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A água em Selma Uamusse, Bento Baloi e João Paulo Borges Coelho

Debaixo d’água tudo era mais bonito
Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar

Debaixo d’água se formando como um feto
Sereno, confortável, amado, completo
Sem chão, sem teto, sem contacto com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
(…)

Debaixo d’água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar

 

“Debaixo d’água/ agora”

Maria Bethânia

 

Ver e ouvir Maria Bethânia é qualquer coisa que sobressalta a pele e a emoção. Há quatro anos, a cantora esteve em Maputo para um sarau de poesia com participação de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, no Centro Cultural Universitário da Universidade Eduardo Mondlane, e lá deixou os seus predicados, como se justificasse o título de Abelha Rainha da Música Popular Brasileira. Certamente, uma noite memorável.

Ponho-me a pensar em Bethânia depois de ver o espectáculo Dentro do mar tem rio, no qual, entre várias músicas, a brasileira cantou “Debaixo de água/ agora”, uma lindíssima composição de Arnaldo Antunes. A água, nessa letra de um dos integrantes dos Tribalistas, de facto, é o centro de tudo: da beleza, da vida e da contradição que nela existe.

Esse espectáculo disponível no YouTube, com hora e meia de duração, veio mesmo a calhar, pois contribuiu para que decidisse escrever este artigo sobre água, líquido imprescindível e escasso no quotidiano de milhões de moçambicanos. Em Bethânia, a água é tão comovente que, não fosse a impossibilidade de se respirar por debaixo, seria o melhor sítio para se estar: fora do perigo, sem medo, sem fome e sem pranto. Na música da cantora brasileira, a água é um lugar, ao contrário da música “Mati”, de Selma Uamuse. Nesse tema que intitula o álbum de estreia da autora moçambicana residente em Portugal, a água é alimento do corpo, do espírito e da mente; é cura, terapia e vida que merece ser conservada.

Ao cantar sobre a água, com subtileza, Selma Uamusse configura um jogo metafórico, inserindo na música uma entidade disfarçada naquele líquido. A composição é leve e cíclica. No entanto, traduz uma relação recíproca entre a voz que nos comunica, que precisa de água tanto quanto a água precisa dela para ser vital: “You are water/ Water for my mind/ Healing?water/ Water?for my soul”. Ou seja, através de um texto simples, mas não simplista, Uamusse consegue alcançar dois propósitos em simultâneo. Primeiro, num mundo demasiado esbanjador, chama à razão a urgência de se preservar o que se tem de mais relevante: a natureza e os seus encantos, sempre postos em causa a cada descoberta de combustíveis fosseis. Segundo, “Mati” (do cicopi, água), coloca-nos a viajar no poder das palavras ditas ora em cicopi, ora em inglês. Quando isso ocorre, o propósito de Selma Uamusse parece ser o de se apresentar pró-ambientalista, como quem usa a música para exercer um activismo a favor da protecção ecológica. Esta acepção ganha relevo quando, por exemplo, a música diz repetidas vezes: “saving water”. É provável que o interesse da cantora passe manifestar alguma preocupação pelo planeta. Na verdade, nem se deve negar que a música comporta tal dimensão ecológica. Entretanto, à natureza Selma Uamusse parece ir buscar uma matriz a essência do que afinal revigora uma relação humana.

Seja como for, em “Mati” a água é purificação, bênção, a dose certa de hidrogénio e oxigénio na (re)activação da força anímica. A passagem “You are mati/ (…) Mati yo bassissa/ Moya, ndlondo ni mizi” é determinante na hierarquização dos níveis em que o significado da água actua.

Ao contrário de “Mati”, de Selma Uamusse, nas histórias “Nuvem de espuma” e “Na pena de um pássaro”, de Bento Baloi, ambas publicadas na coluna Arca de não é, do jornal O País, a água é uma corrente de dor e maldição. Afinal, é por causa da água que os protagonistas das narrativas perdem os que amam e ainda tudo o que têm. No primeiro texto de Baloi, logo no princípio, o discurso do narrador introduz:

A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada. O Búzi nega em deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila (“Nuvem de espuma”).

