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O crocodilo

Alvoroço. Multidão, vozaria e braços gesticulando descoordenadamente. Catanas, panelas e terrinas cortam os ares. Mas é o som picante das vozes – a primeira, segunda e a terceira voz fazem lembrar um coro bem desafinado – que atrai a atenção. Há uma rumaria. Todos os caminhos vão dar ao alvoroço.

Um réptil está no centro do furacão. Enorme. Quatro a cinco metros de cumprimento. Barriga farta, justificando um peso de não menos de trezentos quilos. Há um misto de emoções: de um lado está um monstro em cujas garras e dentes afiados vários humanos terão sucumbido; do outro, uma bocarra que se abre, a espaços, como que em busca de clemência.

O animal desistiu de tentar movimentar-se. Está entalado no lodo deixado pelas enchentes do Búzi, muito longe do leito para onde o rio se recolheu. Vozes dissonantes desencontram-se. Uns querem cataná-lo e resolver os problemas do estômago que grassam sobre a comunidade neste pós-ciclone. Outros refugiam-se na metafísica para ocultar os seus temores:

«Este não é um crocodilo qualquer!», exclamam, «é maldição!»

E o animal não é de facto qualquer. Não tem nada a ver com os outros crocodilos alguma vez vistos na aldeia. Ao invés de quatro, tem apenas duas patas. As traseiras. As patas frontais não existem. Será que é possível a um crocodilo faltar duas patas por má formação congénita? Ou as patas inexistentes escondem segredos ocultos?

«Isto é mesmo maldição!», voltam a ecoar as vozes, «que crocodilo é este que se perde da água e se encalha no matope? Estranho!»

«Vamos matá-lo!», dizem outras vozes.

«Yhuu!? É possível matar-se uma maldição? Maldição não se mata!», a tradição ensina que as maldições devem ser tratadas com sapiência. Elas são a personificação de um espírito demoníaco que, se maltratado, depois do ciclone pode até gerar secas, pragas, pestes e outros males sem fim. A única sabedoria preparada para lidar com isto é a de um curandeiro bem experimentado.  Apenas ele pode dialogar com os mortos e pedir-lhes que enxotem a maldição para bem longe da comunidade. E o mestre da comunicação com o além tem que ser trazido de uma outra aldeia bem distante. O da comunidade local foi arrastado durante as enxurradas e o seu corpo esmagado e arremessado sem regresso para a foz oceânica do Búzi.

As vozes não param o seu debate sem regra nem moderador. Mas uma coisa é consensual: enquanto o curandeiro não chegar ninguém mexe no animal.

O curandeiro vem a rufar gases de cansaço por todos os buracos, com seus olhos vermelhos completamente esbugalhados, reclamando uma altivez disfarçada por uma enorme corcunda que se eleva no topo das suas costas.

Não precisa de um grande exercício para contar uma história que toda a comunidade já conhece: a aldeia foi sempre assombrada por um enorme crocodilo de duas patas que degola pessoas e gado. Na calada da noite, o réptil abandona as águas do Búzi, mete-se pela povoação adentro e até bate a porta das palhotas das suas vítimas. Quando acoiçado, o crocodilo fica de pé, como um bípede, e foge a todo o galope de volta ao rio.

Para muitos, essa história é um mito. Porém, convencionou-se na aldeia a nunca se abrir a porta para ninguém assim que o sol se escondesse.

«Não é mentira nenhuma, é a mais pura verdade!», sentenceia o curandeiro, «o crocodilo existe e hoje está aqui. Aos olhos de todos.»

Ajoelhado a poucos metros do animal, o curandeiro mexe e remexe os seus búzios, e continua: «este crocodilo tem dono. É um feiticeiro. O mesmo em que se transforma quando ganha a forma de um homem e foge para o rio. É alguém aqui da aldeia!», os cabelos de todos ficam em pé, os olhos arregalam-se e os ares são dominados por sussurros a roçar uma histeria silenciosa.

«É um velho magrinho, com meia dúzia de fios de cabelo perdidos na sua careca e a boca quase desdentada. Sobram-lhe apenas dois dentes frontais. Os outros caíram, um a um, durante o consumo de carne humana na penumbra de várias noites de feitiçaria», palavras sábias do curandeiro.

Como que obedecendo a uma hipnotizante alavanca, as palmas das mãos dos aldeões elevam-se todas em simultâneo para a cara. Umas para tapar a boca e outras para se esbarrarem contra os olhos, o nariz e as feições. É a expressão de um espanto colectivo: a descrição do curandeiro não podia ser mais assertiva. O feiticeiro é o velho Dilone.

«Vão buscá-lo!», ordena o curandeiro.

Nova equação sem solução. O velho Dilone desapareceu sem deixar rasto na algazarra do ciclone. A sua casa foi destruída. Ninguém sabe se morreu ou se salvou-se. Até pode ser que esteja em algum centro de acomodação algures nesta Sofala.

«O melhor é matarmos esse crocodilo», voltam a dizer as vozes da multidão.

Até parece que o animal também escuta. Não se mexe. Apenas os seus minúsculos olhos rodopiam e a bocarra se abre e se fecha em expressão de desespero. Está longe de parecer a mesma boca que algum dia esmagou presas.

«Mas desde já vos alerto», volta a falar o curandeiro, «se a vossa decisão for de matar o animal, saibam que se o feiticeiro ainda estiver vivo, não interessa onde ele se encontra, morrerá assim que o crocodilo estrebuchar. Metade do seu corpo encher-se-á de escamas rugosas e transformar-se-á em partes de crocodilo. Se o feiticeiro já estiver morto, matando o animal, será a metade do seu dorso que ganhará a forma humana.»

O curandeiro olha para a cara petrificada do chefe da aldeia para quem transfere o ónus da decisão.

«Penso que o feiticeiro já morreu e é por isso que o seu crocodilo ficou maluco e veio se encalhar aqui», ecoa uma voz entre a multidão.

O curandeiro encolhe os ombros e nada diz. Continua de olhar fixo no chefe da aldeia. Este respira fundo, franze o sobrolho percebendo que chegou a hora de assumir o rumo dos acontecimentos. Olha de relance para as pessoas em seu redor, que o fitam com um esgar de ansiedade esculpido nos rostos. Dá a sua voz de comando: «vamos matar o animal.»

A vozaria reergue-se. Golpes de dezenas de catanas aterram em simultâneo sobre o dorso do réptil. Não há sequer tempo para que partes do crocodilo ganhem a forma humana. Em poucos minutos a carne do animal é recolhida em dezenas de tigelas e terrinas para o interior das palhotas em reconstrução. Nunca mais houve notícias do velho Dilone.

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