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“Quem não possui computador e acesso à internet, não tem direito à educação”

O Presidente da República (PR), nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 3 do decreto-presidencial n.º 11/2020, que declara o Estado de Emergência, determinou a suspensão do ano lectivo de 2020 ao ordenar, de forma expressa, o seguinte: «na pendência do Estado de Emergência, e na medida do necessário para a prevenção e/ou combate à pandemia do covid-19, devem verificar-se as seguintes medidas restritivas gerais: suspensão das aulas em todas as escolas públicas e privadas, desde o ensino pré-escolar até ao ensino universitário».

O decreto-presidencial que acima se faz alusão foi ratificado pela Assembleia da República (AR) através da Lei n.º 1/2020, ao que se sucedeu a respectiva prorrogação, através do decreto-presidencial n.º 12/2020, que, por sua vez, foi também ratificado pelo mesmo órgão de soberania (AR) por intermédio da Lei n.º 4/2020, sendo que aquela norma que suspende as aulas foi literalmente transplantada para o “decreto-presidencial prorrogador”.

Entretanto, os estabelecimentos de ensino “revogaram” uma norma aprovada por um decreto-presidencial e ratificada por uma Lei, determinando, imagine-se, que o ano lectivo tem, sim, continuidade, com recurso a critérios unilateralmente fixados por esses mesmos estabelecimentos de ensino.

Além de ter ocorrido algo impensável em Direito (um estabelecimento de ensino “revogar” uma Lei), estes mesmos estabelecimentos de ensino, determinaram que as aulas, que o PR havia mandado suspender como medida restritiva geral, terão continuidade com recurso a meios virtuais/digitais, através do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

Sem perder qualquer tempo, estes estabelecimentos de ensino passaram da ideia à acção: os estudantes, através do Whatsapp ou emails ou outros mecanismos on-line, recebem matérias lectivas produzidas pelos preditos estabelecimentos que, assim, encontraram uma forma sorrateira de obrigar os estudantes a pagar por um serviço que o PR tinha mandado suspender.

Entretanto, entre os elementos das turmas, aqui e acolá, que recebem essas lições digitais, nem todos têm computadores/computadores pessoais e, de entre aqueles que têm, nem todos têm acesso ilimitado à internet.

Aliás, em Moçambique, a maioria dos estudantes com acesso pessoal a internet o fazem através dos respectivos telemóveis (que agora, por ordem dos estabelecimentos de ensino, são obrigados a lerem, num dispositivo minúsculo como o é um telemóvel, uma multiplicidade de páginas, sendo completamente despiciendo convocar argumentos para demonstrar a desumanidade destas práticas) ou nos computadores implantados nas respectivas entidades empregadoras.

Da suspensão decretada pelo PR, decorrente da necessidade de se mitigarem os efeitos funestos da pandemia do covid-19, resulta que, chegará o dia em que a mesma, será levantada pelo PR. Dito de outro modo: quando as circunstâncias que inspiraram o decretamento das medidas de restrição voltarem a normalidade, o PR levantará a suspensão que decretou.

Significa isto dizer que, nesse dia, alguns estudantes (os privilegiados possuidores de laptops e acesso a internet) estarão num nível diferente comparativamente àqueles, coitados, que cometeram o pecado de não terem nem computadores e muito menos acesso a internet para poderem estar no mesmo estágio de aprendizagem que os colegas que os possuem, significando que, na mesma turma, alguns estarão no segundo semestre e outros ainda no primeiro.

Colocadas as coisas como estão, os estabelecimentos de ensino introduziram em Moçambique um novo conceito de acesso à educação. A educação passa, ao arrepio da lei, a ser um serviço de carácter elitista, somente à mercê de quem possui computadores e acesso a internet.

Entretanto, o n.º 1 do artigo 88 da Constituição da República (CRM) estabelece que «na República de Moçambique a educação constitui direito de cada cidadão».

O n.º 2 do referido artigo vai mais longe, determinando que «o Estado promove a igualdade de acesso de todos os cidadãos ao gozo deste direito»

O que se disse acima está intimamente ligado com um princípio basilar em Direito – princípio da universalidade e igualdade – entre nós, consagrado no artigo 35 da CRM que salienta que «todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da (…) posição social (…)».

