clubes que protagonizam, na plenitude, o amor pela terra que representam.

Por cá, apoiados pelas autoridades provinciais, os amantes do desporto devem unir-se em torno do bem maior: a presença de um forte representante, neste caso no Moçambola, para a todos orgulhar.

Felizmente, o bom exemplo do Textáfrica, primeiro campeão nacional, está aí, para ajudar a (re)tirar essa pedra do sapato.

O futebol nacional dará um passo em frente e o país agradecerá!

O cenário é sombrio em Cabo Delgado. Duas nuvens sobrecarregadas tingem o mesmo espaço, não se podem esquecer as feridas não saradas abertas pelo Kenneth, haverá álcool-gel suficiente para desinfetar as armas?, ou não precisam de máscaras as sobreviventes almas desalmadas de um destino mais digno? Será que as máscaras dos ontem “insurgentes” hoje “terroristas” foram feitas salvaguardando a tónica de três camadas recomendáveis?, que venha vigilância epidemiológica da sns averiguar a real situação.

O que mais se pode esperar dessa fatídica realidade que cresce diante do olhar impávido de quem disse este país ter tudo para dar certo, onde está o tudo para dar como certo nesta guerra que cresce a olhos fechados?, quanta pólvora é suficientemente para estancar a pandemia do medo, imposta pelos carniceiros do norte?, será o pão, o doce, ou umas três moedas sujas que fazem com que os jovens em Cabo Delgado sujem a alma, o futuro e o nome de Moçambique, dentro e além-fronteiras?

Ainda há poucos dias foi notícia no mundo: um traficante-mor procurado a três décadas foi aqui capturado em Moçambique. “e o Chang quase esfuma-se da curta memória desse povo que têm de pensar no prato de comida para a quarentena de todos os dias, nas ínfimas moedas para às máscaras, enquanto isso os deputados pensam como reintegrar-se com três milhões de meticais encaixados ao bel-prazer, é caso para não dizer nada apenas chorar, prantear do medo que representa a vida nesse país, hoje e como sempre foi, “mas eternamente não, patrão”, como diria o velho Zé, ó por lembrar-me do soba, sobem-me à memória o “eles foram lá” foram lá mesmo, mas dessa vez encontraram os outros mascarados, com a arma na esquerda e alcorão na direita.

Se houvesse investimentos nos e para os jovens, quanto se pouparia do aluguer do “gazelle” e no vexame militar que passamos internacionalmente? Falou-se e repudiou-se, ainda das redes sociais, como um novo desafio: Cabo Delgado também é Moçambique!, E o quê é Moçambique, senão a fonte da loucura e mais loucura? Porquê tanta xibaba para integrar alguém já integrado e imunizado?, Esse é sem duvidas um país de loucos, e como loucos faltam-nos as camisas de força para fabricar máscaras, é lá vem o friozinho de junho para incubar a nossa agonia. Ó junho da nossa insistência. Quem dará hoje o último tiro para fechar o ciclo começado em Chai?

Historicamente fizeram-se avisar a todos da audácia maconde, E então?, já não se fazem macondes como antes? Eis que o mapiko se ergueu onde surgiu, não bastou o primeiro tiro, precisamos de tiroteio completo, camarada, esses miúdos que mal sabem comunicar-se em português, afinal sabem oficialmente disparar, é preciso pará-los! Precisamos de novas zonas libertadas das mãos desses jovens desempregados. Mas, será que precisávamos de mercenarismo?, que atestado de incompetência está a passar-se as forças de segurança? parece-me que é o mesmo atestado, carimbado e autenticado, passado à nossa justiça a quando da extradição do Chang-suga, ninguém o queria aqui pelas razões óbvias, ou da nossa educação exibida na “têvêemi”.

Quem chupa o mel dessas ferroadas todas?, uma vez que andam em quarentena às voltas as abelhas. Moçambique quem ti viu que te esqueça jamais, agora nada está maningue nice como era antes, quando apenas a pobreza nos apoquentava, hoje há pólvora e sangue em demasia perfumando e regando as machambas dos camponeses sem norte.

Era bom que todos fossemos deputados, mudos e inaptos, porém, com contas chorudas e um “baifobaifo”, como dizia DHL, para nos levar a passear embriagados sem represália do Estado de emergência que se bufou do bafômetro dos bufos”. Então, o que dizer ainda sobre Cabo Delgado? Como fazer para não ter medo do medo destilado em todos cantos, dos nyongos aos tais insurgentes terroristas, passando pelo covid19, a vida não podia ser mais simples, nessa outrora pérola do índico?  Uma coisa é certa: não se pode continuar a bater palmas para a hecatombe em Palma.

 

 

 

 

 

– O confronto de normas constitucionais

A erupção do surto pandémico do covid-19 tem propiciado os Estados a criar meios e mecanismos que visem tornar hábil a tarefa de conter e prevenir a velocidade da propagação do vírus, por forma a frear a produção dos efeitos por si causados, factualidade que arrastou, irresistivelmente, grande parte dos Estados afectados pela pandemia a decretar, nos respectivos ordenamentos jurídicos, o Estado de Emergência.

