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ARTIGOS DE OPINIÃO

O amor não é a coisa: é a doação

Luandino Vieira

Muery, elegia em Si maior. É o segundo título de Armando Artur lançado pela Cavalo do Mar, essa editora moçambicana que em pouco tempo muito tem feito pela arte literária. O primeiro foi A reinvenção do ser e a dor da pedra, um dos livros vencedores da última edição do Prémio BCI de Literatura. Com a nova proposta, lançada meio ano depois da anterior, o poeta volta a apresentar-se aos leitores com uma escrita suave, mesmo quando sugere enunciados pesados, a relacionar a existência fundamentalmente captada pela visão e o prazer de exprimir realidades dos objectos “inspiradores”. Neste processo, é constante a activação da memória, sempre a memória, como se a poesia fosse dita num ímpeto, de cor, num acto de combate ao olvido. Com isso, consolida-se essa aparente sugestão dos sujeitos poéticos de nos fazer senti-los exprimir-se num exercício causado por imensas contemplações virtuais, alimentadas por propósitos provavelmente pré-definidos.

Muery é um termo echuwabo e quer dizer lua. O sentido esclarecido no texto menos conseguido deste livro (p. 33) é apropriado para estar no título, afinal a poesia de Armando Artur, desta vez, situa-se entre o encanto da luz e as sombras causadas pela iluminação, o que metaforicamente pode significar um misto de emoções, alegria e melancolia causada pela perda irreversível da Muery cantada nos poemas. Quanto à elegia, esse estilo derivado da poesia épica, aqui aparece para fazer jus aos seus conhecidos sentidos: gnómico (sugeridos pelos gregos), amoroso (introduzidos pelos romanos), lamurioso, taciturno e funéreo. É como nos diz Francisco Freire de Carvalho em Lições elementares de poética nacional (Moisés, 1974: 169), “o assunto próprio da elegia são os sentimentos, especialmente dolorosos, que podem dizer-se naturais e comuns a todos entes mortais, quais, por exemplo, os despertados pela ausência, por um amor mal correspondido, pela perda da pátria, ou de quaisquer outros enlaces do coração”.

De facto, a dor manifesta em Si maior – paradoxalmente ou não, essa escala musical que permite o artista fazer-se ouvir num tom álacre – atribui ao novo título de Armando Artur um tom lastimável, sem que isso torne a obra piegas. A obsessão pela transformação da dor (já agora, atinentes aos “enlaces do coração”) em algo utilitário do ponto de vista motivacional, num contacto sempre a perder-se entre os sujeitos poéticos e as Muery, logo se nota, musas com muitos rostos, torna o livro repleto do que o poeta acredita: a escrita como catarse, mas também como liberdade, esse acto de nos juntarmos às aves: “E tu sabes que ser livre é viver na matéria, dela fazendo parte integrante, mas também é ter o poder de levantar voo, quando o livre arbítrio assim o exige” (p. 37).

Os sujeitos poéticos de Armando Artur definem o ser em função do que lhes motiva exprimir-se e em função do resultado disso. Assim, a poesia apresenta-se como mecanismo de íntimas redescobertas, purificação e partilha de determinados estados emocionais.

Em Muery, uma elegia em Si maior, igualmente, paira uma constante divinização da subentendida destinatária da mensagem dos sujeitos de enunciação, como é característico em Adelino Timóteo, com essa aposta de se fazer da imagem um recurso ao serviço do poema ou o inverso. Seja como for, nos curtos textos do livro (alguns a terminarem bruscamente, por exemplo, p. 17 e 18; com mais períodos, melhor é o efeito) Armando Artur atravessa as particularidades da lírica para se reapropriar do que lhe é tão caro: o amor, a doação que justifica esta partilha.

Título: Muery, uma elegia em Si maior

Autor: Armando Artur

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 12

 

 

 

 

 

Resumo

Nesta comunicação procuro estabelecer nexos entre o conceito de ontologia e a a acção do juiz. Partindo do pressuposto de que o conceito de ontologia faz referência a coisas que nos fazem seres comuns, problematizo a acção do juiz, vis a vis a acção dos cidadãos que somos numa mesma República. Concluo que tanto o juiz quão qualquer outro cidadão temos uma mesma luta: enveredar, ou pelo menos advogar por uma atitude que preconiza ter em conta o poder da consciência através da consciência do poder que possuímos como cidadãos que somos, em princípio, probos.

 

Nota prévia

Ocorrem-me cinco axiomas introdutórios.

 O primeiro é que, tal como o clássico sociólogo francês (Durkheim), trato os facto sociais como coisas.

O segundo, e que vem na sequência do primeiro, problematizo tudo. Aqui o Elísio Macamo vai ficar muito contente, tipo tem seguidor acérrimo com todo efes e erres.

Terceiro, sou fã do Stuart Hall, um estudioso da teoria da cultura que diz que ser pós moderno significa virar a situação ao contrário, como se de um saco se tratasse, e  começar a ver um a um os objectivos que daí caiem.

Quarto, não me farto de dizer isto, vem de Cardinal Arns que diz mais ou menos o seguinte: Temos que ser subversivos. Ser subversivo significa virar a situação ao contrário e olhar para ela a partir do ponto de vista, da perspectiva daqueles que têm que morrer para que o sistema se mantenha intacto, isto é, continue.

Quinto e último. Já que vocês juízes e magistrados falam muito de positivismo, eu sou fã da teoria crítica: todo esse positivismo, no meu entender deve ser visto com algum relativismo. A razão cartesiana não responde a tudo, tal como o direito (common law ou o continental) não nos dão respostas cabais sobre a nossa situação concreta, daqui a pertinência de Montesquieu, no seu “O Espírito da Lei”. Há muita lei comportamento costumeiro (consuetudinário) que não cabe no direito positivo, tal como Descarte não explica muitas coisas nossas. Voilá!

Julgamento quase teórico

 Agradeço o convite, embora me sinta um intruso entre gente das leis e das barras de tribunais.

Sociólogo que sou é expectável da vossa parte que eu problematize o ponto que me proponho discutir, aliás, característica basilar do mister da sociologia. Por isso, farei uma tentativa de discorrer sobre este assunto que mexe com a nossa sociedade: A ontologia do ser juiz.

Para tal, tentei arranjar nexos entre o conceito de ontologia e as práticas dos juízes, vis a vis a noção de pertença a esta sociedade da qual fazemos parte todos nós. Parto do pressuposto de que temos a mesma valência, entanto que cidadãos moçambicanos, diferentes que sejam as nossas matizes, credos, extractos ou segmentos sociais, ou missões.

 Levanto algumas linhas de reflexão sem contudo fechar a questão, pois, isso é função de consultores, o que não é o meu caso aqui.

Comecemos do princípio.

No dicionário Aurélio, Ontologia é definida como (…) “o ser concebido como tendo uma natureza comum, inerente a todos e a cada um dos seres”.

Resulta óbvio que é uma definição que emana da metafísica. Portanto, feitas as contas, esta definição revela-nos que as pessoas, juízes ou não, têm pontos de intersecção, pontos em comum que, na falta de melhor formulação, chamemos-lhes de razoabilidade. Assim sendo, é esperado que na sua acção, juízes ou não, almejem o desejado equilíbrio que deve resultar da probidade, esta tida como integridade de carácter, honestidade, retidão, honradez, bondade, que tanto juízes como qualquer cidadão, “naturalmente” por eles lutaria, ou deveria lutar, ainda que tais virtudes apresentem-se em forma de utopias reminiscentes.

Quer dizer que estamos a falar da consciência no sentido de interioridade, faculdade de estabelecer julgamentos sobre os actos realizados, uma espécie de “prova dos nove” do nosso senso de responsabilidade para com a nossa acção quotidiana, probidade e consciência de si, portanto, auto consciência, tendo em conta o sentido do justo e da justiça que perseguimos.

 A justiça e o senso do justo não ocorrem sem apelarmos à cultura, aqueles aspectos da sociedade humana que são antes apreendidos do que herdados, quer dizer, socialmente construídos.

 Assim sendo, aludimos à noção de consciência colectiva, esse conjunto de representações, de sentimentos mais ou menos aceites que corroboram no sentido da harmonia e da coesão da nossa sociedade.

E tal como nos assevera Durkheim, em todas as sociedades a anomia (doença de que padecem as sociedades, disfuncionalidades, como por exemplo o crime ou a delinquência no seu todo), fazem parte das mesmas, ainda que sejam a revelação de um desvio patológico. Todavia, a pergunta que se nos interpõe soa bem mais alto: haverá uma utopia militada por um grupo de indivíduos que se constitui como reserva moral, capaz de lutar contra essa distopia, a imoralidade, o culto do dinheiro indevido e de outras coisas improbas que corporizam tal desvio patológico?

O dicionário Houaiss acrescenta à definição de ontologia uma dimensão da medicina, ao longo de cuja história defini-a como sendo a doutrina que estuda o ser da doença, como se a enfermidade existisse em conformidade a um tipo bem definido, a uma existência ontológica.

Teremos, deste modo, duas acepções que se engancham num mesmo pilar, isto é, a definição da ontologia entanto que ser das coisas.

 A primeira acepção, define a ontologia como aquilo que trata do ser ele próprio (as coisas que nos são comuns entanto que entes, pessoas, indivíduos, cidadãos).

E, a segunda que provém da medicina e faz referência ao ser das doenças, aponta para qualquer coisa que faz com que a doença se efective e se torne esse ser que reputamos maléfico, já que corporiza uma disfunção.

  1. Qual seria, então, a natureza comum entre os juízes e os não juízes, isto é, quais são (ou seriam) os denominadores comuns entre eles (vocês) e os outros (nós), tão cidadãos da República quanto todos e cada um de nós?
  2. E qual seria, já agora, a génese da doença que faz com que esta ocorra e se enraíze como patológica no corpo do nosso jurado, a ponto de estarmos perante uma crise quase generalizada?
  3. Como não faço ponto sem nó, aqui está: será que a sociedade ela própria padece, tipicamente, de uma disfuncionalidade, anomia patológica que atinge até os que têm por dever dividir o queijo, os juízes?

I-O poder do juiz: a consciência individual

Tenho bem presente a figura do João Ratão. Personagem dum texto inserido no meu livro de leitura creio que da minha segunda classe, João Ratão deveria dividir, em partes iguais, um queijo, que seria partilhado por dois contendores. Portanto, ele era apenas o juiz, o fiel da balança. Vai daí que, para acertar o peso, e abusando do facto de ter a faca e o queijo na mão, João Ratão foi comendo o queijo depositado nos dois pratos da balança, segundo ele, à procura do equilíbrio, tentando almejar a igual e justa medida. Moral da estória: À procura do “justo”, João Ratão acabou comendo o queijo dos dois lados da balança, deixando os legítimos donos sem o seu. Aqui o adágio “ o seu a seu dono”, “a Cristo o que é de Cristo, e a César o que é de César” “des-funcionou”. Quer dizer que, João Ratão enveredou por uma justiça injusta, imiscuindo-se ele próprio, negativamente, na questão.

 João Ratão exerceu o poder não para resolver o problema, como diria o governador do nosso Banco Central (Rogério Zandamela), mas, para se servir, aumentando por isso achas à fogueira e instigando, por isso, a contenda. Usou do poder para abusar da confiança dos que, clamando por justiça, nele fizeram fé.

Infelizmente, esta fábula é a alegoria e a imagem que me ocorre quando penso sobre os nossos juízes. Óbvio, salvas as devidas excepções, querendo com isso dizer que o sistema é bimodal: uns muitos bons, e, uns poucos maus que mancham todo o sistema, qual nódoa entornada no pano branco da justiça.

 Juízes há que, ao tentarem equilibrar, fazer justiça, ficam com o queijo em disputa, quando nem sequer faziam parte da querela, a não ser como simples administradores da justiça, meros fiéis da balança.

Somos postos perante um problema de consciência, uma vez que a doutrina reza que “o juiz decide conforme a sua consciência e em respeito estrito pela Lei.”

E se a consciência do juiz não for proba? E se a consciência do juiz for comprada?

E se o juiz manipular a lei, enrolando-a naquela linguagem latinizada e hermeticamente fechada, a dos habeas corpus e outros quejandos, puxando a brasa à sua sardinha, a das improbidades?

A conclusão é simples: faz-se uma justiça injusta, salvaguarda-se o bandido a troco de dinheiros, sabe lá o diabo porquê, e fica, provavelmente, detido, ou pelo menos prejudicado, o inocente. Ou, mesmo não sendo inocente, a justiça afigura-se-nos uma mão dura e implacável para os chamados pilha galinhas, deixando incólumes os tubarões, ladrões de grande calibre, particularmente os de colarinho branco. Impera, assim, a improbidade, isto é, a corrupção.

Samora falava do combate à corrupção em todas as frentes. Severino Ngoenha fala de “changuismos” como moda estruturante da sociedade actual.

Finalmente, numa espécie de golpe de misericórdia, Tomás Viera Mário assevera-nos que (…) “a corrupção deixa de ser conduta desviante, para se assumir como uma norma do próprio Estado”.

Será esta a sociedade que queremos legar aos nossos netos?

Será isto que queremos, uma sociedade cuja normalidade é uma enfermidade patológica, viral?

O que é que temos que fazer para reverter este statu quo?

II- Consciência colectiva como utopia e fórmula resolvente

Perseguindo aquilo que deve ser feito para a reversão do statu quo penso que a resposta deve ser holística. E já que estamos em ano Eduardo Mondlane, proponho que consideremos que a primeira resposta a este desiderato esteja no título do livro do fundador de Frente de Libertação de Moçambique: Lutar por Moçambique.

Lutar por Moçambique para os juízes significa em rigor a escolha minuciosa e acertada dos candidatos a magistrados. Significa, por outro lado, uma revolução cultural que procure enraizar no ethos dos juízes, e não só, a noção de coisa pública, do servir como missão. Significa, em última instância que ao se escolher a profissão de juiz estejamos bem claros sobre o que é virtude e o que é ser justo. Significa, portanto, que os candidatos a juízes têm que estar bem claros sobre a utopia que rege a Rés Pública, lutando para que a justiça e a probidade que devem caracterizar a nossa acção, em prol da nação, ganhem corpo. Quer dizer, temos que pensar, antes de tudo, na viabilização e normalização do funcionamento das nossas instituições, afinal índices que devem caracterizar o nosso lugar de referência, pertença e de destino, este nosso Moçambique.

Resumindo, ser juiz probo, ontologicamente enraizado, significa que aceitamos assumir essa luta titânica permanente, entre o justo e o injusto, entre o probo e o não probo, sendo que, o justo e o probo têm que vencer. Assim se materializa a noção de cidadania, e de missão, nem sempre fácil, pois, está à espreita um tiro disparado por um sequaz ao serviço do crime organizado, que quase tomou por completo o nosso Estado, e o estado das coisas na nossa Terra Gloriosa.

Juízes ou não, sabemos do poder da nossa consciência para mudarmos as atitudes que obstaculizam o normal funcionamento das nossas instituições, mormente os tribunais?

Temos nós, o sentido, a consciência do poder da nossa acção, no bom e no mau sentido do termo, no cumprimento da nossa missão?

 Estamos preparados para lutar por Moçambique?

Aqui socorro-me de um outro clássico da sociologia, Max Weber. No seu trabalho, “A ética Protestante e o Espirito do Capitalismo”, Weber cita Lutero na sua definição de “vocação”. Alude ao seu étimo alemão, Beruf, ou ao inglês, calling, que nos remetem ao conceito de missão, ainda que esta seja no sentido divinal do termo. Ainda assim, o que pode ser aproveitado é a noção ecuménica e de responsabilidade subjacentes a tal missão.

Para o nosso caso, vamos dizer que é o chamamento, que vai para além do religioso. Aliás, a este, acrescento o sentido samoriano do termo. Recordo para o efeito a exortação que foi dirigida à minha geração, aquando do célebre discurso do oito de Março (1977). Aceitando a missão, viramos soldados, pilotos, professores, diplomatas, agrónomos, mesmo que essa não fosse a nossa primeira opção. Samora disse e bem, contra muitas vontades e convicções: “ jovens, a pátria chama por vós!”

Cá está o chamamento. Mesmo não sendo a primeira opção, uma vez acedido o chamamento da Pátria, ele deve ser concebido de paredes meias com aquilo a que Weber chama de,

 “Valorização do cumprimento do dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a autorrealização moral é capaz de assumir”.

Essa autorrealização moral se torna a “vocação profissional”, uma espécie de chamamento para o cumprimento dos deveres intramundanos que nos são postos como desafios. É pois, o poder da consciência que se junta à noção de consciência sobre nós mesmos.

É isso que se passa entre os nossos juízes?

É isso que se passa entre nós que nos queremos cidadãos que agimos em prol do bem público?

Penso ter criado confusão suficiente para uma discussão franca, sem preconceitos, e, sobretudo, cheia de sentido de cidadania e patriotismo, pois, mais uma vez, a pátria chama por nós!

 

 

 

A luz do Sol, vinda de um céu azul límpido, reluzia. O frio, afoito, exercia o seu domínio sobre a cidade. Era manhã de um domingo de Janeiro. No penúltimo degrau que dava acesso à varanda da igreja, sentado, um homem de cabelo branco fazia anotações num maço de papéis. De vez em quando parava para pedir uma moedinha a quem ali passasse.

No interior da igreja, estão todos de pé. Um senhor rechonchudo, envergando um fato cinzento, de costas para o altar, esbraceja enquanto a boca se abre e fecha ciclicamente.  Encara as pessoas que estão sentadas nos bancos perfilados na nave e os convida a fazer aquele abrir e fechar de boca. O maestro canta, ao ritmo do piano, uma melodia alegre. De repente quatro homens de túnica branca aparecem no presbitério. Um, o mais velho deles, beija o altar e, em seguida, ajusta o micro. Faz o sinal da cruz enquanto fala.

   – A graça de nosso senhor Jesus Cristo, o amor do pai e a comunhão do espírito santo esteja convosco – continua a sua fala, sem perder a eloquência.

    O maestro reassume o protagonismo e canta com todo o seu corpo «Senhor, tende piedade de nós…». Todos continuam de pé. O homem, que há instantes pedinchava no exterior da igreja, entra e senta-se numa das entradas, fechada, que se encontra próxima ao presbitério. Traz óculos escuros a tamparem-lhe os olhos e uma mochila castanha a lhe pesar as costas. Os crentes olham-lhe por alguns instantes, sem deixar de cantar, e depois de alguns segundos se esquecem da sua presença.

    A cantoria acaba, o velho de túnica branca faz uma oração. Depois de dizerem em coro um «amém» todos se sentam. Um jovem dirige-se ao ambão e faz, com solenidade, uma leitura a qual todos respondem com um «graças a Deus» no fim.

    O maestro substituiu o jovem no ambão. Empurrou o micro para o lado, confiando na potência da sua voz. A cantoria começou de novo: «Que o Senhor abençoe, com a paz, o seu povo! Filhos de Deus, tributai ao Senhor, tributai-lhe a glória e o poder…». A cantoria não agrada ao pedinte. Lembra-se que tem mais que fazer e levanta-se imediatamente. Vira as costas ao altar e sai da igreja.

    A missa vai já quase ao meio e nada do pedinte.  «Bendito o que vem, em nome do Senhor. Hossana…», canta bem afinado o nosso maestro. O velho de túnica branca abre os braços e faz alguma oração. Todos ficam de joelhos. A igreja fica mergulhada numa paz momentânea. Já sem os óculos, o pedinte entra e senta-se no mesmo lugar onde tinha-se sentado na primeira vez.

    Depois de muitas orações, todos fazem uma fila e o velho de túnica branca distribui a comunhão. O pedinte faz-se à fila. Tem um ar entristecido. «Corpo de cristo», anuncia o velho de túnica branca. O pedinte olha a partícula branca suspensa nas mãos do anunciante como se quisesse confirmar. Responde «amém». Recebe-a nas mãos. Mete-a na boca enquanto se retira da fila. O velho da túnica branca olha-o e meneia a cabeça.

    Estão todos de pé de novo, com excepção do pedinte. O velho de túnica branca anuncia o fim da missa e dá a bênção final:

   -Ide em paz que o Senhor vos acompanhe

   – Graças a Deus– respondem todos em uníssono.

   Minutos depois não se vê vivalma na igreja. As imagens dos apóstolos, as esculturas de Nossa Senhora e Jesus Cristo velam a igreja submersa no abandono.

   –O padre disse-me que viesse ter com o senhor para que me dê a esmola– anuncia o pedinte a um dos acólitos que está na porta da sacristia.

   -É sempre o mesmo. – responde o acólito com um ar sério – A missa rezada às metades, nem? Se continuar assim a esmola será também às metades.

   – Nem brinca, meu senhor! Neste mês as pessoas não dão quase nada, nem parece que receberam a dobrar em Dezembro – confessa o pedinte com um ar triste

   No fundo da sacristia outro acólito prepara os utensílios para a próxima missa. Enche as galhetas de vinho e água. Enquanto abre o saquinho de hóstias, ouve o pedinte a dizer, com risadas:

   – Dá-me duas dessas – referindo-se às hóstias.

– Então? Isto é a padaria? Espera-me lá fora que já te dou a esmola – diz o acólito responsável pela esmola com tom ríspido e semblante enrubescido.      

Entre luas & sonho: Melita Matsinhe e Sónia Sultuane

 

    Melita Matsinhe: o fogo lunar do poema

 

   Melita Matsinhe é natural de Inhambane, historiadora e musicóloga de formação, é pianista e cantora, além de gestora de programas de Artes e Cultura. Ignição dos Sonhos (Fundação Fernando Leite Couto, 2017) é o seu primeiro livro de poemas.

     Sabemos que ignição é um mecanismo de combustão interna que coloca um motor em movimento e a partir desta informação que o título nos veicula observamos a articulação entre a dimensão etérea dos sonhos com a propulsão de um motor, talvez da alma, ou da leveza da inspiração, com a força do corpo e da criatividade.

     Somos levados na leitura do livro neste duplo movimento, a força interna, a lava, a cor vermelha do sangue, e a leveza do ar, do vento, do silêncio, ou a cor branca da lua. Entre tonalidades mais ou menos persistentes de vermelho e branco, decantados em sopro imaterial, a escrita de Melita Matsinhe procura encontrar como que a “pureza” do instante. Vejamos o poema Rosas Brancas:

Sou um jardim de rosas brancas/ na luz prateada que não vês/ recito amizades à flor/ e segredos de amor sem fim.// Cultivo rosas brancas, sem saber/ com sangue ao redor, se amanhã chegará/ desvirtude dos tempos, e dias de dor/ sou um jardim à luz do luar.(75)

       São poemas breves, decantados, como improvisos, que tentam captar momentos e sensações, mas que se regem por movimento, liberdade. Estas duas vertentes o movimento e a liberdade (de sentir, de desejar, de possuir, de criar) fazem do poema momento de tensão, quase diria de suspensão, êxtase, “vértice de som”. É o que lemos no poema Notas básicas para nascimento do poema: “Fechar a porta,/ é indiferente ao mundo,/ com o mundo nos quartos/ incendiados do mundo.// O fogo do amanhecer/sobre a erva/ tijolo a tijolo/ da base ao vértice do som”(28).

    O apuramento da Oferenda da escrita “Beijo a beijo/ te venho buscar/ e te entrego/ às mãos/ nasce o sonho” (74), mostra a ligação terna do corpo, que beijando entrega às mãos  a dádiva da escrita, que é sonho nascente, ou o sonho que se evola das palavras que beijadas se transfiguram em poema: “Partilho palavras/que das mãos me nascem”(16).

   O movimento articula vários estados na escrita de Melita Matsinhe, da materialidade do corpo ao fogo da paixão, deste último à etérea dissolução em vento, sonho, estrela ou música, ou podemos recompor em vice-versa, ou em variações: “Como prender o vento/ o canto eléctrico, Walt?” (21). A química da mutação subtil dos estados é a arte alquímica da poeta. E encontramos também o mar, a onda, a água dos rios, a dança dos elementos que se transmutam, tal como o sentido das palavras em mutação, Coreografia dos Sonhos:

 

Rios verticais sulcando-me o peito/ sob as estrelas/ golpeiam o solo em doloroso destino/ e tu danças/ apagando sinas, decretos, contratos,/ por dentro da gravidade da terra! (20)

 

    O poema Cultivo o Amor diz: “Onde as palavras, em dança livre/ na pluma incurável dos sonhos/ pequeninos seres tornam-se,/ é a letra  um canto sem fim: aí cultivo o amor em cartas lunares.” (52).  Cartas lunares, canções, vértices de som, os poemas de Melita Matsinhe tricotam palavras de várias línguas, poliglotam sons do “coração oculto”. São poemas que sonham ser palavras, palavras que sonham ser sons,  em movimento harmonioso e ígneo. Sophia de Mello Breyner e a poesia de língua castelhana estão nos avessos destes ritmos, que tecidos de lua se encantam em fogo.

      Sónia Sultuane, uma escrita da emoção e do prazer

 

Sónia Sultuane, nasceu em Moçambique (Maputo), em 1971. Artista plástica, Sónia Sultuane tem colaborado noutras práticas artísticas como a instalação, a dança e a fotografia. Como poeta conta com quatro obras publicadas, Sonhos (AEMO; 2001), Imaginar o Poetizado (Ndgira, 2006) e No Colo da Lua (Ed Autora, 2009) e mais recentemente Roda das Encarnações (Fundação Fernando Leite Couto, 2016).

No primeiro livro de poemas de Sónia Sultuane, Sonhos a poeta percorre o espaço que vai de si própria para uma outra em que se procura e desafia, “como queria ser a outra dos meus sonhos” (47), feminino sujeito que se quer intenso e pleno no seu sensitivo imaginário: “Menina ainda tornei­?me mulher/ enfrentei o mundo, e a mim mesma” (15).

Um percurso que corporiza gradualmente os sentimentos e sensualmente os convoca em todas as suas contradições: desejo, ausência, saudade, ilusão, sonho, distância, alegria, dor. Imaginando através das palavras, as formas que têm os sentimentos, de tanto os sentir. Imaginando o amor, vivendo­?o nessas imagens que ele encontra nos muitos espelhos da alma: “Amar­?te é algo sem dimensão ou justificação/ é viver sempre na imaginação/…/estar sempre a sonhar” (28).

No seu mundo amoroso, imaginado pela escrita, a poeta tenta regressar à envolvência da infância “deixem­?me no meu mundo doce e infantil, mas meu” (p. 13), experimentando­?se ludicamente, ao brincar com o seu pensamento da emoção, refazendo­?o pela distância: “vou brincando com o meu pensamento,/ tentando encontrar­?me distante,/ mas presente,/ no que és presente, quando és ausente” (38).

Na sua segunda colectânea de poemas, a autora assume quase uma reivindicação da forma de sentir e do ser amoroso, ao escrever sobre a exaltação do prazer, a força erótica e a assumpção de um erotismo social e secularmente negado à mulher. Nessa perspectiva os poemas de Sónia Sultuane são insinuantemente inconformistas pela sua temática sensorial e seu desnudamento emocional.

O poema Africana amplifica o tema da identidade, uma vez que tende a territorializar o feminino. Além desta primeira identidade, e lembrando com alguma ironia o poema Se me quiseres Conhecer de Noémia de Sousa, a poeta assume a sua africanidade: “dizes que me querias sentir africana/ dizes e pensas que não o sou,/ só porque não uso capulana,/ porque não falo changana,/ porque não uso missiri nem missangas,/ deixa­?me rir…”

Quer este poema desenhar um percurso identitário de abertura às diferenças de género, de raça, de língua e de cultura, num continente e num país, que se caracteriza também pela coexistência harmónica de tal múltipla diversidade:

pelo sangue que me corre nas veias,/ negro, árabe, indiano,/ essa mistura exótica, que me faz filha de um continente em tantos/ onde todos se misturam,/ e que me trazem esta profundidade,/ mais forte que a indumentária, ou a fala,/ e sabes porquê?/ porque visto, falo, respiro, sinto e cheiro a África,/ afinal o que é que tu saberás?O que é que tu sabes? (15)

Interrogativa, reticente, dialogal, esta voz percorre os poemas como o sangue nas veias de um corpo amoroso, palavras que são o próprio sujeito em acto de constituição e de revelação: “As palavras que te dou/ são o que sou, /são o que sinto,/ e como me sinto, /essas são as minhas palavras EU.” (29).

No Colo da Lua, é o terceiro livro de poemas de Sónia Sultuane. Há nestes poemas a procura de harmonia de um corpo que quase voa, elegante na sua aspiração ao sonho e à verdade, à pureza das sensações, à celebração do desejo. O poema que dá título ao livro No colo da Lua, diz­?nos da apetência amorosa de expansão e abertura do sujeito ao mundo, da vontade da poeta falar às estrelas, se aninhar no colo da lua, o mágico planeta da noite que transfigura o sonho em realidade:

Quero olhar o céu/ e contemplar a sua sombra dançando / na cadência do meu coração,/ mergulhar no seu infinito,/ no reflexo do azul esver­deado profundo,/ sentir o cheiro do mundo percorrer­?me as entranhas,/ falar às estrelas prateadas, / sentar­?me no colo da lua amando a imensidão do universo,/ saboreando cachos de uvas pretas adocicadas,/ para poder entregar­?me a todos os sabores exóticos, / cantando e suspirando pela vida. (11)

A experiência sensorial torna­?se quase um acto de levitação graciosa em torno das coisas, qual borboleta, cujas asas ou pétalas acariciam o que tocam, e no que é tocado se sentem acariciadas. O corpo vive dessa dualidade de ser quase imaterial, é dança, música, sopro, flor, pétala, esvoaçante, como se pode ler em vários poemas, como por exemplo, Noiva: “Danço nas sombras do luar prateado,/ visto­?me de sari vermelho bordado com missangas douradas/ trazidas de Bombaim / nas árvores imaginárias de vida/ penduro os meus cabelos que esvoaçam na brisa/ trançados com folha de laranjeira e jasmim (…)” (12).

Há uma celebração assumida do prazer e do desejo físico, da comunhão dos corpos, que a escrita de Sónia Sultuane revela. Em Noites de Prazer, o sujeito poético confessional, escreve que não se arrepende de ter transformado um sentimento como o amor na grandeza do seu ser:

não me arrependo (…) De não ter seguido e queimado as etapas da vida, / mas de ter vivido a vida conforme as etapas/ e o fogo do meu coração,/ de não ter omitido as minhas palavras, / mas ter expressado a linguagem do amor,/ de não ter calado o meu coração, / mas tê­?lo ouvido bater descompassadamente,/ de não mentir à minha consciência, / mas de ter sido leal aos meus princípios (…) De não ter sucumbido à vontade carnal, /mas ter amado com a alquimia dos sentidos,/ de não ter deixado o meu coração / ser uma armadilha,/ mas ser a presa dos meus sentimentos (…) (4).

 

Os imensos espaços vazios em que se jogava à bola e se fazia atletismo a todo o momento, na Cidade de Maputo, foram ocupados por prédios e dumba-nengues. A prioridade era o afã dos negócios aos mais variados níveis, em associação de algumas das direcções dos clubes com as edilidades, nos “business”.

Se nos detivermos no desaparecimento ou mesmo sub-utilização dos recintos dos clubes federados, verificaremos que a razia foi gritante. Nalguns casos, a merecer uma investigacão da PGR!

SINAIS DO SUMIÇO

Recuemos à década 80. Os grandes clubes da cidade de Maputo possuíam pelo menos, 6 campos de futebol, a saber: Ferroviário da baixa e da Machava; Desportivo, Maxaquene, 1.o de Maio e Costa do Sol. Todos tinham iluminação e a sua utilização começava nas primeiras horas do dia, continuando em regra até às 11 horas da noite. Isso ao meio da semana. Sábados e domingos eram destinados aos jogos, abrangendo camadas jovens no período da manhã, seniores à tarde e, não raras vezes, à noite.

Além disso, todo o espaço ao agora reduzido Circuito António Repinga era utilizado por federados e populares, nos inúmeros campos entre os eucaliptos.

