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Uma Carta ao Armando Artur d`A Reinvenção do Ser[1]

(Em Resposta às dúvidas de um poeta)
 
É você que vai apresentar o livro do poeta Armando Artur? (sublinhe-se “do poeta”). Perguntou-me de repente um poeta da praça. Na verdade ele interrogava o facto de eu não ser um poeta. Donde teria eu retirado as energias para a ousadia de apresentar o livro numa área que não conheço?
 
Isto está ligado ao facto de muita gente associar os filósofos às pessoas frugais e em geral incapazes para desfrutar dos prazeres da vida, entre os quais da literatura. A propósito disso conta-se que, um dia, o Conde de Lambron deparou-se com Descartes, o mais famoso dos filósofos do século XVII, com gestos de satisfação a dar conta de uma requintada refeição[2]. Ao vê-lo, o Conde dirigiu-se a Descartes com as seguintes palavras: – Não sabia que os filósofos desfrutam de coisas tão materiais como esta! Contrariado com a impertinência e a intromissão deste Conde, Descartes respondeu-lhe de seguinte modo: – Pensáveis então que Deus fez estas delícias só para serem comidas pelos idiotas? Pois caros poetas presentes, os filósofos se deliciam muito, até mesmo nutrem uma grande admiração, por esta musa – a literatura moçambicana.
 
Armando Artur, com este livro, faz dois exercícios simultâneos: o primeiro, ele quer reinventar o Ser por via da linguagem; o segundo, ele quer propor uma forma e arte, talvez nova, de escrever à qual me atrevo a chamar por proesia, ou seja, uma junção da prosa com a poesia. Já deparei-me com alguns que a chamam por prosa poética.
 
No exercício de reinventar o ser neste livro, Armando Artur fá-lo a partir de três dimensões: o Ser enquanto o Mundo, o Ser enquanto Moçambique e moçambicanos e o Ser enquanto Homem ou Eu. E, neste exercício, ele aproxima-se ao Heidegger da Carta sobre o “Humanismo”, a partir do qual oriento este diálogo sobre as semelhanças e paralelos com a obra A Reinvenção do Ser e a Dor da Pedra de Armando Artur.
 
Vou iniciar com a última dimensão, isto é, a do Ser enquanto Homem, este Eu chamado Artur. A dado passo, lemos um Artur que escreve: Reinvento-me aqui neste papel branco, que pode ser o contrapeso da gravitação universal em mim singularizado (…). Quando, em preparação para a apresentação deste livro, perguntei-lhe como pensava reinventar-se, ele riu-se primeiro, para responder que seria através da linguagem, ou seja, da escrita. A linguagem, para o Armando Artur, é um meio de se reinventar a si mesmo como um ser humano. Quase que dizendo, cada vez que estivermos perante uma folha em branco, a escrita deve conduzir-nos para uma humanidade maior. Uma escrita é uma carta interminável à humanidade do Homem.
 
Na sua Carta sobre o “Humanismo”, Heidegger sustenta que a linguagem é a “casa do Ser” e o homem, que habita nesta casa, é o seu guardião, em particular aqueles que são pensadores e poetas. Portanto, segundo Heidegger, a linguagem é qualquer coisa como “advento” enviado para o (e na posse do) Homem a fim de, simultaneamente, iluminar e velar a totalidade e a singularidade do Ser. A linguagem é este meio revelador do Ser enquanto Ser. Podemos dizer, com Armando Artur, que é por via da linguagem que o homem genérico, incluindo o próprio Eu, se reinventa e vai-se revelando consoante as circunstâncias.
 
À medida que se penetra na leitura deste livro adentro, nota-se que o mês de Novembro foi dramático e, ao mesmo tempo, “do beijo inicial”. É o mês, portanto, da reinvenção do autor. Ele trabalha o momento trágico (morte da sua filha de cinco anos no hospital por malária) e celebra-o como o mês do amor com muita doçura o beijo inicial; tudo isto por via da linguagem. O autor sabe que, enquanto puder encontrar-se defronte de um papel em branco, está também perante a possibilidade de voltar a autodefinir-se e autocompreender-se, enquanto Eu e sobretudo enquanto ser humano.
 
Passemos para a segunda dimensão, a do Ser enquanto Moçambique e moçambicano: Armando Artur nasceu na Zambézia em 1962, num tempo em que a longa marcha armada pela libertação de Moçambique iniciou. Por isso, ele pertence a uma geração que viveu em guerras e conflitos armados, gozando apenas algumas “tréguas”. E esta Província foi particularmente o palco crucial das guerras. Esta condição faz do nosso poeta um sofredor por carregar consigo demasiadas angústias.
 
Sobre este assunto ele escreve: Foi quando surgiram as grandes e pequenas guerras. (…) E as aldeias inteiras ficaram inundadas de suor e lágrimas dos espíritos ancestrais da pátria magoada. Apesar disso, Armando Artur escreve, mais adiante que Estou grato por pertencer a esta pátria de homens e mulheres que renascem das suas próprias cinzas….
 
Aqui vemos o nosso proesista a não desperdiçar a linguagem com mentiras sobre o Ser Moçambique e moçambicano. Mais do que outro Ser qualquer, Moçambique e o moçambicano precisam de usar a linguagem para dizer e cantar verdades sobre o seu ser. Pois, as narrativas sobre a nossa história, e sobre nós mesmos, estão repletas de mentiras. As piores mentiras são sobre as guerras que este país teve que viver. Só nos vamos reconciliar, enquanto Moçambique e moçambicanos, dizendo-nos, face à face, as verdades sobre as guerras e conflitos pelos quais esta geração de Armando Artur perpassou. Doutro modo, os nossos e os outros espíritos moçambicanos continuarão a perturbar qualquer marcha para o futuro.
 