Em conformidade com o que já vínhamos referido nas publicações transactas, o decretamento do Estado de Emergência – uma prerrogativa constitucional atribuída ao Presidente da República (PR) – caracteriza-se por limitar direitos, liberdade e garantias individuais, também eles expressamente plasmados na Constituição da República (CRM).

Se é verdade que a salvaguarda do direito à protecção de dados pessoais goza de garantia constitucional, também é verdade que é a própria CRM que fixa os parâmetros dentro do qual o titular do direito à protecção de dados pessoais pode ver restringido a amplitude do exercício dos seus direitos, em decorrência do decretamento do Estado de Emergência.

Com efeito, a alínea e) do 2 do artigo 3 do Decreto n.º 12/2020, que regulamenta a Declaração do Estado de Emergência constante do Decreto-Presidencial n.º 11/2020, prevê, como uma das medidas restritivas no âmbito da declaração do Estado de Emergência exigência do conhecimento em tempo real de pessoas através do recurso a geolocalização.

No essencial, a geolocalização traduz-se num mecanismo de detecção de doentes de covid-19 ou controlar o cumprimento das regras de quarentena obrigatória, através do recurso a meios tecnológicos/informáticos ou equipamentos electrónicos ou aplicativos digitais, em suma, com recurso as Tecnologias de Informação e Comunicação, de entre os quais se destacam o mecanismo de rastreio por “GPS” (que pode ser efectuado através de um telemóvel/smartphone), pulseiras electrónicas. Daqui, no que releva para o presente artigo opinativo, emergem duas situações que inquietam os titulares dos direitos a protecção de dados: (i) a questão relativa à inexistência do seu consentimento para a rastreamento a que é sujeito e posterior uso desses dados pela autoridade pública e (ii) as consequências resultantes da divulgação desses dados, os quais, dependendo do manuseamento no respectivo processamento e da susceptibilidade de serem conhecíveis pelos demais – pois podem ser executados através de Apps disponíveis em telemóveis (smartphones), que são descarregadas no Google Play e na App Store – implicam prejuízos na esfera dos visados, que colidem com o direito ao esquecimento, ou seja, o direito conferido ao titular de não permitir que um facto, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe transtornos morais, de tal forma que já não lhe seja possível eliminar os efeitos (muitas vezes desonrosos) desse facto intimamente vinculado aos seus direitos à reserva da sua intimidade privada. O direito ao esquecimento é, assim, um corolário da defesa da privacidade individual, consistindo na faculdade que uma pessoa possui de eliminar certos efeitos desonrosos ou que belisquem a sua imagem, sucedidos no passado e que se podem consubstanciar em transtornos que persigam, eternamente, a sua imagem, bom nome perante a comunidade em que está inserido, pois, se repete, dependendo dos meios tecnológicos a serem usados na geolocalização, há sempre o perigo de, a partir de um mero smartphone, serem acessíveis por qualquer pessoa (sem o consentimento do visado).

O que se disse acima – restrições aos direitos de privacidade em benefício de razões de interesse público – faz emergir incontornavelmente uma contraposição entre princípios constitucionais: contraposição entre o interesse público e a segurança jurídica dos direitos de privacidade. A relação entre estes dois princípios, sobretudo num cenário de Estado de Emergência, é, de forma quase unânime, caracterizada como uma antinomia: serão duas premissas inconciliáveis, excluindo uma a validade da outra. Se o legislador preferir o interesse público prejudica a privacidade e se, pelo contrário, valorizar esta desvaloriza aquela

O quadro ganha contornos mais complexos quando se vislumbra a robustez dos direitos de protecção de dados pessoais, visto que eles estão inseridos no Capítulo da CRM reservado à disciplina dos “direitos, liberdades e garantias individuais”. O facto de serem constitucionalmente consagrados, confere a estes direitos uma particular força e dignidade, à mercê dos respectivos titulares, no âmbito da ordem interna, advindo, dessa natureza, que a restrição desses direitos deva obedecer a requisitos “apertados”, sendo que tais requisitos devem provir do próprio texto constitucional que lhes outorga uma particular supremacia dentro da ordem interna.

Do cotejo entre o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 71 da CRM, resulta claro e translúcido o reconhecimento constitucional ao direito de consentimento que é facultado ao titular de dados, no sentido de, em regra, os seus dados poderem ser usados por terceiros mediante a sua autorização expressa: «é proibida a utilização de meios informáticos para registo e tratamento de dados individualmente identificáveis relativos às convicções políticas, filosóficas ou ideológicas, à fé religiosa, à filiação partidária ou sindical e à vida privada» (n.º 1 do artigo 71 da CRM); «não é permitido o acesso a arquivos, ficheiros e registos informáticos ou de banco de dados para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, nem a transferência de dados pessoais de um para o outro ficheiro informático pertencente a distintos serviços ou instituições, salvo nos casos estabelecidos na lei ou por decisão judicial» (n.º 3 do artigo 71 da CRM).

Paralelemente, da correcta interpretação ao estatuído no cânone constitucional ínsito no n.º 4 do retro mencionado artigo, extrai-se, entre outros, o “direito ao esquecimento” de que goza o titular de dados pessoais, no sentido de poder exigir de terceiros que estejam na posse dos seus dados a sua eliminação, ao estabelecer que «todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respectiva rectificação». Esta rectificação tanto pode dizer respeito a uma mera correcção, modificação, alteração, como também pode exprimir-se na sua eliminação.