A “sangria” foi tremenda. Vejamos:
1. Campo Paulino Santos Gil, do Desportivo, por ter sido vendido num processo pouco claro, está agora cheio de capim. Da promessa de um substituto em Bobole, já não reza a história;
2. O vizinho do Maxaquene, com situação pouco clara, serve mais para espectáculos musicais do que para jogos e treinos. O espaço à frente, onde treinavam as camadas jovens foi ocupado pela sede da Mcel.
3. Recinto do Ferroviário da baixa, só tem iluminação, como que por milagre, em dias de “shows” musicais. É o que dá taco! Idem para a “catedral” da Machava, onde se desenrolaram os maiores feitos desportivos do país;
4. Do espaçoso recinto do Costa do Sol e “Matchiki-tchiki”, apenas sobrou uma ínfima parte, para “canarinho” ver. Nem com a EDM como patrocinador, se joga à noite.
5. Do campo do 1.o de Maio, em ruínas, vai ficar uma história, para um dia ser contada…
Em resumo e sem grande margem para erro, pode dizer-se que, para se treinar e jogar futebol, os tempos e espaços na capital do país terão sido reduzidos para menos de um terço.

DESPORTO AFINAL NÃO É SAÚDE?

Muitas empresas como Maquinag, Metal Box, Caju, Sonefe e outras, possuíam bons campos de futebol, corporizando-se lá, o Campeonato dos Trabalhadores, sem ser necessário recorrer aos recintos das equipas federadas. Estes espaços, tal como os recintos dos clubes suburbanos – Mahafil é uma excepção – não resistiram à voracidade da dita “rentabilizacão”. Prejuízos imensos para a saúde e confraternização da massa laboral que é, afinal, uma das principais razões da existência das empresas.
Havia ainda o futebol dos terrenos baldios – Mafalala e Xipamanine a serem verdadeiras “universidades do pontapé na bola – a que se juntava o campeonato militar.  

A “cereja” no topo do bolo, era a prática regular e constante dos currículos estudantis, da prática desportiva nas escolas.
Correr é saúde? Da prática resta apenas o “slogan”!

OLIMPÁFRICA: POR ONDE ANDAS?

Foi anunciado e inaugurado, com pompa e circunstância, o complexo Olimpáfrica em Boane, que contou com o apoio do Comité Olímpico Internacional. Poucos anos volvidos, ficou o matagal e a história das intenções. Se alguém se beneficiou da iniciativa não foi, seguramente, a juventude moçambicana, tão carente de espaços para correr, jogar e brincar.

Será que um dia ainda haverá um esclarecimento para este empreendimento, que longe de servir, terá manchado a imagem do país junto das entidades internacionais?

Ao se juntarem todas estas realidades, que foram sendo “foto-copiadas' um pouco pelo país, é fácil equacionar a razão principal, os quês e porquês, de Mexer e Zainadine Júnior serem excepções e não uma regra, no mapa de estrelas moçambicanas no futebol doutras latitudes!

Entretanto, de seminário em seminário vamos, paulatinamente, buscando razões que expliquem as descidas nos “rankings” e a distância cada vez maior do nosso desporto, relativamente a um passado glorioso.

 

 

Uma lágrima que desce pelo rosto torturado

 dum oprimido, brilha que mil sóis.

Eduardo Paixão

 

11 telas constituem a exposição Nua e crua, de Suzy Bila, patente no Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), na cidade de Maputo. Mais do que o número de obras, estampadas em telas “gigantes”, a individual da moçambicana residente em Portugal vale por outros factores. Por exemplo, a carga emocional que, por via das cores, está sempre bem preservada.

A pintura de Suzy Bila, nesta colecção com peças produzidas entre 2014 e 2018, é qualquer coisa revestida de efeitos taciturnos, os quais transportam a imaginação a horizontes inquietantes. Quiçá, com interesse de desligar os visitantes da individual dos vários ruídos quotidianos, mesmo quando a pretensão é provocar uma reflexão sobre esses mesmos ruídos, Nua e crua transfigura-se do simplório, afasta-se da previsibilidade real e criativa. Para o efeito, como os gregos na acrópole, a artista coloca-se nua num plano alto, encantado de desencantos estereotipados, expondo-se ao mundo dos homens como quem reza. Nesse vigor está o compromisso da criadora, afinal “discutir” o conhecimento das circunstâncias com a fé de subverter é algo que se incorpora à imagem de um grito espontâneo, proveniente de quem não se cala diante do silêncio voraz, responsável pelas lágrimas femininas e pela opressão nelas sintetizadas. Logo, não admira a mulher ser o centro desta exposição de artes plásticas.

Inserida numa situação recorrentemente metafórica, telas como “Gaiola dourada” (óleo s/ tela, 177 x 214 cm), “Tesouro” (acrílico s/ tela, 140 x 200 cm) e “O caminho é longo” (óleo s/ tela, 140 x 190 cm) fazem da mulher, em Nua e crua, um ser absolutamente consumido pela sua condição maternal, pelo afecto natural proporcionado a quem sai do seu ventre, e, simultaneamente, alvo da dor causada pelos machismos de uma atmosfera ingrata, insensível ou, claro está, obtusa. Diante da orientação temática a que se dedica, torna-se impossível Suzy Bila não expor os seus conflitos interiores, acima de tudo, de quem busca o equilíbrio numa superfície tão oblíqua para as mulheres.

É verdade que Nua e crua é um manifesto ou então transporta algum. Mas, igualmente, é uma combinação de sentidos agradáveis, com analogias simplificadas em telas como “Luz divina” (óleo s/ tela, 177 x 214 cm), “O canhoeiro” (acrílico s/ tela, 200 x 233 cm) e “Do teu ventre renasço eternamente” (óleo s/ tela, 177 x 215 cm). Nestas obras, Suzy cultiva a ousadia de registar o instante, na primeira; a opção de cantar a bênção da protecção perpetuada por gestos, na segunda; e o contraste da essência das coisas, sempre omitindo enunciados, na terceira. Com esta simbiose, telas a dialogarem num todo, a individual aberta ao público até 5 de Maio, apresenta essa particularidade de conduzir o visitante na escolha de um lugar para morar, virtualmente, com o “Poema para a minha mãe” (acrílico s/ tela, 140 x 190 cm), tela com muitos traços pueris.

Portanto, Nua e crua serve para despertar sensibilidades e reorientar caminhos. A virtude da “nudez” de Suzy Bila está mesmo aí, na susceptibilidade de preencher as artes plásticas com alma e humanidade. 

 

Título: Nua e crua

Autora: Suzy Bila

Artes plásticas

Classificação: 14

  

 

 

 

“Há quem tenha medo que o medo acabe”
Mia Couto

O que de substancial se pode aprender dos jovens sudaneses e argelinos que recentemente recorreram a manifestações para dizer basta aos regimes ditatoriais com mais de duas décadas no poder? Ou que as eleições são impotentes para mudar governos em democracias precárias como as de África ou que o grito contra opressão quando se impõe por via de tudo ou nada quase sempre triunfa. Faltavam algumas semanas para eleições de 18 de Abril, quando jovens argelinos decidiram se opor à candidatura de Abdelaziz Bouteflika, antigo general de 82 anos que estava no poder havia 20 anos. Bouteflika, além de já estar velho para acompanhar a vida política do seu país com minúcia, vivia uma saúde frágil que lhe roubou a fala, o movimento dos pés e o afastou da esfera pública nos últimos cinco anos. Ante um homem desta condição orgânica desfavorável para comandar a coisa pública – pois na política, o aparecer e o parecer são de uma importância vital para conquista do eleitorado – o que custava aos argelinos esperarem pelas eleições que já estavam à vista para chumbar definitivamente a tentativa do quinto mandato presidencial de Bouteflika, sem terem de perturbar a ordem? 

A mesma indagação se coloca sobre os eventos políticos no Sudão – onde Omar al-Bashir, para além de estar no poder há 30 anos num país que se diz democrático, enfrenta acusações do TPI sobre crimes de guerra e crimes contra humanidade bem como a grave crise económica cuja responsabilidade recai sobre si. Bashir, à semelhança de Bouteflika, também se apresentava a olho nu como um candidato desfavorável para vencer as presidenciais. Entretanto, os sudaneses não quiseram esperar pelas urnas de voto para formalmente vaiar o presidente. Preferiram a arriscada desordem para pôr fim à governação deste presidente de 75 anos. Mas por que preferiram protestos a eleições para derrubar os seus governos ditatoriais? Simplesmente porque, em Estados ditatoriais, as eleições raramente expressão a vontade popular. São amiúde impotentes, putativas e contraproducentes.  Se um governo consegue ludibriar o seu povo durante quatro, cinco ou seis anos do mandato presidencial, difícil não será defraudar um dia de eleições por meio de compra de votos, de suborno aos agentes eleitorais e, ou, de intimidações à oposição. 

Contudo, não significa que as eleições tenham de ser banidas, ao todo, em países em desenvolvimento com democracias precárias. O que se deve maximizar é a educação dos povos e a politização das esferas públicas.

Quanto mais se elevar a consciência cívica dos cidadãos, mais votos “conscientes” cairão na boca das urnas e mais democrática tornar-se-á uma nação. Enquanto estas condições não forem estabelecidas, a todo custo, somente os protestos podem servir de luz no fundo do túnel. Somente os protestos podem construir um trampolim entre uma minoria ciente da sua opressão e uma maioria vulnerável ao populismo. Às vezes, a maioria ganha consciência da opressão, mas não se consegue mobilizar. Falta-lhe a liderança. Dai que é preciso que uma minoria seja a fonte de emancipação das massas. Perante a impotência das eleições, por razões acima mencionadas, a vontade das massas só ganha expressão em protestos populares.  Desta forma, os protestos apresentam-se como uma alternativa da democracia representativa. Os protestos populares configuram-se como uma democracia directa, pois são os próprios representados a falar diretamente com o governo de maneira civilizada ou rústica sobre os seus anseios, após períodos de esquecimento ou opressão. Assim sendo, o direito ao ajuntamento e manifestação é um dos direitos mais sagrados da democracia. 

Se se quiser avaliar a saúde da democracia de uma nação, basta contabilizar-se o número de protestos ocorridos num determinado período em função das crises existentes. Se as crises quer econômicas, políticas ou sociais persistem, mas as marchas nas ruas da cidade, os confrontos com a polícia são quase inexistentes, então, se está ante uma sociedade cobarde ou apolítica – para não dizer idiota como diria Aristóteles. E nessa nação não se pode falar da democracia.

Benditos sejam os protestos nas democracias como meio de comunicação entre governo e o povo sobre situações sensíveis que não podem passar em branco. O silêncio popular dentro de nações que se arrogam democráticas é a manifestação, por excelência, de um povo envelhecido pela ditadura.

O dito popular de “quem cala, consente” aplica-se perfeitamente na área política. Mas ele tem de ser suplantado com a expressão “quem se importa, não dá costas”, enfrenta, envolve-se, indigna-se, grita… E o grito dos indignados, por última instância, só se torna barulhento, quando dado nas ruas em uníssono. O mesmo grito só se torna insuportável quando a dor que o pari parte do íntimo de cada protestante. Ou seja, os protestantes que queiram se mostrar firmes nas suas exigências têm a obrigação de pessoalizar – não individualizar – os problemas que apoquentam a comunidade, a sociedade, o país, o continente, o mundo no seu todo. Enquanto se protestar com a consciência de que esta injustiça em objecto diz respeito ao outro, o movimento estará fadado ao fracasso. O ânimo facilmente poderá se esvair em cada empecilho que se opuser à marcha. É, portanto, mister a pessoalização dos problemas para que o grito na rua soe natural e sério. Ademais, o problema de outro não passa de um problema nosso, quando partilhamos o mesmo espaço, tempo e espécie. E só nos podemos considerar humanos numa relação ético-moral entre eu e outro. Por essa razão, o direito a protesto em Estados democráticos não só catapulta a maioria, bem como as minorias. A ditadura da maioria sobre as minorias, como tem havido em Estados democráticos, só pode ser minimizada ou contida com a garantia de protestos para todos. 

O cúmulo da liberdade de expressão dentro de uma nação traduz-se em respeito e atenção dados aos protestos. Mas dar respeito e atenção aos protestantes não significa logo ceder às suas reivindicações ou objeções, mas em primeiro lugar, permitir a criação de um espaço de diálogo em busca de uma solução necessária – e não uma solução de contenção. Julgo solução necessária aquela que responde à causa do problema e uma solução de contenção uma resposta ao efeito. Os protestos devem ser vistos não como uma queixa, mas como uma negociação, sobretudo, lógico-racional em que as duas partes em confronto se propõem a chegar à solução final, livre de emoções, ainda que num clima inquietante. A abertura a negociações não pode implicar na interrumpção dos protestos. Eles devem continuar, como forma de tornar o acordo urgente. Ademais, quando se quer governar, é preciso aprender-se a pensar sob a pressão, como um marinheiro que se sente obrigado a controlar o barco no meio da tempestade marítima.

Na política, não devem ser permitidos ensaios. Ou sabe governar ou cede o poder ao outro. Na política, todo o erro só é humano quando passível de correção. E os protestos não são o perdão, mas uma pressão para uma correção, com todos os riscos de os manifestantes dividirem uma cela com marginais e vítimas do sistema, ou acabarem deficientes devido a repressões abomináveis das forças de segurança, ou ainda acabarem hospitalizados ou mortos. Mas, seja como for, essas fatalidades não deviam servir de intimidações àqueles que são contra opressão e injustiça, porque os acidentes acontecem e são inexoráveis. Se não nos ocorrem numa marcha contra uma injustiça, podem nos ocorrer numa esquina de cerveja, num quarto com amante, ou num trabalho desgastante ou mesmo estando em casa sem fazer nada.

Para dizer que os acidentes acontecem, mas são de pouca monta perante causas que nos levam às ruas e nos tornam mais humanos.  
 
Hélder Augusto
O inconvencional
tsembah@gmail.com

 

Tão, somente, estamos diante de um escritor/poeta que, pese embora, a sua juventude, demonstra, já, afã de, como um alpinista decidido das letras, alcançar os píncaros do monte literatura. Esta é a sua segunda fase de escalamento, cuja secção é: NA PUBERDADE DO POEMA que, sendo o título da obra, o poema que o inspira fecha o transe poético do autor, em vista outros e mais transes. Nesta escala, Bwana Yesu, vai ganhando, mais do que mera visibilidade de quem se expõe, vai ganhando admiração pelo reconhecimento, sem rodeios, de que, ainda está na fase púbere da sua poesia. Uma espécie de autoflagelação. Mas é exagerada modéstia, apresentar a sua poesia estacionada no, mesmo que passageiro estágio de puberdade. É debutante nesta arte, mas pela força que imprime ao seu trabalho, a ela inerente, desde a génese da sua frequência no parnaso, já lêramos, em 2015, REINVENTAR MOÇAMBIQUE, é alguém em quem se pode e deve-se esperar mais e mais ao mesmo tempo que se investe na lapidação efectiva deste poeta nascente.

Nesta obra depara-se-nos, na Parte I, uma lírica que vai, de emoção em emoção, expondo os seus mais íntimos sentimentos, sobretudo quando o pano de fundo é Maria que tanto pode ser sua mãe, sua amada ou outras mulheres, comungando a mesma graça, são, de forma tripartida, susceptíveis de serem alvos das setas do cupido que repousam na bolsa que ele traz a tiracolo junto ao seu arco. No poema «Vozes Histéricas», o sujeito poético expressa a desconstrução da fabulosa deificação do ser humano dizendo: “Emancipamos erectos/A loucura dos deuses que somos/Tu e eu/Quando nos punimos pecando” ou em «Inverno de Minha AlmaIII» quando, a sua ausência significa o sofrimento de Maria ou seja, a desfolhada outonal de espera de floração noutra estação: “Quando já é outono na tua tarde, Maria/A minha presença nega-se a aparecer/ e tu, amada, vais acumulando uns frios para sofrer”; ou, ainda, no poema «Conquistar-te» quando o sujeito poético se divide, pelas Marias que ama: “Assim,/Vou-me tornando poeta/para cobrar-te, Maria/Este beijo, abraço, carinho e amor”. Quando a Maria vive no corpo da sua mãe, por exemplo, no poema «Hino à minha Maria»: “Juro, Maria, minha mãe/Juro, minha mãe, minha amada/Que minhas mãos, que não te entendem,/Clamam por tocar-te, sublimando/Todas as horas que te fazes deusa do meu império/(…)/Maria, mãe amada/Que vives a mesma vida todo o dia/Vende-me tua velhice, tua pele caída/A preço de outras vidas do amor”.

A Parte I deste livro «Não Vou ao Poema sem ti», é uma multiplicidade de fórmulas que Bwana Yesu emprestou ao sujeito poético para expressar os contornos líricos da sua alma que se redobra numa dança imagética que pintalga o amor com as cores que lhe são intrínsecas, porventura, seriam as do arco-íris que transportam no seu perfil a afabilidade, o fim de todos os breus e anunciam o brilho do novo e brilhante dia, musicado por milhentas aves canoras do mundo!  

Na Parte II do livro (Sociamada), Bwana Yesu vai para além do amor platónico, aquele em que o cupido se esfalfa buscando guarida para os seus mais íntimos desejos de satisfação, para a sua Paixão ou, simplesmente, transcende esse sentimento para atingir o social que, pela sua natureza, não se nega a socializar o amor.

É impressionante a analogia que sugere o poema «A Cópula», em que o autor dá ao sujeito poético o ensejo de, ao fazer que o acto copulativo entre duas pessoas seja transladado da fricção corporal, para o acto da escrita, pois, há identidade dos momentos que depois produzem o clímax, o clímax como resultado da cópula entre dois amantes e o clímax como resultado da cópula da escrita.

Aos moçambicanos que sonham, no poema «Sociedade», diz que “A vida deve recomeçar” e depois questiona “E nós… Renascer?”, perante a visão geral dos “Dedos que se roçam vazios/Bocas famintas, sem beijos/A chuva que cai já não molha/O medo da morte foi-se/Já não escrevemos nem sonhamos/Os horizontes tristonhos desvanecem; ou em «Complexidade»: “Falta-nos luz/Vamos apalpando,/Apalpando… até tocarmos os objectos/Faltando verdade/Vamos mentindo/Mentindo… até perdermos os objectos”; ou em «Poema urbano», em que os “mendigos que fabricamos”, são painéis vivos, ambulantes que nos apresentam na sua exposição pública “Num beco da cidade”, poemas “Num rosto chorando,/Numa margem de nervos”, poema “Num estômago vazio/De dono a partir/Para um sonho em neblina”; ou “O poema, sim,/De versos desgraçados/Da vida moribunda que vive/Das horas tristes que merecemos”.

Sente-se, no vibrar da verve de Bwana Yesu, o canto lírico e subjectivo, intimista se se quiser, que envolve o quotidiano de um sentimento, mas, também, a extensão cósmica desse sentimento, abrangendo, dessa forma, tudo o que completa as vivências de uma sociedade imbuída de si mesma e de tudo o que constitui o seu meio existencial.

 

 

 

 

 

Depois do adiamento do início do recenseamento eleitoral a 01 de Abril de 2019 – para as eleições de 15 de Outubro do presente ano, que visam a eleição do Presidente da República, deputados da Assembleia da República, governador provincial e os deputados das assembleias provinciais – devido aos efeitos combinados do ciclone Idai, chuvas e inundações que fustigaram as províncias do centro do país, o processo arrancou a 15 de Abril e, de um modo geral, reporta-se fraca afluência aos postos de recenseamento e, diga-se, muita ociosidade por parte dos brigadistas.

Para além dos trabalhos de mobilização levados a cabo pelo Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), muito pouco se tem feito, quer pelos partidos políticos, principais interessados no processo, porque participantes e disputam o poder, quer pela sociedade civil, que muitas vezes questiona a legitimidade dos eleitos, porque persiste a abstenção, pese embora esta última aconteça depois do processo de recenseamento. A aparente indiferença das forças vivas da sociedade pode sugerir um processo de pouco interesse, o que não é verdade.

Depois do processo de recenseamento, apura-se o número dos eleitores, o que determina o número de mandatos por círculo eleitoral e a partir daí começam os debates sobre prováveis “exclusões” de eleitores, porque se trata de base de apoio deste ou daquele outro partido. No entanto, na hora de chamar esses potenciais eleitores para cumprirem o dever cívico de se recensear, ninguém aparece a fazer o trabalho, resultando daqui fraca mobilização e falta de interesse pelos passos subsequentes, ou seja, os partidos políticos têm a oportunidade de mobilizar a sociedade para participar no recenseamento eleitoral e não o faz, fará acusações no futuro de algo em que não participou de forma voluntária.

É hora de mudarmos esta forma de ser e de estar nas organizações políticas. Não podemos viver à espera de criticar aquilo que não é feito, quando nós próprios temos a oportunidade soberana de participar e não o fazemos, incluindo as organizações da sociedade civil. Nos processos subsequentes, iremos organizar debates sobre o que não foi feito e lançar acusações a este ou aquele outro. No entanto, prevenir, para evitar que tais acusações tenham lugar, nada! Confesso que, como cidadão deste país, estou preocupado com o grau de participação dos eleitores nos postos de recenseamento. Algo deve ser feito para a reversão da situação, antes que seja tarde.

É certo que os deputados da Assembleia da República estão em actividade intensa, com a legislação que operacionaliza a descentralização, sendo que, grosso modo, o governo está ocupado com a problemática das cheias e inundações referidas acima, combinadas com o devastador ciclone Idai – é preciso dar resposta aos problemas causados por esta calamidade. Contudo, a vida deve acontecer de forma multidimensional, todos os sectores da sociedade devem reagir ao momento actual, sem excepção, sob pena de reagir fora do tempo, com os problemas que isso acarreta.

As atenções de personalidades como Sibindy estão viradas a convencer a Renamo a aceitar liderar a oposição e concorrer com um único candidato. Isso por si não é mau, no entanto, vira “piada” quando este debate ocorre nas redes sociais e não em sede das próprias organizações. O esforço que se despende nesses debates, se fosse na mobilização de eleitores para se registarem, teria outro e melhor impacto. Os restantes partidos de oposição não parlamentar não se sabe da sua agenda política, no entanto, quando as inscrições iniciarem para concorrerem, aparecerão como cogumelos em tempo de chuva. E porque ninguém lhes conhece a agenda, irão perder de forma copiosa e irão acusar o governo ou o partido no poder pela sua derrota.

Caros compatriotas, é hora de se trabalhar na mobilização dos potenciais eleitores com vista a participarem no processo, de forma a termos o maior número possível de eleitores inscritos; é hora de fazer um trabalho cívico nas bases para que, chegada a hora de pedir o voto, se faça na certeza de que aquelas pessoas que afluem aos comícios ou que acompanham caravanas de diferentes partidos ou organizações da sociedade são de facto eleitores. Não há, na minha perspectiva, o melhor momento de aparição pública que este, quando as coisas estão no início.

Por isso, exorto todos os cidadãos eleitores ou que completam 18 anos a 15 de Outubro de 2019 a registarem-se como eleitores, de forma a escolherem os seus dirigentes e representantes centrais e da província; exorto igualmente os partidos políticos, com assento parlamentar ou não, a que despendam esforço na mobilização de eleitores para se recensearem. O tempo é agora, é já!

 

Em 12 de abril de 2019, a Chevron anunciou ao mundo a aquisição da empresa de óleo e gás, Anadarko Petroleum, sediada em Houston, por incríveis 33 biliões de dólares.

Este acordo é considerado uma das maiores fusões no sector energético nos últimos anos e representa um marco importante na já necessária transformação de uns principais actores da indústria. Após a conclusão da transação, a Chevron tornar-se-á a segunda maior petrolífera internacional do mundo do ponto de vista produtivo.

O negócio, consumado em cash e ações, levou a Anadarko a valer US$65 por ação, um importante acréscimo de 37% em relação ao preço de fecho registado quinta-feira, no valor de US$46.80. O acordo garante à Chevron uma vantagem competitiva no mercado, e os seus activos recém-adquiridos tornarão a empresa uma concorrente de primeira linha frente às rivais como a Shell, a BP e especialmente a Exxon Mobil, que também possui activos importantes em Moçambique.

Para os que seguem esse mercado, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento dos activos da Anadarko em Moçambique, há já alguns anos que existem rumores sobre uma suposta compra, e a Exxon Mobil era unanimemente apontada como a potencial compradora. Contudo, a disputa foi travada entre a Chevron e a mini-major Occidental Petroleum.

Em dezembro de 2017, a Exxon adquiriu uma participação de 25% na Área 4 de Moçambique (ENI East Africa) e, desde esse momento, tem agitado o mercado com os seus esforços focados no desenvolvimento desse activo. A Exxon tem assumido uma postura agressiva a fim de garantir ainda mais concessões no país, tornando a sua presença cada vez mais notória.

O papel de Moçambique
Ainda que o grande foco por trás desta aquisição seja a corrida para dominar a Bacia do Permiano (a maior área de xisto na América, responsável pela explosão na produção petrolífera EUA), onde a Anadarko produz cerca de 4 biliões de BOE, Moçambique oferece à Chevron uma nova e bastante significativa expansão offshore e no setor dos GNL.

A Área 1 dos GNL de Moçambique, liderada pela Anadarko, deverá tornar-se uma das maiores exportadoras de GNL do mundo, tirando partido das enormes reservas de gás natural, localizadas nas jazidas offshore mais próximas.

A Chevron tem uma vasta experiência no que diz respeito ao desenvolvimento de operações de GNL. O seu historial inclui os enormes projetos Australianos Gorgon e Wheatstone, detendo também acções na Angola LNG (uma unidade de produção em Soyo, Angola com uma capacidade de produção de 5.2 milhões de toneladas por ano).

Os 33 biliões de dólares investidos na aquisição são um valor significativo, mas nem por isso se aproximam do impacto dos 130 biliões de receita que o projecto da Bacia do Rovuma da Anadarko gerará ao longo da sua vida útil, de acordo com Adriano Maleiane, Ministro das Finanças de Moçambique.

Apesar de a Anadarko ter feito um excelente trabalho no desenvolvimento do seu projecto moçambicano, trata-se ainda assim de um projecto de 20 biliões de dólares. O qual, de acordo com o Standard Bank Group, representará o maior investimento singular na história do continente africano. As dúvidas sobre a capacidade da Anadarko de levar o projeto avante sempre foram levantadas, o que justifica a especulação nos últimos anos em torno de uma eventual aquisição. Por outro lado, a Chevron possui o conhecimento, a experiência em GNL e a capacidade financeira para consumar o projecto. Além disso, não será a primeira vez que enfrentam questões como a situação de “rebel insurgency” que tem vindo a desenvolver-se no norte de Moçambique.

Sendo um dos maiores produtores da Nigéria, onde há várias décadas militantes têm praticado actos de sabotagem, sequestros e roubo de petróleo, não só a Chevron está preparada para enfrentar a questão, como também ajudará o país e o mercado a evoluírem em vários aspectos, entre eles a segurança.

Na minha opinião, trata-se de um negócio positivo para Moçambique, tendo em consideração que a Chevron é um importante actor petrolífero no contexto internacional, dotado de experiência e capital. Segundo os relatórios iniciais, está segura da sua intenção de fazer cumprir o calendário de desenvolvimentos propostos pela Anadarko. Com base nos recentes desenvolvimentos, acredito que as notícias sobre uma decisão final de investimento serão anunciadas brevemente.

O provérbio árabe que faz título deste artigo encaixa-se perfeitamente no que está a acontecer na Circular de Maputo. Em Setembro do ano passado escrevi um artigo a falar da impertinência de uma gigantesca obra de armazéns ao longo da Circular de Maputo, mas parece que os argumentos apresentados não convenceram quem de direito para impedir que a mesma continuasse.

Na recente visita de Estado ao Reino de Eswatini, o Presidente da República, Filipe Nyusi foi confrontado pela Confederação das Associações Económicas, CTA, da intenção de construir em associação com os empresários maswati um porto seco na mesma zona onde estão a ser construídos os mega armazéns.

Ficamos a saber que a pretensão da CTA foi inspirada mesmo nos armazéns da Agility que estão a ser construídos na Circular. Filipe Nyusi disse naltura que era a primeira vez que ouvia falar no tal projecto e de imediato questionou porquê daquele local, colocando as seguintes questões que passo a citar:

“Eu estou a ouvir pela primeira vez o vosso projecto e a vossa ideia. E podíamos discutir tecnicamente muitos aspectos, não sei se a localização é certa ou não, qual é o trâfego que nós ansiamos levar, para Chiango, vai para onde esse tráfego, vem donde, se é preciso fazer ramal e porquê Chiango e não Marracuene, Beluluane e não Bobole onde se pensa também fazer zona franca, etc, uma série de coisas”.

Quando ouvi estes questionamentos do Presidente fiquei com a sensação de que talvez tivesse lido o meu texto anterior, porque é o mesmo tipo de questionamento que antes colocara em relação ao projecto da Agility que não se difere muito de um Porto Seco.

A Circular em quase toda a sua extensão passa no meio de bairros, ou em áreas que deviam ser urbanizadas e torná-las zonas habitacionais, de turismo ou centro financeiros e colocar mesmo na sua zona nobre mega armazéns desvaloriza-se completamente a região.

Para além de que se coloca um movimento de camiões pesados no meio de bairros residenciais. Não sei por onde passarão os camiões que irão aos armazéns da Agility sem criar o mesmo caos e luto que criam os camiões que passam pela EN4 para o Porto de Maputo.

Não tenho dúvidas de que iremos questionar a decisão de se implantar mega armazéns naquele local no dia que os camiões começarem a criar acidentes ao longo daquela estrada. Tal como o Chefe de Estado questiono qual vai ser o tráfego que os camiões irão seguir? Vão seguir pela Grande Maputo passando pelos bairros Albazine, Mahlazine, Zimpeto, Cumbeza até EN1? Ou seguindo por Muhalazi, Matola Gare, Matlemele, etc? Ou seguirão a Circular entrando pela Marginal, depois 25 de Setembro até ao Porto de Maputo? Será que quem decidiu isso sabia que os bairros acima citados são dos mais habitados na periferia de Maputo?

Também partilho da ideia do Chefe de Estado de que Bobole, Bolaze, Matalane ao norte de Marracuene o projecto da Agility poderia estar muito bem localizado porque aqueles locais estão a se transformar em novo Parque Industrial da Província de Maputo e é para onde projectos daquela dimensão deviam ser encaminhados. Enquanto que no local onde está a ser erguido funcionariam projectos habitacionais, de escritórios, de turismo e lazer entre outros.

E mais, não sei se a Circular de Maputo foi concebida para receber tráfego de camiões de carga. Em toda a sua extensão não vejo báscula para pesar a carga transportada pelos camiões.

Senhor Presidente da República, o Porto Seco proposto pela CTA e que o questionou em Eswatini apenas seria o segundo projecto a ser erguido na mesma zona, porque o outro que é quase mesma coisa já está a ganhar forma na Circular de Maputo.

Será que alguém está disponível para pôr ordem na Circular de Maputo, por favor?

Que Deus abençoe Moçambique!

 

Se eu tivesse sido indigitado para fazer o comentário das partidas Moçambique-Malawi, em femininos, apenas escreveria: “Não há crónica dos jogos, porque não houve jogos”.
O que aconteceu, eu não poderia reportar como jogos de futebol, pois foram apenas – sobretudo do nosso lado – uns “chuta-chutas” sem nexo nem convicção. Tentar “impingir” aos leitores aquilo que se passou como sendo desporto-rei, não seria honesto da minha parte.

CONTRA-MÃO COM A EMANCIPAÇÃO
Em cima dos festejos da OMM, enquanto muitas moçambicanas se aperaltavam com lindas capulanas, o nosso futebol feminino brindava-nos com dois resultados negativos: 0-3 no Zimpeto, após um 0-11 no Malawi. Se as vitórias preparam-se e organizam-se, neste caso o que terá sido organizado?
E tudo dói mais pela diferença que apresenta em África, este mesmo país que, no voleibol de praia e basquetebol, por exemplo, conquista títulos que nada têm a ver com o “coitadismo” de que vimos falando!