Cremos que não são necessárias virtudes de genialidade para se chegar a fácil conclusão que os estabelecimentos de ensino ao leccionarem suas aulas virtuais somente para um grupo de estudantes – os agraciados com computadores e acesso a internet –, estão, de forma acintosa, a violar o princípio constitucional da universalidade e igualdade, e ainda atropelam violentamente o direito à educação, também ele de cariz constitucional.

Além disso, verifica-se as normas constitucionais acima citadas, além de conferirem direitos aos cidadãos, também atribuem deveres ao Estado – de garantir que esses direitos [dos cidadãos] sejam respeitados.

Parafraseando as memoráveis palavras de Salvador Allende: “não basta que todos sejam iguais perante à lei; é também necessário que a lei seja igual perante a todos”. Pelo que nos é dado a reparar, não é o que se sucede em Moçambique.

Agora, em Moçambique, por determinação dos estabelecimentos de ensino, o acesso a educação é determinado pela posição social, ou seja, só goza desse direito quem tiver acesso a computadores e internet, sendo que, no último senso realizado sobre o uso de internet no país, extraiu-se que nem 10% da população moçambicana tem acesso a este meio, o que significa dizer que, a partir de agora, o direito a educação, por determinação dos estabelecimentos de ensino que se arrogam a detentores de poderes para revogar leis aprovadas pela AR, 90% da população deve ficar a espera que as circunstâncias que determinaram a suspensão, pelo PR, do ano lectivo voltem a normalidade.

Mas as atrocidades jurídicas em torno deste paradoxo não se ficam por aqui…

Ao abrigo do contrato firmado entre estudantes e estabelecimentos de ensino, as aulas (objecto do contrato) são presenciais (modo de prestação do objecto do contrato).

Entretanto, os estabelecimentos de ensino numa desenfreada atitude visando continuar a auferir os rendimentos mensais que colhiam antes do decretamento do Estado de Emergência, modificaram, unilateralmente, a forma de prestação do objecto do contrato (pois não se conformam com as consequências do Estado de Emergência). Assim,

Os estabelecimentos de ensino têm impingido aos estudantes o pagamento de valores referentes a propinas, relativos a um serviço – aulas virtuais – que não foi solicitado pelos mesmos estudantes.

A este respeito, à luz do artigo 92 da CRM, os consumidores têm direito à protecção dos seus interesses económicos e, ao abrigo do que dispõe o n.º 4 do artigo 11 da Lei de Defesa do Consumidor – princípio da protecção dos interesses económicos do consumidor refere que – «o consumidor não fica obrigado ao pagamento de serviços que não tenha previamente solicitado, ou que não constituam cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua compensação». Mais ainda,

Essa actuação dos estabelecimentos de ensino enquadra, simultaneamente, os conceitos de “prática abusiva” e “cláusula abusiva”.

A “prática abusiva” «consiste no fornecedor prevalecer-se da fraqueza e ignorância do consumidor para impor os seus serviços» (alínea d) do n.º 1 do artigo 29 da Lei de Defesa do Consumidor), e no que se refere às “cláusulas abusivas”, «são nulas e de nenhum efeito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas e abusivas que coloquem o consumidor em desvantagens exageradas ou sejam incompatíveis com a boa-fé e equidade» (alínea d) do n.º 1 do artigo 22 da Lei de Defesa do Consumidor), sendo que o conceito de “vantagem exagerada” nos é fornecido pela alínea c) do n.º 2 do referido artigo 22, que refere que presume-se exagerada a vantagem que se mostra excessivamente onerosa para o consumidor considerando a natureza e conteúdo do contrato (aqui não se pode perder de vista que estes estudantes que são obrigados a pagar por um serviço que nem solicitaram, já vêm suportando as terríveis consequências financeiras que se originaram nas suas vidas, em virtude do decretamento do Estado de Emergência, que, pela peculiaridade de algumas das restrições decretadas, retirou capacidade de ganho a generalidade das pessoas). 