A referência aos mochos, no excerto, revela que a água não chega como solução. Longe disso, é uma arma da morte na origem de sinais agourentos. Tal se nota quando, depois de deixar para traz a sua palhota a fim de se refugiar na copa de uma árvore, fintando assim a fúria do rio Búzi, Nyaswa, a protagonista, perde para água parte do que a mantém viva, justamente no momento em que um helicóptero chega para a salvar. O sentimento com que a personagem fica  ao ver a filha ser levada pelas águas é o mesmo que envolve o protagonista de “Na pena de um pássaro”, que, desalentado, diz:

Este céu nem parece o mesmo que deixei no dia em que, acocorado numa barcaça, parti com a minha crença no amanhã submersa em águas turvas. Águas que me roubaram sonhos. Águas que me tiraram a espinha dorsal da vida. Águas que suprimiram toda a razão do meu ser. Só Deus sabe para onde estas águas da morte terão levado a minha família: esposa e filhos (“Na pena de um pássaro”).

Nesta narrativa de Bento Baloi, igualmente inspirada na tragédia criada pelo ciclone Idai, no Centro do país, em Março do ano passado, o protagonista e a água ocupam o epicentro da história. O primeiro, como vítima de uma catástrofe: “Foi aqui que nasci, cresci e fiz a família que a água levou. Este é um reencontro comigo próprio. Um raio frio fulmina-me a alma”; e o segundo elemento como a causa da catástrofe pessoal e colectiva. Também nessa história a água (cheias) é destruição, angústia e frustração. Se quisermos, antónimo de esperança.

Em Bento Baloi, debaixo ou sobre a água, o mundo não é nada bonito. Vai carregado da crueldade da natureza, arrasando, em breves instantes, o que se levou uma vida inteira a construir. É como nos diz um sujeito poético de Nónumar, de Júlio Carrilho: “É isso a água. Uma modelação infinita da superfície. A pôr a lei no caos e o caos na lei de sermos” (p. 20).

Quem também trabalha a sua ficção, tendo água como sustentáculo é João Paulo Borges Coelho. No seu livro Água – uma novela rural, o líquido constitui a maior preocupação das personagens, numa comunidade completamente dependente do que a natureza oferece, quando pode. A água mexe com todos, muitas vezes expondo as personagens ao risco que não supõem correr. Maara, a protagonista, é exemplo disso. Sem sequer supor, conquista o coração de Waaser, que a concede a escassa água importada da cidade nus camiões-cisternas. Numa aldeia pequena, a acção do Engenheiro cria algumas animosidades, com os manipuladores Laago e Praado a descarregarem as suas desilusões na eleita de Waaser.

Ora, num primeiro momento, com a seca a ameaçar a sobrevivência das populações, Laama, uma espécie de sábio da aldeia, enxerga na escassez da chuva algo anormal, isto é, um castigo dos deuses. Já para o seu companheiro, Ryo, a falta de água é um castigo do vento. Conforme observa o narrador, os dois velhos

Estão portanto de acordo, ambos concluem que a falta de água é um castigo. E chegar ao castigo é chegar ao início da resposta, ao início do caminho que é preciso percorrer para atingir a explicação. Reconhecido o castigo, é só retroceder um pouco para chegar à culpa, culpa de algo que havemos de ter feito. Que fizemos nós? A quem desobedecemos? (Água, p. 56).

 

As duas perguntas são pertinentes para a compreensão da mensagem que João Paulo Borges Coelho, Bento Baloi e Selma Uamusse nos trazem, como veremos.

Na novela rural de Borges Coelho, a escassez da água afecta as relações do Secretário da Aldeia  com Praado, quando este a vai roubar no estaleiro do Engenheiro Waaser, e entre Maara e o namorado Ervio. O líquido funciona como uma parede invisível, fazendo com que, de um lado, se tente compreender a falta e, do outro, apenas se deseje. Ervio não tem como estar na aldeia o tempo desejado, pois, na cidade, tenciona chegar rapidamente à conclusão que o permita saber quando a chuva volta para refrescar a vida da sua gente.