É incompreensível, pois sabemos que há um esforço enorme da FIFA e da CAF em promover o futebol feminino pelo mundo. Moçambique recebe uma verba para a promoção da modalidade, cujo destino se limita a uma mini-movimentação anual que não ultrapassa os dois meses. De provinciais e distritais, não reza a história!
Em paralelo, com viagens à mistura, realiza-se uma prova que a Liga Desportiva Feminina leva a cabo e que não é reconhecida pela FMF. Esbanjam-se valores, zangam-se as comadres e…dá nisto!

De seguida, a inevitável pergunta: o que se segue? A resposta será a habitual:
“Há que levantar a cabeça e continuar (ou começar?) a trabalhar, até novas oportunidades, porque talento não nos falta”.

VERGONHA QUE NÃO DEVE MORRER SOLTEIRA
O que aconteceu nestas “brincadeirinhas”, foi a ridicularização de um jogo universal e do que se faz no nosso país. Temos dois campeonatos nacionais femininos, há sempre gente pronta a sentar-se nos camarotes ao lado das estruturas, na inauguração e encerramento, com pompa e circunstância.

Mas depois não nos explicam os “quês” e “porquês” de nos apresentarmos diante de um adversário que deveria estar ao nosso nível, com meninas claramente sem os fundamentos básicos para nos representarem. Se quando ganhamos, exalta-se o talento e o orgulho patriótico, exigindo-se prémios, ao suceder o contrário, com aberrações destas, não há espaço para responsabilização?

 

 

No Domingo vamos completar exactos 30 dias desde que o ciclone Idai passou pela Zona Centro do País, deixando um rasto de devastação de que Moçambique não tem memória. A tempestade viria a ser agravada com cheias que batem todos os recordes e agravaram ainda mais o nível de destruição e luto na província de Sofala.

À medida que o tempo passa e reduz o volume de notícias sobre as consequências destes fenómenos na vida de quase dois milhões de pessoas que foram afectadas, vai parecendo, no imaginário das sociedades que não foram afectadas, que a situação está controlada e que o momento crítico já passou. Essa ideia, que é natural, poderá nos levar a uma crise humanitária prolongada e com consequências nefastas para muitos dos nossos concidadãos.

No terreno, a situação continua a ser de emergência, ainda há muitas comunidades que estão isoladas, que nem de bicicleta ou motorizada é possível chegar até elas porque as vias de acesso estão intransitáveis. Ou porque ainda há água, ou porque caíram enormes árvores que bloquearam as vias ou estão demasiadamente danificadas que precisam de reparações. E porque as telecomunicações também ainda não estão restabelecidas, essas comunidades só podem ser identificadas através de contagens aéreas. Por isso, quase 30 dias depois ainda encontram-se comunidades que desde a tempestade não receberam qualquer tipo de ajuda ou assistência.

E por mais que tenham recebido qualquer tipo de apoio, as ajudas só podem chegar por via de helicópteros que não têm capacidade para levar muita quantidade de mantimentos, as povoações albergam muita gente e são numerosas e os meios aéreos para essas operações não são tantos assim.

Para evitar que a crise humanitária não se prolongue nas zonas rurais, o Governo precisa com carácter de urgência ter uma liderança política muito forte ao nível dos distritos severamente afectados para que possa acelerar o mapeamento de todas as povoações que precisam de ser assistidas, a quantidade de produtos necessários para as manter sem fome até elas puderem produzir nas suas machambas. Garantir a assistência médica, o acesso à água tratada e um dos aspectos mais importantes, distribuir sementes.

Há que ter em conta que as províncias de Sofala e Manica, que foram as que mais foram afectadas, têm índices de seroprevalência elevadas, o que significa que há portadores de HIV que estão há quase um mês sem fazer tratamento e a alimentarem-se inadequadamente, daí que mais do que duas brigadas médicas, que actualmente conseguem voar para povoados isolados, devia se aumentar o número.

Para evitar o prolongamento da crise humanitária, nas zonas rurais, é ainda crucial a distribuição de sementes de ciclo curto, porque assim as comunidades podem aproveitar a segunda época e produzirem a sua própria comida, o que equivale dizer que até Julho ou Agosto eles já podem fazer colheitas e passarem a ter o que comer. E a reposição das estradas poderá fazer com que em menos de um ano estas povoações voltem a ter rendimentos e refazem suas vidas.

Estas soluções funcionam para as zonas rurais, mas não são aplicáveis para a cidade da Beira. Aqui, para além das medidas de estímulos às empresas, para que se possam reconstruir vai ser preciso outro tipo de medidas, para reduzir o impacto da devastação na vida das pessoas que vivem na cidade.

É que para já todas as medidas que o Governo tomar e aplicar para reanimar a actividade das empresas, não vai, de forma alguma, evitar que as mesmas façam despedimentos massivos. O tempo que as empresas vão precisar para reconstruirem suas infra-estruturas, encomendar, importar e montar ou reparar a maquinaria danificada não pode manter trabalhadores ociosos. Até porque para se tornarem viáveis e recuperarem rapidamente precisam reduzir custos e pode passar por reduzir trabalhadores.

Pelo que, nos próximos meses, quem perdeu casa e maior parte dos seus bens, pode perder emprego e há que encontrar formas de minimizar o drama dessas pessoas que não serão poucas. Daí que, se calhar, uma das soluções podem ser encontradas no Instituto Nacional de Segurança Social. O Governo pode criar, de forma extraordinária, um subsídio de desemprego para aquelas pessoas que as empresas terão que despedir por conta da reestruturação para fazer face aos estragos causados pelo ciclone e cheias. Os beneficiários só devem ser pessoas despedidas, depois de 14 de Março, e que não tenha sido por motivos disciplinares e cessa no momento em que são readmitidas nas suas empresas ou outras.

A atribuição desse subsídio podia ser em estreita colaboração com as empresas e pode até ser 50% do que o trabalhador recebia antes do desastre. Entendo que sem este tipo de apoio aos trabalhadores a situação dos beirenses poderá ser dramática por muito mais tempo. E querer forçar as empresas a não diminuir pessoal por serem beneficiárias de incentivos pode vir a ser pior, porque não vão conseguir.

Portanto, de todas as formas, a sociedade moçambicana deve manter-se vigilante em relação à situação dos nossos concidadãos afectados pelo ciclone e pelas cheias porque vão precisar por mais tempo, do que podemos imaginar, da nossa ajuda e amparo.

Ao Governo Central, apelaria a não se dar por feliz com informações dadas pelos Governos locais porque muitas vezes escondem a realidade para dar a entender que estão a fazer um bom trabalho, cada informação tem de ser verificada no terreno porque a vaidade de um dirigente pode significar sofrimento de milhares de pessoas, quando até há condições de aliviar tal sofrimento, bastando o relato fiel do que está a acontecer no terreno. Este não é o momento de números bonitos, nem de vaidade de quem governa, é tempo de salvar pessoas e garantir que tenham dignidade e recuperem as suas vidas. É de pessoas que estamos a falar e não números.

Que Deus abençoe Moçambique!

 

De Marcos Matonse

Não raro sou confrontado com sortes agradáveis, ultimamente e confundo-me! Será pela idade que célere vai ganhando altura na escala do tempo? Será pelas experiências acumuladas ao longo do tempo em que exerço a actividade literária, nas suas mais variadas nuanças? Será pela facilidade com que disponho a minha amizade por aqueles que me rodeiam? Por todas estas razões, por uma delas ou por outras que hoje, agora e aqui não consigo expressar, há-de ser!

Sinto-me bastante lisonjeado por poder apresentar esta obra, a primeira de um autor que há bem pouco tempo tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Comecei a ler as suas produções poéticas iniciáticas quando coordenava a página cultural “Ler e Escrever” do jornal Domingo, entre 1991 e 1993. Não mais tive notícias suas, nem acesso àquilo que escrevia. Eis que, volvidos 13 anos, entre 2006 e 2013, volto a lê-lo, desta feita em ensaios literários, no jornal O PAÍS. Num rasgo de sorte, sou convidado, em 2015, pela “XIPALAPALA”, Associação de Jovens Escritores do Bairro de Hulene, para testemunhar o lançamento, na Universidade A Politécnica, da antologia: “SONHOS, CAMINHOS E LUTAS”. Em que me reencontro com a escrita de Matos Matosse. Foi um reencontro feliz, pois desta feita incluía a obra e o autor. Dois anos depois, neste ano em que decide a sua primeira obra poética individual, “A SOMBRA DOS SONHOS”, convida-me para o apresentar, publicamente.

Pois, este livro de Matos Matosse é uma obra criteriosamente estruturada em nove espartilhos ou andamentos poéticos, produzidos entre 1986 e 2009. É editado pela Tipografia e Editora Prelo Clássico, na Colecção XIKALAVITU, do grupo cultural MULIJU, do Bairro do Hulene, onde se encontra sedeada a Associação XIPALAPALA. Abre-lhe à estampa um interessante pórtico da autoria de Alex Barga que, para além da sua intrincada génese, explica os seus conteúdos; o Prefácio do nosso confrade, o escritor, Bento Baloi, que nos situa sobre a obra em nossas mãos, atribuindo-lhe lugar e tempo do seu surgimento no universo literário contemporâneo, pois, segundo este prefaciador, «A obra remete-nos a tempos, lugares e emoções da década de 80 aos dias correntes; do Ferroviário; do poeta de intervenção social ao lirismo nostálgico.».

Eis os grandes grupos temáticos, através dos quais, Matos Matosse estruturou a sua obra: Lirhandzu (Amor) – 19 poemas; Sonhos e Esperanças – 16 poemas; Metafísica – 7 poemas; Mahlomulu (Dor ou Sofrimento) – 21 poemas; Duas Odes2 poemas; Transcendências – 15 poemas; Confissões – 3 poemas; Vários episódios – 13 poemas; Parábolas – 2 poemas.
Embora o livro possa parecer uma intrincada mistura de diferentes tipos de temas, separados, encaixam-se, como se peças de um quebra-cabeças, formando uma figura inteira. Estou a pretender deixar clara esta figura, na análise de A SOMBRA DOS SONHOS.

Tema 1 (Lirhandzu)

Em “Lirhandzu” aborda os contornos deste nobre sentimento que diríamos, o primeiro que se nos acomete, logo a partir da nossa existência, ainda na placenta materna, até à nossa existência, inseridos, na família, na comunidade, na nossa sociedade restrita e na sociedade humana de uma forma geral. Esta abordagem manifesta as mais variadas facetas do amor, por exemplo, o amor platónico que, em tempos da antiguidade clássica chegou a levar Platão a sugerir a expulsão dos poetas da Pólis, por exacerbarem paixões lascivas no seio da sociedade, o que era contrário à moral e aos princípios estabelecidos. Diz ele, segundo Wimsatt e Brooks, que:

“… a poesia não é uma técnica racional, não é uma arte que tenha uma natureza definida. Não é uma filosofia, não tem um domínio específico. O poeta não fala de nada em particular, fala do que existe nas outras artes que não domina. Platão é negativo àquilo que fala de poesia como realidade.”

Ora, a visão poética de Platão é extremamente negativa e nisso, ele contrasta com Aristóteles que concebe a poesia ou a literatura em geral, como o espelho do universal ou seja: o texto literário não conta o que aconteceu ou que exista, mas o que é possível acontecer, o verosímil. Parte do particular para falar do possível.
 Os poemas: “Cacilda” (p. 13); “A pureza do teu amor” (p. 18); “Carta de amor para Jinny, meu grande amor” (p. 20); “Saudades (p. 24); “Dor” (p. 27), são uma mostra eloquente desse desvario do amor, em que, às vezes deparamos com “Amador sem coisa amada”.

Tema 2 (Sonhos e Esperanças)

“Sonhos e Esperanças” remete-nos ao preceito “ O que você pode ser, está totalmente nas suas mãos!”. Encontramos uma das grandes virtudes do ser humano que é ter sonhos e a partir deles alcançar o que almeja. Diz um grande poeta português, António Gedeão (pseudónimo de Rómulo de Carvalho), quando no seu livro “Movimento Perfeito”, de 1956, publica o célebre poema “A Pedra Filosofal”, lançando os fundamentos em que reside a realização, a partir dos sonhos, ou seja, Sonhos e Esperanças, em que diz: «Eles não sabem que o sonho/ é uma constante da vida/ tão concreta e definida/ como outra coisa qualquer/ … Eles não sabem, nem sonham/ que o sonho comanda a vida,/ Que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança,/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança. São exemplos os poemas: “ A chuva” (p. 39); “Início” (p. 40); “Reza, Marta” (p. 44). No poema “A Sombra dos Sonhos”, que dá título a presente obra, temos, contudo, a falsa imagem de que o sujeito político procura esquivar-se do facto do sonho ser uma constante da vida que faz o mundo pular e avançar, quando, nas penúltima e última estrofes, se expressa com contida dúvida: “É a sombra dos sonhos/ Que me nevoa/ – na imersão de noites manchadas/ De fantasias?! (…) Talvez uma melopeia de coisas mortas!”

Tema 3 (Metafísica)

Em “Metafísica”, Matos Matosse leva-nos numa viagem para o mundo que nos embarca espiritualmente para os segredos da nossa criação como seres inferiores, em constante procura de um ser superior que obrou tudo quanto é a matéria que nos envolve. São exemplos disso os poemas: “Dialéctica I” (p. 59); “Dialéctica II” (p. 60); “Mistério” (p. 61); “A Vida” (p. 62); “Filosofia” (p. 63).

Tema 4 (Mahlomulu)

Em “Mahlomulu”, o nosso poeta escalpela, disseca a dor ou o sofrimento, mostrando que, constantemente, cruzam-nos os caminhos, situações horripilantes que nos cerceiam os passos que pretendemos dar em frente. Os poemas: “Sinfonia” (p. 67); “Soltura adiada” (p. 68); “Mahlomulu” (p. 69); “Desesperação” (p. 70); “Esperança manchada” (p. 74).

Tema 5 (Duas Odes)

Em “Duas Odes”, são dois poemas: “Ode a ti” (p. 91); “Ode ao amor perdido” (p. 92), que só por si, simbolizam uma construção modernista, contrastando com o que, de facto é, canonicamente, o conceito de ode (Poema lírico cujas estrofes são simétricas (os versos possuem a mesma medida). Mas, mesmo contrariando os cânones, estes poemas cantam a mulher.

Tema 6 (Transcendências)

Em “Transcendências”, portanto, tudo o que se coloca acima de nós, para além do que imaginamos ser, o acima de nós, o além de nós no sentido transcendental, o intangível, enfim, o sobrenatural. Simbolizam estes estágios, os poemas: “Testamento I” (p. 95); “Somente a ilusão dos meus sonhos” (p. 96) “Escuto-te” (p. 97); “A sepultura” (p. 99); “Nós” (p. 103); “Ausência II” (p. 108).

Tema 7 (Confissões)

Em “Confissões”, o sujeito poético abre o espírito para exteriorizar os seus sentimentos, priorizando a confissão, como o testemunham os poemas: “Primeira confissão” (p. 111); “Segunda confissão” (p. 112); “Terceira confissão” (p. 114), ele faz a confissão do seu amor, portanto, não no sentido de alguma culpa, mas em declarações enleadas.

Tema 8 (Vários Episódios)

Em “Vários episódios”, Matos Matosse, nos poemas: “Infância” (p. 117); “Refutação” (p. 119); “Voto” (p. 120); “Concupiscência” (p.…), chama-nos, com a dispersão ou o eclectismo autoral no tratamento de diferentes assuntos por que se faz a vida, que fogem, um pouco, de considerações estanques. Ele traz-nos, nos poemas deste tema, a diversidade que faz a unidade, traduzida na  “A Sombra dos Sonhos”.
Tema 9 (Parábolas).

Em “Parábolas”, dois poemas que encerram o livro, funcionam como chave-de-ouro, pois são, como que uma apoteose; eventos que podem vir a ser factos da vida quotidiana, na qual se ilustre uma verdade moral ou espiritualidade: Parábola I” (p. 135); “Parábola II” (p. 136), não tanto como a parábola do filho pródigo, mas com laivos de moralidade ou de espiritualidade, desviados para uma, porém, falsa trivialidade, tendo em conta, o conceito clássico da centralidade parabólica, mas sempre à procura da distinção de significados, à procura da prolixidade, ou seja, a lubrificação, a multiplicidade das possibilidades interpretativas do texto literário, à procura de significações mais abrangentes, mais colectivas.

É uma obra que comporta poemas que se distribuem ao longo de 138 páginas que nos descrevem, o que, muitas vezes, não nos apercebemos que, cada sonho que temos comporta a sua sombra que o acompanha, a questão é como vencer essa sombra para que os sonhos vinguem.

Ninguém é perfeito nas suas acções quotidianas, todos os comportamentos humanos estão inquinados de imprecisões, de erros que lhes são próprios, portanto, Matos Matosse não pode ser uma excepção, por isso, reconhecendo algumas imprecisões no seu caminhar como poeta, mostra que o que ele pode ser como vate, tem-no nas suas próprias mãos e no apoio que qualquer de nós lhe possa dar, ao longo do seu percurso.

Parabéns, Matos Matosse, por esta obra “A SOMBRA DOS SONHOS” e segue em frente, com coragem, não se esquecendo que «O sonho é uma constante da vida (…) O sonho comanda a vida/ que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança.

 

 

A maior realização de uma criança reside no quanto ela pode brincar, criar e aprender. Não reside necessariamente no comer (em circunstâncias normais), até porque muitas delas choram quando o fazem. Outras chegam a comer na condição de poderem brincar em simultâneo. Comer e ser amada são necessidades que ela tem mas que nada tem a ver com ela. As actividades que ela pode desempenhar, incluindo estudar, são o centro da sua atenção e distracçao.

Todos nós nos comovemos com a Zinha, aquela menina dentre os 5 a 7 anos de idade, de joelhos numa esteira, por cima da qual colocou os seus livros a secar, após estes se terem molhado na sequência do ciclone IDAI.

Um olhar frustrado, impotente e impaciente. Como se as horas nunca mais passassem.

Se para nós adultos nos dói sentar e olhar para um problema, rezando ou torcendo para que o tempo o cure, imaginem para uma criança, que por natureza não vê nem sente o tempo a passar? Uma criança que, quiçá pela primeira vez sente-se responsável pelo que não fez e sente a pressão de resolver tal problema porque as aulas devem efectivamente continuar.

Zinha murchou, tal como milhares de crianças que viram seus sonhos postos em causa, pelo ciclone IDAI.

A devastação foi aquela que vimos. Por alguma razão, Zinha foi para mim a incorporação de toda aquela devastação: frustração, impotência, não culpabilidade e, força de vontade para juntar os trapos e recomeçar, custe o que custar.

E porque: “se educares um homem, estás a educar um indivíduo, mas se educares uma mulher, estás a educar uma nação inteira”, Zinha representa o futuro da mulher moçambicana, que deve continuamente lutar pela sua emancipação plena.

Se as crianças são o grupo mais vulnerável, agudiza-se a situação da menina moçambicana que, por falta de condições económicas sujeita-se ao casamento prematuro, que para ela, tem um efeito mais devastador que o do ciclone – este não tem de imperiosamente destruir tudo e todos que por ele são afectados, enquanto que, em casamentos prematuros, não existe atenuante para sua força destrutiva.

Existe a nececidade de se priorizar a reconstrução e reabilitação de escolas; a construção de lares para acolher todas as crianças orfãs do IDAI. E tais infraestruturas devem ter uma especial atenção à condição da rapariga pois esta sim, é a verdadeira formadora do Homem novo.

Obrigada,

Cri

 

 

Uma obra é eterna, não por impor um sentido único a homens diferentes,

mas por sugerir sentidos diferentes a um só homem

René Wellek e Austin Warren

 

Na Antiguidade Clássica, autores como Aristóteles defendiam que, na produção do drama, não se devia misturar a tragédia e a comédia, pois, se o primeiro tipo de texto implicava a representação de seres superiores, como deuses, reis e etc., o segundo passava pela imitação de seres inferiores, se quisermos, comuns.

As marcas dramáticas que há mais de 2000 anos deveriam estar em textos separados, de há uns cinco séculos para cá, numa simbiose cheia de autenticidade, sem proibições canónicas, contribuem para o que os homens do teatro consideram tragicomédia, isto é, fragmentos da tragédia e da comédia num único texto. (Des)mascarados, de Venâncio Calisto, é um pouco dessa mistura de estilos, o centro em qualquer tentativa de se associar a peça a tão monótona polaridade Mutumbela vs. Gungu.

A obra teatral, exibida há uma semana no CCFM, é um espectáculo digno desse título. E, para o efeito, não precisou de várias atribuições ou de um elenco de artistas com nomes pesados. Ao encenador, também dramaturgo, bastaram-lhe a lucidez da loucura, uma câmara nos olhos e a subtileza de concretizar em palavras, no papel, toda essa atmosfera real, que de tanto fantástica, chegando a oscilar entre o estranho e o maravilhoso, chega a ser quase fictícia.

Propondo-se a trabalhar o quotidiano moçambicano Calisto arriscou-se a produzir um espectáculo com um tema já gasto. Retratado de mil e uma maneiras, por músicos, escritores e grupos teatrais. Aliás, também há uma semana, o grupo Mintsu apresentou uma peça de Emerson Mapanga com o mesmo teor que (Des)mascarados: a subalternização da mulher, a configuração do género feminino como elemento fundamentalmente procriador, a representação do amor em ambientes de cólera, a oposição fidelidade vs. adultério e o paradoxo entre o moderno e a convicção enraizada nas tradições. Mesmo tendo-se arriscado tanto no processamento da verosimilhança, aquilo poderia ter acabado num cliché enfadonho, Venâncio Calisto superou-se, quer em termos de dramaturgia quer em encenação. Daí ter conseguido montar uma peça intrigante, impondo-nos vários sentidos interpretativos na eternidade dos minutos que durou.

Não obstante, porque um espectáculo teatral não depende apenas de dramaturgia e encenação, enaltece (Des)mascarados o charme de Rita Couto, no papel de Arcanjo, quem nos faz olvidar a sua condição de mulher na delicada tarefa de fingir ser o oposto do que rigorosamente é. Já havíamos a visto como boa “neta de Ngungunyane”, há um ano, entretanto, em (Des)mascarados a actriz ultrapassa os limites do apenas interessante. Eleva-se tanto que consegue ter um falo entre as pernas e barba em toda a cara. Ao menos assim a vimos ao actuar com Sufaida Moyane, Amélia na peça, outra “neta de Ngungunyane” que nos lembra tanto Lucrécia Paco. Não poderíamos encontrar outra forma de dizer que se vaticina um futuro auspicioso para jovem actriz, de uma singularidade rara e bem cara.

O espectáculo de Calisto é, na verdade, uma história de amor, na qual Amélia tenta ser águia, de modo a tocar a plenitude. No entanto, há um boicote que é obrigada a ultrapassar: o grande liberal que tem em casa, o marido Arcanjo, quem, desejando bem à esposa, não é indiferente à necessidade de ser pai. Então assim instaura-se uma querela tácita e simultaneamente expressa. À volta disso gira o enredo, na dicotomia sonhos vs. desejo e sonhos vs. oportunidades. Nisso, a questão que se coloca é: quem vai livrar-se da máscara primeiro? Enquanto a resposta não surge, a peça vai desenrolando histórias paralelas, cruzando honestidade e falsidade, o ritmo e a dança hilariante. O som é bom e os passos oportunos, porém ficou estranha a presença dos dois músicos no palco (Carlos Ebu e Robath Estevão). Aquele local sagrado não lhes pertence, mas aos personagens. Então, estivessem a tocar nos bastidores, passariam discretos pelo espectáculo como se impunha, sem disputarem atenção com Arcanjo e Amélia.  

Seja como for, (Des)mascarados é um trabalho de recriação da vida, dos melodramas da mulher, num tempo e espaço sugestivos. Na peça, de facto, nos revimos e, com algum discernimento, questionamos a ordem naturalizada das coisas.

 

Título: (Des)mascarados

Autor/Encenação: Venâncio Calisto

Classificação: 15  

“Bíblia Lounge”, este livro de poemas que temos entre mãos, assemelha-se a um lugar amplo, de retiro espiritual, para dentro do qual somos convidados a uma reflexão. Sem se tratar de um retiro de cariz religioso, com cultos canonizados, mas com a religiosidade que a poesia reclama para ser lida, escutada, percebida, interpretada, interiorizada, e decifrados os seus labirintos, que escondem nas suas dobras, um desfile de enigmas que se entrelaçam no binómio Utopia Vs. Realidade.

Esta obra de Nkhululeko é uma vigorosa expressão de labor poético que, trilhando nos novos caminhos resultantes do desbravamento que leva o visco do modernismo, permite que nos compenetremos numa evolução poética interessante que teve o seu Alfa com o livro “Há Gritos no Silêncio”, de 2011, que deveria merecer uma visita retrospectiva que nos permitiria compreender melhor esta evolução.

O retiro que nos é aqui proposto, neste “Bíblia Lounge”, não corre como um vão! Não é dúctil, no sentido de ausência de rompimento, que só vai fechar com a exposição do último poema: “Ressurreição”, do destino e das rezões que fizeram desaparecer, na percepção do sujeito poético, o poema que embrulhava “As tangerinas de Inhambane” e “O menino magro” com os seus balõezinhos, suplicando pela ressurreição do Mestre com os seus antídotos! Trata-se de uma reflexão espartilhada em três estações que tonalizam as nossas emoções, como o fazem a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno, que nomeiam as manifestações meteorológicas que exercem sobre nós a descontinuada sensibilidade do estado do tempo que vai escorrendo! São, apenas, três estações, mas com o mesmo toque sensitivo daquelas!

São três estações reflexivas que nos embalarão na nossa viagem espiritual poética!

“Bíblia Lounge”: o frontispício do espaço que se abre diante de nós, para a nossa reflexão;

“Muthimba”: a dança sugerida às nossas mentes, na busca profunda no imo do sujeito poético. Indicia-a o poema “Encenação?” que nos obriga a um rodopio mental necessário para a percepção das dobras do retiro que nos apela;

“Dumba Nengue”: um final expressivo, longe do escapismo, se nos ativermos na etimologia da expressão linguística empregue. Não uma fuga, no sentido literal, mas um apelo a um retorno às nossas lindas e ricas tradições, mesmo que utópicas, mas sempre revigorantes.

A apresentação deste livro não foi tão simples quanto poderia parecer! Pois, trata-se, não de surgimento, mas de continuidade da actividade literária de um jovem que procura os caminhos da consagração ou da identidade nesta área. Não foi fácil achar o que dizer!

Quando tudo começou, Leco Nkhululeko era, apenas, um debutante, um anónimo na literatura. Conhecemo-nos em 2009, já lá vão 10 anos, quando ele acabava de ganhar, com o poema “Sangue de Darfur” uma menção honrosa num concurso mundial de poesia, promovido pela República Italiana, denominado PRÉMIO NÓSSIDE, na sua XXV edição. Naquele prémio, concorriam poetas de 42 países localizados em todos os continentes. Cada concorrente usou a principal língua comunicacional do seu país. O poema premiado foi seleccionado para a antologia poética NÓSSIDE 2009, idealizada para eternizar aquele evento. Nkhululeko, trabalhava, já, na compilação de poemas seus, para publicá-los no que seria o seu primeiro livro.

O elo que nos ligou, foi o seu amigo Cláudio, meu filho. A nossa aproximação foi benéfica, para ambos: Ele ganhou alguma experiência; eu conheci um jovem de vontade e garra, que me fez estender a minha visão analítica a tantos outros jovens que se vão revelando na nossa literatura.

Como se pode depreender, Leco Nkhululeko, antes de entrar para o cânone nacional de literatura, já era reconhecido internacionalmente como poeta. O tal nosso paradoxo de reconhecimento literário vir de fora e só assim, os olhos domésticos nos vêm.

Não resisti ao seu convite para o assessorar na sua promissora carreira. Li os poemas já compilados, sob o título: “Há gritos no silêncio”. Dada a minha opinião, humilde e incondicional, o nosso poeta, então emergente, pôs-me a prefaciar esse livro e a apresenta-lo publicamente. Devo dizer, sem rodeios e com orgulho, que esse livro valeu-lhe o reconhecimento de muitos leitores, sobretudo dos seus amigos mais próximos, não apenas pelo acto de lançamento que aconteceu, mas, e sobretudo, pela capacidade que ele demonstrou ao levar o livro ao palco de um recital, coordenado com um elenco meticulosamente preparado, exibindo uma desusada performance no nosso meio literário! Tem feito vários recitais declamatórios, baseados na sua produção poética, o que constituiu uma garantia para a continuação, e hoje estamos aqui a testemunhar o nascimento do seu segundo trabalho poético em livro, sob o título: “Bíblia Lounge”.

Li o livro ainda em preparação. Confesso que fiquei impressionado com a evolução técnica e estética do labor poético, sobretudo a sua concentração sobre vários aspectos sociais que lhe deram uma rede vasta, sobre a qual trabalhou. Aprendi, com este acto, porque cada exercício destes é um aprendizado. O apresentador do livro, elaborará com mais profundidade e precisão sobre os vários aspectos do mesmo.

Agora, nós, Leco Nkhululeko!

Endereço-te um veemente pedido, para que não embandeires em arco ainda, porque a procissão ainda vai no adro; ainda não é tempo de te julgares uma obra acabada no seio da classe literária! As tuas costas ainda vão ser dardejadas pelos raios fortes do sol literário; ainda vais lavrar muito, esse árido mas fértil solo, para que dele brotem as sementes que fores lançando. Deves ser humilde, leitor e estudioso, não só de livros, mas também dos sinais que a sociedade em que estás inserido te vai dando; deves-te apurar continuamente e, quando chegar o momento, ninguém te vai proclamar, tu sentirás dentro de ti, que já és poeta! Ninguém está autorizado a proclamar poetas e escritores, nem existe, para já, autoridade definida para o efeito, porque, a própria literatura ainda não está definida universalmente. A actividade literária é subjectiva, cada um se avisa a si próprio do movimento das marés! A verve e o verbo nascem, apuram-se e se erguem dentro de nós, depois de largo tempo de trabalho aturado. Os que nos galardoam, deve ser por rendição ante o nosso trabalho. Eles não o devem fazer de forma paternalista. E quando não nos galardoam, não nos devemos inferiorizar, não devemos ficar complexados, aliás, isso deve constituir motivo para trabalharmos com mais afinco, elevar o nosso ânimo. A humildade que aqui te sugiro, não é passividade, não é submissão, é respeito: primeiro, por ti próprio e no que fazes, e, depois, no que te rodeia: pessoas, fenómenos e coisas.

Não corras atrás de aplausos, de louros, de forma gananciosa. Tudo isso se ganha com suor. Trabalha, e cada vez mais; não te distraias com falsas adulações; não te guies pela bajulação. Sentirás, no teu íntimo, chegado o momento, que, afinal, és poeta! Não te autoproclames, mesmo assim! Trabalha.

Isto vale para todos os jovens que decidiram abraçar esta nobre arte de cantar a alma da sua sociedade, neste caso, da sociedade moçambicana!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nem a loucura do amor

Da maconha, do pó

Do tabaco e do álcool

Vale a loucura do actor

Quando se abre em flor

Sob as luzes no palco

 

Sirvo-me deste excerto da música de Caetano Veloso, intitulada “Merda”, essa palavra sagrada do teatro, para agradecer a Rita Couto, Sufaida Moyane e Lucrécia Paco, a grande inspiração e luz do teatro moçambicano, que infelizmente não pode actuar connosco hoje, mas sempre fará parte desta família, desta criação que tivemos a oportunidade de levar para todos vocês neste dia tão especial, Dia Mundial do Teatro. Agradeço, primeiro, às actrizes porque elas, assim como os actores em geral, têm a nobre e difícil missão de materializar as ilusões e utopias do encenador e do dramaturgo. Na verdade, eles é que são o próprio teatro. Por isso peço uma salva de palmas para todos actores de todos lugares e de todas as épocas.

