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Universal é local sem Paredes

Cumpridos três meses desta mudança vertiginosa do nosso mundo, que nos obrigou em 24 horas a mudar radicalmente a nossa maneira de trabalhar, abraçamos este desafio, lançado pelo José dos Remédios, de testemunhar este percurso distinto. A criatividade é uma característica na qual nos identifica a capacidade para nos adaptar

Embora precisássemos de parar para nos reinventarmos e nos dedicarmos à investigação, nunca nos ocorreu que as coisas acontecessem nestes moldes, como sobreveio com a COVID-19. Custou-nos a acreditar, sairmos do trabalho naquela 6ª feira de 13 de março carregados de incertezas e com muita ansiedade a enevoar o nosso horizonte. Ao sairmos com bilhete de ida sem data de regresso, foi como se nos atirassem ao mar para aprendermos a nadar.

Senti nesta pandemia que é possível adotarmos medidas Universais pela humanidade, que valorizem o direito à vida. Partindo da frase do Miguel Torga, “Universal é local sem paredes”, apelo à reflexão sobre os problemas essenciais que o mundo vem atravessando, relacionados com a transgressão dos direitos humanos provocados pela poluição do ambiente, pela guerra,  emigração clandestina, mão-de-obra infantil e má distribuição dos alimentos que gera fome nos países subdesenvolvidos.

Há que aprendermos com a nossa história e, numa consciência colectiva, assumirmos, em algumas circunstâncias, que somos muito mais recentes do que cremos, isto não é uma maneira de colocar sobre as nossas costas todo o peso da nossa história, mais é colocando à disposição do que fazer que podemos fazer sobre nós a maior parte possível do que nos é apresentado como inacessível (Foucault, 2004 p. 11)

Nós, os artistas, na nossa individualidade, somos feitos de contextos que nos envolvem, numa reciprocidade e em constante reflexão sobre modos de envolvência e ressignificação. É desse leito que nos refazemos continuamente, sendo os problemas que envolvem o mundo grandes influenciadores do nosso processo criativo e dos contextos que actuamos como mediadores sociais.

Ao trabalharmos numa Unidade de Intervenção e Capacitação Parental do Departamento de Infância, Juventude e Família da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, foi inevitável situarmos no mundo e no contexto em que vivemos para ajustarmos as medidas aos novos desafios em prol do todo e de novas soluções.

Houve palavras-chave que vieram com as Medidas de Contingência que sentimos nelas a nossa responsabilidade junto das famílias que beneficiam da nossa intervenção. Sabíamos que não seria fácil, mas o momento que provinha pedia o melhor de nós. Sabemos que por vezes, o medo ofusca, cria neblina e tolda os nossos comportamentos, pelo que, todos devemos estar informados e conscientes dos desafios que temos pela frente, no decurso desta pandemia… É em nós que as franjas mais desprotegidas depositam a esperança e confiança. Não podemos deixar idosos ou crianças em carência alimentar, não podemos deixar famílias carenciadas sem acesso aos nossos apoios, não podemos abandonar os sem-abrigo e a sua salubridade com riscos imprevisíveis para a vida de todos os cidadãos (Sérgio Sintra 2020).

Foram palavras cruciais que nos relembraram a nossa missão, que, ao colocar em cada um de nós a responsabilidade pelo outro, nos levou a abraçarmos uma nova forma de trabalhar. A maior disponibilidade de todos os que ficaram na retaguarda foi crucial, o sentido de união que em pouco tempo foi interiorizado e ultrapassou os nossos problemas pessoais. O abraçarmos o todo numa dinâmica participativa e interdisciplinar permitiu-nos o rápido avanço das atividades, sendo, por vezes, surpreendente a facilidade de convergência, adaptação e aceitação.

O primeiro desafio, logo que passámos ao regime de teletrabalho, foi a urgência de reajustar a nossa presença física junto das famílias para uma nova realidade, ou seja, os contactos através de telemóvel ou plataformas digitais. Iniciámos um longo caminho para uma educação afectiva e humana, na qual priorizamos verdadeiramente o essencial, mesmo sabendo que as medidas estavam sujeitas a avaliação permanente.

Momentos difíceis uniram os técnicos e as famílias e possibilitaram coisas nunca antes pensadas! Aprendemos a confiar,  e em momento algum duvidámos das competências de cada um.

Mensagens simples e com sentido povoaram nos nossos telemóveis. Ajudaram a construir novos laços, a aumentar a confiança, enquanto outras contavam histórias de lugares que mudaram a roupagem, tornada história, de uma cidade como Lisboa tão presente no mundo e tão poética.

A quem teve sempre o papel de coordenar e orientar, tentando manter a maior tranquilidade possível, nestes tempos difíceis, devemos um agradecimento.

Minha Equipa, faz- me sentir tão vossa e por  vós. Acabo de descer a rua do Nova de Trindade com um misto de sentimentos, por um lado estafada de mala às costas e isolada de uma cidade atarefada de outrora, não me cruzo nem com um taxista, nem polícia, nem peões… nada. Sinto-me saída de um filme de guerra, descabelada e desajeitada, mas digo-vos, foi a melhor semana de trabalho em equipa, fantástica, e é realmente verdade que a União faz a força e que depois disto ultrapassamos qualquer coisa. Muito obrigada a todos pelo empenho e dedicação (Mensagem para o grupo Watsapp da equipa).