O direito ao consentimento e o direito ao esquecimento traduzem-se, assim, nuns dos mais salientes corolários do direito [geral] à protecção de dados pessoais, incumbindo-se à Lei o ónus de criar os mecanismos legais idóneos com vista a salvaguarda desses direitos.

Entretanto, questiona-se: tratar-se-ão de direitos absolutos e irrestringíveis (sobretudo num panorâmico de Estado de Emergência ocasionado por uma calamidade pública, como a é o covid-19)?

A resposta deverá ser negativa.

Desde logo, apesar de n.º 1 do artigo 56 da CRM – que fixa os princípios gerais dos direitos, liberdades e garantias” – propugnar que «os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado (…)» contém uma importante ressalva, na sua parte final, que assevera que «(…) devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis». Mais concludente do que esta acepção, é a previsão normativa-constitucional enxertada no respectivo n.º 2 que dilucida que «o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição».

Ora, partindo do elemento teleológico que origina a letra do n.º 2 do artigo 56 da CRM e plenamente cônscios de que as medidas restritivas (e temporárias) do Estado de Emergência, destinam-se a evitar a produção de consequências nefastas que perigam, essencialmente, dois bens constitucionalmente salvaguardados – direito à saúde (artigo 89 CRM) e direito à vida (artigo 40 CRM) – cuja inquestionável magnitude e indiscutível importância vital os coloca num plano superior comparativamente àquele [plano] que visa salvaguardar direitos inerentes à privacidade e reserva da vida privada (onde se insere a protecção de dados pessoais), torna-se lógico que este último grupo de direitos deverá ceder perante aquele primeiro, se o exercício de ambos entrarem em confronto numa amplitude em que a simultaneidade entre ambos se torne incombinável.

No mesmo diapasão, se conciliarmos o que se disse acima com as disposições conjugadas entre o n.º 3 do artigo 56 CRM que assevera que «a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição» e o n.º 1 do artigo 72 CRM que salienta que «as liberdades e garantias individuais só podem ser suspensas ou limitadas temporariamente em virtude de declaração (…) do estado de emergência nos termos estabelecidos na Constituição», e, ainda, no que concerne à possibilidade de limitação de direitos que este último artigo expressamente permite, afastadas, por exclusão de partes, os direitos inatingíveis delineados no artigo 294 CRM (limites impostos à declaração do Estado de Emergência, dos quais não constam os relativos a protecção de dados pessoais/privacidade, mas, em sentido inverso, consta o relativo a protecção à vida), fica patente que, se o sucesso do combate à calamidade pública do covid-19 (uma questão de saúde pública, nos termos do artigo 89 CRM), depender do cerceamento dos direitos de privacidade, então não haverá alternativas, senão limitá-los na medida e na proporcionalidade (artigo 291 da CRM) necessária a garantir a materialização do mencionado sucesso.

No mais, a lei ordinária exprimida pela ratificação, pelo Estado moçambicano, da Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Protecção de Dados Pessoais (CUACPDP), através da Resolução n.º 5/2019, já prevê restrições às regras de processamento de dados pessoais de forma coadunável com o estipulado na Declaração do Estado de Emergência, concretamente, estando-se em face de uma situação de surto epidémico da magnitude funesta do COVID-19.

O princípio do consentimento pode ser revogado quando o processamento de dados for necessário para a execução de uma missão de interesse público no exercício de autoridade pública conferida ao controlador de dados (…) e ainda para a salvaguarda dos interesses vitais ou direitos fundamentais do portador de dados (…) – alíneas b) e d), respectivamente, do artigo 13 da CUACPDP e, no que tange ao processamento de dados sensíveis relativos ao estado de saúde do portador de dados quando o processamento de dados for necessário para proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de uma outra pessoa, se o sujeito titular dos dados estiver física ou juridicamente incapacitado para dar o seu consentimento – al. c) do n.º 2 do artigo 14 da CUACPDP.

Em suma, o consentimento do titular dos dados pessoais (e sua legitimidade) é afastado quando confluem as seguintes razões: (i) cumprimento de obrigação legal; (ii) protecção de interesses vitais; (iv) execução de missão de interesse público ou exercício de autoridade pública; (v) prossecução de interesses legítimos, desde que não devam prevalecer os interesses ou direitos, liberdades ou garantias do titular, significando que a geolocalização pode ser legitimamente manuseada para as finalidades atrás referidas, em virtude de estar em causa a necessidade de defesa de interesses e direitos manifestamente superiores ao direito à privacidade individual(izada).

 

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

Síndrome do pequeno poder. Riu-se antes de continuar. Falar à Freud não iria adiantar. Quem o compreenderia? Era preciso uma linguagem mais ligeira como a nossa música. A marrabenta ou o Pandza? Abanou-lhe, repentinamente a dúvida. Então para evitar equívocos suspirou um: senta baixo, que te explico. Ando impressionado com a quantidade de ditadores que se forma lá terra. Afinal produzir é isso? Multiplicar autoridades autoritárias? Decidiu ir directo ao assunto. Quantas angústias cabem no choro de uma mãe?