O teatro não tem época. É contemporâneo de todos os homens. E sempre esteve lado a lado com a humanidade, sempre em prontidão, como um sol, que nos permite descortinar com mais profundidade e discernimento a vida. O teatro é o lugar que nos permite “viver instantes de pura verdade”, diz-nos Carlos Cidrón, dramaturgo e encenador cubano incumbido de escrever a mensagem oficial da UNESCO, para a celebração do Dia Mundial do Teatro, este ano. E cito-o não só por concordar com ele mas pela necessidade de acrescentar que o teatro é também o lugar da khatarsi, da purificação da alma, tal como Aristóteles argumenta na sua Poética escrita há milhares de anos.

A Khatarsi é um momento de deleite e ao mesmo tempo de terapia. A mais pura manifestação do belo e da dimensão de cura espiritual. Não é a toa que se diz que o teatro é uma religião, mas sem dogmas, pois os seus métodos, técnicas e estéticas estão em constante criação. Todos merecem ter um momento de Khatarsi. E no dia que todos compreenderem que o teatro, e a arte em geral, é o guardião desta mágica sensação, talvez aí os seus fazedores passarão a ter o tratamento político e social que tanto falta neste país. E, finalmente, o teatro assumirá a sua real dignidade, que é a de devolver dignidade à humanidade, cada vez mais fria e materialista.

Falo da khatarsi porque me causa angústia e indignação o problema do acesso a arte e, em particular, do teatro no nosso país. Quantos milhões de moçambicanos crescem desprovidos desta dádiva? Quanto terreno a escuridão vai ganhando? “A cultura é o sol que nunca desce”, disse o presidente Samora Machel e eu acrescento, é urgente levar a luz para a periferia, para as zonas rurais, é urgente iluminar o país de arte e cultura. Porque a arte humaniza, educa, diverte e faz pensar.

 A arte proporciona a Khatarsi, a purificação de emoções ou, se quisermos, na gíria popular, alivia o stress, que é o que não falta no nosso dia-a-dia. Quantas senhoras, nos nossos bairros, aldeias ou vilas, porque nunca tiveram acesso a khatarsi por via do contacto com a arte, libertam o seu stress em forma de violência, batendo nos seus filhos ou discutindo com a vizinhança? Quantos senhores e jovens, até mesmo adolescentes, pensam que só a bebida pode ser a alternativa para atingir a Khatarsi, esse nirvana que devia ser partilhado por todos nós?

Os números são infinitos e acredito que todos temos consciência disso. Por isso é essa consciência que apelo, que cada um de nós seja vínculo, a ponte que permita que mais moçambicanos e gentes de todo o mundo tenham a oportunidade de experienciar a Khatarsi, a nossa tâmara que nos alivia do peso desta vida, muitas vezes feita de desertos e mar de espinhos.

A minha ponte foram homens e mulheres do nosso teatro: Eldorado Dabula, Manuela Soeiro, Evaristo Abreu, Lucrécia Paco, Rogério Manjate, Dadivo José, Maria Atália, Belmiro Adamugy, Joaquim Matavel, Victor Gonçalves, António Cabrita, enfim, eis alguns exemplos dos pilares que me fazem nunca desistir deste sonho. Por isso quero agradecê-los pelos ensinamentos e apoio incondicional e prometer diante de vós partilhar com os outros tudo quanto me ensinaram.

Agradeço também ao meu elenco, a Sara Machado, pelos figurinos, cenários e pela humildade, esse gesto tão humano e humanizante, que não pára de me transmitir. Agradecer os músicos, Robath Cristóvão e Carlos Ebú, por essa evocação espiritual do Mapiko. Muito obrigado Adelium Castelo e Celso Magupela, por registarem, com vossas lentes mágicas, este momento tão especial para nós.

Os agradecimentos estendem-se para o CCFM, por receber o nosso projecto, esperamos estar aqui mais vezes. Ao CCBM, Teatro Avenida e à FFLC, pelo apoio nos ensaios e adereços usados no espectáculo…

Viva o Dia Mundial do Teatro, hoje e sempre!

 

*Mensagem lida depois da apresentação do espectáculo “(Des)mascarado”, de Venâncio Calisto, apresentado no dia 27 de Março no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo.

   Deusa d’Africa, uma voz das entranhas

Deusa d’Africa nasceu em 1988 em Xai­?Xai e é co­?fundadora do grupo cultural Xitende (Núcleo Literário do Xai­?Xai). Organizou em colaboração uma colectânea poética de autores de Gaza e Niassa (2014), uma obra na área da ficção intitulada Equidade no Reino Celestial (Editora das Letras, S.A, 2014) e publicou os livros de poemas A Voz das Minhas Entranhas (com um prefácio de Paulina Chiziane, 2014) e Ao Encontro da Vida ou da Morte (Editora das Letras, S.A, 2014).

O segundo livro de poemas que vou analisar com mais pormenor, atrás referido, tem uma epígrafe da autora que porventura já orienta filosófica e tematicamente o leitor: “Os homens são o que são, e os leões apenas feras inocentes”. Ou seja, à partida a autora descredibiliza a condição humana, a sua prática predatória consciente.

A obra está organizada em quatro partes, designadas: Ao Encontro da Vida, A Cidade Adormecida, A Des­truição da Cidade, Ao Encontro da Morte e encontramos 25 longos poemas intitulados “Confissão”. Esta insistência no título remete de imediato para um conteúdo religioso e de encenação autobiográfica.

Na história literária temos pelo menos duas obras com este título, uma de Rousseau e outra de Santo Agostinho. A confissão aponta para uma dimensão pessoal e colectiva nos poemas de Deusa d’Africa, pseudónimo com que a autora se assume como sujeito, que enaltece de imediato a forma transcendente de uma presença feminina, tutelar africana. E que inclusive ganha estatuto de personagem dramática em alguns dos poemas.

Assistimos a vários auto-retratos nas confissões/poemas, que podem ser lidos como representação da figura feminina de África, ainda hoje neo­?colo­nizada, ou da cidade suburbana, ou ainda da mulher subalternizada e dependente; alegoricamente há uma voz que se apresenta como interpeladora e denunciante dos males que esta personagem colectiva de mulher enfrenta, em estrofes que redundante e oratoriamente apelam o leitor/ouvinte.

Os sete dias de um casamento, ao invés dos sete dias da criação, mostram a progressiva destruição das ilusões femininas, e a rede de obrigações em que a mulher, enquanto ser, fica presa, na dependência familiar e no quadro dos preconceitos que a prendem socialmente:

“(…) Sétimo dia pós casamento/ Céu nublado e com câmeras/ Fotografaram a precipitação das entranhas/ Dum e outro em casa no final­?de­?semana/ Raiva ao ver roupas rasgadas/ Para coser e lavar sujas, obrigação de uma dona de casa (…) Como se ele pudesse a devolver, só por não parir o filho almejado, / Finalmente consegue amá­?la até à última página e devolve à estante/ Preparando­?se para comentar com os amigos sobre novas garotas a conquistar.” (62)

Lemos de forma constante na poesia de Deusa d’África uma denúncia crítica sobre a situação feminina e sobre as relações de género.

Há por vezes na sua escrita um ritmo de abundância no verso que se excede sem margens limítrofes, como a subida inesperada de um rio, que leva consigo o que está à frente. Este vozear das entranhas da poesia, que por vezes se aparenta à palavra de pregação, ou de anunciação, mostrando uma relação intertextual com os textos de origem bíblica, trata de muitos assuntos, como por exemplo da História de Gaza, da dominação colonial, da religião, do amor, das relações homem mulher, do desejo de liberdade para as mulheres, da miséria e injustiça sociais, das iniquidades humanas. Os poemas pontuam, revelam, a perplexidade da interrogação e o testemunho moral de uma condenação/ confissão. A dramaticidade, a mistura de géneros, irrompe no texto de Deusa d’África, como uma complexa teia de discursos que se fazem ouvir, ou com entrada em cena de outras vozes:

“Ngungunhane: Minha menina Deusa d’Africa/ Que fizeste em África/ Teu povo continua com repugnância de si mesmo/ E ainda clama pela independência sendo escravo de si mesmo/ Quantos jovens vestiram sua nudez/ Exaltando a música americana/ Quantas vezes lembraram vossos ancestrais e pediram o Pangolim/ Quantas vezes te ocupaste na plantação de swithokozelos (…)” (64­?5)

Eminentemente purgatória e crítica a escrita de Deusa d’Africa apresenta-se como uma exploração ambivalente e desmesurada de uma voz que se espirala de múltiplas outras vozes, que deseja encontrar/reclamar elementos culturais e linguísticos próprios, nativos, mas que, simultaneamente, demanda a modernidade da poesia ocidental através de muitas das dedicatórias. Uma escrita em processo e polivalente nas escolhas de ritmos e temas.

 

Lica Sebastião, uma voz irónica e reflexiva

Lica Sebastião nasceu em Maputo em 1963. Publicou Poemas sem Véu (Alcance Editores, 2011) Ciclos da Minha Alma cidade, sol e vento a palavra é uma máscara (Chiado Editora, 2015), De Terra, vento e fogo (Kapulana Editora, 2015).

Estamos perante um voz aparentemente confessional, diria serena, que escreve poemas quase como anotações de uma página de diário, ora num verso prosaico, ora encenando um sujeito lírico, que vai reflectindo sobre as suas emoções e as dos outros, sobre a escrita, o quotidiano.

Observamos no primeiro livro Poemas sem Véu, que a voz de Lica Sebastião é finamente irónica e o seu olhar de espectador ora se aproxima ora se afasta daquilo que o verso descreve, como se pode ler no poema Saudade: “vou juntar todos os pedacinhos de ternura/ que me deixaste no corpo e na memória/ e com eles alimentar o meu coração./ Depois no sossego do meu ser,/ vou adormecer” (9). Há neste livro um conjunto de poemas que trata da ausência e dos sentidos que ela desperta, trata também da espera, e por assim dizer, do amor; a voz do sujeito vai dissecando a emoção que resulta de tudo isto.

Vejamos o poema Resquícios de ti: “Lavei­?me toda com fragâncias de alfazema;/ Todavia, o acre da tua essência,/ o acrílico das tuas telas/ não se desprenderam dos meus sentidos,/ Troquei o Sim Card.// Em vão” (19).

As (in)confidências de Lica Sebastião encenam a sinceridade, de uma maneira surpreendentemente tranquila, sem entusiasmos, quase à maneira de uma abnegada resignação pessoana:

Meu silêncio/ mais não é temor do atrevimento, da vaidade fútil.// Pouco emotiva não sou.// Encanto­?me com risos verdadeiros,/ aplaudo adeptos de sobrevivências,/ viajo sonhos de adolescência e de plenitude.// Desaponto­?me com a incompreensão de mim./ Vivo emoções.”(22).

 

Eu diria que Lica vive e, depois, desconstrói as suas emoções…. com sabedoria:

“Sabes lá dos sonhos que sonhei esta noite./ Posso mostrar­?te o atalho que percorri/ até desembocar na praia deserta /e quantas mãos toquei imaginando serem as tuas…// mal soletras as duas sílabas do meu nome.” (44).

A forma como a poeta pensa a língua é também finamente narrativizada com a ironia de quem observa: “O meu professor de português tinha um ritual;/leitura, interpretação e, depois, gramática.// Apaixonei­?me pelo adjectivo:/ qualificativo de cores, odores, paisagens, políticos,/ gente (56).

O segundo livro da autora Ciclos da Minha Alma cidade, sol e vento a palavra é uma máscara reúne um conjunto de breves poemas ora descritivos da cidade e dos elementos, ora das emoções, e anota no título a simulação da escrita, a consciência da teatralidade.

Poeira,/ sol,/ céu branco, sem luar,/ calca­?se o chão da cidade;/ passos indecisos. (p. 27). Dá­?me um mapa do teu palpitar// O que plantar nas tuas encostas?/ Papoilas?/ Cravos?/ Pés de maracujá?/ Tudo.// Vou colher cores, sabores, sem conta. (p. 65).

Fiz um poema para o meu amor./ Versos arejados, sem tom, sem rima./ Veio a resposta: “não gostei”.// Enviei­?os a dois amigos/ Ofereceram­?me um sorriso morno,/ e guardaram­?nos como segredo. (63).

No seu livro De Terra, vento e fogo (2015), que contém poemas em que a voz poética se adensa, Lica continua perseguindo a ironia apegada à emoção, a escrita como esgrima dos sentidos e edificação do amor: “Os versos que te escrevo,/ porque outro recurso não tenho de tos dizer,/ edificam uma moradia/ para as minhas emoções” (69).

A auto­?ironia e o jogo entre emoção e reflexão lê­?se também nesta espécie de auto­?retrato:

Sou tão forte e audaz./ A minha magreza é temperada de terra, vento e fogo./ Grito à chuva impropérios,/ descalço os pés sobre a lava,/ enfrento os demónios do tédio,/ troço das minhas próprias fraquezas,/ ofereço o silêncio perpétuo aos que mal me querem.// Perante ti desfaleço. (p. 49).

A escrita de Lica Sebastião é de uma serenidade inquieta, polida de ironia constante, um verso que nos sorri evasivo.

 

O desprezo aniquila os grandes sentimentos humanos

Eduardo Correia de Matos

 

Deveria ter durado 54 min., mas a peça do grupo Mintsu, apresentada no CCBM, atingiu o minuto 80. Ainda bem, afinal, na véspera do Dia Mundial do Teatro, sempre deu para reviver a realidade moçambicana retratada num universo em que, muitas vezes, colocámo-nos a rir das nossas desgraças, entre evasão e terapia.

O título da peça do Mintsu é O padecer das Rosas, obra constituída por sete personagens representados por seis actores em ascensão, com potencialidade em abundância. Por isso, o que é uma boa trama, no capítulo da dramaturgia, rapidamente transcende-se.

A história da peça é muito simples. Há um casal no enredo: Rosita e Albasine. Devotos ao amor recíproco, ambos provam o azedume do preconceito personificado numa tia, Mothasse, contra a ideia de uma mulher estéril para o sobrinho. Convicta de que os filhos não enchem o lar do casal pela incapacidade de Rosita (Ramadan Matusse), Mothasse (Armando Mazoio) envenena Albasine (Arsénio Chavango) de modo que este troca a mulher pelo esplendor do rand. Destarte, o nosso herói vai parar a África do Sul, onde obtém respostas incómodas ao mesmo tempo que conspira, sem que se dê conta, para felicidade de Rosita. É neste cenário doméstico, carregado de hostilidade feminina, que se dá uma peça incisiva. Mordaz. A haver uma pretensão, há-de ser essa de ridicularizar os preconceituosos. Por exemplo, a rabugenta Mothasse, personagem que ao invés de solidária com a mulher do sobrinho, despreza-a, quase aniquilando os seus sentimentos. A essa altura da peça, vislumbra-se onde Mapanga quer chegar: “as mulheres são as maiores conservadoras dos machismos dos homens”. Logo, Mothasse nem sequer tolera a possibilidade de aceitar uma estéril na família, porque, para ela, se não há filhos, a culpa é sempre da mulher.

Sendo esta uma história que expõe as parvoíces de um machismo excêntrico, paralelamente, é uma aventura na qual se chocam o moderno e a tradição. Do conflito não se adivinham consensos, mas ruturas irreversíveis. Na consequência disso, o amor é colocado à prova, cedendo e resistindo à inconveniência de acordo com as circunstâncias.

À parte o enredo, esta tragicomédia é sugestiva por se adequar às carências do nosso teatro. No lugar de uma cenográfica exigente, Mintsu é capaz de fazer bom uso de poucos adereços: uma mesa, duas cadeiras, algumas velas e um pouco de luz, com oportuno recurso aos bastidores, o que, na verdade, é uma ideia inteligente de ampliar o pequeno palco do CCBM. Outra coisa que chama atenção é o facto de a história possuir quatro personagens femininas, porém todas representadas por homens, sem que isso se torne algo aborrecido (na encarnação da mulher, distingue-se Rodrigues Jalane, no papel de mãe de Rosita, mesmo a lembrar-nos a representação de Rosita, até morrer, por aquela que consideramos melhor actriz moçambicana: Ana Magaia). Pode faltar verosimilhança, entretanto, o projecto não fica comprometido (a capacidade dos actores na manipulação do semblante favorece). O que nos faz muita confusão é a troca de papéis. De repetente, Arsénio Chavango deixa de ser Albasine e passa representar Faztudo; e Gerson Mbalango, que era Faztudo, assume o Albasine. Não vimos nenhuma justificação plausível para o efeito. Até porque essa troca retira de cena a grande performance de Mbalango, quem leva a peça ao auge na pele de Faztudo, um galanteador cheio de bons pretextos. Enfim, estas são as notas. O resto é o tempo que vai corrigir os exageros atribuídos aos curandeiros e, em alguns momentos, a escusada fixação do olhar dos actores no auditório. Em todo o caso, para um grupo amador, com escassos recursos, é obra.

 

Título: O padecer das Rosas

Autor: Grupo Mintsu

Encenador: Emerson Mapanga

Classificação: 14

Um álbum, uma Historia de vida de um homem que escalou montanhas a procura de amor

Eusébio Tamele chamou os filhos, deu-lhes a arte de tocar, compor e cantar. No meio dos ensaios, como que a justificar a união que ele criara em volta dos filhos, revelou-lhes que o pai não tivera sorte na descendência., apenas teve bandidos (Mbava anga pswalanga/ aho pswala swiguevengo). Isto significa que Aniano e seus irmãos não tiveram tios capazes de lhes orientar. Assim podemos deduzir que a Rosalina, esposa de Zeburane e mãe dos rapazes Tamele, foi uma mulher forte que tirou o sentido de Mugunda ao Eusébio e o deu um lar. Quando Aniano se recorda que um dia o pai lhes segredou que o avô não teve filhos que lhe dê orgulho, faz perceber que foi importante a arte que eles aprenderam do pai. A harmonia da família Tamele é vincada na primeira faixa, tsunela papai, titulo do álbum. Vão cantar com o pai e na presença da mãe, a única que acreditou no Eusébio, deu-lhe uma família e o livrou da bandagem.

Cresceu Aniano no meio destes ensinamentos, o que lhe dá capacidade de criticar o amigo que se deixou enganar por gente de ma conduta e partiu para uma aventura sem glória, enquanto os pais morrem com um nó na garganta, porque o filho está totalmente desviado, sem escola, sem emprego, sem calcas e sem sapato. O tema da faixa 3, Muganame, escrito e composto por Gustavo Tamele, antes da sua morte, é uma homenagem ao irmão músico que tão cedo partiu com muito para dar. O chamar atenção faz parte do ADN de Aniano. Quando o pai viu o que não deve fora do lar, foi também aconselhado e segurar e controlar o seu coração (o de peito e o das calças) em Nkossikazi, faixa 5, que teve a participação do irmão Zefanias na composição. O pai precisava ser lembrado que não fosse a Rosalina, não passaria de um Xiguevengo, a semelhança dos irmãos. Assim que ele viu outra la fora, quer se livrar da esposa?             Que será dela? Que educação para os filhos?

Uma vez crescido, com autoridade para chamar atenção ao pai, decide ele também se apaixonar. Na primeira paixão, o homem se envolve-se com uma que decide lhe entregar a criança doutro pai. Oh jovem de pouca sorte. O que salta a vista nesta cancão, Uli ndzifanaye (dizes que sou parecido com ele), faixa 9, são os argumentos parvos que o Aniano usa para fugir da responsabilidade. “ Apenas te falei uma vez sobre os meus sentimentos e isto não é suficiente para e trazer problemas”. Aniano, tiveste ou não uma relação sexual com ela? Não interessa quantas vezes nem a profundidade da penetração. Agora, se realmente não houve contacto, mais louca é a moça, que deve acreditar ter engravidado com a força do espirito santo, uma espécie de versão actual de Maria sem sorte de ter um José amainado pelo Gabriel. Já na faixa 11 temos a resposta em utisusilisima (vamadji uapswala swoswi), pois é revelado que mesmo que o Aniano tenha lhe dado todo o amor, por causa do comportamento dela, vai multiplicando os filhos de varias nacionalidades, apelidos e raças. Era preciso escalar montanhas para encontrar a mulher ideal, aquela que fosse a nora querida da Rosalina, a cunhada preferida de Gustavo e Zefanias, a perfeita mãe para os filhos. Não foi fácil, porque a Rosimery (faixa 4) demorou dar resposta. Enquanto isso, o homem perdia apetite, a água não matava a cede, as cordas da guitarra rebentavam por distração, o Morfeu, deus do sono já não abraçava o Aniano.

Tanto esperou pela Rosimery até que finalmente conseguiu a convencer para o casamento. Na faixa 2 temos a cancão Mutxado, uma das últimas criações de Aniano e que terá valido o prémio da melhor cancão, no popular programa Ngoma Moçambique, em 2015. Com o casamento de Aniano, todos ficaram felizes, dançaram porque a Rosimery mostrou que seria a mulher que valia a pena por ela trabalhar e sofrer. O que o Aniano não sabia é que o casamento era algo sério. Teria ele que mostrar paciência e capacidade de perdoar a pequena Rosimery, que saia da casa dos pais para uma outra realidade. Provavelmente tenha sido por isso que os familiares do Aniano, os amigos e vizinhos ficaram sem entrar na casa deles porque queriam evitar o falatório. “ Va nhenha swivulavula”, cancão faixa 10. Sim, é verdade que sempre a chamaste atenção para se concentrar apenas nos assuntos da casa dela. Entenda mano, ela ainda estava a crescer, tal como tu tinhas as tuas falhas. Falha maior aconteceu por exemplo, quando a abandonaste para Africa de Sul procurando pelas melhores condições de vida. Ela ficou abandonar as crianças e não respondia as tuas cartas. Voltaste chateado, contudo, mostraste sim que és adulto. Pediste para não faltar com a verdade, que se humilhasse para que o amor que sentiste quando escalaste as montanhas continuasse o mesmo, numa forma muito linda de cantar, numa balada que mostra a importância do diálogo e a virtude que existe em saber perdoar. Assumiste também a tua parte da culpa e não a abandonaste. Ficaste aqui trabalhando duro pela tua família, de manhã ias ao serviço e de noite querias aumentar os conhecimentos, indo a escola. A Rosimery, mais uma vez sentiu a falta de marido e questionou. O Aniano acha que é um ciúme sem cabimento porque aos finais de semana leva ela para o passeio. O namoro não acontece só no fim-de-semana. Da mesma forma que conversaste com ela em ”vula vula nkata” (faixa 7), há espaço para também explicares as tuas ocupações. Esta cancão faz a faixa 6, tem como título “sonto” e teve a colaboração de Zefanias na letra.

Acredito que os conflitos do Aniano estão serenados agora que encontrou o caminho de Deus. Hoje ele espera pelo Jesus, pede as pessoas para limpar os corações, para que busquem a face do senhor enquanto é tempo. Os problemas do lar já não existem.

É a imagem de um homem que levou do melhor que os pais deram e narrou num álbum que contou com grandes instrumentistas liderados por Domingos Bernardo. Neste álbum foram respeitados os temas originais e foi melhorada a execução técnica e os novos arranjos dão brilho auditivo. Escutamos baladas (faixas 1, 3, 5 e 7) e altos beats para uma dança. Aniano canta muito bem e para quem conheceu o Steve Kekana, sabe que para além de aprender do Zeburane já desde 1978 (a primeira vez que actuou ainda com 16 anos), também colecionava aqueles discos e ficou fã daquele sul-africano que não cantava mal.

Vamos consumir o álbum, recomenda-se.

Ahh, não podia ter arranjado espaço para a canção “Africa”?

 

                                      “Ó África, surge et ambula!”

                                        Rui de Noronha

Quão vil torna-se o homem quando consagra grande parte da sua existência à luta pela satisfação das necessidades biológicas. Um homem, quando forçado a prostrar a sua dignidade para apanhar o pão da vida, prova para consigo mesmo que o mais importante não é alimentar-se para viver, mas viver para alimentar-se, independentemente da cruel realidade que o obriga a portar-se desta maneira.

Isto porque a dignidade e a honra exigem uma constante louvação, não importando as circunstâncias adversas em que o homem se encontrar. E afigura-se-me que quanto mais desfavorável mostrar-se uma determinada circunstância para prática de um acto nobre, mais irradiante revela-se a dignidade humana quando preferida.

A dignidade, definida como amor-próprio ou sentimento que demarca o homem como fim do homem como objeto, mais se destaca em situações deploráveis onde parece mais fácil para um indivíduo salvar-se reduzindo o seu ser a um animal. Não há, portanto, desculpas perdoáveis quando um homem decide comprometer a sua dignidade, ainda que seja pelo amor à sua própria vida. A dignidade é uma substância inerente ao ser humano. Não há como feri-la sem ter de violar o valor de pertencer à espécie humana.

Nestes moldes, o ser escravo de um senhor ou de um vício qualquer constitui uma violação da dignidade humana, pois alguém nesta condição está condenado a ser tratado como um meio e não como fim. E é pela necessidade que o homem incorre no risco de reduzir-se a um ser desprezível. Por isso, nada é mais dignificante que a luta para ser um homem livre.

A liberdade como princípio interno de uma acção é o que melhor expressa a dignidade de um ser humano. Quanto mais livre é o homem, mais nobre ele se mostra. E quanto mais necessitado o homem se apresenta, mais ignóbil ele se comporta. Eis a última condição deplorável em que os povos africanos se encontram. Ainda com sérios desafios de satisfazer necessidades biológicas, os povos africanos têm ainda uma longa marcha para alcançar o estado de liberdade tanto material como espiritual.  A prova destas observações esta no facto de tratar-se de um continente com elevado índice de corrupção e baixo civismo.

Aqui não se trava a luta pela honra, mas a luta pela sobrevivência. E não há classes quando se trata de corrupção que acomete o pobre vendedor ambulante e o endinheirado político. A África ainda carece de um espírito de progresso colectivo. As nossas principais preocupações continuam a ser estomacais e os nossos sonhos ainda locais, sem uma educação certa para transgredir as barreiras socioculturais que, além de nos separar, nos rivaliza um contra outro.

A extrema pobreza e outras necessidades pesam tanto sobre os ombros dos povos africanos que mal se dão luxo para pensar a liberdade como uma ideia a ser concretizada ao nível colectivo. O diário de um homem africano é de uma escravidão estomacal que se resume em batalhar mais de oito horas por dia para conseguir o pão para si mesmo e à sua família, sem tempo para pensar a política e o dever de juntar-se ao outro para manifestar-se.

Com instituições frágeis e aglutinadas que servem a ordens superiores e não à lei, a ínfima luta pela liberdade é recorrentemente reprimida com brutalidade em África. Apesar da violação dos direitos humanos, toda e qualquer luta pela liberdade vale profundamente quando desperta consciência cívica ainda que seja na cabeça do indivíduo menos letrado da comunidade. O estágio final da evolução da humanidade é a liberdade plena que passa pelo desprendimento de necessidades na sua forma escravagista.

Há, portanto, maior necessidade de nunca se folgar nem tampouco quando se trata do combate pela ideia de liberdade. E nesta luta, somente é tenaz aquele indivíduo que atingiu uma concepção transcendental da ideia de liberdade ao ponto de não mais necessitar de motivações extrínsecas para aderir a uma causa social. O motivo que o leva a militar pela liberdade deve ser intrínseco à sua existência de tal forma que o seu compromisso com o mundo a ser reinventado seja inabalável.

Quando se milita pela liberdade ou por outro qualquer valor, numa circunstância em que a motivação advém de factores exógenos, toda a luta não tarda em mostrar-se pueril e viciada. Todo e qualquer indivíduo que sai à rua para protestar pelo aumento do preço do pão é mais fácil de ser silenciado que aquele indivíduo que protesta contra a disfunção de um todo sistema. Ao primeiro protestante é fácil de conter-se-lhe o grito, bastando baixar provisoriamente o preço do pão e elevando o de outro produto. Ou ainda, este protestante é passível de ser subornado, desde o momento que o dinheiro a ser usado lhe seja suficiente para comprar quantos pães ele quiser e ainda lhe sobrar. Ou seja, a sua luta contra injustiça termina quando o seu estômago é satisfeito. 

Ao contrário deste primeiro, o outro protestante tem em vista não a solução imediata do problema, mas uma solução duradoura – para não dizer definitiva – que parte da raiz do problema. Ele entende que a subida do preço do pão é o efeito de um sistema político-económico falhado, por isso, mais vale de uma vez por todas, lutar pela sua queda total ou parcial. De nada adianta o abrandamento do preço do pão, quando as políticas de emprego são inviáveis ou o salário mínimo continua insustentável. A luta não deve ser, por conseguinte, contra o preço de pão, mas pelas reformas políticas que proporcionam melhores condições de vida a longo prazo.

Quando as lutas sociais são direcionadas às causas primárias do problema, as mudanças que se operam são definitivamente substanciais. E, quando se atinge a causa primeira de um problema, a luta deixa de ser trivialmente empírica, passa a ser transcendental no sentido de estar a debater-se não mais com factos corriqueiros, mas com modelos defeituosos e reprodutores de acontecimentos nefastos.

A luta dos civis em África deve progredir até esse nível transcendental, quando se pretende um atalho para estado da liberdade em que os homens se tratam como fins e não meios. Enquanto não despertarmos o mais cedo possível esta consciência, estamos, como civilização, fadados a uma evolução lenta própria da natureza. Tocqueville dizia que as sociedades do mundo estão condenadas, consciente ou inconscientemente, a uma mudança progressiva. Marx também dizia o mesmo, porém, sem deixar de verificar que quanto mais se ganha a consciência da necessidade de mudar, mais rápido é a própria mudança.

Mais do que nunca, a África precisa potenciar o escasso conhecimento que tem em prole das massas. Os letrados devem sentir-se no dever de prestar o serviço público a comunidades e lutar pela expansão de espaços políticos, a todo custo.

A liberdade nas sociedades africanas depende muito do nível do compromisso que as pessoas têm com a democracia. E, no geral, este devia ser o comportamento universal de todas as sociedades que se querem livres, pois só num mundo onde as pessoas são livres de fazer o que lhes manda a vontade pode se presenciar o espírito pleno da felicidade.

Hélder Augusto

O Inconvencional

(tsembah@gmail.com)

 

 

 

 

Marcel Duchamp posicionou-se contra a tirania da retina na arte. Foi uma boa fisgada e necessária.

Todavia, cem anos depois precisamos de um manifesto contra uma arte que seja só conceptual: a arte que descartou o corpo, a mediação, o corpo-a-corpo com os materiais, e que abandonou a expressão como saldo de uma experiência no tempo, faliu.

Há um saber técnico que imprudentemente se descuidou e há uma inteligência, diria até, uma poética da mão, que convinha resgatar.

E não é preciso ir muito longe. Se até a música depende das mãos, como não ver nisso o apelo a uma conformidade, a uma humildade que nos transporta à magia do tangível? O desempenho das mãos não admite embustes, nem na punheta de bacalhau. Porque na música não basta a excelência que a partitura encadeou, coitado do acorde que não encontrou o seu exacto momento de ataque, o tom e o valor que só a mão lhe emprestam.

Há uns meses comecei uma vagarosa caminhada para o emagrecimento e quando me inquiriam sobre a minha diminuição de álcool eu respondia: “Quando o Orson Welles morreu, dizem que tinha à volta de cento e cinquenta quilos. O que é certo é que seis meses antes ele se cruzou num aeroporto com a Rita Hayworth, com quem fora casado, e que esta não o reconheceu. Ora, eu não quero praticar esta crueldade sobre a minha ex-mulher, senão o ódio que me devota e lhe orientou meia vida deixa de fazer sentido!”

Era evidentemente uma blague, decidi emagrecer quando as minhas mãos se tornaram sápidas e já não conseguia olhar para elas.

Nas mãos, como no rosto, começa a eroticidade do corpo. Calhou-me escolher o rosto e também as mãos.

Para o Rei Ubu seria simples imaginar o seguinte recurso para a dócil aceitação da escravatura: as mãos da plebe seriam desenroscadas do corpo após as dez horas de trabalho e só na manhã seguinte lhes seriam restituídas. Sem mãos não há revoltas, apesar do raciocínio.

Pois. E este idiota abandono da agricultura em todo o mundo é reflexo do caviloso predomínio que se dá a mente contra a mão. O mesmo que levou Bolsonaro a condenar um dedo no cu: eu não percebi a maleza do gesto a não ser no sentido em que faltará a mesma determinação para semear a beterraba.