A conduta observada pelos estabelecimentos de ensino viola as regras da boa-fé, previstas quer no n.º 1 do artigo 227 quer no n.º 2 do artigo 762 e constitui, ainda, “abuso de direito” ao abrigo do artigo 334, todos do Código Civil.

Sobre o abuso de direito, o citado artigo 334 do Código Civil assevera que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

Como se tudo isso não bastasse,

Esse comportamento dos estabelecimentos de ensino constitui “crime de usura”, previsto e punido nos termos do n.º 1 do artigo 305 do Código Penal, que promulga que «quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, (…) inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometer, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão e multa», chamando-se atenção que, os crimes cometidos pelas pessoas colectivas, repercutem-se também nos seus representantes (artigo 30 e 31 do Código Penal), pois é através deles que as pessoas colectivas materializam os seus actos.

E se aliarmos o crime previsto no artigo 305 do Código Penal ao disposto no artigo 6 do decreto-presidencial que prorroga o Estado de Emergência, que refere que «o desrespeito às medidas impostas pelo presente diploma legal será considerado crime de desobediência e punido com as penas correspondentes», tendo sempre em atenção que a punição da desobediência é realizada ao abrigo do artigo 412 do Código Penal, de uma sentada, temos, por parte dos [representantes dos] estabelecimentos de ensino, a perpetração de dois crimes (usura e desobediência) contra uma multiplicidade de estudantes.

No meio do contorcionismo em que os estabelecimentos de ensino mergulham, chegam ao ponto de tentar criar a ideia de que quando o PR disse que as aulas estão suspensas, o PR não quis dizer que as aulas estão suspensas, violando, conscientemente, um princípio básico – bem básico – de interpretação jurídica, estabelecido no n.º 2 do artigo 9 do Código Civil que nos ensina que «não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso». Violam aquela norma do Código Civil ao trazerem interpretações que não possuem qualquer correspondência semântico-linguística com a norma que, de forma clara, diz: «na pendência do Estado de Emergência, (…) devem verificar-se as seguintes medidas restritivas gerais: suspensão das aulas em todas as escolas públicas e privadas, desde o ensino pré-escolar até ao ensino universitário».

Voltando à génese do problema,

Um diploma legal só pode ser revogado por outro de igual posição hierárquica ou superior. Isto que se disse atrás traduz-se num princípio mestre do Direito Administrativo – “princípio do congelamento do grau hierárquico” – que estabelece que as normas de um diploma legal só podem ser alteradas, modificadas e revogadas por outro diploma de igual ou superior grau hierárquico. Ex: só uma lei pode revogar outra lei; um decreto não pode revogar uma lei. Se um decreto não pode revogar uma lei, porque esta é hierarquicamente superior àquele, imagine-se então instruções de estabelecimentos de ensino…

Mas aqui, no nosso país, aconteceu o impensável: estas instruções “revogaram” uma ordem do PR (que manda suspender o ano lectivo de 2020 em todas as escolas públicas e privadas, desde a creche até às universidades), constante do decreto-presidencial que prorroga o estado de emergência e ratificado por lei proveniente da AR, e tais instruções já estão a ser implementadas à custa da ignorância, fragilidade, desconhecimento de direitos, dependência e necessidade dos estudantes, num acto que se traduz numa espoliação criminosa dos direitos de propriedade dos estudantes, o que, para além da colecção de ilegalidades acima evidenciada, faz emergir a figura do “enriquecimento sem causa” previsto no artigo 473 do Código Civil que determina que «aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

Portanto, a lei proíbe que uma das partes “enriqueça”, “se locuplete” “ganhe vantagens financeiras” de forma ilegítima (entendido, sem causa justificativa para enriquecer, se locupletar, ganhar vantagens financeiras o ganho de vantagens financeiras sem causa idónea para o efeito).

Isto significa dizer que, à luz da Lei, estes estabelecimentos de ensino estão obrigados a restituir aos estudantes os valores ilegalmente recebidos destes (algo que só aconteceu devido à exploração da fraqueza, ignorância, fragilidade, dependência dos estudantes que pagaram por serviços não solicitados achando que são obrigados a pagar, quando, conforme vimos em algumas reproduções legais expostas acima, não são).

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com  

 

 

 

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