A propósito da verdade, Heidegger escreve na mesma obra que venho aludindo: A linguagem é um advento disponibilizado ao homem para que este diga a verdade sobre o Ser. Ou seja, ser humano é comprometer-se em dizer a verdade e nada mais do que isso. Não é reinventando-se por mentiras. Mas a verdade corroeu-se quando começou a ser usada no espaço público para atender aos conflitos humanos, nos casos de guerra por exemplo. Aqui o homem perde a essência da linguagem (dizer a verdade sobre o Ser) e esta mesma começa a ser ameaça para a existência e essência do próprio homem.
 
Os poetas devem ser os guardiãs da verdade sobre Moçambique e ser moçambicano, como Armando Artur nos quer reinventar.
 
Como se reinventa o Mundo? Armando Artur fá-lo apelando-nos para a criação, ou seja, a invenção, de novas metáforas sobre a origem deste mesmo Mundo – o Nada. Não sei – escreve ele – o que havia antes do nada. Só sei que tudo começou quando o nada se amontoou contra o seu próprio nada. E então surgiu o Homem como uma das possibilidades universais. O Homem é só um dos entes deste universo, trata de nos recordar Armando Artur.
 
Heidegger faz questão de dizer que o Homem nasceu na clareira do Ser. Ou seja, ele não está amarrado a um mesmo lugar ou habitat deste Mundo, como os outros seres – pedras, plantas, animais – de certa forma estão. Esta fixação na “clareira” do Mundo permite ao Homem poder ser o protector e guarda deste Mundo todo, um protector deste ser-aí. O que ameaça a existência do Mundo, do ser enquanto Ser, não é assim tanto a acção do homem, mas sim o (mau) uso que o homem faz da linguagem. Os poetas devem guardar este mundo comprometendo-se com a verdade sobre o Ser enquanto ser. Estes devem proteger a existência humana, e a do Ser em geral, por via do bom uso da linguagem.
 
Em conclusão, eu penso que é isto o que Armando Artur, com este livro, pretende rechamar às nossas consciências sonâmbulas nos tempos de hoje: que o acto do uso da linguagem, e o da escrita em particular, é própria reinvenção em acto.
 
Proesia é o termo que criei (com a ajuda do próprio autor, quando lhe pedi explicações na AEMO, nas vésperas do lançamento), para anunciar e celebrar a melhor forma de classificar a proposta de método de escrita que livro faz por via da junção entre a prosa e a poesia. Pareceu-me, na altura, que este termo fosse a melhor forma de expressar esta aventura ambígua que o autor faz com a linguagem. Penso tratar-se de uma proposta literária através da qual o espírito ambíguo que se apossa dos autores quando estão na contingência de buscar equilíbrios, próprio estágio de quem está permanentemente a ter que se reinventar. Enfim, este género de escrita manifesta um espírito que se confronta com ambiguidades sobre a verdade do Ser na sua totalidade (Mundo), de um ser martirizado chamado Moçambique e do ser enquanto o próprio autor, um poeta que busca os equilíbrios de reinvenção por via da linguagem.
 
A proesia dá-se formidavelmente, que nem uma luva, com um autor angustiado por saber a verdade sobre si mesmo, por amar o seu país Moçambique e por celebrar a vida de estar no Mundo por via do amor, apesar de se encontrar num Mundo-em-guerras. Ela expressa e quer dar conta desta permanente angústia de ser humano.
 
Para terminar, eu gosto muito de um filósofo grego chamado Diógenes. Este vivia num barril e satisfazia na praça pública todas as suas necessidades. Dizia ele que um verdadeiro homem é aquele que, sendo livre e em caso de necessidade, poderia levar consigo todos os seus haveres (aliás como ele próprio o fazia com a sua “casa”, o barril). Os outros estão presos aos seus haveres, portanto, não livres. Por exemplo, em caso de termos que fugir, nenhum de nós estará em condições de levar às costas todos os seus haveres. Sendo assim, não somos todos seres livres. Esse Diógenes!
 
Pois sobre ele contam-se muitas histórias interessantes. Uma delas é esta: A alguém que se lamentava por ter perdido as tabuinhas onde tinha anotado e escritas as suas memórias, Diógenes censurou: – Se as tivesses escrito como deverias, na alma, jamais as terias perdido. E eu digo: os poetas são dos poucos, senão os únicos, que se servem da alma para expressarem verdades sobre o Ser enquanto tal. Escrevam na e com alma!
 
E, para terminar, uma segunda anedota que envolve o mesmo filósofo: Um dia, Diógenes estava a lavar, com muito cuidado, umas ervas, antes de as comer. Aristipo, cujo hábito era vaguear pela corte do Rei Dionísio para poder comer ou pedir algo, disse-lhe: Aí, Diógenes, se aprendesses a ser um pouco mais submisso, não terias de lavar ervas para comer. Ao que Diógenes replicou: – Vê as coisas assim: se tu aprendesses a lavar as ervas, não terias que servir Dionísio! Moral desta história é que, reinventar-se a si mesmo é procurar sempre em busca de novas possibilidades de Ser Livre.
 
No fundo, este livro é sobre a possibilidade de nos reinventarmo-nos como seres moçambicanos livres, que devem usar a linguagem dizendo-se verdades, escrito e manifestando a ambiguidade deste in acto (reinvenção) por via duma prosa poética (proesia).

[1] Autor: José P. Castiano. Texto pronunciado por ocasião do lançamento do livro de Armando Artur, intitulado A Reinvenção do Ser e a Dor da Pedra (Cavalo do Mar. 2018).

[2] Esta e as duas histórias no final deste texto foram retiradas do livro A Filosofia com Humor da autoria de Pedro G. Calero (Lisboa, Planeta. 2009).

 

 

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