O que é certo é que é bimilenária na arte a desconsideração do trabalho manual em relação ao projecto, o que redundou no racionalismo da mente.

Nem pela masturbação aprendemos.

É engraçado o descaro com que em 1965 Robert Rauschenberg enviou o telegrama-retrato de Iris Clert, uma marchant francesa, onde se lia: “ This is a portrait of Iris Clert, if I say so. Robert Rauschenberg.”

Engraçado é ter sido tomado a sério. Como antes, em Duchamp, a morfologia de um mictório, de um portador de garrafas, de uma pá de neve, foram confundidas, por simples penhor do nome, com uma nova função.

E, contudo, o peso generoso do ser humano está na mão. No que esta transfigura e transmuta. A agressão em perdão, o objecto desvalorizado em valor que cicatrize. E até a cegueira de uma mão pode ser divina. Vê-se no modo como Hokusai aproveita o dom do acaso e faz do acidente, do estudo e da destreza, um só. Vê- se nas pinturas cegas de Tomie Ohtake, uma nipónico-brasileira que fez dezenas de quadros magníficos de olhos vendados; vê-se nas mãos de Rembrandt, na voluptuosa capacidade metamórfica de Júlio Pomar – pintores que talvez busquem a caligrafia de Deus, sem que em nenhum deles isso signifique um mínimo de beatice e antes uma operação mais concreta e abrangente do olhar.

O velhinho Focillon explicou-o maravilhosamente: “(…) entre o espírito e a mão, as relações não são tão simples como as que há entre um chefe autoritário e um servo dócil. O espírito faz a mão, mas a mão também faz o espírito. O gesto que cria, exerce uma acção contínua sobre a vida inferior. A mão arranca a capacidade de tocar da sua capacidade receptiva, organiza-a para a experiência e para a acção. É ela quem ensina o homem a tomar posse do espaço, do peso, da densidade e do número.”

Experimentem lá fazer arte contra estas grandezas.

E noutra página do seu breve Elogido da Mão, Focillon dá o uppercut: “ O que distingue o sonho da realidade é que o homem que sonha não consegue criar uma arte: as suas mãos dormem.”

Mãos sonâmbulas como as do voyeurista que domina este tempo de esplendor pornográfico, em cuja teia o cínico se espoja como a aranha convencida pelo seu raciocínio sobre a inexistência do vento.

Razão tinha o catalão Juan-Eduardo Cirlot, quando escrevia:

“Os olhos do meu espírito não têm/ a boca do meu espírito,/ as mãos do meu espírito não têm o corpo do meu espírito.// Esquartejado flutuo no abismo./ Azamboado de morte como uma água inquinada.// Já não quer dizer que não foi nada? / Todo um jogo de luzes e espelhos,/ todo um retábulo de fumo tenebroso? // As veias do meu espírito não têm/ o sangue do meu espírito.”

É urgente percebermos que o pensamento só sobrevive em consentindo que o acaso se infiltre nas redes que tece – “exterior” que só o corpo, as mãos, lhe garantem.

 

* Texto inicialmente publicado no jornal Hoje Macau, a 21 de Março de 2019.

Este artigo não é científico, mesmo porque se o fosse teria outro teor. É, sim, um conjunto de opiniões de alguns amigos meus, de alguns autores, articulistas e afins. Todas elas afuniladas e que criam uma minha opinião sobre Feminismo, Machismo e Femismo. 

Para começar, encontrei algo que achei interessante, uma frase: “Quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede”. Esta é uma das formas que eu, particularmente, achei  para explicar, sobretudo aos homens que temem ao feminismo, que não é nenhuma ameaça a nós. Aliás, é agora que teremos a chance de mostrar que somos mais fortes (ou não) que as mulheres.

Comecemos pelas conversas sobre os hábitos culturais, mormente os meus (recordem-se: isto não é científico e sim opinativo). 

Desde os pretéritos, as mulheres foram sendo consideradas inferiores aos homens. Em I Coríntios  11:8 (Bíblia Cristã) dá-se uma explicação como: “… porque o Varão  não provém da mulher, mas a mulher, do Varão.” Isto para não dizer que “no início Deus criou o homem e depois, para fazer-lhe companhia, a mulher”. 

A sociedade (principalmente a patrilinear que é a minha) sempre procurou pisar ou manter a mulher por detrás do homem. Na minha tradição, em tempos, a mulher tinha legitimidade de convocar uma reunião entre as famílias do seu marido e a sua apenas para saber por que aquele não a batia. Porrada chegou a ser demonstração de amor! 

Traição foi sendo tida como uma forma normal de viver dos homens, mas se fosse a mulher merecia ser expulsa. E uma vez expulsa do lar, nós, os maxanganas sobretudo, chamávamo-la Xabuya  diabolizando-se-a. Em família, as meninas eram obrigadas a lavar roupa dos irmãos para, assim, aprenderem a cuidar dos seus futuros maridos.

Sexo. Isso era simplesmente para proporcionar prazer ao homem. Nunca às mulheres e se assim alguma delas tentasse proceder, seria chamada “p*ta” e provavelmente estigmatizada. Nem à escola as mulheres eram permitidas ter acesso, supostamente porque seriam malandras – legítima a defesa! Olha o que aconteceu quando elas foram…

Quando algumas mulheres começaram a estudar, os homens criaram uma expressão como: queremos emancipar a mulher. Quanto a mim esta expressão em si já é opressora. Só pode nos emancipar quem é responsável por nós e eu acho que alguns homens nem de si têm a responsabilidade suficiente (como acontece com algumas manas).

Mas elas mesmas procuram mudar o cenário, algumas de forma errada. Procurando tomar o lugar do homem, o que seria criar uma nova luta para o futuro. Surgem então as expressões Machismo e Femismo. 

Estes termos são antónimos e sinónimos simultaneamente, pois enquanto um (feminismo) defende que as mulheres são superiores e os homens têm de fazer tudo por elas, sendo que as mulheres vivem “lindas e poderosas” dentro das suas vaidades; o outro (machismo) defende que o homem é superior e que a mulher deve fazer tudo que ele mandar porque é ele que se responsabiliza pela parte financeira da casa e que, portanto, é chefe da família.

Na França e nos Países Baixos, no decorrer do século XIX, surgiu o termo Feminismo e que veio criar uma espécie de equilíbrio, embora no início tenha sido tido como problema, aliás ainda hoje o é. 

Mas Nhantumbo (2017) garante que este movimento, quando bem percebido, não defende uma hipervalorização da mulher em detrimento do homem, e sim defende um processo que visa promover o equilíbrio de género a todos os níveis.

Cornell (1998), Humm(1992), Collins e Agnes(2007) citados ainda por Nhantumbo (2017) definem feminismo como um movimento social, filosófico e político que tem como meta fundamental alcançar direitos iguais e uma vivência humana, por meio do empoderamento feminino e libertação de padrões opressores baseados em normas do género. 

Li mais alguns autores, mas para não tornar o texto mais extenso e menos atraente vamos pular para a outra fase. E antes quero dizer que para efeitos deste artigo, consideramos feminismo um movimento social, político e filosófico que consiste na criação duma sociedade justa e que procura dar valor às pessoas de acordo com o que elas fazem e não com o seu género. Ninguém nasce maior ou melhor que o outro. É uma questão de justiça! 

Nestas lutas todas, algumas mulheres acabaram tomando lugares importantes na sociedade. Embora tenham sido, a maioria, atribuídos esses lugares pelos homens por diversos meios. 

A questão que coloco é: O desempenho das que ocupam grandes cargos está a honrar a todas as mulheres que diariamente postam algo no Facebook sobre feminismo? Faz valer o objectivo daquelas que em qualquer lugar quando são chamadas a serem oradoras falam do feminismo? De todos aqueles que arriscam a sua masculinidade (já que só é macho quem é machista na sociedade) para defender este movimento?

Temos de aceitar que não. Se algumas das mulheres que estão onde estão não foi pelo brilho do feminismo nem delas e sim porque usaram-se da fraqueza masculina. É verdade. Algumas ministras, directoras nacionais, provinciais ou locais e executivas são o que são porque deram até o símbolo químico de cobre para chegar lá. Mas honestamente, acho que cada um tem que usar a arma que tem para alcançar os seus objetivos – sem querer ser maquiavélico. Mesmo porque entre nós também há gigolôs. 

Mas atenção, that’s not the point. Para mim, é uma fraqueza pensar que se é superior só porque é-se homem. Quer dizer, se eu te retirar o seu sexo ficas sem nenhum valor? Ou  por outra, pensar que tu podes ter e chegar onde quiseres porque tens um orifício entre os membros inferiores. Ou por que motivo mais? 

Cada um que prove seu valor, o que se não lhe pode fazer é vedar as portas. Deixemo-las entrar e daí é uma questão de objectivos pessoais a serem ou não alcançados.   

Não é doloroso ter de poupar mil meticais para dois dias de comida na mesma em casa, sabendo que a tua mulher tem dois mil, mas por seres macho não te podes sujeitar a “comer o suor dela”? Se tiverem os dois os mesmos direitos e deveres, a tua mulher paga também as contas da casa e assim pode restar algum para tomar umas duas com amigos. 

Eu sou contra a camuflagem das qualidades das pessoas por conta de ideologias absurdas como o machismo e femismo. Não sejamos iguais, tenhamos acesso ao que quisermos!

 

 

O conhecimento ou domínio de qualquer actividade, particularmente, da artística é antecedido pelo estiolamento da sua raiz para lhe encontrar o cerne e, assim, com ela poder dialogar, da partida à chegada e desta união: arte e artista, subirem de mãos dadas, ao patamar do convencimento ou seja, ao lugar da realização, para que a plateia os aplauda. É este o entendimento a que chego quando leio os textos poéticos de DETALHES DE UMA VIDA DE SILÊNCIO de Heliodoro Baptista Jr., apelando para que os demais leitores caminhem comigo, por exemplo, nos poemas como: “Avida de um operário”, “Um olhar frustrado das cheias”, “Os poetas”, “A morte do meu pai”.

Sinto a existência do binómio causa-efeito na textura desta poética em que qualquer pessoa que sobre ela se debruce, poderá concluir, euforicamente, que Heliodoro Baptista Jr. conhece a geografia das águas em que o seu barco navega. Ele enfrenta todos os constrangimentos da rota: tsunamis, adamastores, fossos, enfim, porque o seu afã é chegar são e seguro ao destino.

Todo este arrazoado, apenas para dizer que estamos perante uma obra poética que se pode dizer, sem sombra de dúvida, um corpo que nos apresenta: cabeça, tronco e membros, pese, embora, a juventude do seu compositor/autor. Esta constatação deve alegrar-nos, pois, o estágio etário deste autor é o garante ou o augúrio de bons e apetecíveis futuros encantamentos. Se se quer fazer arte de verdade tem de se ir ao seu âmago e não se ficar pela superfície.

Estarei a explicar-me, quanto ao caso presente, ao dizer que o domínio da arte não é algo que se herde no sentido de transmissão genética. Herda-se, sim, ou pode-se herdar, objectivamente, os instrumentos do ofício, para que, através deles se chegue ao engenho e à arte, com esforço próprio. O domínio da arte é algo que se conquista sob os sóis diários, no vasto território que se abre diante de nós, predispondo-se a que nele limitemos o nosso espaço onde queremos expor-nos. A árvore ou sombra tutelar, apenas dá abrigo para uma profunda reflexão sobre a vida que nos rodeia, não nos injecta qualquer poção que nos torne iguais a ela. Em “A morte de meu pai”, Heliodoro Jr. aparta-se de qualquer julgamento irreflectido que se possa fazer à sua obra poética, pois não reivindica qualquer herança genética, mas, apenas exterioriza a saudade que sente do pai:

Partiste sem sequer dizer um adeus/parece que não sabias/ que eu/ ainda haveria de precisar imenso de ti…/ Lembro-me/ que no último telefonema que me deste/ dizias que poderias partir para só um dia voltar./ Acho que essas foram lindas palavras/ proferidas para tentar abrilhantar/ o vazio no meu coração.”                                                                                                                      

Assim, Heliodoro Baptista Jr. Em DETALHES DE UMA VIDA DE SILÊNCIO, busca nos seus próprios silêncios, os detalhes que fazem o seu chão existencial, pois, nessa busca ele acaba demonstrando que, afinal, todos nós compartilhamos tais detalhes porque todos, com ele comungamos a mesma existência ou seja, somos contemporâneos: “Mas sabes que há virtudes?! /Como existem também homens e vozes./ Porquê este ocasionado contraste/ desta vida que está no silêncio?!”

Subsumida a posição antecedente, a nossa ferramenta, para o entendimento desta obra, como leitores, deve partir do nosso conhecimento sobre os caminhos para a identificação dos trilhos que Heliodoro Jr. calcorreou, pondo de lado, mas muito de lado mesmo, a teoria dos vasos comunicantes de Arquimedes. Deve funcionar, aqui, a teoria da estética da recepção, isto é, dominarmos as regras do jogo literário para lhe entendermos a essência e até, completá-lo, isto é, sermos complementos ideários da obra do autor.

 

 

 

 

 

 

Em Angola, no recém-disputado Campeonato Africano de hóquei em patins, “os poucos de dentro” ficaram no banco a assistirem ao jogo da final diante dos donos da casa, sendo opção “os de fora”, melhor dizendo os hoquistas que actuam em clubes europeus, muitos deles sem nunca terem posto os pés em Moçambique.
Algo impensável há pouco mais de 30 anos, é agora aceite com normalidade: a inclusão de luso-descendentes, concedendo-lhes a dupla nacionalidade, para os incluir nas nossas selecções nacionais.
Com frieza, mas com verdade, importa recordar que um país que se recusava a exportar atletas, presentemente tem Selecções totalmente dependente dos que evoluem noutras latitudes.

No caso do hóquei em patins, recentemente, dizia-se que a nossa Selecção era… das quinas e das nossas esquinas! Hoje é apenas das quinas.

REALISMO GANHA PONTOS?

Internamente, o hóquei em patins vive da carolice de algumas pessoas. As competições são feitas aos soluços, com os clubes praticamente alheios a esta modalidade.

Mas porque África pouco aposta nesta bela modalidade, vamos conseguindo manter uma selecção que nada ter a ver com a competição intra-muros. O nosso nome e a nossa bandeira, vão transmitindo lá fora, uma realidade que nada tem a ver com o nível interno.

Com esta bela mentira, já fomos campeões mundiais “B” e 4.os no Mundo “A”. Quem não fica feliz com honrarias destas, que elevam o nome do país em África e no Mundo? Até porque estaremos em presença de um autêntico milagre, se nos dermos ao trabalho de comparar as verbas de que as nossas delegações dispõem, relativamente aos oponentes.

Olhamos à nossa volta e verificamos que o desporto africano, de uma forma geral, foi “capturado” pela fama e pelos milhões. Recordo-me de ter visto, há duas décadas, uma Selecção dos Camarões que veio jogar a Moçambique, apenas com três dos seleccionados possuindo passaporte daquele país. Os restantes? Belgas, franceses e por aí fora!Isto acontece porque a realidade económico-financeira mundial, impõe regras a que dificilmente nos poderemos furtar.

NO MEIO TERMO
ESTARIA O GANHO?

Todos sabemos que a viabilização da prática desportiva no país, depende dos “parceiros”. Algo novo e talvez inédito no mundo desportivo. Mas o principal financiador, é o “Estado-papá”!

Isto porque, no “edifício” desportivo, que vai do clube às Federações, há pouca imaginação para o “merchandizing” e quase nenhuma disponibilidade para pagar quotas ou entradas. Diferentemente do que acontecia há uns tempos, as motivações principais para ser dirigente desportivo, são as viagens e eventuais subsídios.

Adiada, arquivada ou não priorizada, está a questão das modalidades prioritárias. É um assunto central que nos permitiria ser mais fortes, a partir de critérios realistas e enquadrados.

Atente-se no que acontece na África do Sul. Investimento claro, por exemplo no atletismo, boxe, natação e râguebi. Aí coleccionam-se medalhas em todas competições. Hóquei em patins? Vai-se jogando, mas porque não consta das modalidades prioritárias, aquela potência desportiva mundial, não teve receio em não se fazer representar em Angola, por exiguidade de verbas!

Não dá para entender que no país vizinho, as prioridades, equacionadas e estudadas em função de factores históricos, tradição das modalidades, bio-tipo e aptidões dos atletas, são para levar sério?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois de uma ligeira turbulência aeroportuária, provocada por alguns «irritantes» motivos alheios à nossa viagem, adentramos a aeronave A340-300 para o voo TP 288, com destino a Lisboa.

Melhor dizendo, Lisboa era somente local de escala pessoal pois, o nosso principal destino era a cidade da Póvoa de Varzim onde de 16 a 27 de fevereiro de 2019 decorreria a vigésima edição das Correntes D’Escritas, por demais conhecido como sendo o maior festival de celebração da palavra escrita e falada no mundo ibérico e felizmente realizado, todos os anos, num país da Comunidade dos Países Língua Portuguesa que é Portugal.

Acomodados num assento de janela conforme a nossa prévia solicitação no momento do necessário Cheik-in, como habitualmente, após a descolagem do volumoso pássaro voador, procuramos e localizamos o nosso devido exemplar da revista de bordo da companhia aérea portuguesa TAP. UP, DUBLIN, referente ao mês de fevereiro.

Desordenadamente, folheando, chegamos a rubrica reservada aos talentos portugueses no meio de mesma. Logo demos de caras com o retrato fotográfico de Afonso Reis Cabral, o mais jovem autor a vencer o Prémio LeYa que é um dos mais importantes prémios literários em Portugal. Seu título, O Meu Irmão foi o vencedor, escolhido de entre 361 originais de autores de 14 países, e o competente júri soube, como é da praxe, argumentar a escolha.

Conhecemo-nos e facilmente tornamo-nos verdadeiros amigos depois de termos, há anos, retalhado as mesas literárias no âmbito do festival literário Munda-Lusófono de outubro de 2015 em Montemor o Velho lá prós lados do distrito de Coimbra, nas margens do rio Mondego, onde ainda chegamos a fazer um recital de poesia angolana, então, deveras desconhecida para o público local. Como em quase todos, naquele festival, o objectivo era também proporcionar um mais estreito relacionamento, não só entre escritores, mas também com alguns agentes ligados à edição, circulação, comercialização e internacionalização de livros e outros bens culturais dos países lusófonos.

Afonso, independentemente da sua muito jovem idade e sem desprimor para a sua arte literária, nos foi apresentado pela «pequena grande» Lurdes Breda, como sendo trineto de Eça de Queirós. E, como quase todos os jovens, começou também pela poesia. Cobramos-lhe uma certa responsabilidade em razão de herança. Motivamos-lhe e, em resposta, disse-nos que bem sabia o que queria e que não tinha pressa pois, seus pais, com alguma paciência e boa vontade, explicavam-lhe o que era ser escritor e ser poeta.

Neste dossier, de revista de bordo que nos acompanha, como que retomando a nossa velha conversa, leio com agrado a seguinte referência. «…Para quem escrevia poesia desde os 9 anos (nasceu em 1990), fazia sentido que aos 12 começasse a traçar caminhos, tal como fez  sentido que aos 15 publicasse  o seu primeiro livro. Condensação, de poesia, e poucos anos depois fosse o mais jovem autor a ganhar o Prémio LeYa com o romance O Meu Irmão. Se o mundo literário se alvoroçou com os 24 anos de Afonso, a este surpreendeu o espanto.» E, aparentando ainda alguma ingenuidade, diz-nos ele com muita profundeza: Como já escrevia desde os nove, aquilo era, e é, a minha vida, não era novidade. Talvez um pouco por imaturidade fiquei surpreendido [com a estranheza dos outros].

Sabíamos que o seu nome constava da lista de centena e meia de convidados para a vigésima edição das Correntes D’Escritas e que havia ali mais uma oportunidade de falarmos de viva voz, tal como aconteceu e, com muito agrado. Falámos das nossas andanças e escritas literárias. Falámos da nossa poesia e ele pontualizou-nos sobre o seu mais recente romance, Pão de Açúcar.

Um romance em torno da vida vivida. Da trágica história verídica de uma transsexual sem abrigo de nome Gisberta, na verdade, agredida e assassinada. Neste, e mesmo no primeiro romance, em que a motivação parece ser uma deficiência do irmão, a realidade e a ficção entrelaçam-se objectiva e até subjectivamente em razão do acto de lapidação da palavra pois, como ele mesmo diz, escrever «…É trabalho de rotina, …isso é importante, porque ajuda a criatividade. Aquela coisa de estar a apanhar a criatividade do ar não resulta. Como a sorte, a criatividade e a inspiração também se fazem. Não há qualquer glamour».

Coincidentemente encontramo-nos também, ao longo das pouco mais de sete horas de viagem, por via desta apetrechada publicação de bordo, com a grande Lídia Jorge também convidada para as Correntes D’Escritas na cidade da Póvoa de Varzim.

Referenciando a Lídia, a revista estampou em oito soberbas e saborosas páginas, uma reportagem escrita e fotográfica, em que, com ela, podemos conhecer o telurismo do universo da sua infância. Um espaço que marcou a sua obra. Um espaço de raízes e preciosas memórias desta autora. O Algarve.

Com a Lídia havíamos estado já noutros distintos momentos de convívio literário mas, há que confessar, conhecíamo-la muito superficialmente. Tanto como pessoa, tal como, enquanto autora de uma obra literária cujo conjunto faz dela, indubitavelmente, uma das maiores ficcionistas de língua portuguesa. Em boa verdade, dela não se podia esperar outra referência pois, muito cedo começou a ler e a escrever. Curiosamente, começou criando finais para as histórias que lia e não lhe agradavam. Hoje é por muitos considerada uma «embaixadora do Algarve» no mundo, graças a representatividade da sua escrita.

Com pouco mais de uma vintena de obras literárias já traduzidas em mais de vinte línguas, tem como primeiro romance O Dia dos Prodígios publicado no já distante ano de 1980. De lá para cá, passaram-se só cerca de quarenta anitos. A Lídia internacionalizou e diversificou a sua vasta obra. Publicou contos, teatro e textos para a infância. Estuário é o seu mais recente título, publicado no corrente ano de 2019.

Lendo, apreendemos que a escritora Lídia Jorge é, e orgulha-se de ser, uma pessoa em acção. Gosta de publicitar a palavra e de tomar posição sempre e ali onde for necessário. Sente-se muito mais que uma simples escritora e não vive a margem da sociedade. É Uma convicta interventora social para quem, «os livros não têm obrigatoriamente que passar uma mensagem, servem para muitas outras coisas».

Como era previsível, nosso reencontro, não ficou só pela revista de bordo. Estendeu-se pelas Correntes adentro. Nos corredores do Cine-Teatro Garrett e na sala Poesia das Galerias Euracini onde coube-nos apresentar As Gargalhadas de Mestre Juju da neófita Goretti Pina, seguida da apresentação e lançamento da Lenga-Lenga de Lena a Hiena da autoria (da também grande) Ana Luísa Amaral e cuja intervenção de apresentação «sobrou» para Lídia, que a fez com a maior das competências.

Finalmente, o nosso reencontro adentrou também pela mesa, que em caso de numeração seria a número um, da sala de refeições do hotel Axis Vermar na Póvoa. Ali, notificamos um alto grau de conivência e afectuosa intimidade pois por lá passaram, acompanhando-nos, nas demais refeições, os mais importantes nomes da literatura do mundo ibérico, cuja citação personalizada, modestamente, dispensamos.

A suposta mesa «numero um» celebrizou-se quando num momento de alargado e já regado grande/pequeno almoço mergulhamo-nos em gargalhadas pois víamos «pessoa» mais que consagrada no mundo das letras, distraidamente, salgar em vez de açucarar… primeiro o leite e depois o café, reclamando à sério pelo esquisito sabor daqueles bebíveis, por todos os outros consumidos e confirmados, com o melhor dos sabores. Entretanto, esta fica para o nosso já projectado livro de memórias extra-literárias. 

 

                                          

                                            Odivelas, Março/2019    

 

Sentado langorosamente na sua cadeira de balanço feita de madeira pau-preto, com o assento em rede de pesca, na varanda frontal da nossa vivenda, era ali onde o meu pai pensava os problemas. Estávamos em inícios dos anos setenta. Naquela altura, para a minha sorte, ele concentrava-se mais nos problemas. Andava nervoso com as notícias que chegavam da América, pela Voz da América. Os negros americanos agitavam-se para a supressão da segregação racial, para mais direitos sociais e civis. Em Moçambique, a FRELIMO terrorista, composta por traidores do regime, estava cada vez mais próxima do poder. O meu pai acreditava que, caso Marcelo Caetano cedesse à pressão internacional e a dos terroristas que se faziam sentir pela África toda, ele teria de voltar à sua esposa branca que deixara em Portugal.

Por mim, ele devia partir o mais rápido possível. Talvez assim as coisas em casa tomariam um rumo melhor. Eu e os meus irmãos já poderíamos frequentar a escola e eu passaria a mandar em casa, já que a minha mãe nada fazia senão obedecer-lhe.

Passaram-se quinze anos e a promessa de que, por ser filha de branco, teria maior acesso à escola, à boa educação, nunca mais se concretizava. Por vezes pensava que meu pai contava-nos estórias para que ninguém em casa fosse mais esperto que ele. À minha irmã mais nova, ele ensinava a ler. Eduarda era o tesouro dele. Protegia-a tanto, que por vezes eu tinha medo que, tal como eu, Eduarda viesse a ser vítima de abuso sexual.

A primeira vez que o meu pai violou-me, tinha eu dez anos. Ele mandara a minha mãe passar a tarde em casa da minha tia, juntamente com os meus dois irmãos mais novos. O meu pai disse-me que ao dormir com ele, estaria a tornar-me mulher e que como mulher ele dar-me-ia tudo o que eu quisesse, incluindo meter-me na escola rudimentar. Eu seria mais mulher que a minha mãe, garantiu-me. Eu sabia que não tinha escolha pois a palavra do meu pai era uma ordem. Ninguém em casa ousava repudiá-la. Enquanto ele penetrava em mim, eu chorava em voz baixa, para que ele não me repreendesse.

A minha mãe não queria ouvir falar no assunto. Para ela, eu devia dar graças a Deus que morávamos em casa de cimento e que nada nos faltava.

Aos 15 anos, eu perdera a idade de ingressar para a escola primária. E quem não fizesse o primário, não poderia obviamente fazer o secundário, nem sonhar com o ensino universitário. Este facto revoltou-me sobremaneira, que decidi tornar-me terrorista. O meu pai tinha de se ir embora e a única forma de para tal contribuir seria aliar-me aos traidores do regime.

Alfabetizei-me na mata, por indígenas.

Após 30 anos de independência, o meu pai regressa a Moçambique, onde pretende estabelecer um empreendimento turístico e pede-me para ser sua sócia. Na minha vida, ele era persona non grata mas no meu país ele seria bem-vindo e eu como Ministra do Turismo teria de agilizar o processo para que ele se estabelecesse em Moçambique como empresário.

  • Dou-te tudo o que quiseres! – disse ele, para me convencer a ser sua sócia.

 

  • Torna-me mulher, não é Manuel? – gritei, descontrolada.

 

Manuel baixou a cara, esperando que eu continuasse com o meu desabafo, mas eu não queria revisitar aquele passado atroz, que fez de mim avessa ao sexo oposto. Não tenho filhos, não sou casada e abstenho-me ao sexo. Tornei-me numa grande mulher, sim, mas noutras frentes, onde constantemente me realizo como mãe, esposa e, até certo ponto, como amante. Sirvo a minha comunidade e ao meu país em geral. Depois de ter sido privada das letras, hoje sou uma leitora ávida. É nos livros onde me sinto verdadeiramente mulher. Eles é que me dão a emancipação que nenhum homem ou filhos me poderiam dar. De mim não exigem, de mim não esperam.

O Manuel não merece existir na minha vida. Propus ao Ministro dos Negócios Estrangeiros que fosse seu sócio, na esperança longínqua de lhe ser decretada persona non grata na primeira falcatrua que lhe fosse detectada.

Fim

 

Merece felicitações a atitude da Governadora da Cidade de Maputo, Iolanda Cintura, que fez questão de ao ir ao futebol, pagando o seu bilhete. Já antes havia sido referenciada uma atitude idêntica por parte de dois homens que muito serviço prestaram ao nosso futebol: Martinho de Almeida e Tico-Tico.

Este assunto, é bem mais profundo do que à primeira vista parece. Se houvesse um levantamento do núcleo de pessoas que fazem questão de entrar – sobretudo para os camarotes – sem pagar o seu bilhete, em regra acompanhados da família, chegaríamos a números assustadores. E, como se isso não bastasse, no final dos jogos internacionais no Zimpeto, há lanche a rodos “mahala”, para se trocarem abraços ou consolarem-se as mágoas.

A realidade

Seja ele Ministro, Director Nacional, PCA, ou chefe “de qualquer coisa”, a entrada VIP está garantida. Atrás de si, filhos, sobrinhos e/ou vizinhos. Seguem-se guarda-costas ou ajudantes de campo, muitas vezes de circunstância, ocupando por vezes os lugares da Imprensa e da rádio.

A cara de poucos amigos com que algumas dessas “estruturas” se apresentam, funciona logo à distância como um alerta para os porteiros, para quem seria considerada provocação a mera exigência de qualquer tipo de identificação.

Em dia de jogo-grande, são emitidas senhas/credenciais, mas a maioria nem sequer se dá ao trabalho de as ir buscar. A solução na hora, seria comprar um bilhete, como os demais adeptos. Porém, estranhamente, esse acto tornou-se humilhante para um chefe, pois reduz o seu estatuto.

“Desmame”, para quando?

Não creio que tenhamos no país um clube no Moçambola, em que a contribuição total dos sócios, chegue para pagar os salários de três futebolistas. Nas partidas mais importantes, dificilmente as receitas cobrem as despesas.

Quais são, então, as bases de sustentação do futebol nacional? As empresas públicas e o que sobrou de carolice. Os jogadores, que deveriam ser os principais activos, pouco contam.

Daí que se deveria lançar uma campanha para alterar o hábito do “borliu” que se instalou e que pouco tem a ver com a crise financeira que vivemos. Sabemos que muitos dos que nunca se dignaram pagar o seu ingresso no país, se acotovelam para conseguirem chegar a um bilhete, nas deslocações à terra de Camões, para assistirem a um derby lisboeta, por exemplo!
Como começar, então, a alterar esta aberração?

Gostaria de sugerir ao nosso Chefe de Estado, o Presidente Nyusi, que num dia em que se desloque ao futebol, compre o seu bilhete, como forma de demonstrar que esse acto só prestigia. Sabendo que estamos numa terra de seguidismos, em que todos gostam de copiar o chefe, o efeito moralizador ajudaria no caminho da auto-suficiência do futebol.

 “Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O Progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo…”
Rui de Noronha

Não é sempre que um escritor tem o privilégio de testemunhar, como padrinho, o nascimento de um talento literário. A sorte bafejou-me para ser eu o escolhido, mesmo que aleatoriamente, para proceder à apresentação da colectânea Liberta-te, Mãe África, de  Ernesto Moamba.

Aceitei fazê-lo, com muito gosto, apesar de ter a consciência do quão difícil seja, penetrar no interior de uma obra que não é inédita, só porque parte do seu conteúdo já fora divulgada no círculo de amigos com quem Moamba compartilha, de entre muitas coisas, o seu trabalho literário, através das redes sociais, como é, por exemplo, o Facebook. Não é tarefa fácil dissecar, uma obra literária e explicá-la à medida do desiderato do autor. Ingarden, no seu livro A obra de arte literária, 1973[1], a dado passo das suas reflexões, enumera o que o leitor deve excluir na análise, explicação ou compreensão de uma obra literária, incluindo o autor e toda a sua mundi-vivência.

Acredito que ele seja um ilustre desconhecido no seio, não só dos nossos fazedores da literatura, como, em geral, do público aficionado às lides literárias, do nosso país!