Não obstante, em Borges Coelho, sem água, o sentido e a lógica da existência esmorecem simultaneamente com solidariedade comunitária. A harmonia na aldeia deixa de ser constante e passa a intermitente consoante as motivações individuais. Há assim, com efeito, um abalo do conceito comunidade, já que, diante de uma preocupação comum, a ambição de uns e outros aldeões fundamenta-se como o princípio de uma crise social. Daí surgem intrigas, ciúmes, artimanhas e descrenças.

Num segundo momento, na novela, a situação da seca muda numa velocidade asfixiante. De repente, as cheias chegam augurando a morte e a água deixa, paradoxalmente, de ser o maior desejo da aldeia. Na nova condição, todos poem-se a fugir. Sobreviver é nova preocupação. Por isso, os que podem e conseguem refugiam-se na encosta da montanha. Tudo fica para traz, quando o leito do rio, feito hidra realmente malvada, devora a estabilidade social. Aí, igualmente, a história de Borges Coelho é bem realista ao demonstrar como as populações ribeirinhas são vulneráveis à demasiada precipitação. Quando as cheias atravessam a aldeia, submergem o que encontram: o lugar e as histórias desse mesmo lugar, quase apagando, assim, o passado ancestral. A grande consequência disso, em termos narrativos, é a nova orientação da história, que se torna mais colectiva, diminuindo sobremaneira o protagonismo de Maara, enquanto centro do amor de Ervio, do que parece atracão de Waaser ou da presunção de Laago. Na narrativa, as novas pontes da esperança passam a ser os helicópteros que chegam de algum lugar desconhecido para salvar os sobreviventes. Uma descrição que se repete muitas vezes em Bento Baloi, conforme se observou em “Nuvem de espuma”.

Em geral, a água é bênção nas comunidades africanas. A sua escassez, muitas vezes, precipita interpretações da ordem os deuses ou antepassados estão aborrecidos com os humanos. Ou será a natureza enfurecida? A ser, voltam aquelas duas perguntas colocadas pelo narrador de Água: “Que fizemos nós? A quem desobedecemos?”. Ambas as perguntas podem ter a mesma resposta: maltratamos e desobedecemos a própria natureza. Parece ser esta a grande chamada de atenção das narrativas de João Paulo Borges Coelho e Bento Baloi, quando retratam a seca e/ ou as cheias que se repetem todos anos em Moçambique. A escrita dos dois autores mostram-nos um desequilíbrio natural, uma degeneração da vida forçada pela ambição humana. Pode a natureza estar enfurecida? Seja qual for a resposta, a ficção, neste contexto, é uma luz para se repensar o planeta e a protecção das populações carenciadas.

Borges Coelho e Baloi levam à escrita esses outros Moçambique, recônditos na distância do esquecimento. Nos dois casos, a água acaba sendo maldição, pois, ao invés de saciar a sede das personagens, as destrói interiormente, fisicamente e psicologamente. Em nenhuma das duas narrativas as personagens estão preparadas para enfrentar as cheias. Claro que este cenário é diferente em “Mati”, de Selma Uamusse. Nessa música, a água é valiosa em todos os aspectos e não se adivinham máculas. É essa a grande razão de a voz que nos canta sugerir a sua preservação. Satisfeita.

Embora as abordagens sejam diferentes, nos textos de Uamusse, Baloi e Borges Coelho há uma proposta de reflexão sobre a natureza enquanto parte integrante das motivações humanas. A música e as histórias trazem essa lembrança para, quiçá, o Homem perceber o seu lugar e a sua insignificância nos projectos da Terra. Há aí um sopro que espalha no ar um grito inaudito, por isso inefável. Não se descreve esse grito ecológico, apenas ouve-se. Depois, escolhe-se o que se com isso.

Por fim, “Mati”, “Nuvem de espuma”, “Na pena de um pássaro” e Água – uma novela rural são aproximações aos ensinamentos primordiais sobre cuidar, prevenir e amar a matriz tangível da nossa existência: a natureza.

 

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