O choro daquela mulher na televisão… um filho morto à pancadas por aqueles que deviam o proteger. Ainda por cima pediram refresco para libertar o moribundo. A autopsia do autoritarismo não podia ser tão alucinadora. Um homem morre massacrado, torturado, triturado pela polícia… E o crime?… tentou denunciar a barbárie. A lei do silenciamento. Que fazer?

Não permitir que as lágrimas daquela mulher sequem antes que se faça justiça. Um irmão morreu nas mãos dos carrascos. Vai lá Alboury reclamar o cadáver do nosso irmão. O choro da velha não deixará ninguém dormir. Alboury, Alboury… Faltam Alboury’s lá na terra, uma mão corajosa que se erga contra a injustiça, cada dia mais trivial, cada dia mais convertida em normalidade. Alboury, Alboury, alguém que desconfie e questione as regras. Alboury…

A mulher chora em pleno telejornal, o juiz muda de canal, o procurador finge que não vê, e amanhã a vida segue o seu percurso… mais uma morte ficou por reclamar.

A sombra noturna da buganvília deve ter devorado o nosso Alboury. Ficamos órfão de vez. Lamenta-se a resignação embrulhada em véus de capulana. O luto pede chá às toneladas e muwuguelo de carapau. O fardo das despesas multiplica a dor. Assim família não guenta, desaba ainda mais na pobreza. Mataram o meu filho. A mulher continua inconsolável. Clama por um Alboury, mas a sombra noturna da buganvília, a sombra noturna da buganvília… Alboury, Alboury, alguém que desconfie e questione as regras. Alboury…

O canhão da repreensão estacionou na avenida. Quem se atrever vai comer chumbo até dizer chega. proclama a sombra noturna da buganvília. Ninguém mais pergunta por Alboury, o clamor silenciado pelo medo das represálias. Mas a mulher não se cala. O seu choro mais perturbador que a azáfama do dumbanegue, clama por Alboury… alguém que reclame o cadáver do seu filho. Alguém que responda ao seu grito. A mulher vai chorar a noite toda, todas as noites, Munhava não vai dormir… a mulher clama por alguém que vá lá e diga:
– Chamo-me Alboury, senhor. Vim buscar o corpo do meu irmão.

Lisboa, 24 de Abril de 2020

 

O menino André tem sede. Sede de voltar à escola. Sede de aprender. Sede de ouvir a incisiva voz da professora Sónia. Sede de voltar a abraçar a longa caminhada em busca da luz que iluminará o seu poço de sonhos. 

Passou dias e noites empoleirado numa árvore na infinita espera pelo tempo. Passou fome. Passou frio. Esperou que o vento ciclónico abrandasse. Esperou que as nuvens parassem de gotejar. Esperou que a água assassina voltasse ao seu leito e que devolvesse a luz e alegria à aldeia. Esperou pela glória de voltar à sala de aulas, para enfrentar o olhar, sempre inquisitivo, da professora Sónia. Quer alimentar a sua sede de aprender.

O menino André foi arrancado do cimo de uma árvore como se de fruta se tratasse. Foi escoado numa barcaça de borracha pilotada por um homem branco com vestes militares e que falava uma língua estranha. Tudo muito rápido. Ao ritmo do piscar de um olho. Seus pais ficaram para trás. Seus amigos ficaram para trás. Sua aldeia ficou para trás. Sua escola ficou para trás. A sede de voltar a beber da aritmética cravada nas feições da professora Sónia é que não ficou. Continuou presa aos seus anseios.

O menino André foi parar a um enorme aldeamento. Cheio de gente de todas as idades. As tendas brancas diferentes das palhotas da sua aldeia. A quantidade de pessoas por cada tenda muito maior que na palhota que partilhava com os pais e irmãos. O espaço para brincar diminuto em relação às planícies sem fim da sua aldeia. Os panelões de cozinha muito diferentes da minúscula panela de barro usada pela mãe. A bicha e os horários das refeições muito diferentes da rotina deixada na aldeia. O que sempre foi igual é a sede. A sede de voltar a ser o primeiro aluno da turma a responder acertadamente, e de braço bem levantado, às sempre difíceis perguntas da professora Sónia.

Semanas depois, o rio da aldeia voltou ao leito. O menino não regressou na barcaça. Tal como o camião em que viajou, a mente de André voltou cheia. Cheia de esperança. Cheia de vontade de respirar o amor dos pais, abraçar a aldeia e tactear o ar da sua escola.

Por cada solavanco, o camião esculpiu um traço de alegria na face do menino André. Uma voz do amanhã afagou a sua alma e inculcou na sua minúscula cabeça a crença de que o nevoeiro iria se dissipar do horizonte e que a sua escola seria de novo o sol da sua vida.  

Na aldeia, o menino André reencontrou os pais e os irmãos. Estavam perdidos algures, num outro aldeamento de tendas brancas. Hoje, os sorrisos habitam os corações de todos. Os abraços e choros exaltam a força divina que, contra a estúpida vontade do ciclone, conseguiu reunir a família.