Mas, indo ao livro, que é a razão principal da minha intervenção, trata-se de uma obra literária do género poético, com 65 composições poéticas, em verso livre e branco, em 113 páginas. Foi editado no Brasil pela Editora do Carmo, em Brasília.

Antes de folhear o livro, chamou-me a atenção o seu título e a pertinência da capa que o ilustra; uma criança negra, ainda chupando o dedo de meninice, mas já agrilhoada, carregando o peso da sina africana e feita escrava! É um simbolismo eloquente para definir o continente africano e estender a imagética ao sentido dos poemas deste livro. Do título, veio-me à memória, algo que tinha já lido antes, há muitos anos e, não tardou que me despertasse o nome de Rui de Noronha, o precursor da poesia moderna moçambicana, autor do soneto Surge et ambula, em que num dos versos, exorta: África: Surge et ambula (África: levanta-te e anda). Prosseguindo o folhear do livro, logo no poema que o inaugura, As pegadas no passeio do vento, deparo com a confirmação das minhas memórias. Mais adiante, em Sonho[2], Corpo sombrio[3], Prisioneiro da África[4], Misteriosa[5], Utopia do negro[6], Clamor do negro[7], fui reconfirmando as tendências evocativas dos dois autores quanto ao Continente Africano. Existe, em teoria literária, uma figura que se denomina Estética da Recepção que se traduz no poder perceptivo de uma obra literária, por parte do leitor/comunidade interpretativa, para completar o autor. Isto é, todo o esforço que devemos fazer para nos apropriarmos da mensagem de Ernesto Moamba nesta obra.

Pois, então, o Liberta-te, Mãe África e o Surge et ambula, em que está implícita a alusão a um continente sofrido, estamos, comparativamente, diante de uma clara intertextualidade, provocada pelo estro de Ernesto Moamba, que tratou de me assegurar, ao lhe confrontar com esta realidade, não ter lido, antes, o poema de Rui de Noronha. Isto, prova que a África, «país dos africanos» no entendimento afectado de alguns estrangeiros que, por se ocuparem, em demasia, de causas próprias, pouco tempo lhes sobra para esmiuçar o nosso continente e estudarem-lhe as entranhas, para compreenderem a razão dos seus filhos, desde os tempos imemoriais, exacerbarem o seu desejo em que ela e os seus habitantes, se libertem.

África: Levanta-te e anda, já dizia Rui de Noronha na década de 30 do século e milénio passados; Liberta-te, Mãe África, diz Ernesto Moamba, hoje, no início de novos século e milénio. Ambos, poetas moçambicanos, as suas exortações, para que a África se liberte das suas agruras, da noite em que é forçada a viver, distam mais de 80 anos.

Quantos africanos, neste intervalo temporal não cantaram, já, a sua Mãe África, numa reverberação que se fez ode a este sacrificado continente, à espera que alguém lhe estendesse a mão, não para lhe doar algo que lha fizesse continuar a dormir, mas para que ela se levantasse e andasse, desejando que ela desperte que o seu dormir já foi mais que terreno? Parafraseando o editor desta obra, Evan do Carmo, na sua nota elucidativa da proposição de Ernesto Moamba:

A sua voz é a voz da verdade, da sua própria alma, que se debate nas paredes de uma prisão cultural em que um país que ainda não se libertou das algemas da escravidão social que priva os africanos da dignidade mínima que merece a alma humana.”.

Uma breve nota biográfica, no fim da obra, dá-nos elementos importantes para conhecermos o autor, as suas origens, o início e o desenvolvimento da sua paixão literária, as consequências dessa aventura, até hoje que se estreia em livro. Julgamos, que o gesto que Ernesto Moamba nos demonstra, não seja um salto para o abismo, mas para a glória, destino da projecção dos praticantes mais perseverantes e perspicazes desta arte.

Ele não é tanto debutante quanto parece, depois de se ter iniciado nas escolas por onde passou, escrevendo poesia, conto e crónica, o empenho desembocou em jornais, revistas e redes sociais, onde, amiúde, expôs o seu talento. Apesar do seu temário destilar dor, desespero que a si afecta grandemente, não deixa de ser um universo de amor e, sobretudo, de esperança no alcance da liberdade para e por que, quotidianamente se luta, nas lides literárias.

Consta em algumas antologias poéticas nacionais e internacionais, como são os casos de O mundo dos sonhadores – antologia nacional, editada pelo Grupo Intercâmbio dos Escritores de Língua Portuguesa; Desafio, O corpo negro e o Ninho – antologias internacionais, em que convergem países lusófonos, como, por exemplo: Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Consta no portal brasileiro de notícias O Monumental e na revista angolana, Kamba.

Este livro é resultado de trocas comunicacionais, através das redes sociais, pois, afoito a esse benéfico intercâmbio entre gentes de diversos quadrantes planetários, uma mão vinda do Brasil, como se a guiar-se por Rui de Noronha, diz: “Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno/ Ouve a Voz do teu Progresso, este outro Nazareno/ que a mão te estende e diz-te: África, surge et ambula!”

E assim foi editado este livro, fruto de solidariedade vinda de uma amizade que todos nós e a todo o momento, devemos demandar, porque temos capacidade para isso, através de trocas vivenciais que nos vão construindo como cidadãos dignos de Moçambique e do mundo.
Na textura do seu manto poético, nota-se que, aqui, ali e acolá, ao Ernesto Moamba, faltam algumas ferramentas para lhe completarem o engenho e a arte, mas a sua garra promete superação.

[1] [1] Roman Witold Ingarden (Cracóvia, 5 de Fevereiro de 1893 – 14 de Junho de 1970) foi um filósofo e teórico literário polonês.
 
[2] Liberta-te, Mãe África, Ernesto Moamba – 2016, p.33
[3] Idem, p.34
[4] Idem, p.45
[5] Idem, p.46
[6] Idem, p.50
[7] Idem, p.52

Não se conhece na íntegra, os termos dos contratos que as empresas Ematum, MAM e Proindicus estabeleceram com os bancos Credit Suisse e VTB em relação aos créditos contraídos. Todavia, sabe-se, em virtude de circulação de alguns extractos de tais contratos, de um facto curioso e preocupante referente a cláusula “cross default” que significa que em caso de as empresas acima indicadas falharem o pagamento da dívida ou caso o Estado moçambicano não pague na qualidade de avalista de acordo com o plano de amortização estabelecido, os referidos bancos terão o direito de acionar (executar) imediatamente as garantias.

O mesmo que dizer que podem executar o património do Estado moçambicano onde quer que esteja e a qualquer momento em face do incumprimento contratual. O ter sido aceite esta cláusula e que obedece ao regime britânico no âmbito dos contratos estabelecidos, coloca o Estado moçambicano numa situação critica e vulnerável, pois, tudo pode acontecer a qualquer momento e, se ainda não aconteceu, é porque ainda há confusão e muita semântica em volta dos contornos das dívidas contraídas.

A verdade é que a dívida está consolidada e o Estado moçambicano permanece como garante da mesma e os bancos estão a aguardar para receber de volta o dinheiro que mutuaram.

Do ponto de vista jurídico, os referidos contratos são válidos, havendo, no entanto que analisar a sua efectividade, tendo em conta os factos supervenientes e que colocam os referidos bancos também na rota de colisão jurídica em face do que se reporta quanto ao comportamento censurável dos seus funcionários e que estiveram envolvidos na tramitação dos processos que deram lugar aos desembolsos dos valores mutuados.

Neste processo, a Provinvest não pode escapar, por ser a empresa promotora e implementadora dos projectos e que se beneficiou em grande medida do calote. Ora, não se pretende aqui corrigir o contrato de mútuo já existente quanto a tal cláusula maldita, mas sim, chamar a atenção para os nossos dirigentes e aqueles que aconselham o Governo e o Estado e negoceiam em nome destes, que no futuro se devem lembrar antes de tudo que o Estado moçambicano é soberano e não pode aceitar que lhe cerceiem a sua soberania.

Não se negoceia a soberania de um Estado. Sabe-se agora, que afinal, através dos funcionários dos bancos mutuantes, foram usados vários esquemas diabólicos no sentido de se tirar ganhos ilícitos em detrimento das empresas mutuadas e do Estado moçambicano. Então, estavam consciente de que colocando a cláusula cross default apanhariam o Estado moçambicano em contrapé.

Não se pode aceitar que o financiador coloque tal cláusula e ao mesmo tempo crie, através dos seus funcionários (estes, seus comissários) esquemas de endividamento e falcatruas por forma a dificultar o cumprimento da obrigação por parte das empresas mutuadas e do Estado como avalista. Compulsada agora a abundante informação sobre o assunto das dívidas, está claro que existiam dúvidas quanto à capacidade de reembolso por parte das empresas mutuadas, o que significa que os funcionários de tais bancos sabiam disso à partida.

Por que razão, então, empolaram valores em projectos inviáveis? Impõe-se, por isso, a “boa fé” in contrahendo”, no sentido de que os bancos permitam que o Estado moçambicano respire e se agende um momento apropriado para a negociação da dívida. Além disso, e sem pretender-se aqui devagar sobre teorias jurídicas, pode-se invocar a alteração de circunstâncias e que se fundam na essencialidade e imprevisibilidade e que traduzem uma alteração anormal das condições contratadas.

Será que os que estão a analisar oficialmente este assunto podem explorar a possibilidade de se invocar a cláusula Rebus sic stantibus, segundo a qual deveria subentender-se nos contratos de mútuo que deram lugar as dívidas de que se fala, a implícita condição de somente valerem enquanto se mantiverem inalteradas as circunstâncias em que os mesmos foram estabelecidos?

Não se pretende com isso furtar-se da máxima pacta sunt servanda, fiel ao princípio de cumprimento contratual e que colocaria Moçambique na linha dos que honram os seus compromissos. Em caso de dificuldades financeiras para honrar os compromissos provocados pelas dívidas, certamente que Moçambique poderá recorrer aos seus parceiros de cooperação e instituições financeiras internacionais, a fim de obter apoio para suprir a dívida. Até porque teria, também, a oportunidade de estudar e decidir qual o destino a dar aos activos criados pelas dívidas criadas.

É um facto inegável que o País está amarrado à dívida pelas garantias emitidas, mas também precisa de aprofundar o conhecimento real sobre o que aconteceu e está a acontecer em relação às empresas Ematum MAM e Proindicus, pois, e, como se tem também difundido elas não estão a operar. Também, há que colocar na linha de batalha judicial caso se provem os factos ilícitos, os bancos que concederam os créditos, os seus funcionários e os cidadãos moçambicanos que engendraram o esquema que deu lugar às malditas dívidas. Enquanto isso, maldita cláusula cross default.         

 

 

Algumas vozes femininas na poesia moçambicana do século XXI (cont.)    
 
Tânia Tomé nasceu em Maputo em 1981 e publicou Agarra­?me O Sol por trás (2010, Índico Editores). Em 2008, realiza e produz o espetáculo “Poesia em Moçambique”, em tributo a José Craveirinha, onde todas as artes interagem para tornar vivo o poema. Introduz o conceito de Showesia (neologismo criado por ela), actuação com que faz espetáculo de poesia com uma banda de músicos, ao lado da qual Tânia canta e recita poemas, havendo dramatização da poesia, dança da poesia, entre outras componentes. Em 2009, lança o primeiro DVD de poesia em Moçambique, com base no espetáculo “Poesia em Moçambique”. Em seguida, lança oficialmente a página web www.showesia.com.

Talvez esta partilha entre escrita e oralidade/música/ encenação/actuação revele também um dos traços originais da escrita da poesia feminina moçambicana actual. Lembro outra recente voz ligada à música, de uma outra forma, Melita Matsinhe, de quem falarei noutra ocasião. Com efeito os poemas de Tânia Tomé oscilam entre a vontade do canto e a consciência da escrita numa desenvoltura criativa inesperada. O sentido da representação temática dilui­?se na força das imagens e na força de uma voz que se procura.
O seu primeiro livro surge com aparato gráfico inovador e os poemas terminam com o título no final em letras maiusculadas. Vejamos o início do poema de abertura:

Um murmúrio de vozes em uníssono no meio da noite desperta­?me,/os espíritos makwas kimoenes./E o sonho meio sonâmbulo desata­?se­?me: /escorro numa chuva de pálpebras, uma estrela azul e luminosa/ criva­?me/ o peito./Grilos, uma orquestra, trilo na sombra./ É Deus/ que fecha os olhos na cor do espanto/ para te ver? (11)

A força enunciativa desta voz feminina é plena de energia e os poemas, ora longos, com uma e duas páginas, ora mais curtos, parecem procurar esse lugar de origem em que a música se cruza com a palavra, e se desfaz e refaz nela: “Meu poema infinito/ Meu poema infinito/ tu escreves­?me tão bem:/esse amor todo nos teus dedos/ escrevive­?me exactamente/ como me sonhei // POEMIM” (41).

Simultaneidade na erotização do som/música e do corpo do sujeito lírico: “E tu comigo, cá dentro, lá fora/ amando­?me na medida do ritmo/ de um jazz cálido frenético./ Abraço do Índico, o piano/ atravessa as fronteiras que nos distam,/ recria o sopro do teu sax/ no meu corpo” (48).

No poema Poesia tu és o meu canto ou no poema Showesia –Poema vivo, notamos essa celebração do poema palavra que se desentranha do corpo, se mostra e canta, ganhando voz e quase autonomia:

(…) E dentro das palavras há melodia, dependurando­?se sobre as arestas do verso/e dançando os murmúrios constantes dos voos das aves//E o poema ganha rosto:/ uma árvores cheia de cabelos ao vento como teias de aranha/onde nos pés das raízes habitam os sarcófagos diversos no húmus da loucura/ E onde as mãos de asas são janelas/ por onde as pupilas escancaram o mundo entre os dedos// SHOWESIA –POEMA VIVO (17).

A sensualidade percorre a escrita/corpo e o som numa fusão quase total; somos surpreendidos por uma poesia que quer sair da página e ser som, e por um corpo que se quer transmutado em poema, enfim, uma procura da totalidade do som corporificada: “E como sou/onde me toca baixo/no nó que dá a carne/quando tem futuro/ no parto de um poema,/sob este rosto em mar vermelho/ onde redonda/diviso nas raízes as estrelas/ – ah, bendita a hora da posse! ARDO” (51).

A poesia de Tânia Tomé desvela uma dicção erótica e sinestésica, em que a reflexão sobre o fazer poético se revela sintonizada como desejo de entrega ao amor: “Não me salves, selva­?me” (17). Simultaneidade na erotização do som e do corpo do sujeito lírico: “E tu comigo, cá dentro, lá fora/ amando­?me na medida do ritmo/ de um jazz cálido frenético./ Abraço do Índico, o piano/ atravessa as fronteiras que nos distam,/ recria o sopro do teu sax/ no meu corpo” (48).

A poesia, oscilando entre palavra escrita e som musical, nasce do e com o entusiamo de um sujeito, que se descobre, também nascente, nela: “e não me perguntes/ quem é esta mulher/ que cresce comigo/ nas raízes profundas/ da flor do meu corpo” (30).

O segundo livro da autora, intitulado Conversas com a Sombra, (Showesia, 2011),  é um pouco diferente do primeiro. Junta a fotografia a uma escrita de registo dramático; o livro lê­?se entremeado de fotos de raízes de árvores antigas, é um cântico, unitário, em trinta e dois fragmentos, que começa por perguntar: “Quem serei do que fui? Olhava à volta. E o algodão/crescia­?me na carne, depressa como água/ na areia, como o sol esquenta na palhota/ da minha vida. Onde eu me exilei, eu/com mais meu futuro por vir.”

M’bique, abreviatura de Moçambique, é a figura (nação, mátria, mulher?) que motiva o longo poema que se estende, ora como exortação, ora num fluir reflexivo, que se alimenta do diálogo e da interpelação:
 
M’bique? Sim é a Moça da minha vida.
Sabor de cacana. Sabor amargo, mas que faz bem à alma,
cura­?me de mim, aquela dor de ser. (10)
(…)
Ah M’bique, falar dela é a emoção mais completa
que vibra no alto. No alto do grito.
No alto da estrela. Dentro.
Eu nasci com ela com todo meu acredito. (14)
 
       Escrito no feminino, em torno de uma biografia desejada e arquetípica, nascer, renascer, tornar o país mulher encanto, natureza gestante, recuperação do sonho, este longo poema mostra uma fusão entre a voz da lírica e narrativa, entre o singular e o plural do corpo social do país, em que o corpo feminino da nação e  da poeta  se sintonizam com os elementos naturais; os desejos de descoberta de sentimentos individuais e colectivos coincidem numa ligação e partilhas íntimas: “Quando eu conheci M’bique, eu nem apercebi. Vinha enredada em capulanas, até no rosto, as capulanas, como gaze. Nas suas mãos brilhavam inteiras as sementes. E éramos tantos, todos as desejávamos como fruta despida para comer. Desejando­?a em caroço para a ver”(42).

Um único poema-livro, organizado entre imagem e voz. Uma voz oral, dramatizada, que ganha presença e encenação. Um livro bastante diferente do primeiro. Que merece uma leitura mais demorada. Esta segunda obra é nitidamente mais discursiva do que Agarra­?me o Sol por Detrás, permeada de incursões narrativas, apresenta­?se com um fluxo mais dramático, interpelativo, mais reflexivo, numa palavra, um livro em que a lírica se recompõe em dramática escrita. Aguardamos outros livros….
Emmy Xyx, a desconstrução dos sentidos

Emmy Xyx, pseudónimo de Manuela Xavier, nasceu em Vila Coutinho, actual Ulóngwé na província de Tete em 1958. Publicou, entre outras, Espelho (prosa 2011), Contar Ser Gregos (2012), De Sol acções a Sol unções (2013) e Escritas na Mão do Mar à Ria (2015).

A poesia desta autora desafia o leitor pela sua aparente ausência de sentido. Fortemente moralizante e crítica, por vezes chegando ao descrédito de ser escrita, vive da desconstrução das palavras e dos significados. Mostra na sua herança literária alguns dos procedimentos retóricos que caracterizam a produção de Grabato Dias e de Filimone Meigos.

Alguns poemas mais longos, outros bem mais curtos, encenam proverbialidade e talvez até uma moral e, mesmo assim, também a desconstroem. A crítica é sobre os comportamentos femininos, sobre as emoções, sobre a corrupção social, económica e política. Erres de heróis: “Os erres dos heróis são apagados?/Os erres são livres de ficar?/Quantos erres tem o vento?/Quantos ventos tem o mar?” (32).

Manuela Xavier encena uma espécie de anti­?lirismo da sua escrita na procura de sentido numa sociedade e humanidade que não o têm. Assim os símbolos poéticos como a cotovia e a lua perdem­?se no novelo da serpente e na moeda de compra dos amores:

Cotovia: Fugida do inverno acústico/a cotovia/ acotovela a vizinha./ Serpentes em violoncelo/ esperneiam vozes/ que se espezinham. (17)
Frases da lua: Fazes da lua/tua amante/ cheia de novas faces/ as frases da lua endoidecem/ quem escuta/ num quarto/ crescem promessas/ noutro/ mínguam diamantes…(16)

Chama ardente: Acende esta ardente chama/ da união aquecida/ ao baptismo que clama/ a verdura pretendida.// Entre labaredas crescentes/ o laranja actua/ querendo livremente/ atingir a lua. (5)

O cepticismo da poeta implica a anulação de uma sintaxe racional, em que o sentido se ordena na frase, ou a mostra de um verso que produz “verdades”. Leia­?se nesta perspectiva o poema Degrau a Degrau:

Línguas coladas em reboco/ cimentam poisos articulados/ dívidas perdidas em cocos/ assumem dizeres em quaisquer lados.// E assim caminha a história/ de vontades, aspirações e crueldades/degrau a grau sobre a glória/ despida de consumos e de ver tardes. (27).

O que a poeta procura demonstrar nos seus livros é que a hipocrisia social e o lugar dos sonhos e das utopias é uma ficção sem sentido. Desta forma o desregramento das palavras, que se procuram numa irmandade rimática e aliterante, exibem a teatralidade da escrita, cujo sentido se esboroa, em cantantes sonoridades. Contar ser gregos:

Contar um dia ser gregos/ Contar segredos infinitos/ um por um, viver do rego/ em chuva de meteoritos// A gregória vem sem glória/ nesta quinta categoria/ contar ser gregos ou contar a história/ fica­?se nesta alegoria// Ser grego quem conta sem medo?/ Conta em que canto a saia curta?/ Consta que santo perdeu e cedo/ segrega ao poente a gula fruta.// Crer segredos /impôr degredos/ comungar de gregos/ desencontrar medos/ desapontar dedos/ segregar toledos/ contar cem gregos. (24).

Manuela Xavier usa a língua retirando­?lhe o poder organizacional, desmontando­?a e brincando ludicamente com ela como se fosse um puzzle, sem formas/ significados definidos, mas volvendo significante, som em formulação, em desconcerto. O leitor pergunta­?se, o que quer dizer esta escrita? Humor, distopia crítica, desarticulação dos sentidos, lúdica procura?
 
Entre Dedos: Entre dedos me passa o vento/ entre os lábios a frase se corta/ pela suavidade do convento/ a frase apareceu morta.// Se disse alegre pelo destino/ liberdade conquistada/ mata­?se a morte de um menino/ p’ra dar vida ao fim da estrada? (44)

Versos: Versos clonados/ esperam sua vez/ abominados pela sensatez (37).
Minha Estória: Minha estória entreguei/ ao mar ondulante/ o fato desarma o rei/ que conte a qualquer navegante! (42)
Milagre: Está o mundo a escancarar/ por instantes/ acorda o defunto/ do tubo de escape/ ventres se abrem/ por toques rasgantes/ dá­?se o milagre: mundos sonantes” (31)

Mas em um ou outro poema de Emmy Xyx espreitam a esperança e a harmonia do sentido, como neste  poema intitulado Chama Ardente, em que a cor do fogo parece reacender a pálida presença de uma lírica lua, desacreditada:  “Acende esta ardente chama/ da união aquecida/ ao baptismo que clama/ a verdura pretendida.// Entre labaredas crescentes/ o laranja actua/ querendo livremente/ atingir a lua.” (5).

A pátria foi vendida ou não?
“Um ambicioso é capaz de tudo;
Vender a pátria só por causa da
sua ambição e dos seus interesses individuais;
Não sei se um ambicioso muda;
A minha experiência prova que não;
Muda de táctica, mas não elimina a ambição;
Um ambicioso é criminoso ao mesmo tempo”
 – in Samora Machel

Francis Fukuyama, no seu livro “O fim da História e o Último Homem”, escreve numa das passagens que “Não existe democracia sem democratas, isto é, sem um Homem especificamente Democrático, que deseja e molda a democracia ao mesmo tempo que é moldado por ela”. O autor quis dizer em outras palavras que para defender algo é preciso que se identifique com esse algo e se deixe moldar pelos princípios do que se está a defender.

Esta introdução é a melhor ponte que encontrei para problematizar a distância entre o discurso e a prática durante os 10 anos do período de governação do Presidente Armando Guebuza. Penso que a memória colectiva ainda está fresca e qualquer um se lembra que uma das bandeiras nos seus dois mandatos foi a luta contra a corrupção e o combate ao “deixa andar”.

Acontece que a questão das dívidas ocultas, aliado ao manancial de informação que está a chegar ao grande público com as detenções de altas individualidades do seu governo, teve um efeito “boomerang” e destruiu por completo a mensagem que tentou nos passar durante o período em que foi Presidente da República.

Um ex-ministro das Finanças detido no estrangeiro por mandato do país mais poderoso do mundo, implicado em subornos na contratação das dívidas ilegais (e outros crimes que não me interessam nesta análise); ter altos dirigentes dos serviços secretos detidos acusados de terem burlado o Estado; ter uma secretária particular e o filho mais velho detidos no mesmo processo, ter um ministro dos Transportes e Comunicações a ser julgado por corrupção em negócios de empresas participadas pelo Estado, acho que isto é bastante para eu acreditar que o combate à corrupção era um discurso fabricado para intoxicar as massas, quando nas hostes privadas a realidade era outra. “Os cabritos continuavam a comer onde estavam amarrados”.

Em bom rigor do Direito, só o juiz pode em sede do Tribunal julgar e condenar alguém com os devidos fundamentos da sua decisão, mas a avaliar pela quantidade e qualidade dos arguidos no processo das dívidas ocultas, há matéria suficiente para, à esfera pública, fazermos questionamentos sem, no entanto, pôr em causa o direito constitucional de presunção de inocência de que gozam essas pessoas.

A ética pública não se compadece com interesses individuais. Para fundamentar isso não preciso recorrer a teorias defendidas por filósofos clássicos. Aqui em Moçambique, temos a nossa referência quando se fala de combate à corrupção: Samora Machel!

Durante a Luta Armada de Libertação Nacional, bem como na Primeira República por si dirigida por 10 anos colocou o povo como a causa do “lutar por Moçambique”. Dizia que os dirigentes são os primeiros no sacrifício e os últimos no benefício.

Opôs-se ao uso do Estado como estratégia para a acumulação privada de riqueza. Morreu há 33 anos e nunca ouvimos algo que contrariasse o seu discurso. Muito pelo contrário, diz-se por ai que Samora Machel morreu pobre. Os seus ministros, os que ainda estão vivos, andam à vontade, sem medo das suas sombras.

Em 2016, o Centro de Integridade Pública lançou um estudo intitulado “Os custos da Corrupção para a Economia de Moçambique”, tendo concluído que “O valor agregado dos custos de corrupção (representados na amostra), durante o período de 2002 a 2014, a preços correntes, é de USD 4.8 a 4.9 biliões, equivalentes a cerca de 30% do PIB de 2014. Esta percentagem encontra-se bem acima da média de todos os países africanos citados na secção 1. Isso significa que, em média, durante o período coberto pela amostra, o dano anual é de aproximadamente USD 500 milhões por ano.” Isto é avassalador para um regime que dizia lutar contra a corrupção.

Agora já sabemos que os 2,2 mil milhões de dólares das dívidas ilegais contratadas pelo governo do Presidente Guebuza foram retalhados por um grupinho para o pagamento de subornos a altas individualidades do seu governo, isso o relatório da Kroll deixou claro. Sem ignorar a sobrefacturação na compra de barcos da EMATUM e do armamento para o Exército.

Não me parece crível que o Presidente Guebuza não sabia que seus ministros e dirigentes dos Serviços de Informação e Segurança do Estado estavam envolvidos em esquemas de corrupção. O mais provável é que enquanto essas práticas brotavam e floresciam, por outro lado financiava-se os chamados G-40 para ganharem peito para embebedarem as massas com debates de defesa do sistema, exaltando a pátria do gangsterismo. Esses senhores também deviam ser julgados e condenados por terem usado meios electrónicos para enganar os moçambicanos.  

Mas o fruto quando está maduro cai por si, diz o ditado popular. E não há mal que dure para sempre. Por isso, associo-me a Jeremias Langa que no último Linha Aberta na Stv disse que, contrariamente ao sentimento generalizado, acredita na Justiça.

Até porque o nosso hino nacional nos conforta: “milhões de braços, uma só força, óh pátria amada vamos vencer”!

Verdade, porém, é que às vezes essa força escasseia-me quando leio que as receitas de um gás que ainda nem começou a ser explorado no Rovuma poderão ser usadas para o pagamento desse dinheiro, no lugar de financiar o desenvolvimento deste empobrecido Moçambique.

Olhando para a esperança de vida que não me dá mais de 56 anos, sinto pena das minhas filhas que terão um futuro penhorado por conta do pagamento de uma dívida da pátria que lhes pariu. O ministro da Economia e Finanças esclareceu há dias que o governo vai continuar a negociar com os credores as modalidades de pagamento. Isso deixa evidente que a pátria foi vendida, por…A(lguém).

 

Dentre vários pressupostos, a coragem é imprescindível para ser um ateu. A condição do ateu é mais do que a de um filho que ousa viver livre das rédeas do seu pai, pois pelo menos este filho aceita a existência do seu progenitor, mesmo buscando a sua independência.

Um ateu é um indivíduo que não só se rebela contra o controlo de um suposto pai como também não lhe reconhece a sua existência. Sendo assim, ele e mais ninguém assume a responsabilidade por todas as vicissitudes da vida. As dores e os prazeres do mundo são compartilhados e suportados entre indivíduos ateus sem mediação dos seres sobrenaturais. Nem Deus nem o diabo tomam responsabilidade pelas coisas que acontecem ao homem, quando o mundo é só dos ateus.

O desafio que se coloca perante estes homens está em eles serem seus próprios anjos e demónios, cientes de que a degeneração ou regeneração do mundo está em total dependência dos seus actos. Querendo, eles podem ser fabricadores do seu próprio paraíso, do seu próprio inferno ou do seu próprio apocalipse. Eles têm a chave que escapou entre os dedos de um deus inexistente. A escolha é, ao mesmo tempo, tão livre quanto pesada, pois toda a sua sustentabilidade obriga exclusivamente a força humana.

A reza de um ateu não é de quem pede que seja feita a Sua vontade, mas de quem deseja que o seu plano se concretize, tendo em conta que o seu sucesso e fracasso recaem sobre ele e sobre outros homens que coabitam o mesmo espaço. Quando se tem de pensar como um ateu, uma das questões sérias a considerar é “como seria o mundo, se os homens tivessem de viver entre eles sem nenhuma influência sobrenatural em suas vidas?” a resposta é dependente do tipo do compromisso que o homem ateu mantiver com o mundo. Se o compromisso for de instrumentalizar o mundo para satisfação do seu ego, então os homens estarão num mundo aos cuidados de um ateu nihilista.

E o que acontece com um ateu nihilista é que a sua responsabilidade para com o mundo é tudo menos moral. Um mundo sem princípios morais é um mundo que se projecta além do bem e do mal. Sendo assim, o que pode haver entre homens é um retrocesso ao estado natural onde a lei da força e o despotismo imperam as relações humanas. Mas, doutro lado, se houver um compromisso de reeducar o mundo na base dos princípios da razão, os homens estarão a construir uma era neo-iluminista cujos representantes são ateus humanistas – aqueles que entendem que a regeneração do homem não depende de uma causa sobrenatural, mas de um esforço humano em cooperação com outros seres humanos. Dai que a necessidade prioritária para um mundo cada vez mais benevolente seja um modelo de educação capaz de enaltecer valores que promovem a integração dos indivíduos na mesma esfera de convivência e a pacificação das relações interpessoais.

A ideia de que Deus não existe, para os ateus humanistas, constitui-se numa declaração de que no mundo não há outros anjos senão os próprios homens a quem cabe o inteiro dever de tomarem conta um dos outros.

Diferente de um mundo dos teístas onde a pratica do bem é a mando de um Deus que ora pune ora recompensa, o mundo dos ateus o bem é feito em nome do bem. Pelo menos, o ateu não espera que um ser sobrenatural lhe diga o que é certo e o que é errado, ele o faz por estar consciente do seu valor. O ateu tão pouco precisa de Deus para perceber que ajudar alguém a prosperar é melhor que o prejudicar e quanto mais sofrimento o homem passa, maior é a tendência de tornar-se desumano. Tudo quanto ele precisa para melhorar a condição humana é da razão e sensibilidade.

Em contrapartida, os religiosos tudo quanto precisam é da aprovação divina. Pouco tempo eles têm se dado a si mesmo para reflectir sobre as suas acções desde que estas cumpram com os mandamentos divinos. Os actos dos homens em quanto crentes nem podem ser qualificados de morais, como bem observou Kant, porquanto não têm como princípio a liberdade, mas a obediência a um ser divino que ameaça punir com o inferno ou recompensar com o paraíso. Então, que se diga que ser ateu é, de certa forma, uma predisposição para adorar a razão, pois na ausência da luz divina, não há outra melhor fonte de guia ao homem além da luz racional.

Ainda que soe a um chamamento ao iluminismo, afigura-se que se o mundo tivesse mais homens que olhassem para vida como um quebra-cabeça solúvel por meio da razão, este mundo tornava-se mais responsável. Ou seja, há mais preguiça ou indiferença para com o mundo da parte dos homens que creem num deus protecionista, omnipresente e omnisciente. Tal disposição espiritual desses homens justifica-se, quando antes um mundo caindo aos pedaços, alguém se pergunta por quê se preocupar em remediar, enquanto existe um deus todo-poderoso que querendo, num estalar de dedos, tudo volta a estar são e salvo.

