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O DVD do mano Txarles

Não foi o rádio que tocava, em alto e bom som, as últimas houses durante toda a noite algures em uma das barracas que transformou em pólvora aquela manhã de Dezembro dos moradores dum dos becos do bairro do Chamanculo.

Nem se pode pensar que foi a falta de água nas torneiras mesmo sendo, o beco, um vizinho fronteiriço com o SMAE, onde presumia-se que era tratada e distribuída a água às cidades de Maputo e Matola. Não foi de forma nenhuma o Txaia que, como todas as manhãs, subiu ao poste para dizer à todos que Cahora Bassa já não era nossa, mas que não devêssemos nos preocupar, pois, voltaria a ser no final do dia. Nem foi a Modjane que, mais uma vez, foi ordenada que retornasse para onde tinha passado a noite. Nenhum desses eventos corriqueiros e ordinários seria capaz de transformar a manhã daquela singela zona (uma war zone) em pólvora.

Não foi, também, a carrinha de duas rodas à tracção humana que, visivelmente, carregava no seu regaço alguns sacos plásticos de xinquas, favos de ovos, um kit de mantas, uma ventoinha e mais alguns pepabag’s cujo conteúdo era indecifrável. O que transformou o bairro em pólvora foi quem vinha atrás da carrinha, com uma pasta de costas empanturrada, uma calça com refletores nos joelhos, botas e uma camisa com os três primeiros botões abertos, deixando a vista o peito que expelia um suor com odor estrangeiro. Era o mano Txarles que, desde o seu primeiro regresso, deixara de ser mano Carlitos. Na verdade, não era ele quem aguçava a curiosidade e a inquietação dos vizinhos, mas o que o ele trazia na mão, a maior das últimas novidades da época, o símbolo de uma estadia de sucesso nas terras do rand, prosperidade e visão: um DVD.

Foi o DVD que, em escalas apertadas, juntou os vizinhos do mano Txarles na sua pequena sala cujo quintal, que desaguava num beco, era dividido com outras três famílias. Madala Bêbado, Comando salva-filha, Van damme e Ndvove, Ivon Dragon, Alex, Bruce lee, Bude xpense e Trinintal já poderiam ser vistos em um único disco sem necessitar daquela troca maçante ao minuto 58 que era imposta pelo VCD. Era vizinho a entrar, demorar-se por três a quatro horas e depois sair para dar lugar a outro vizinho que vinha saudar o recém-chegado que, sem excepção, também demorava entre três a quatro horas só a “saudar”. Alguns até repetiam a visita no mesmo dia. Sinceras eram as crianças que frontalmente diziam: viemos assistir.

Mas o fim estava a vista e, infelizmente, seria dramático. Não porque o mano Txarles fosse regressar para Jobeque com o seu DVD ou que o fosse arrumar numa mala em que a chave estaria apenas com ele. Nada disso. Mano Txarles era boa pessoa e todos gostavam dele na zona. Talvez fosse exactamente por isso, por ser boa pessoa. Não foi de alguma forma o cheiro dos ovos fritos que nunca eram servidos aos visitantes, mas apenas ao mano Txarles e aos seus filhos e sobrinhos. Cunhada Clarinha, esposa do mano Txarles, era muito criteriosa nisso, caso contrário os ovos não durariam nem sequer uma semana.

O problema esteve nas crianças, aquelas criaturas tão suaves e sinceras. Não esteve em todas crianças, esteve numa criança apenas, uma curiosa criança que, sentada no chão, distraiu-se do filme, lançou um olhar para baixo da cama do quarto do mano Txarles que estava permanentemente aberto, talvez para exibir a nova roupa de cama ou a ventoinha, e reconheceu uma peça de roupa, uma peça que a sua mãe tinha dado por desaparecida havia alguns meses mas que ninguém nunca conseguira explicar o misterioso desaparecimento. Inconsequente e ingénua, a criança gritou:

– Camisa de papá ali em baixo da cama de tio Txarles.

Dona Clarinha deixou cair uma panela de caril de frango que estava já em fase final de ebulição no fogão apagando quase todo carvão, alguns mais velhos presentes tentaram abafar o eco das palavras da criança, outros fingiram estar muito atentos no aluno do madala bêbado que enchia um tambor com um copito, outros não conseguiram fingir, o seu olhar os denunciou. Outra inocente e sincera criança berrou:

– Sim, é aquela camisa de tio Xande…..

Mano Txarles não era burro. Rapidamente estudou a reacção de todos. Olhou para Cunhada Clarinha que não conseguiu balbuciar sequer uma palavra enquanto o pouco carvão que não tinha sido atingido pelo caril teimava em abrasar. Confessou com os olhos.

Talvez, o bom de tudo, é que mano Xande, que morava no mesmo quintal mas em outra casa, não precisou de um último banho, pois, foi surpreendido na casa de banho untado de sabão. Foi rápido. Antes disso houve gritos, apelos, advogados que tentavam defender mano Xande, ou talvez a cunhada clarinha, mas todos eles foram infelizes. Mano Txarles estava decidido. O Martelo foupause, também recém-chegado, deixou-se cair com ímpeto na cabeça de mano Xande que nem teve tempo de tentar se explicar. O escuro ou a luz devem ter chegado logo a seguir.

Consciente do que acabara de fazer, mano Txarles, sem falar com ninguém, entrou no quarto, levou a sua pasta, calçou as suas botas, pegou no seu passaporte, atirou o DVD a parede deixando-o em pedaços, atirou os discos no carvão aceso, foi-se embora e nunca mais foi visto no Chamanculo.

 

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