Para celebrar, não se mata galinha porque a água levou todas, mas dança-se e canta-se. As vozes de alegria pairam pelos ares da aldeia. Nesta e naquela casa festeja-se a reunificação das famílias. Em algumas a esperança reside nos camiões que ainda estão por chegar.

O menino André quer reunificar-se não só com os seus de sangue, mas também com a escola e com a professora Sónia. Pela manhã prepara-se. Não tem uniforme, porque a água levou. Não tem cadernos, porque o vento ciclónico rasgou. Mas tem a vontade de ir à escola. Quer abraçar o seu sonho. A sua sede. Quer abrir os caminhos do amanhã.

É o único aluno que se faz presente numa escola totalmente fustigada pela tempestade. Os tectos evaporaram-se todos. A maioria das paredes desabou. A água voltou ao rio, mas deixou, a espaços, pequenas poças que pontificam aqui e acolá, sendo o seu epicentro precisamente no que sobra da sala de aulas do menino André. 

As carteiras já não existem, mas o corpo do menino é atravessado por uma corrente de emoção quando ele descobre que o quadro preto resistiu e continua intacto. Sorri. Puxa por um pedaço de bloco queimado que se estilhaçou na queda de uma parede e senta-se. Para não molhar os pés, empoleira-os num outro pequeno bloco e espera.

O menino André fecha os olhos e mentalmente ensaia as justificações a dar à professora Sónia: pelos vários dias de ausência das aulas; por não ter livro; por não ter caderno; e por apenas trazer um pedaço de lápis de carvão e uma amarrotada folha de papel nas mãos. Repete várias vezes, até se convencer de ter achado o antídoto certo para que a professora Sónia não se zangue.

Agora aguarda pelo reencontro com o sonho. Espera pela chegada de mais colegas. Pelo toque do sino. Pela chegada da professora. Quer satisfazer a sua sede! O que ele não sabe é que a professora Sónia jamais chegará. O ciclone transformou-a num anjo. 

 

Um homem sem dinheiro é pior que o camaleão:

para ele todas as pessoas ficam da mesma cor.

Agostinho J. Caramelo

 

Um dos belíssimos contos de Clemente Bata é, seguramente, “O embrulho”, o quarto do livro Outras coisas (2016), publicado pela editora Kapulana do Brasil. Naquela história, o escritor reúne vários elementos que, em sincronia, fazem da sua escrita algo cinematográfico e comovente.

“O embrulho” é narrado pela protagonista da história. Ao enunciar o discurso, Marieta leva-nos a percorrer dois universos assimétricos – o da abundância e o da miséria –, nos quais se destacam peripécias derivadas da estratificação social. Na narrativa, a empregada doméstica, confrontada com a miséria que abala a família, tem de escolher entre deixar as três filhas a sucumbir à fome, depois de nada comerem no dia anterior, e roubar alguns produtos da casa dos patrões para alimentar as meninas e o marido alcoólatra. Nesse debate, vence a segunda situação. Estando sozinha na cozinha da patroa, Marieta coloca num embrulho de jornal duas postas de peixe carapau, três batatas e uma cebola. Mas as coisas não correm conforme o plano e a personagem acaba tendo um dia emocionalmente mais desgastante do que a fome, pois os produtos roubados, inexplicavelmente, desaparecem do seu controlo.

A história que até ali poderia ser mais uma com ricos e pobres apresenta-se como um exercício sobre o arrependimento causado por uma opção errada, ainda que com propósito nobre. Assim, no conto, Marieta é um ponto de conflito no qual se buscam respostas para dois momentos difíceis, a misturarem o delito e a razão. Há em “O embrulho” uma construção variável do comportamento humano perante à crise.

Em termos temáticos, o conto de Clemente Bata estabelece uma certa ligação com “O linchamento dos dólares”, o primeiro do livro A mulher sobressalente (2018), de Dany Wambire, também publicado no Brasil, pela editora Malê. Se no primeiro caso há uma mãe zelosa, que coloca o bem-estar das filhas acima de tudo, no segundo há um pai que no infortúnio do filho encontra um feliz acaso para sair da miséria. Esse é Valdemar. Ao perder o filho Samissone, vítima de uma explosão na empresa Camarão da Munhava, o protagonista de “O linchamento dos dólares” regozija-se ao saber que receberia uma indemnização de 2 000 dólares: “o enlutado ficou emudecido, entulhado de alegria. Não a manifestou, contrariando o hábito. Pensou que não era bom que os pobres, correligionários seus, soubessem que iam perder um membro” (p. 13).

Diante da miséria, Valdemar sacrifica até a memória que guarda do filho, pois, para ele, o dinheiro compensa tudo. Decididamente, para o protagonista de Dany Wambire nada é tão apreciável quanto os dólares. Enquanto em “O embrulho” a realização de Marieta está associada à satisfação das três filhas, em “O linchamento dos dólares” a riqueza ou a ilusão a isso relacionada é o grande propósito de vida. Por isso, quando numa certa noite Valdemar é roubado o dinheiro, a socialização e a liberdade tornam-se palavras esvaziadas de sentido.