Podemos considerar a nossa missão difícil e que exige de nós aquilo que podemos dar a mais, mas conseguimos estar presentes em casa de cada família que acompanhamos,  de forma a sentirem que não estão sozinhas e que podem contar connosco, dando-lhes a segurança necessária para diminuir a ansiedade provocada por esta pandemia.

No campo artístico, em Março já tínhamos a selecção definitiva das peças que iriam integrar na exposição individual que inauguraria a 21 de março na Galeria Manuel Filipa no Baixo Mondego / Condeixa-a-Nova. Esta foi cancelada e ainda sem reagendamentos.

Em princípio, inaugura a Expo Dubai, em Outubro, na qual nos integramos com peças na exposição não conhecendo os procedimentos que poderemos seguir nesta conjuntura.

Agendado para Outubro, e sem novas previsões, na Escola Portuguesa de Moçambique, está o lançamento do nosso conto LAMURA – uma estória que retrata o imaginário de um menino de uma aldeia em África, que, retirado do seio familiar, faz uma nova caminhada com os seus companheiros da aldeia. Numa luta pela sobrevivência, o imaginário da infância ganha espaço através do amor e da criatividade. Reflecte problemas socias contemporâneos que merecem um olhar amplo e uma resposta urgente, para um futuro numa sociedade mais humana onde a criança possa ter o direito de ser criança.

Heidegger refere que a arte não é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde. Mas poderá valer como uma ideia colectiva na qual reunimos aquelas coisas que da arte somente são reais: As obras e os artistas. Se a experiência estética é uma forma de validação da existência individual e subjetiva, ela é também a promessa e a expressão de uma comunidade (P N A 2019-2024, p.18) da possibilidade de viver e de partilhar essa experiência com os outros questionamos o lugar da Educação e Arte e sobre a forma como esta arte chega às nossas crianças e jovens e abraçamos uma investigação baseada nas artes a/r/tografia que assenta numa perspetiva crítica e comprometida com o desenvolvimento das formas de conhecimento transdisciplinar. É uma investigação do educador/artista/ investigador, que nos possibilita o entendimento e uma prática, resultante da investigação, na área de Educação e Arte, que permitem trabalharmos competências pessoais e sociais das criança e dos jovens, que, actualmente, vivem em ambientes que não lhes permitem construir vários campos afectivos. Neste presente momento, as ferramentas digitais e as diferentes plataformas como o Zoom, Teems, whatsapp, entre outras, facilitaram os nossos encontros para que

nesta primeira abordagem fosse possível criar em contexto de vida das crianças e jovens, “in loco”nos espaços potenciais de pertença, permitindo que a sua representação possa tomar diversas formas, dando-lhes voz e a possibilidade de se expressarem através da arte. Mesmo com a distância física, desafiámos as crianças com criatividade e imaginação, permitindo a partir da sua expressão criativa levar algumas crianças a vivenciarem, neste momento de contenção, experiências de criatividade, de aproximação, apoio e partilha através das linguagens criativas.

Deste modo, acreditamos que um processo articulado, envolvendo Educação e Arte, será uma força desafiadora na procura de significados que reduza naturalmente as distâncias que se colocam entre a cultura que nós apresentamos às crianças, e as que elas inventam e montam para si mesmas. Por sua vez, este processo desafia o investigador a estudar modelos e estratégias que espelhem a multiplicidade da comunidade que vive em nós, quebrando estereótipos e obrigando-nos a olhar para a criança de forma reflectida, a Investir nas crianças para quebrar o círculo vicioso da desigualdade  (20 de Fevereiro de 2013/112/UE).

Quanto à cidade que nos viu nascer, Maputo, temíamos o pior quanto à COVID-19, devido às condições dos transportes públicos (os mylove, os chapas), o aglomerado populacional em zonas urbanas, principalmente mercados e locais de venda ambulante, como os (dumba-nengue), mas Moçambique surpreendeu-nos pela positiva. Apelamos à continuidade das medidas sustentadas. As fronteiras fechadas para a África do Sul, impedem os pequenos comerciantes de sustentar a cidade, e receámos que surjam problemas de fome, pela dependência que a cidade tem dos produtos sul-africanos.

Há que mudarmos de paradigma e repensarmos no investimento numa agricultura sustentável, biológica, com objectivo de exportar alimentos saudáveis e tornarmos a nossa população mais autossuficiente. A nossa terra tem bastante potencial, seria importante a criação de iniciativas de desenvolvimento de pequenas empresas, que possibilitem trabalho dos jovens nesta área a longo prazo.

Nós, distante, vivemos a cada dia, nesta cidade de janela virada para o Tejo, carregados de esperança e a aprendermos a viver estes novos tempos. Conectados ao mundo e ao outro, com uma atenção redobrada, principalmente para aqueles que mais precisam.

Um obrigado a equipa da saúde, dos bombeiros, e todos  os que cuidaram de nós. Como a vida dos artistas é feita de processos, continuamos a fazer da recoleição dos logos fragmentário como os hypomnemata, para o estabelecimento de uma relação de si consigo próprio tão adequada e completa quanto possível (Foucault, 1992, pp.129-160). Com isto e pela vida, cuidem-se! Protejam-se, e, quando isto tudo terminar, acredito que vamos tirar muitas coisas positivas. Vamos todos ficar bem.

 

 

Lisboa 14 de Maio de 2020

SUZY BILA |Maria Suzete Bila

Educadora de Infância | Equipa de Intervenção e Capacitação Familiar- Centro

UIF- Unidade de Intervenção Familiar

Direção de Infância, Juventude  e Família da SCML

 

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