Aquele que discordar de que crendo num Deus todo poderoso e protecionista não faz dos homens preguiçosos e, ou, indiferentes, ao menos será obrigado a admitir que se, de facto, existem anjos cuja missão é executar a vontade de Deus aqui na terra, então estes anjos são os próprios homens para que, após a vida, faça sentido serem conduzidos ao purgatório. É tão pouco convincente que Deus todo poderoso disponha de legiões para tomar conta do mundo, mas ao mesmo tempo exija que homens prestem contas sobre sua responsabilidade no cuidado do mundo. Ou Deus tem os homens a quem confia esta responsabilidade de cuidar o mundo ou Ele tem anjos que o devem fazer.

A pergunta metafísica mais substancial é o porquê das atrocidades em vidas inocentes quando existe um Deus todo-poderoso e justo capaz de dissipar o mal num estalar de dedos. Será que ele não se importa com a humanidade? Será a sua legião fraca? Ou será que nós, homens, ainda não conquistamos a consciência de que somos os únicos anjos que existem na face da terra e, por conseguinte, cabe a nós protegermos o mundo? Seja como for, o mais sensato que se pode esperar de um ateu é que ele seja responsável pelo mundo pela razão suficiente de ele não crer na existência dum ser sobrenatural capaz de proteger-lhe o mundo.

Se o ateu não crê num Deus que protege o mundo, então quem ele espera que tome conta do mundo, senão ele mesmo? Se ele se recusa a cuidar do mundo, que sentido da vida ele busca num mundo do qual ele não quer tomar parte?! Partindo da declaração de Nietzsche de que Deus está morto e foi o seu amor pelos homens que O matou, então, os homens deviam permitir-se uma morte nobre à semelhança de Deus: morrer pelo mundo – a sua genuína invenção.

Hélder Augusto
O Inconvencional

 

A minha colaboração, no formato e na qualidade de comentador residente da STV, nomeadamente em sede do programa “Pontos de Vista”, chegou, agora, ao fim. De 2011 a 2019, foram oito anos de uma experiência, a todos os títulos, gratificante e estimulante, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista profissional. A convite do Jeremias Langa, inaugurei, com o Salomão Moyana, o programa “Pontos de Vista”, sob cuja alçada abordamos dos mais variados temas da vida política, económica, social e cultural de Moçambique. Sucessivamente, partilhei o programa com o Fernando Lima e, finalmente, com o Ericino de Salema.

Ao longo de todos estes anos, procurei exercer, plenamente, o meu direito à liberdade de expressão, guiando-me por um princípio fundamental: falar com franqueza, e dizer aquilo que acreditava, de forma honesta, que o público tinha o direito de saber. Mas deixando, ao mesmo tempo, espaço em que coubessem outras opiniões, diferentes da minha. 

Assuntos? Nessa área, Moçambique jamais ficou a dever a ninguém! Da guerra à paz. Da sempre triunfal corrupção à prosperidade na fome… houve que debater! Houve que debater Santungira; houve que debater Muxara; houve que debater a sucessão na liderança do partido da nossa independência; houve que debater Afonso Dhlakama; houve que debater a subida do mais alto magistrado da Nação à mítica Gorongosa; houve, enfim, que debater sobre as capoeiras aonde cacarejam os milhões de frangos da Credit Suisse…!

Mas houve, acima de tudo, que perguntar, vezes sem conta, como se faz democracia sem democratas! Porque tratava-se de um contrato social, assinado com os cidadãos, nos termos do qual estes compravam televisores, pagavam energia eléctrica e reservavam seu precioso tempo para nos ver e ouvir, e em troca nós devíamos partilhar com eles opinião fundamentada e, tanto quanto possível, isenta, assumíamos o dever de nos preparar adequadamente: a pesquisa, em torno dos potenciais temas a debater, no Domingo, começava na Quinta-feira, prolongando-se até Sábado!

Ao mesmo tempo que era aplaudido por muitos, o programa “Pontos de Vista” também atraia a ira dos sectores mais retrógrados e obscuros da nossa sociedade, que, tendo perdido a batalha das ideias, recorreram à barbárie, investindo o seu asco de intolerância, sobre José Jaime Macuane e Ericino de Salema!

Como qualquer um dos contribuintes do programa, incluindo o seu moderador, Jeremias Langa, vivi, também, momentos de impressionante impacto pessoal e profissional que, um dia, quererei partilhar com o grande público, em jeito de memórias e, quiçá, como despretensiosa matéria de referência para as gerações mais jovens de jornalistas. (Um dia, estou certo, o Jeremias Langa, no seu livro de memorias, vai contar como se gere um programa que originou brutais agressões físicas a dois comentadores, por si convidados!)

Querem saber? Oh, desde telefonemas de mukheristas, pedindo que falássemos de alegadas extorsões por agentes das Alfandegas, ao longo destas infinitas fronteiras de Moçambique, passando por gestores de topo da nossa vida pública, levando-nos, pessoalmente, ao escritório, dossiers sobre assuntos complexos e contenciosos, para manipular nossas mentes, até às inúmeras vezes em que, após a transmissão de um programa, o telemóvel ficava rouco, de receber tantas chamadas, noite adentro! Ou de convocatórias para inquisitórias reuniões oficiosas à porta fechada?

Ou daquela vez, em que um grupo de deputados do nosso Parlamento, me interceptou, em pleno almoço familiar, na Feira Popular, procurando persuadir-me, para evitar falar de um determinado assunto na noite daquele Domingo (já era tarde, pois o programa era gravado na manhã do dia anterior, Sábado!); ou naquele dia em que um PCA de uma mais que estratégicas empresas públicas, me “perseguiu”, até à Universidade, arrancando-me, literalmente, da sala de aulas, para me “orientar” sobre como deveria, no Domingo seguinte, abordar aquele badalado dossier sobre as suas imperiais mordomias …

Mas também fixei, com humildade, as inúmeras mensagens de encorajamento caídas, ao longo de anos, no meu telemóvel ou, talvez mais significativo ainda, aqueles simples olhares de cumplicidade que, de forma fugaz, muitos moçambicanos anónimos me dirigiam, na rua ou em mercados populares… E no seu silêncio, eu os ouvia dizendo: “tenha muita saúde!”. E, também em silêncio, eu retribuía, comovido.
Olho hoje para trás e fico honestamente convencido de que valeu a pena: penso, com efeito, que todos quantos colaboramos naquele programa, combatemos o bom combate; porém, diferente de Paulo, não terminamos a nossa carreira, e muito menos esperamos receber a coroa da justiça – que, aliás, jamais almejamos!

E, um pouco na senda destas falas à tela, lancei, em 2016, o livro: “25 Anos de Liberdade de Imprensa em Moçambique: História, Percurso e Percalços”. Entre as pessoas que convidei pessoalmente (porque houve as convidadas pela editora), inclui Jorge Rebelo, aquele que foi o fundador do Ministério da Informação de Moçambique independente. Rebelo teve a grande amabilidade de responder ao meu convite, escrevendo (ele que me perdoe pela inconfidência!) o seguinte:
“Caro Tomás. Obrigado pelo convite ao lançamento do seu livro. Infelizmente não poderei estar presente por razões de saúde. Pelo título percebo que falas da nossa comunicação social desde os primeiros anos da independência. Creio que, se tivéssemos dado espaço a uma imprensa livre desde o início, certamente não teríamos os níveis de corrupção que temos hoje”.

Fixei, com respeito, estas palavras: pela qualidade de quem as disse!
Obrigado à STV pela oportunidade!
 

 

Um dos mais graves males e problemas que enfrentamos no nosso país é a má gestão da coisa pública. Actualmente, são várias as situações reportadas nos órgãos de informação, além de comentários e conversas nas comunidades sobre escândalos de uso abusivo do erário público e algumas decisões que levam à delapidação do património público e dos poucos recursos de que o País dispõe. É sabido que qualquer país para viver necessita de recursos. Moçambique necessita de avultados recursos para enfrentar os desafios de desenvolvimento económico e social e, porque não os tem, o seu Orçamento ainda é deficitário, obrigando a recorrer ao financiamento externo e interno. Além dos recursos naturais cuja exploração exige avultados investimentos e a sua exploração também não acontece de repente, o Estado busca uma parte dos recursos junto dos particulares através da colecta de impostos. Significa dizer que o Estado realiza no âmbito das finanças públicas duas funções fundamentais: Arrecadar recursos (receita pública) que os afecta (despesa pública) na realização de várias infra-estruturas sócio-económicas e funcionamento da sua máquina administrativa, entre outras realizações, visando como fim último o bem-estar social. Aliás, esta função das finanças públicas é realizada na base de procedimentos legais, de austeridade e racionalidade fundadas em critérios de boa gestão, alicerçadas na máxima de que sendo os recursos escassos, a sua gestão deve ser feita de forma correta em benefício de todos. Tal exige respeito pela coisa pública. Gerir, na linguagem corrente, significa o acto de administrar; de tomada de decisão. Gerir a coisa pública, significa administrar algo que é de todos, na base de regras estabelecidas (leis), visando atender o interesse comum. Trata-se de um acto público que é feito no interesse público, geralmente confiado a uma pessoa singular ou a um Órgão para realizar. Os recursos que o País dispõe não são suficientes para fazer face às diversas necessidades colectivas, razão de se exigir a sua gestão responsável e criteriosa por quem quer que seja. Gerir não é’ tarefa fácil. Todos sabemos. Geralmente, e conforme dissemos a gestão é  feita por pessoa/s singular/es e esta/s por sua vez assume/m a responsabilidade de levar a cabo tal missão. Infelizmente, não é o que parece estar a acontecer no nosso País. Para quem conhece as dificuldades que o País atravessa, pode dizer que tudo quanto se fala sobre a falta de recursos que está na origem da pobreza e do custo de vida é mentira (quando verdade), tendo em conta os gastos públicos carentes de uma boa gestão. A questão que tem sido colocada muitas vezes é o de se saber como é que algumas pessoas ligadas ao Governo, mormente alguns dirigentes e funcionários têm acesso fácil ao erário público? Por outras palavras, como é que um certo dirigente ou um determinado funcionário pode dispor facilmente do erário público e gastar de forma aleatória sem que seja descoberto ou impedido de o fazer a tempo. Aliás, o desejável era que o mesmo nem sequer tivesse tido acesso ao erário público. Afinal quem é que guarda e controla o dinheiro e demais bens do Estado? Esta tem sido, amiúde, a questão colocada. Embora a resposta possa ser fácil de dar, considerando que a guarda do erário público cabe a todos os órgãos e agentes responsáveis por essa missão, verdade é que são reportados casos gritantes de dirigentes e funcionários que ao longo de muito tempo tem vindo a colocar a mão na massa e se beneficiado  indevidamente de valores monetários e  diverso património público e em nenhum momento foram impedidos a tempo por quem de direito  de o fazer. Informação sobre a responsabilização e recuperação de bens públicos subtraídos  escasseia salvo os que surge através dos órgãos de comunicação.  Alguns continuam a fazê-lo impunemente. A austeridade de que se fala em relação aos gastos públicos é muitas vezes referenciada pelo Governo, mas na prática acontece o contrário .  Por exemplo, quando alguém  é  nomeado para um determinado cargo na função pública,  as  exigências recaem geralmente  na atribuição de uma viatura e  de  casa que o Estado se obriga a comprar/construir ou disponibilizar, para não se falar de outras regalias, como se o cargo ocupado  constituísse a base sine quanon ou mesmo um prémio para enriquecimento do cidadão dirigente  à custa do Estado. De que ele é servidor do povo, esquece logo quando é nomeado.  Alguns nem sequer sabem  de que   o dinheiro que paga tais regalias vem dos imposto que são pagos pelo povo que sacrifica  uma parte do seu rendimento para o efeito. Se sabem, então, fingem que desconhecem o que é mau. Nalguns casos criam-se propositadamente cargos para beneficiar certas pessoas,  mesmo que a sua actividade não seja notória ou não justifique nomeação ou a  atribuição de  regalias ou benefícios. Na maioria dos casos, há mesmo disputa de cargos por  se saber que há  regalias e benefícios.  Entretanto, nunca  são conhecidas as  situações  em  que as pessoas reclamaram ou lutaram  por melhorar o seu trabalho e desempenho  na função pública. Alguns nomeados e que se beneficiam de  certas regalias chegam mesmo a permanecer em tais cargos indefinidamente e não produzem nada de concreto para justificar tais regalias ou benefícios e,  muito  menos são substituídos. Não é por acaso que muita gente anseia assumir cargos de Direcção e Chefia no aparelho do Estado. A luta é renhida. Diplomas  de licenciatura e Mestrado estão na moda à luta de uma promoção e busca de melhores regalias e benefícios mesmo que não se realize nada em prol do Estado e da sociedade no geral. Quem perde com isso é o Estado que tem que pagar despesas improdutivas. Pela forma como o erário público é gasto,  fica-se com a sensação de que o controle e a fiscalização não estão a acontecer.  Mesmo com  a implementação do SISTAFE, que visava um melhor controle das finanças do Estado, parece que alguns  especialistas têm furado o sistema e se beneficiado do erário público.  Além dos  desvios de fundos,  as compras de bens, pagamento de alguns serviços e nalguns casos  de valores  exorbitantes     em  reparações de imóveis do Estado,  que mais se parecem com construções de edifícios,  em detrimento, por exemplo de construção de escolas e hospitais,  são reportados em concursos públicos,   dando   conta  que o País está bem financeiramente. Virou moda o roubo de medicamentos, como forma de debilitar o erário público. Entretanto, é  estranho que o País, estando desde 2015 a funcionar sem o apoio externo não tenha “falido”  e que continua a funcionar normalmente. É gratificante saber  através do Governo que embora todas as vicissitudes, a economia está a recuperar, num processo de retoma com perspectiva de crescimento em 2019 na ordem de 4%,  facto que pretende significar que se não houvesse tais desvios de fundos e do património público e alguma má gestão de erário público, entre outros factores negativos, certamente que o nosso País poderia conhecer maior crescimento económico e poder  realizar muito investimento público social (escolas, hospitais) que tanta falta faz. Urge, pois, repensar a gestão da coisa pública. Para os que tem feito para evitar que o pior aconteça, resta congratular-lhes. A LUTA CONTINUA

O Presidente Samora Machel, quando recebeu Eusébio pela primeira vez após a declaração da nossa Independência, recordou – “Quando eu estava na guerrilha, o Presidente Kim Il Sung da Coreia do Norte, pediu-me: vence-lá depressa os colonialistas, de forma a tirares da Selecção de Portugal, o Eusébio, que desgraçou a minha selecção, no Mundial de 1966, em Londres. Perdemos por 5-3, com três golos do teu compatriota”.

Saudades do tempo colonial, em que as estrelas dos principais clubes moçambicanos eram cobiçados pelos “grandes” de Portugal, nalguns casos com presença obrigatória na Selecção da Quinas?

Em muitos aspectos, sim. Sobretudo porque nos dias que vivemos, não brilha em nenhum dos crónicos candidatos ao título português, qualquer dos nossos craques.

DAS INTENÇÕES À PRÁTICA… UM ABISMO!

Devido à vivência e envolvência no desporto ao longo da minha já não curta vida, sou confrontado, amiúde com uma pergunta que já se tornou sacramental:  “porquê esta situação”?

Um assunto que suscita várias respostas, de uma forma geral interligadas. Mas vou-me deter numa das explicações que me parece estar no topo da “queda-livre”!
Mudaram-se os tempos e as realidades. Mas, entre nós, nem sempre… as vontades!

E para onde apontam as novas realidades? Com a profusão das novas tecnologias, houve mudança de certos paradigmas, a nível mundial. Os jovens sentem-se mais atraídos pelos jogos que não fazem suar, do que por aqueles em que é necessário “dar ao litro”.

Daí que, quando apostam em puxar pelo físico, mesmo no culturismo, a melhoria da saúde ou a confraternização, não são as prioridades. Ou buscam alternativa de emprego, ou um físico atraente para impressionar na sociedade, muito particularmente, às “pitas”.

Portanto, a massificação tem que obedecer a bases diferentes das dos tempos idos, em que no futebol, por exemplo, bastava uma bola e um espaço livre, para a miudagem fazer, com paixão, a sua iniciação.

Hoje o desporto aparece para contrapor o chamamento das drogas, o vício das redes sociais e outros excessos.

Estamos, portanto, em presença de um quase total “esvaziamento” da sua essência. “Correr dá saúde? Então que corram os doentes…
Há que reconhecer que faltam campos, bolas e técnicos. Mas a carência principal tem a ver com factores motivadores, enquadrados nos novos tempos e ventos.

A formação do futebol em Portugal, por exemplo, ocupa um espaço de excelência, claramente definido, em que os talentos, até que se afirmem e provem que têm qualidade para serem integrado nas “universidades da bola”, jogam para serem vistos, muitas vezes comprando o seu equipamento e, nalguns casos, até pagando propinas. E só a partir da sua afirmação – com o “scouting” em acção – é que os papéis se invertem e as colectividades começam a propor salários. Os resultados estão à vista!

A massificação em adidas, nem que sejam das calamidades, é para onde apontam os novos ventos. Isto porque o jovem tem que mostrar no seu bairro, as vantagens da sua opção, para contrapor aos títulos de “matreco” com que volta e meia é apelidado.

E os clubes têm que fazer contas, cair na real. Os gastos em meia dúzia de estrangeiros – com ou sem BI falsificado – investidos para alegrar e motivar a criançada, não produzirão, em poucos anos, estrelas para constar na relação dos seus maiores activos”?

Pretendo, hoje, falar sobre uma pulga que teima em se me encavalitar a orelha. Para não entrar em delongas, trata-se da forma pejorativa como certas pessoas se refugiam na fragilidade ou porosidade da poesia para a solução dos problemas que se lhes apresentam como desafios que eles têm que enfrentar nas áreas em que se ocupam para contribuírem na construção de um país que, a olhos vistos se desmorona e o horizonte se fecha para não podermos ver a réstia de esperança que o quotidiano nos pode reservar.

Assim ofendem os obreiros da nação através da poesia, que não são menos do que eles, por obrarem uma área que eles pouco ou nada entendem. São incompetentes nas suas áreas e tudo o que se lhes aparece à frente para lhes exibir essa realidade, desviam as atenções para se socorrerem das artes poéticas que jamais foram recurso com que se devia contar.

Há meses, ouvi um estreante em literatura, amigo meu, numa passagem do seu discurso de lançamento da sua obra, qualquer coisa como: «Não se abre um jornal com poesia!”, como que a dizer que encapando um jornal com poesia é votá-lo ao fracasso comercial. É verdade, para um jornal destinado a gente sem qualquer cultura poética ou, genericamente, literária, nem conhece os benefícios sociais que proporciona esse domínio; «É um relatório muito próximo dos melhores momentos da poesia portuguesa.», dizia outro bem falante, moçambicano, da língua camoniana, para tentar demonstrar, ironicamente, que tal documento era de fraca qualidade, que ficou muito aquém das expectativas.[1]

O jornal O PAÍS que se refere à minimização da força poética, abre, na capa, não propriamente com poesia, mas com uma referência a ela, e suponho que convidou muitos leitores a comprá-lo, o que significa que, afinal, se pode abrir um jornal com uma referência a este género literário e merecer a atenção dos leitores.

«Granda lata!», diria, um docente universitário que eu cá conheço, com esta expressão que recorrentemente usa para dizer ao estudante para rever o seu posicionamento em relação às matérias em foco.

Muitas pessoas, sobretudo responsáveis de áreas de desenvolvimento de qualquer campo político-social, quando falham nas soluções dos seus problemas, correm para dizer que isto ou aquilo não se resolve com poesia ou seja, a poesia é o último reduto a que se recorre quando soluções válidas mostram-se distantes de encontrar. Por que é que não se rendem à evidência dos factos e não demandam outros engenho e arte, para se desenvencilharem da sua incapacidade para não dizer ignorância?

Faz-me lembrar, este triste episódio, a forma pejorativíssima como o sábio grego Platão reflectia sobre o assunto poético, primeiro sobre a NATUREZA DA POESIA. Citado por Wimsett e Brooks, diz:
 
 “… a poesia não é uma técnica racional, não é uma arte que tenha uma natureza definida. Não é uma filosofia, não tem um domínio específico. O poeta não fala de nada em particular, fala do que existe nas outras artes que não domina. Platão é negativo àquilo que fala de poesia como realidade.”
 
Há bastos exemplos que se podem levantar, para mostrar que a poesia entra na factorização dos elementos susceptíveis de se ter em conta na ponderação da construção de uma nação. Ela pode, até, ser o grau zero dos factores nacionalistas, no sentido aludido por Roland Barthes, quando considera o Grau Zero da escrita «“cuja função já não é apenas comunicar ou exprimir, mas impor um além da linguagem". Uma linguagem que caminha no sentido da história para com ela dialogar.»[2], mas, nunca pode ser tida como um imprestável exercício votado a tudo quanto fracassa. Ou seja, a poesia não pode ser considerada um bode expiatório de qualquer incompetência, perante uma realidade objectiva que exige soluções, também objectivas, mas um elemento que se deve ter ao lado das outras ferramentas que servem para construir uma nação ou concertar as suas mazelas.
Já Aristóteles, de acordo com os estudiosos atrás citados, tem uma visão contrária à do seu contemporâneo, quando diz que a poesia não deve ser vista com base naquilo que ela retracta, não deve ser vista em função das leis das outras artes, mas deve ser julgada em função das suas próprias leis (que a governam). O que deve ser julgado é o equilíbrio interno da própria poesia. Ela tem uma estrutura própria, é uma arte específica, é uma forma de conhecimento.

Quanto ao lugar da poesia na sociedade, para Platão, ela traz efeitos negativos para a sociedade. Ela «alimenta e dá de beber às paixões», criando divisão e insegurança no coração…

Para Aristóteles, a poesia cumpre uma função catártica (purificadora). Não alimenta as paixões, não exacerba as paixões, racionaliza-as, despersonaliza-as através da “Distância estética”. As paixões existem e devem ser despersonalizadas, não sejam nocivas porque controladas e racionalizadas através da ficção que nos leva a preparar-nos para sepulta-las ou evitá-las.

O poeta abre-nos os caminhos para outras realidades possíveis.
A poesia tinha uma inserção na sociedade e por isso Platão falava dela para corrigir aí aspectos errados.

Muito mais tarde, no curso das reflexões sobre a poesia, Jakobson (1935) afirmaria que:
 
“… a função poética é a função dominante num texto literário onde podem ocorrer outras funções da linguagem que se situam num segundo plano.
 
No que respeita à visão de Platão quanto à poesia, Aristóteles até concorda que a poesia é imitação, simplesmente diz que ela não imita a realidade que existe (o que acontece), mas a realidade que pode acontecer (que pode existir). Ele quer dizer que um texto literário não conta o que aconteceu ou que exista, mas o que é possivel acontecer. Assim acaba não imitando o que aconteceu. Parte do particular para falar do possível. O texto literário não é particular é universal. Isto diferencia a literatura da história que se cinge aos factos, àquilo que acontece ou aconteceu, existe ou existiu.

O ponto de vista de Aristóteles conduz-nos à conclusão de que quando se imita o que pode acontecer, pode-se aperfeiçoar a realidade.

Comparando os pensamentos dos dois sábios gregos veremos que a visão de Aristóteles é claramente positiva e a de Platão, claramente negativa.
Para Aristóteles a poesia é universal, para Platão é particular.

Os poetas têm sentimentos, emoções, paixões e vontade de, com o seu trabalho, ajudarem o país a se afirmar, a ombrear com outros países, deste planeta e se tornar o lugar onde o povo viva em segurança, e, comodidade e bem-estar, saindo de todas as amarras que o imobilizam e o estagnam e quem deve estar comprometido com esse desiderato é o próprio povo disseminado pelas diferentes áreas que fazem a coesão social. Não tem, ninguém, qualquer direito, que, a partir do seu ponto de labuta, apequenar outras áreas, como se elas não contassem nos factores de realização social e de construção de um país. Essa atitude só pode ser tida como um crasso subterfúgio para esconder as suas próprias ignorância e incapacidade de sair dos problemas que o apoquentam, sem apoucar os outros. Convenhamos, não acreditar nas potencialidades da poesia é uma coisa; não acreditar no relatório de inquérito às dívidas ocultas é outra coisa. No poema AUTOPSICOGRAFIA, de Fernando Pessoa, está o que os que não conhecem a essência poética precisam saber e interiorizar:
O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,/Na dor lida sentem bem,/Não as duas que ele teve,/Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração
.”[3]

A poesia, definitivamente, é expressão espontânea do real; poesia é arte, é imaginação, a realidade é imaginada de forma a exprimir-se artisticamente, de forma a surgir como um objectivo poético (artístico), de forma a concretizar-se em arte; é uma forma de construir, de defender, de enaltecer os feitos de um povo, de uma nação; a poesia é a luta contra as injustiças, é a luta contra a fome, contra a pobreza; a poesia é a procura da paz e sossego; a poesia é canção, é música; é alegria de multidões; a poesia é, enfim, JUSTIÇA e LIBERDADE, não é bode expiatório de néscios! Não sabe, aprende!

Ao meu amigo debutante na literatura, acabado de lançar o seu primeiro livro, gostaria de confrontá-lo com o poema “Nitafa nawena murhandziwa”, Amor, vou morrer contigo, da autoria de Mr. Bow e propor que o publicasse na primeira página de qualquer jornal moçambicano, com a fotografia do autor e explicar o seu conteúdo nas páginas interiores, a ver se o órgão não esgotaria?! É que aquilo é poesia e move multidões e Mr. Bow – poeta, compositor e cantor, mexe com meio mundo onde ele aparece. Experimente-se organizar um comício chamando Mr. Bow para o abrilhantar, a ver se não víamos um mar de gente a acorrer! Ele é um verdadeiro cartaz amplo da cultura moçambicana na actualidade; ele demonstrou na última tournée da Super Bock Super Rock on tour em que, como cabeça de cartaz, correu oito províncias do nosso país, cantando a sua poesia e encantando multidões. Supera, em presença e em mensagem, alguns políticos da nossa praça. Isto quer dizer que aos políticos, exige-se respeito pela poesia!

Uma particularidade: tal como Barthes em o Grau zero da escrita leva a linguagem a emparceirar-se com a história para com ela dialogar[4], para mim, a poesia não pode ser considerada um elemento isolado, perante uma realidade objectiva que exige soluções conjuntas, também objectivas, pois ela é um elemento que se deve ter ao lado das outras ferramentas que servem para construir uma nação ou concertar as suas mazelas.

Não teriam, poetas como Luís Vaz de Camões, Homero e Virgílio, se empenhado tanto, com risco das suas vidas, na elaboração dos cantos maiores dos seus povos: «“Os Lusíadas”,- uma obra poética considerada a epopeia portuguesa por excelência; “Odisseia”- um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, … um poema fundamental no cânone ocidental. e “Eneida”,- um poema épico latino …. Conta a saga de Eneias, um troiano que é salvo dos gregos em Tróia, viaja errante pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica.»[5]

Poemas que construíram a dignidade, o respeito e a grandeza das suas nações e dos seus povos; poemas que sustentam desde há séculos, a existência de países que inspiraram o desenvolvimento mundial.

A Camões, por exemplo, o sonho da escrita de uma epopeia que glorificasse o povo português – Os Lusíadas, custou-lhe a perda de um olho em Ceuta e a pobreza extrema, na Índia, na China, em Moçambique e em Portugal, até à sua morte, tudo por intrigas palacianas, ódio, concorrências desleais entre os homens da pena, em que os menos dotados inculpavam Camões pelos seus fracassos, para que ele fosse desterrado a cumprir missões perigosas. Estou a falar do século XVI. Isto só mostra que a poesia atravessou os tempos pela força que tem, para não permitir desagregação por conta da inveja.

A libertação de Moçambique dos grilhões coloniais seculares, foi possível com a poesia induzida nos demais factores libertários do nosso país. Estou a querer dizer que a poesia, simplesmente, foi um dos soldados que libertaram a nação moçambicana do jugo colonial português.

Craveirinha, sim, o Tio Zé, o José Craveirinha, poeta-mor e herói nacional de Moçambique, com a sua poesia visionária, vaticinou infalivelmente, um país – Moçambique, através do seu poema: “Poema do futuro cidadão”.[6]
Peguemos a poesia pela mão e caminhemos com ela que nos ajudará a exorcizar os nossos fantasmas!
 
 
[1] Jornal O PAÍS de 13 de Dezembro de 2016
[2] BARTHES, Roland, “O Grau Zero da Escrita”, 1953
[3] Wikipedia, a enciclopédia livre – 13 de Dezembro de 2016
[4] BARTHES, Roland, “O Grau Zero da Escrita”, 1953
[5] Idem
[6] CRAVEIRINHA, José “Xigubo” (…)

Eram 8:30 da manhã, quando ela subtilmente tentava ofuscar os raios de sol – que persistiam em focar-lhe a cara – puxando o que julgava ser o lençol de seda, com que ela havia arrumado a cama, no dia anterior. Ao se aperceber que se tapara com uma capulana e que o colchão onde dormia não era o seu, Vanessa levantou-se bruscamente e avistou uma velha sentada a sua frente, como se esperasse pacientemente que ela acordasse.

Deu-se conta da sua nudez plena, ao que voltou a cobrir-se rapidamente. Tapou a cara, certa de que tivera sido sequestrada. Quando voltou a destapar-se, reconheceu a velhota como sendo avó de Fernando, seu namorado.

– Oh meu Deus, vovó! Onde está Fernando? O que se passa?
Vanessa deu uma olhada pelo quarto e reconheceu que se encontrava no quarto isolado do resto da casa, destinado aos membros da família que padecessem de doenças contagiosas. A avó de Fernando, uma senhora dos seus 75 anos, bem vividos, inclinou-se para o chão de cimento, pegou na única xícara de alumínio que lá se encontrava e serviu um líquido verde que Vanessa reconhecera logo como sendo água de cacana.

– Vovó, por favor, eu não estou doente! Onde está minha roupa e minha carteira? Que dia é hoje? 14 de Fevereiro? Ontem à noite eu estava em Maputo e hoje acordo em Chibuto, sem saber como vim parar aqui? – Vanessa fechou os olhos, deu um suspiro de epifânia quando a ficha finalmente lhe caíu.

Fernando levou-a a jantar ao “Manjar dos Deuses” no dia 13 de fevereiro porque no dia 14 tinha uma viagem marcada para JHB, onde devia estar, nas primeiras horas de quinta-feira, numa reunião com os seus sócios sul-africanos.

A última imagem de que se lembrava quando estavam no restaurante, era a de Fernando insistir que ela tinha de acabar o copo de vinho, quando ela não queria, pois havia preparado champagne em casa.

Seria uma noite memorável. Tirou folga para ir ao Spa. Por lá, fez de tudo para que o seu lençol novo, de seda, tivesse um efeito deslizante, em sua pele.
Espalhou pétalas de rosa pela casa toda. No corredor, foram pétalas brancas; na casa de banho, dentro e à volta da banheira espalhou pétalas vermelhas e no quarto, pelo chão e por cima do lençol de seda vermelho, espalhou pétalas brancas e rosas. Paz, paixão e amor, era o que desejava para o seu relacionamento conturbado.

É verdade que ela não aguentava com álcool. Quando estivesse bêbada, dava-lhe para dormir, por isso teve muito cuidado no restaurante, limitando-se a um copo. Nunca na vida havia perdido os sentidos até não perceber nem sentir que tivera sido transportada durante a noite, para Chibuto e sem dar conta, tivera sido despida. Ela estava certa de ter sido drogada. Perante esta realização, levantou-se rapidamente da cama e foi dar uma espreitadela à janela. Nada viu senão um galinheiro e alguns patos a andarem de uma lado para o outro.