Em “O linchamento dos dólares” está um protagonista ávido de dinheiro, sinédoque de um materialismo grave, eventualmente à medida do mundo actual. Há ali uma descrição cruel à importância dada às coisas em detrimento da fraternidade. Logo, claro está, a crise de Valdemar não é apenas financeira, é sobretudo de valores morais e éticos. Na miséria, Valdemar coloca os seus interesses em primeiro lugar. E aqui está a grande diferença com Marieta, personagem que em “O embrulho” despe-se dos seus predicados para tentar saciar a fome das pessoas que ama.

Nesta época em que se está a agravar a diferença entre ricos e pobres, os contos de Clemente Bata e Dany Wambire são dois grandes alertas para quem quer pensar o presente e futuro não muito distante da sociedade moçambicana. Através de Marieta e Valdemar é fácil compreender o que aí vem se mais famílias ficarem sem alimentos. Na dor gerada pela fome, certos pais, certamente, roubarão e matarão pelos filhos e outros venderão a alma dos que geraram para resolver uma ambição diminuta. Esta é uma leitura válida dos textos escritos há alguns anos, entretanto bem à imagem do actual contexto nacional e africano.

Nos contos “O embrulho” e “O linchamento dos dólares”, resumindo, a privação é um factor que transforma e destrói a integridade do Homem, deixando-o apenas do tamanho das suas aflições. À semelhança de Marieta e Valdemar, muitas vezes, as pessoas são consequências do meio circundante. Logo, se atmosfera está contaminar-se de pó, como ter cidadãos limpos?

 

Escrevo este diário a partir do centro de confinamento para controle de coronavírus na cidade de Santiago do Chile, onde me encontro confinado desde o dia 9 de abril. A sentença foi de 14 dias de escuridão, sem a luz do dia e sob uma forte vigilância das autoridades locais. Por pouco, caia em depressão, mas a música salvou-me.

Dia 1

“Uma saída difícil do Brasil que me levou ao confinamento”

A minha história começa na cidade de São Paulo, onde estava a realizar um intercâmbio internacional de estudos ambientais, que infelizmente foi cancelado. Foram 5 dias de ida ao aeroporto sem poder viajar, na maioria dos dias pelo cancelamento do voo, informação que apenas tinha acesso no local. Entre vários motivos, deveria regressar ao Chile por se tratar do meu país de residência e por ainda ter obrigações acadêmicas naquele país. 

No dia 9 de abril, finalmente consegui viajar e para o meu espanto se tratava de um “voo humanitário” de regresso dos nacionais e residentes no Chile. Éramos em média 20 passageiros, e mais tarde fiquei sabendo que alguns tinham testado positivo para Covid-19. Chegado ao aeroporto, fui surpreendido com a informação sobre o confinamento, que deveria permanecer num “hotel” (pago pelo governo) durante 14 dias. Segundo explicaram, o facto de ter passado por um país de risco tornava-me, automaticamente, um caso suspeito. Pelo que, deveria ser confinado num estabelecimento monitorado. A minha temperatura inicial foi de 36.7 (normal) mas mesmo assim, o cumprimento do protocolo era indispensável.

Fiquei assustado, não sabia em que condições passaria os meus próximos 14 dias, mas a ideia do hotel acalmava-me, pois, imaginava um local a (mil) maravilhas – pensamento desmentido pela realidade. 

Cheguei ao local, eram 22h, o carro deixou-me na porta do hotel. Já estavam à minha espera e conduziram-me ao quarto. O quarto era pintado de branco e tinha janelas com cortinas presas (que não me davam acesso ao exterior). Sobre o hotel, não sei nada de concreto, não conheço a cor, o tipo de infraestrutura e nada, apenas sei que nas manhãs sentia um cheiro de comprimidos – algo que me fazia levantar várias questões.

Dia 2:

“Chorei, quando recebi a minha primeira refeição”

Eram 7h45, quando bateram à porta (sinal de aviso da hora de refeição), abri-a e vi uma bandeja, com pedacinho de pão e água quente. Entendi, já que se trava de pequeno-almoço, mas a história piorou na hora do almoço: quando eram 12h, o sinal da porta voltou a despertar-me. Fui a porta e estava lá a minha bandeja, com um prato esquisito. Não consigo descreve-lo com exatidão, apenas sei que era um prato composto por uma pequena porção de feijão, muita verdura e água. A imagem não era agradável, o meu corpo não resistiu e as lágrimas foram inevitáveis. Naquele momento, entendi que estava numa prisão (desmoronando-se a imagem do hotel).

Dia 3:

“As notícias de Moçambique, deixavam-me mais triste”

Acompanhava diariamente as notícias de Moçambique, casos aumentando a cada dia e mais relaxamento das medidas. Fiquei confuso, não entendia como numa altura que o país registava maiores números, se relaxa medidas de grande importância como a lotação nos transportes públicos. Não entendia como alguns doentes de coronavírus continuavam em cuidado domiciliário. Ficava mais confuso quando recebia depoimentos de pessoas em quarentena obrigatória dizendo que nunca foram ligados pelas autoridades de saúde. Perguntava-me, como isso é possível? Eu, mesmo sem apresentar sintomas fui submetido ao confinamento e recebo ligações periódicas para o controlo do meu estado de saúde. 

