O País – A verdade como notícia

Do morto que vai às compras na cantina do Gingador…

Na semana em que ocorreu o rapto do filho da Alicinha um outro fenómeno abalou todo o bairro do Chamanculo. Há quem diga que uma espécie duma maldição ali caíra, como o sopro de um vento que em breve iria dissipar-se. Todos estavam já acostumados a estes eventos cíclicos, que iam e vinham, nem que fosse para quebrar as rotinas dos residentes e colocar-lhes nas bocas novos temas para conversas.

O caso foi que um sujeito de nome Artur acabara de abrir uma agência funerária a que dera o nome inspirado de “Agência Funerária Boa-Viagem”, cuja sede instalara mesmo ao lado do snack-bar Twist. Naquela manhã, ele próprio, o senhor Artur, fora recolher o corpo de um homem na morgue do Hospital Miguem Bombarda – não aparecera ninguém ainda para a vaga de motorista do carro funerário, sabido é que ninguém está na disposição de lidar com defuntos sem prévios e competentes tratamentos. O caixão encontrava-se no interior de um veículo Peugeot 404, station, rodeado e abraçado pelos parentes mais próximos do defunto que, assim, sentiam-se mais aconchegados ao seu ente querido nesses últimos momentos de contacto. Outros parentes, vizinhos e conhecidos aguardavam pelo féretro e pelo cortejo aos portões do Cemitério de Lhanguene. Passava pouco das dez horas da manhã. O cortejo ia em marcha fúnebre, se assim se poderia dizer. O tráfego na Avenida do Trabalho entupia. Os motoristas de camiões com atrelados a abarrotar de mercadorias, machimbombos e veículos ligeiros buzinavam, atrasados nas suas actividades.

“O que se passa lá adiante?”, questionavam os motoristas que se encontravam no meio da longa fila, por  detrás do carro funerário.

“Um palerma de condutor dum kwerre conduz a uma velocidade de quem anda a pé. Esse é que é o problema”, respondeu outro que se dirigia em sentido contrário, em direcção ao Alto Maé.

Assim iam os humores naquele troço da Avenida do Trabalho.

A inexperiência do senhor Artur fizera com que escolhesse essa via, em vez de utilizar a Estrada das Estâncias para alcançar a brigada Montada e daí ir directamente ao Cemitério. Em chegando às proximidades do Hospital da Missão Suíça resolveu acelerar a velocidade do veículo. Fê-lo, mas sem prestar a devida atenção. Quis ultrapassar um machimbombo e, para sua surpresa, colocou-se frente a frente com um camião que circulava em sentido oposto a uma grande velocidade. Numa manobra de emergência para evitar o embate, guinou à esquerda, galgou o passeio e voou directamente para varanda da cantina do Gingador. Embateu em duas colunas com um estrondo que espantou os transeuntes e alarmou os pacientes do Hospital. A violência do impacto cuspiu os passageiros e o caixão para fora do veículo. Como se o incidente fosse de pouca monta, o caixão, por sua vez, executou três piruetas no ar e foi cair por cima dos vendedores que mercavam produtos sobre a varanda. O cadáver do pobre homem foi cuspido da urna e aterrou à porta de entrada da loja onde ficou estatelado de ventas para o ar. Foi um dos acidentes mais espectaculares e mais macabros jamais presenciados pelos utentes daquela via e pelos fregueses do Gingador. Este, alarmado pela comoção, interrompeu o matabicho de vinho com chouriço e saiu para testemunhar aquele que seria um dos motivos principais para encerrar as portas do estabelecimento e transferir os negócios para locais menos propensos a ter guarnições de cadáveres à porta da sua loja.

A notícia de que um morto ressuscitara na varanda da cantina do Gingador, e que lá penetrara para umas compras, correu como poeira ao vento, do Chamanculo ao Cemitério, do bairro Fajardo ao Minkhokwene.

O senhor Artur saiu miraculosamente ileso do acidente. Passadas as primeiras vertigens, mas desorientado no espaço e no tempo, retirou-se do volante e eis que – para surpresa de todos! – deu às-de-vila-Diogo, numa corrida desenfreada, atravessou a estrada e introduziu-se no cinema Tivoli cujos portões se encontravam abertos para limpeza e arejamento. Foi lá onde o acharam, trémulo e agachado, debaixo de um assento, lá à frente junto às filas da plateia. Era um ser semi-morto, rendido à evidência de que para certos mesteres era indispensável uma protecção segura por via de especiais preparos. A agência funerária encerrou portas temporariamente – umas tréguas para reflexão e replanificação.

Para quem estiver céptico sobre a veracidade destes episódios convido a que se dirija à antiga loja do Gingador porque lá testemunhará, – até hoje por reparar – os prejuízos causados pelo Peugeot do senhor Artur ou escutará dalgum velho residente da zona a narração da estória empolgante do morto que, tanto quanto pôde, protelou a sua chegada aos portões do Cemitério de Lhanguene onde iam decorrer as exéquias do seu próprio funeral.

O senhor Artur era uma pessoa de têmpera dura, que se não deixava abalar por desaires do género que se narram acima. Forjara-se numa vida de dificuldades e daquelas aprendera que, se queria ser bem-sucedido na vida, muito tinha de batalhar. E assim fez. Empreendedor como poucos, desviou temporariamente as atenções do negócio funerário para abrir um tasco, o snack bar “Senta Baixo” e uma serração onde vendia sacos de carvão, lenha e material de construção, que é o mesmo que dizer estacas, barrotes, molhos de caniço e outros acessórios complementares.

O negócio da taberna ia de vento em popa. Daí que, e servindo-se da disponibilidade dos materiais da serração, juntou o útil ao agradável. Num terreno baldio anexo à sua residência construiu um componde de doze casas alinhadas três a três, num quadrado perfeito. Parecia a residência de um soba. A demanda de habitação era enorme, sobretudo por emigrantes que vinham do campo, nomeadamente raparigas, até mulheres adultas, à busca de oportunidades de trabalho na cidade. Assim nasceu aquele prostíbulo, o componde do Twist que, emparelhado com o “Senta Baixo” inspirou poetas, alimentou romances de amor, testemunhou memoráveis combates, assim como noites de música e de dança ao som de agrupamentos musicais e dum  dju-box.

Twist era o lugar de referência para todo o bairro do Chamanculo, o núcleo aglutinador das populações que por ali se cruzavam, provenientes de ou com destino ao Clube Desportivo de Beira-Mar, da Ufa ao terminal das carreiras do Sá, daí ao Matadouro Municipal, do bazar do Diamantino ou a caminho da Missão de S. José. Deixou de ser o bar, o compone ou a agência funerária, para ser o lugar de encontros, epicentro do mapa de actividades socias, de intersecção de geografias e caleidoscópios de etnias e de culturas.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

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