 

 Dia 4:

“O cheiro de comprimidos que não me deixava em paz”

O cheiro de comprimidos piorava a cada dia, não o suportava e decidi abrir a minha porta para avaliar a sua origem “a história da curiosidade que matou o gato”. Em menos de 1 minuto se aproximou um funcionário e disse “volta ao quarto, abra esta porta apenas quando for para levantar a comida”. Humildemente retornei ao quarto e a sensação de estar preso piorava. A partir deste dia, aprendi a conviver com a minha curiosidade, com a minha dor e angústia. Foi nesta mistura de sentimentos que fiz amizade com uma nova companhia “a música” e ela apresentou-me novos “amigos”, levou-me à “novas paixões” e inseriu-me num “ mundo novo”.   

Dia 5:

"A história de Cobaia e o medo por ser negro"

Por pouco, caia em depressão, mas a música salvou-me”

(Próximo capítulo)

* No próximo capítulo, vou partilhar o repertório que me fez companhia durante o confinamento e o papel que cada música desempenhou na referida transformação (na amizade, no amor, e na forma de ver o mundo).

 

FRANTZ OMAR FANON (1925 – 1961) foi um filósofo, ensaísta e psiquiatra. Este intelectual marxista, nascido na ilha da Martinica, no Caribe francês, descendente de escravos africanos, foi um dos influentes pensadores do século XX, principalmente no que se refere à temática da descolonização africana. Frantz viveu e trabalhou na Argélia onde depois se envolveu na luta pela independência daquele país.

Frantz Fanon é  autor de vários ensaios entre os quais o badalado livro “Os Condenados da Terra”, 1961, que o li pela primeira vez em 1990, edição brasileira (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968) que me chegara pela mão do poeta Rui Nogar (1935 – 1993). Nos seus estudos sobre a descolonização, mormente os desta obra escrita com base na experiência argelina, e não só, Fanon analisa as consequências da colonização do ponto de vista psicológico tanto para o colonizador quanto para o colonizado, e o processo de descolonização africana, duma forma geral, considerando seus aspectos filosóficos, sociológicos e até psiquiátricos.

O livro leva um prefácio da autoria de Jean Paul Sartre, filósofo existencialista francês (1905 – 1980), de quem Frantz Fanon era um grande admirador. Conta-se que Fanon teve que viajar à Itália ao encontro de Sartre, a fim de o solicitar o prefácio. A admiração era tal que chegou a afirmar que era capaz de pagar vinte mil francos só para estar à conversa com Sartre durante quinze dias consecutivos.

É interessante notar que, enquanto Fanon direcciona “Os Condenados da Terra” aos colonizados em África, Sartre, por sua vez, através do prefácio, envia recados aos seus patrícios – colonizadores europeus. E é o próprio Sartre quem o confessa:

“Este livro não precisava de prefácio, tanto menos porque não se dirige a nós. Contudo, eu lhe fiz um para levar a dialéctica até ao fim. É necessário que nós, europeus, nos descolonizemos, isto é, extirpemos, por meio de uma operação sangrenta, o colono que há em cada um de nós.” (p.16)

Sartre traduz a situação colonial descrita no livro na perspectiva da desumanização do colonizado, aquele a quem lhe foi retirado tudo que o tornava um humano, com direito a seus mitos, às suas línguas, à sua cultura. Oiçamo-no-lo:

“A violência colonial não tem somente o objectivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga.” (p.9)

Frantz Fanon começa por descrever a descolonização como sendo um fenómeno que se propõe mudar a ordem do mundo: “Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si mesma senão na exacta medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.” (p.26)

De facto, são justamente os movimentos de libertação que lhe dão essa forma e esse conteúdo, rebuscados e alicerçados nas massas populares. E mais adiante Fanon diz ainda que “A descolonização é, em verdade, criação de homens novos.” E que ela “introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma linguagem, uma nova humanidade.”

O livro continua descrevendo a colonização em si, centrando-se no colonizado que acaba interiorizando aquilo que será o fundamento e a necessidade da sua sublevação, pois “descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina, não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica.” (p.34)

Mais adentro, Frantz Fanon debruça-se sobre o processo da descolonização, tanto na óptica do colonizado como na do colonizador. E prossegue atendo-se no transcurso das lutas de libertação nacionais, pontificadas pelos movimentos políticos nacionalistas, com todas as suas particularidades: “O colonizado descobre o real e transforma-o no movimento da sua praxis, no exercício da violência, em seu projecto de libertação.” (p.181)

O autor problematiza também a situação do colonizado, já na perspectiva de mentalidade, ou seja, de sequelas da noite colonial, resultantes da difícil relação colonizador – colonizado e vice-versa. Mais do que isso, é sabido que a natureza destruidora, aniquiladora, traumatizante da colonização, impôs-se de forma impiedosa  sobre os oprimidos, o que contribuiu sobremaneira para a sua própria desestruturação. É, portanto, uma análise sobre o colonizado ou, se quisermos, o ex-colonizado, e Fanon observa que:

“Diz-se então que os colonizados querem progredir com demasiada rapidez. Ora, é bom não esquecer que pouco antes atestava-se a sua lentidão, a sua indolência, o seu fatalismo. Nota-se já que a violência nos caminhos bem demarcados no momento de libertação não se extingue magicamente depois da cerimónia do hasteamento das bandeiras nacionais.” (p.58)

Muitos dos problemas dos outrora oprimidos pelo jugo colonial não terminam, de facto, com a proclamação da independência nacional. Ademais, estas massas, uma vez mais, serão chamadas a arregaçar mangas e redobrar seus esforços, desta feita, para a reconstrução da nação em todas as suas dimensões. Neste processo surgem também paradoxos estonteantes de permeio. Afinal de contas são paradoxos, quanto a mim, inerentes à própria condição humana. Nesta conformidade diz-nos Frantz:

“A mobilização das massas, quando se efectua por ocasião da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção de causa comum, de destino nacional, de história colectiva. Também a segunda fase, a da construção da nação, vê-se facilitada pela existência dessa argamassa preparada em meio ao sangue e à cólera. (…) Durante o período colonial convidava-se o povo a lutar contra a opressão. Depois da libertação nacional, é ele convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A luta, afirmam todos, continua. O povo verifica que a vida é um combate sem fim.” (73)

Fanon continua ainda analisando as sequelas deixadas pela situação colonial na mente do ex-colonizado, sequelas essas também traduzidas na forma de estratégias por este delineadas ou adoptadas no decurso do processo da sua auto-governação. E porque são estratégias muitas das vezes desestruturantes, porque vazias em si mesmas, por não contemplarem a práxis popular – aliás, resultado da incapacidade de do povo extrair a razão -, são, invariavelmente, estratégias condenadas ao fracasso. Neste contexto ele defende que:

 “A consciência nacional em vez de ser a cristalização coordenada das aspirações mais íntimas da totalidade do povo, em vez de ser o produto imediato mais palpável da mobilização popular, não será em todo o caso senão uma forma sem conteúdo, frágil, grosseira. As fendas que nela se notam explicam amplamente a facilidade com que, nos jovens países independentes, se passa da nação à etnia, do Estado à tribo. São essas gretas que justificam os recuos tão penosos e tão prejudiciais ao impulso nacional, à unidade nacional.” (p.123/124)

No capítulo sobre a cultura nacional, e também sobre os fundamentos recíprocos da cultura nacional e das lutas de libertação nacional, Frantz Fanon questiona: “Quais são as relações que existem entre a luta, o conflito – político ou armado – e a cultura? Durante o conflito há suspensão da cultura? A luta nacional é uma manifestação cultural? (…) A luta de libertação é, ou não, um fenómeno cultural?” (p.204/205)

Obviamente que em África, digo eu, as lutas de libertação nacionais foram sempre de carácter eminentemente cultural. Porque o que estava em causa, na noite colonial, era o homem na sua integridade, na sua totalidade, no seu direito de ser e estar no seu espaço. Por outro lado, sempre acreditei que toda luta alicerçada nas massas populares só pode ser intrinsecamente uma luta cultural. Mas Fanon responde de forma global atribuindo a cada geração a sua responsabilidade específica:

“Cada geração, dentro de uma relativa opacidade, tem de descobrir a sua missão, cumpri-la ou atraiçoá-la. Nos países subdesenvolvidos, as gerações anteriores resistiram ao trabalho de corrosão realizado pelo colonialismo e, ao mesmo tempo, prepararam a maturidade das lutas actuais.” (p.171)

Enfim, “Os Condenados da Terra” é um livro portentoso, envolvente, mas também frio, realista, premonitório e, por isso mesmo, abrangente. Em minha opinião, é um livro de leitura obrigatória para os africanos de hoje e de amanhã. Como africanos que somos, o livro é um tratado sobre a nossa bravura, a nossa resistência, a nossa vitória, mas igualmente sobre as nossas fraquezas, os nossos medos, os nossos traumas. Fundamentalmente, é um ensaio sobre o nosso passado, o nosso presente, o nosso futuro. E é por pensar no futuro que Fanon explica que: “A condição  humana, os projectos do homem, a colaboração entre os homens em tarefas que acrescentem a totalidade do homem, são problemas novos que exigem verdadeiros inventos.” (p.272)

Em jeito de conclusão: qualquer semelhança ou dessemelhança com a nossa realidade, é pura “coincidência”, mesmo que se trate dum mesmo processo histórico. Sendo assim, fica então esta advertência que Frantz Fanon nos doa como africanos:  

“A humanidade espera alguma coisa de nós que não seja essa imitação caricatural e em geral indecorosa.” (p.275)

E mais:

“Se queremos transformar a África numa nova Europa, a América numa nova Europa, confiemos, então, aos europeus os destinos dos nossos países. Saberão fazê-lo melhor que os mais dotados de nós.” (p.275)

“Além disso, se queremos responder à esperança dos europeus, não devemos reflectir uma imagem, mesmo ideal, da sua sociedade e do seu pensamento pelos quais sentem de quando em quando uma imensa náusea.” (p.275)

É caso para perguntar: quo vadis África?

 

 

 

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