– Vovó, deixa-me sair, por favor. Já estou bem!
– Eeh, minha filha, Fernando pediu para você tomar água de cacana primeiro. Não sai daqui sem…
– Fernando que vá à merda, vovó! Está onde ele? Vovó não vê que eu estou bem?!!
– Minha filha, não me traz problemas, eu…
– Vovó, eu não estou doente e estou aqui isolada e nua! Que doença tenho eu, de ontem para hoje?

Não é dia 14 hoje? Então?! Tenho a certeza que no dia 13 de Fevereiro, eu estava em Maputo e muito bem!! Agora dá licença, vovó. Dá-me a chave, quero sair! Vou lá dentro, tomar banho e ir embora! Minha carteira está lá dentro, né?

– Filha, não me traz problemas, toma esta água primeiro!
– Essa água é para quê? Para eu morrer de vez? Não, obrigada. Vou ao hospital! A chave, vovó! – ordenou Vanessa, extremamente impaciente, furiosa, a andar de um lado para o outro naquele quarto abafado, minúsculo, com bocados de areia a colarem-lhe os pés suados.

Rendida, a avó Margarida sorriu, levantou-se e deu uma coxeada até à porta. Olhou para Vanessa com um olhar submisso e voltou a sorrir, abanando a cabeça, como quem estivesse a contrariar ordens. Desamarrou sua capulana no extremo esquerdo, tirou do pequeno nó, a chave da porta do quarto e depois extraiu uma segunda chave do seu sutiã, que afirmara ser da casa lá fora.

Vanessa abriu a porta e saiu do isolamento descalça, embrulhada em capulana, em direcção à casa, numa velocidade de jato, tendo sido interrompida por um assobio que lhe era familiar. Quando olhou para o lado, viu Fernando, a sensivelmente 20m, sentado por baixo de uma árvore, numa mesa repleta do que parecia ser pequeno almoço, com pétalas vermelhas espalhadas pelo caminho que Vanessa teria de percorrer até ele e mais um detalhe: assim que Vanessa virou a cara em direcção de onde vinha o assobio, começou a tocar a música: “Isn’t she lovely” de Stevie Wonder. Fernando tinha consigo um pequeno gravador onde tencionava tocar todas as músicas preferidas de Vanessa.

Com as mãos na boca, dando risadinhas sem parar, Vanessa caminhava ao encontro de Fernando, semi-serrando os olhos, para ver o que havia na mesa. De certeza que não tivera sido a avó Margarida a preparar tudo aquilo. Estava com um aspecto de encomenda. Parecia um buffet de hotel.

Fernando fechou os olhos, levantou ligeiramente a cabeça e fez um biquinho com os lábios, em jeito de quem pedisse um beijo. Vanessa aproximou-se dele, deu-lhe um beijo e logo de seguida deu-lhe uma chapada carinhosa e disse:

– Desde quando é que drogar uma pessoa é romântico?
– Desde que o sorriso dessa pessoa seja tão radiante quanto aquele por qual me apaixonei!
– Credo, sou tão rabugenta assim?
– Praticamente…
– Hahaha! E que droga usaste para que me conseguisses violar sem eu me aperceber?
– Não te posso dizer, mas nada que te prejudique a saúde. E pus-te nua apenas para criar mais drama. E então, estou de parabéns?
– Parabéns?!! Que distorção, meu Deus! Tenho muita fome… esta comida não vai chegar. Vou te comer todo, hoje. E pode ser naquele quartinho contaminado, não faz mal. Hihihi.

 

Texto escrito em 2009
Interpretação da alínea b) do nª2 do artigo 178 da Constituição

A Assembleia da República, após o encerramento da sua última sessão ordinária, e em vésperas de início da campanha eleitoral, foi confrontada com um pedido de declaração de perda de mandato em relação a deputados que se inscreveram em partidos diferentes daqueles pelos quais haviam sido eleitos. O pedido teve como fundamento o estabelecido nas alíneas d) e e) do n?1 do artigo 8 da Lei n?3/2004, de 21 de Janeiro, Estatuto do Deputado, que estabelecem o seguinte:
«Perde o mandato o Deputado que durante a legislatura:
…………………………………………………………………..
d) se inscreva em partido diferente daquele pelo qual foi eleito;
e) assuma funções em partido diferente daquele pelo qual foi eleito;»

A Comissão dos Assuntos Jurídicos, Direitos Humanos e de Legalidade, em Parecer remetido ao Presidente da Assembleia da República, considerando que tal comportamento se enquadrava no previsto na alínea b) do n?2 do artigo 178 da Constituição, que determina a perda do mandato do Deputado que «se inscreva ou assuma função em partido ou coligação diferentes daquele pelo qual foi eleito», conjugado com a já referida alínea d) do n?1 do artigo 8 do Estatuto do Deputado, propôs que a Comissão Permanente da Assembleia da República deliberasse em conformidade com o pedido.

O Parecer da CAJDHL é escasso em fundamentação ou em argumentação, fazendo apenas referencia a um precedente que teri  a ocorrido na legislatura anterior com alguns deputados da bancada ora requerente.

O Parecer registou um voto de vencido no qual se expende, essencialmente, que “O elemento teleológico da norma contida na alínea b) do artigo 178 da CRM e na alínea d) e e) do artigo 8? da Lei nº 3/2004, de 21 de Janeiro, ainda em vigor, visa defender os interesses e posições políticas do Partido durante a vigência do Mandato e não para a legislatura seguinte.”. pelo que “…os deputados em causa… não perdem o seu actual mandato, ainda vigente.”

Assim, ainda que breve, é o voto de vencido que aborda e argumenta sobre a questão de fundo que a interpretação dos dispositivos constitucionais e legais pertinentes ao caso sub judice suscita.

Com efeito, as disposições invocadas, tanto pela bancada requerente como pelo Parecer da CAJDHL, são as realmente aplicáveis neste caso. Só que não se vislumbra nenhum esforço de interpretação, limitando-se unicamente ao seu sentido literal. Ora o sentido literal, neste caso, coloca essas disposições em linha de colisão com outras disposições ou princípios constitucionais igualmente relevantes, e que , em princípio, não se percebe por que razões deveriam ser sacrificados.

Desde logo a questão deve colocar-se no plano da interpretação dos dispositivos constitucionais pertinentes, porquanto sendo o Estatuto do Deputado lei ordinária, ao regular a mesma matéria, terá que se lhes subordinar.

Ao se isolar o sentido literal da alínea b) do n?2 do artigo 178 da Constituição, colide-se inevitavelmente com outros dispositivos constitucionais, tais como o n?3 do artigo 170, o n?2 do artigo 147, ou o artigo 53. Vejamos como:

O princípio estabelecido no n?3 do artigo 170 constitui a base da universalidade do sufrágio, estende-se a todo o cidadão como prerrogativa fundamental, isto é, tanto aos cidadãos que estão integrados em partidos como aos que não estão. Todos eles gozam da liberdade de concorrer, com um único condicionamento: devem estar integrados em listas partidárias. Porém, o que este dispositivo não estabelece é que os cidadãos filiados num partido apenas possam concorrer por esse mesmo partido. Estes são livres de concorrer pelo mesmo ou por diferente partido ou mesmo como independentes. E não se vislumbra nenhum fundamento para retirar aos deputados essa prerrogativa tão fundamental ao sufrágio para que este seja de facto livre e universal, introduzindo uma espécie de capitis deminutio à margem da Constituição.

O vínculo que liga o Deputado a uma bancada é de natureza político-partidária, organizatória e disciplinar, não se sobrepondo ao vínculo que o liga ao Estado e à Nação. Por isso é que ele pode romper esse vínculo sem que seja posta em causa a sua condição de Deputado da Nação.

A proibição que a Constituição estabelece, como limite à liberdade do Deputado, é apenas a da sua ”migração” para outras forças políticas, entenda-se, na vigência do mandato. Uma prática proibida entre nós mas permitida noutros parlamentos e que se designa de “floor crossing”.

Esta limitação tem por finalidade, por um lado, defender o partido perante o qual o Deputado assumiu compromisso ao aceitar a inclusão na respectiva lista, e, por outro, a permitir a organização e disciplina dos deputados necessária à estabilidade e ao normal funcionamento da instituição parlamentar.

Porém, e apesar da reconhecida relevância destes fundamentos, nenhum deles se sobrepõe ao vínculo que liga o deputado à Nação, nem ao princípio de liberdade de consciência que lhe é inerente. Por isso mesmo o deputado pode afastar-se do partido (e da bancada) pelo qual foi eleito mantendo-se como deputado independente, portanto sem perda do mandato. Sobre esta possibilidade não se suscita nenhuma dúvida.

Assim, com que fundamento se iria forçar este deputado independente a inscrever-se, para o mandato seguinte, em listas de um partido do qual já estaria desvinculado? Não faria sentido nenhum. Mutatis mutandi, se lhe é reconhecido o direito de se desvincular e afastar totalmente do partido pelo qual foi eleito deputado, em pleno exercício do mandato e sem perda do mesmo, com que fundamento se lhe iria recusar o direito de se inscrever por outro partido para o mandato seguinte? A considerar-se sancionável este último comportamento, por maioria de razão se deveria sancionar o primeiro porquanto, por esse prisma, é sem dúvida mais grave.

Esta liberdade de se inscrever em partido diferente não constitui uma prerrogativa apenas do deputado independente. Com efeito, estamos perante uma liberdade política fundamental consagrada na Constituição, de que todos os deputados e os demais cidadãos, gozam.

Esta liberdade é condicionada apenas em função do mandato. Mas esse condicionamento não vai para além do mandato em causa, ela não o extravasa. Assim, não se pode, em nome do mesmo, prejudicar o exercício de direitos que se refiram ao mandato seguinte, porque isso seria excessivo em relação aos fins visados por aquele condicionamento e, por conseguinte, já não faria sentido.
A lei ou a Constituição nunca poderiam consagrar um princípio segundo o qual, uma vez eleito deputado por um partido, terá que ser reeleito pelo mesmo partido, sempre. Mais do que partidocracia seria «escravização» dos deputados aos respectivos partidos!

Uma vez que a organização dos processos eleitorais é concebida de forma que não se verifique qualquer hiato entre uma legislatura e a seguinte, isso tem consequências sobre a questão em análise. Com efeito, as eleições tem lugar, mais ou menos, imediatamente antes do termo do mandato em vias de cessar, não havendo um período específico, entre uma legislatura e a seguinte, destinado aos cidadãos que são deputados para exercerem a fundamental liberdade de opção político-partidária entre inscreverem-se pelos partidos por que foram eleitos ou inscreverem-se por quaisquer outros.

A inexistência de um tal período específico para o exercício da liberdade de opção não pode significar a exclusão da liberdade de opção. Não pode significar que essa liberdade é, como tal, negada, e substituída por um princípio de vinculação ou de obrigatoriedade de renovação do mandato pelo mesmo partido.

Na verdade a solução para esta dificuldade, que a meu ver é apenas de interpretação do dispositivo constitucional pertinente, deve assentar numa lógica paralela ou semelhante àquela que orienta as soluções já adoptadas pela legislação eleitoral relativamente aos “magistrados judiciais, do Ministério Público e os diplomatas chefes de missão que…pretendam concorrer ás eleições presidenciais ou legislativas…”, os quais, nos termos do n?1 do artigo 14 da Lei n?7/2007, de 26 de Fevereiro, “devem solicitar a suspensão do exercício da função, a partir do momento da apresentação da candidatura.” Nestes casos não se coarcta nem prejudica nenhum direito, apenas se compatibiliza o respectivo exercício.

No caso em apreço, porque não se vislumbra nenhuma contradição entre a condição de deputado da Nação, independente ou não, num mandato, e o exercício da liberdade de opção político-partidária para o mandato seguinte, o que a legislação eleitoral tem que fazer é adoptar uma solução de compatibilização prática, sem prejuízo ou exclusão de nenhum princípio ou direito.

A alínea b) do n?2 do artigo 178 da Constituição nada mais é do que a consagração constitucional da norma que dantes constava apenas ao nível do Estatuto do Deputado (Artigo 8 da Lei n?2/95, de 8 de Maio e sucessivas revisões). Em 2004, o legislador constituinte, considerando que esta matéria, pela sua directa conexão com a conformação do órgão de soberania que é a Assembleia da República, não devia ficar ao critério do legislador ordinário, conferiu-lhe dignidade constitucional.

Tenhamos em atenção que o legislador ordinário inspirara-se no correspondente dispositivo da Constituição Portuguesa que, desde 1976, vem consagrando, na alínea c) do n°1 do artigo 160 (Perda e renúncia do mandato), a norma segundo a qual “1. Perdem o mandato os Deputados que: c) Se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio.”. Jorge Miranda e António Medeiros, em anotação a esta alínea (no Tomo II da sua «Constituição Portuguesa Anotada»), defendem que “É uma salvaguarda da vontade popular e um imperativo ético cuja consagração jurídico constitucional se mostra necessária olhando à experiência de muitos países, incluindo o Portugal do tempo do liberalismo….Além disso, a despeito de a disposição constitucional não o explicitar, deve entender-se que perde também o mandato… o Deputado que se apresenta como candidato a novas eleições (sejam parlamentares ou não) por partido diverso. A ratio é a mesma.”

Se a nossa análise está em linha com a primeira parte da anotação, no que concerne às razões em que se justifica o dispositivo em causa, já a parte final da mesma, justamente naquilo em que o texto da Constituição Portuguesa não é explícito, não nos parece que se possa, de forma coerente, fundar nas mesmas razões, nomeadamente de “salvaguarda da vontade popular” e de “imperativo ético”.

É que a vontade popular que é mister salvaguardar é a que se refere estritamente à eleição para o mandato anterior, e o imperativo ético só se pode referir ao compromisso político subjacente à candidatura para esse mesmo mandato. A vontade popular manifestada não se estende ao mandato seguinte, assim como não se vislumbra que imperativo ético se pode invocar em relação a um compromisso (relativo ao mandato seguinte) que ainda não foi assumido. Contrariamente ao que os ilustres e respeitados constitucionalistas expendem, parece-nos que a ratio não pode ser a mesma. A existir alguma ratio parece-nos que teria de ser bem outra e não aquela.

Armando Artur é um poeta moçambicano que dispensa apresentações, porém, pessoalmente, julgo indispensável que se lhe apresente à comunidade interpretativa da literatura do nosso país, mesmo que isso se afigure uma redundância. É uma ênfase necessária. Acredito que exista uma considerável ala de apreciadores interessados da literatura moçambicana que ignore, sua obra poética, os seus pródromos, como um dos vates desta parcela oriental de África, que banha os seus pés no mar Índico.

Ele é já dono de uma vasta obra literária, entre textos poéticos dispersos e uma bibliografia de se lhe ter respeito. É produto do movimento Charrua, que teve como seu palco inicial a AEMO e, posteriormente, o território moçambicano, na década 80 do Século XX. A Charrua é, portanto e confessadamente, “o seu berço literário”, ombreando com Eduardo White, Hélder Muteia, Juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Tomás Vieira Mário, Marcelo Panguana e tantos outros arautos da jovem e pioneira revista nacional de literatura. Já lá vão cerca de 35 anos que ele participou intensamente no movimento da reinvenção da literatura moçambicana e da dor que tal intrepidez custou aos fundadores da Charrua, a primeira Revista Literária Moçambicana, pós-independência.

Nesta mais recente obra do poeta Armando Artur, depara-se, logo no seu poema inaugural, a necessidade reinventiva que este autor tem em ralação ao Ser, e foi na sequência da obra que outros elementos formativos do planeta terra se transfiguraram para exprimir a dor da reinvenção do ser: “Não sei o que havia antes do nada”. Linda confissão de reconhecimento de que algo existia, daí a proposição da reinvenção. Por tal certeza existencial de algo, Artur, apenas manifestando as suas limitações epistemológicas sobre o advento da terra, humildemente assevera que: “Só sei que tudo começou quando o nada se amotinou contra o seu próprio nada. Apareceu então uma nuvem de gás e poeira que, cansada da sua tristeza e solidão, decidiu recolher-se dentro se si mesma, no seu alvéolo de silêncio. Assim ficou sólida e fria, mas resoluta do seu propósito de querer ser. No entanto, por causa da urgência de ser, no seu interior ateou-se fogo e plasma. E foi quando expeliu ar e lume, lava e vapor de água que se transformaram em planeta terra.”

Este poema é a essência desta obra, pois, outros factores, afinal elementos não menos importantes na sua textura, vêm por acréscimo a tão basilar tese Arturiana da Reinvenção do Ser. Tais são os casos “Das suas águas profundas” que escondem “no eterno movimento das suas ondas, ante o olhar cúmplice e melancólico da lua.” O que a dialéctica universal fez que o poeta nos revela: “A bio tornou-se, desde então, categórica e inadiável, como a luz que vem das estrelas distantes.” E nos interstícios desta reflexão que o sujeito poético se expõe: “Cada quantum de luz que trespassa o meu ser leva sempre consigo uma fracção do meu passado. Aqui estou, como que no prelo da minha própria reedição. Qual postscriptum impresso do avesso!” O amor, sobretudo este nobre sentimento afectivo, e outras manifestações humanas que o sujeito poético esgrime, são, enfim, pendulares, vêm arrendilhar todas as bordas ou dobras, recantos estruturais do vizinho de outras formações planetárias, suplantadas “pela sua figura alpina e aquosa, azulada e acinzada, formosa e chistosa como uma joaninha ensaiando a passarela da próxima aragem.”, na grande transfiguração assente no conceito que explica “A reinvenção do ser e a dor da pedra”. Acresce-se, pois, a este profundo desiderato do autor, o advento de tudo o que vem habitar o Ser reinventado, que, ao mesmo tempo, vem tirar da pedra, a dor, para a inculcar no profundo sentir de cada novo ser consubstanciado na humanidade.

O filósofo José Castiano, encarregue de apresentar, publicamente a obra, não poderia escolher outro caminho para explicar aquela profunda obra que hipotetisa o concurso de diversos factores que estiveram na essência da formação do planeta terra e dos seus conteúdos, senão enveredar pelos conceitos filosóficos que atestam o seu surgimento. Acreditando ser, aquela, uma obra de difícil interpretação, Castiano não se poupou na busca de trocados vocabulares para ajudar na acessibilidade aos mistérios que envoltam esta obra literária de Armando Artur.
 

Justa homenagem, escolha acertada do Município de Maputo, ao distinguir e medalhar – juntamente com Pedro Pimentel e Caetano Ruben – o “mister” Martinho de Almeida, homem das 101 actividades, amigão de todos. É agricultor e suinicultor, foi mecânico de automóveis, deputado, treinador de futebol… etecétra.

Com real propriedade e devido às suas múltiplas actividades, sempre na mó de cima, um amigo comentou, referindo-se à sua popularidade:
– Quem não conhece o Martinho de Almeida, não é moçambicano!
A seu lado, e para vincar o carácter divertido do inventor do MARSIA, um outro acrescentou:
– E quem não o conhece profundamente, não morre feliz!

ESTÓRIAS “MARTINIANAS”…DE ENCANTAR

Por detrás do seu estilo brincalhão, sempre com uma pitada de humor na ponta da língua, esconde-se um homem sério, disciplinador, estudioso e rigoroso. Por si, no futebol, falam os títulos e jogadores (bem) formados ao longo de duas décadas. Porém, fora do palco da competição, é um regalo partilhar com o ‘mister’, estórias que o tempo não pode apagar. Este é o local e o momento para recordarmos algumas delas.

John Mortimor era o técnico do Benfica de Lisboa e o nosso Martinho, que para lá foi estagiar, de imediato lhe caiu nas graças. Assim sendo, pela manhã, passava pelo balneário dos jogadores, ao encontro do treinador inglês.
Ao passar pelas estrelas encarnadas, Martinho saudava-os, alto e bom som:
– Bom dia, meus senhores!
À excepção do Shéu, que retribuía o cumprimento, todos os outros o ignoravam. Isso repetiu-se três dias, até que o nosso compatriota beirense, disse:
– Mister, não vale a pena cumprimentar. Estes tipos têm a mania que são craques.
Martinho retorquiu:
– Eu quando cumprimento, não estou à espera de retribuição. É só para demonstrar que sou educado.
Todos engoliram em seco. No dia seguinte, o ´mister´ ao passar, disse: ´Bom dia, meus senhores´
– Os craques, em uníssono: ´Bom diaaaaa, mister´!

««««

Nos veteranos, a jogar pelos Eucaliptos, o Martinho após um choque com o Dzimba da equipa do Tira Babalaza, caíu em pleno campo, reagindo:
– Ó Dzimba, afinal nós viemos aqui para nos divertirmos ou para nos aleijarmos?
– Mas eu nem te toquei, Martinho – diz o Dzimba.
– Então caí sozinho no meio do campo? Quer dizer que estou grosso?

»»»

Numa certa ocasião, o ´mister´ revelou um desejo aos amigos:
– Vou estudar.
Depois, ao seu estilo, foi esclarecendo:
– Mas só quero Português e Matemática. E mais: os meus professores, terão uma grande vantagem sobre os outros docentes. Sabem porquê? É que eu é vou dizer-lhes o que me terão de ensinar, simplesmente porque… eu sei, tudo aquilo que não sei.!!!

»»»

No tempo das grandes carências, o chamado período do carapau, Martinho veio de um estágio em Lisboa, reuniu vários amigos em sua casa, para um jantar. E foi dizendo:
– Tenho leitão assado, cerveja, mas só um garrafão de vinho. Só um, perceberam? Por onde começamos?
– Pelo vinho – disseram os presentes, cheios de saudade!
Martinho foi para a sala ao lado, depois regressou e perguntou:
– Vocês querem tinto, ou preferem branco?
Todos se riram, mas o “mister”esclareceu:
– É que só há um garrafão para nós, o outro não é meu. Mas como fui eu que o trouxe, vocês ainda podem escolher!!!

 

O País precisa de comprometimento de todos os Moçambicanos, temos de aprender a confiar nas instituições e mesmo nas pessoas que as dirigem, caso contrário, dificilmente, construiremos uma nação próspera, segura para hoje e amanhã, o “marcar o passo” que assistimos, na implementação dos acordos rubricados entre o Presidente da República, Filipe Nyusi, e o na altura Líder interino da Renamo, Ossufo Momade, a 06 de Agosto é disso o exemplo da falta de confiança.

Esse acordo previa a desmilitarização, desmobilização e reintegração das forças residuais da Renamo, cujo processo, foi lançado pelo Presidente da República, em Outubro do ano transacto, contando com o apoio da comunidade internacional, através de peritos militares, é preciso recordar que, a 05 de Setembro de 2014, o antigo Presidente da República Armando Emílio Guebuza e o falecido Líder da Renamo, Afonso Dhlakama, assinaram um acordo de cessação de hostilidades que, entretanto, também ficou por implementar, o resto do que se passou, todos sabemos!

Se o acordo de cessação de hostilidades visava a viabilização das eleições gerais e das Assembleias Provinciais de 2014, o acordo rubricado pelo Presidente e Líder Interino da Renamo visa viabilizar a formação de um exército único e apartidários (embora os homens que a integram sejam do exército nacional e do Partido Renamo) e viabilizar a implementação do pacote de descentralização no quadro da revisão pontual da Constituição da República que prevê, as eleições dos Governadores Provinciais em 2019 e, eleição dos Governadores e Administradores Distritais em 2024.

Ora, este processo, na minha modesta opinião, não pode avançar sem a constituição do exército único da República, em outras palavras, não pode avançar sem a desmilitarização, desmobilização e reintegração das forças residuais da Renamo, um processo que precisa de muita calma e tempo para executar, sendo que, até hoje, 07 de Fevereiro de 2019, a liderança da Renamo não forneceu as listas dos seus homens a desmobilizar e a reintegrar na sociedade, este processo não pode ser realizado de forma apressada.

Deste modo, sugiro que, haja um pronunciamento peremptório sobre esta matéria, não se pode ficar na incógnita, se haverá ou não eleição dos Governadores no quadro da revisão pontual da constituição, é preciso que diga clara e abertamente que, as condições para a implementação dessa revisão pontual não estão criadas, sei que, da parte da Renamo, haverá o posicionamento de que quem atrasa é o Governo e do Governo haverá a informação de que a Renamo não indicou os homens a integrar e a desmobilizar, para mim, o importante é o que está a ser feito e não o dito e o desmentido.

O adiamento da implementação desta revisão pontual, vai mexer com os eleitores, na verdade, muitos eleitores querem ver as suas províncias a serem dirigidas por pessoas por si eleitas, pese embora não se tenha sagrado o voto directo, secreto, seja através de lista, para os eleitores é um mal menor, comparado com a nomeação do Governador pelo Presidente da República, no entanto, convenhamos, eleger Governadores Provinciais, no contexto de existência de forças armadas fora do exército do estado, constitui maior perigo que adiar essa eleição.

Li, no semanário Dossier & Factos de 04 de Fevereiro de 19, que “arranca, no próximo dia 28 de Fevereiro, a IX Sessão da VIII Legislatura da Assembleia da República, por sinal a penúltima do presente mandato, entretanto, até ao momento, as propostas para viabilizar a governação das províncias, no quadro da revisão pontual da Constituição da República, que introduz a eleição dos Governadores Provinciais, ainda não foram submetidos pelo Governo à magna casa. Esta situação, está a causar algum nervosismo aos Deputados, sobretudo da oposição, que acham estranha a demora na submissão daquela proposta, que deve ser aprovada pelo Conselho de Ministros”.

Estes mesmos Deputados da Assembleia da República, estranhamente, não acham estranho que, a caminho de um evento dessa magnitude, a eleição de Governadores, ainda se mantenham homens residuais da Renamo, armados, nas matas deste Moçambique, estes mesmos Deputados, que são os representantes do Povo, nossos representantes, não acham estranho que, apesar do acordo assinado a 06 de Agosto entre o PR e o líder da Renamo, a liderança da Renamo esteja a “marcar passo” em relação a matéria tão sensível quanto delicada, como a desmilitarização, desmobilização e reintegração, deixando crer que, esse não é um problema, outros dirão, “os homens residuais da Renamo não são nenhum perigo”, também acredito que não o são hoje, não sabemos o que poderá acontecer amanhã num outro contexto de governação!

Gostemos ou não, não podemos comparar o exército nacional ao grupo armado do partido Renamo, o exército e a PRM, são o garante da soberania e dá Ordens e Tranquilidade Públicas, as forças residuais da Renamo, no caso, são perturbadores da ordem pública, quando actuam, os militares e a PRM escoltam viaturas e pessoas para as proteger desses homens. Por mais defeitos que tenha a PRM, a ela compete garantir a nossa segurança e tranquilidade, por isso, independentemente da disciplina que possam ter, os homens residuais da Renamo, eles são uns foras da lei, é preciso enquadrá-los.

Dito isto, sou de opinião que, o Governo de Moçambique e a liderança da Renamo encontrem um calendário mais ajustado para realizarem a desmilitarização, desmobilização e reintegração dos homens residuais da Renamo, condição sem a qual, não podemos avançar para as eleições dos Governadores Provinciais no quadro da revisão pontual da Constituição da República, atrevo-me a dizer que, a eleição dos Governadores é, e deve ser, refém da desmilitarização, desmobilização e reintegração dos homens residuais da Renamo, minha opinião!

Nota prévia: para não entrar no mato e embalar num debate eivado de argumentos, fértil em ataques pessoais e objectivos obscuros, socorro-me de um instrumento legal que norteia o funcionamento das agremiações desportivas em Moçambique: a Lei do Desporto.

O artigo 48 na sua alínea 2 refere que os titulares dos órgãos sociais das federações e associações desportivas provinciais e distritais só se podem recandidatar uma vez.  O mesmo artigo, já na sua alínea 1, diz que a duração dos mandatos deve ser de apenas quatro anos.  

O artigo 43  da Lei de Desporto refere que as federações desportivas nacionais estão sujeitas a fiscalização pela entidade que superintende o desporto, neste caso o Ministério da Juventude e Desportos através da inspecção-geral.

Acontece, pasme-se, que tal tem sido pontapeado perante o olhar impávido do Ministério da Juventude e Desportos.  A título de exemplo:  o mandato do actual elenco da Federação Moçambicana de Basquetebol, encabeçado por Francisco Mabjaia, venceu em Junho de 2018, sendo que na altura devia ter sido convocada uma assembleia-geral para a eleição de novos corpos directivos.

Equivale, isso, dizer que a Federação Moçambicana de Basquetebol está fora do mandato há cerca de oito meses.

Quais criadores do tal e qual sem igual, as alinhadas associações provinciais de basquetebol, sem mandato para tal e numa clara violação da Lei do Desporto, decidiram que Francisco Mabjaia devia continuar como presidente da FMB até Dezembro de 2019!

O que, feitas as contas, colocaria Mabjaia num caso sem igual: presidir uma agremiação desportiva com cerca de um ano e meio fora do mandato. Não procede, não procede mesmo, o argumento de que havia necessidade de o actual elenco continuar com o trabalho que esteve a desenvolver porque há várias actividades este ano!

Quer dizer, quando houve a reeleição de Francisco Mabjaia não se sabia que este ano teremos os campeonatos africanos de basquetebol seniores masculinos e femininos, provas previamente calendarizadas pela FIBA-Africa? Não sabíamos que temos um ciclo olímpico?
Por uma questão de elegância, e se quisermos até de ética, Mabjaia não devia aceitar esta proposta das  enredas em choque com a lei  associações províncias de basquetebol.

Mabjaia, sejamos claros:  teve bons resultados durante o seu mandato. Qualificamo-nos, na sua era, para um Mundial de basquetebol em seniores femininos, em 2014, na Turquia, conquistámos a Taça dos Clubes Campeões Africanos de basquetebol em 2012 (extinta Liga Desportiva) e Ferroviário de Maputo (2018, em Maputo).

O mérito do elenco de Francisco Mabjaia  não se fica por aqui: foi no seu mandato que, pela primeira vez, Moçambique assegurou a presença no Campeonato Mundial de sub-19, entre outros ganhos.

Mas nem tudo foi um mar de rosas, diga-se! Não se fez formação de qualidade.
Pelos feitos e defeitos, sujeitos a escrutínio por parte dos fazedores da modalidade da bola ao cesto, Mabjaia merece sair bem  pelo trabalho que (não) fez e  ser colocado em cheque. Precisamos, em todas as esferas, de pessoas comprometidas com o trabalho. Precisamos de pessoas competentes que fazem bem o seu trabalho. Porca Madona, diria o poeta.

PS: o desfecho dos campeonatos nacionais de juniores masculinos e femininos, no pretérito fim-de-semana, não dignifica o basquetebol moçambicano. Não dignifica os fazedores da modalidade.

Apagão no pavilhão do Maxaquene no decurso da final de juniores femininos a sete minutos do fim, boicote  da equipa da casa a final de juniores masculinos e não realização dos quartos-de-final no dia marcado por falta de pagamento aos árbitros não valorizam esta modalidade. Vamos reflectir, deixar os egos de que somos mais que fulano A e B e lutar pelo desenvolvimento do basquetebol?

Introdução
Naturalmente, em qualquer país que desponta para o mundo, comemorar dez anos de pós-graduação simboliza conquista, busca incessante pelo conhecimento e, obviamente, desenvolvimento. Poderemos não ter a melhor pós-graduação do mundo, todavia  começamos a sua consolidação e, mais importante, será o nosso referencial de desenvolvimento nos próximos anos.

Depois do “boom” nos cursos de graduação, um pouco por todo o país, a Universidade Pedagógica assume-se como um farol e um marco no número de quadros produzido. Esgotaram-se os tempos dos certificados e diplomas de graduação.

Hoje, num mundo em competição e com o surgimento, por exemplo, das Nano Ciências e da Robótica, os desafios da pós-graduação fixam-se no aumento do investimento financeiro, em melhores condições logísticas, na formação de docentes e investigadores, sendo a internacionalização um factor de normalização e de regulação a ter em conta nas prioridades de desenvolvimento traçadas.

Defendo, então, a necessidade de uma pós-graduação emancipada – livre e independente –  que, em poucas palavras, se traduz numa pós-graduação epistemologicamente inclusiva e integradora dos saberes do Sul.

O mundo primitivo do Desconhecimento
Os primeiros seres humanos tiveram sempre uma relação de assombro com os fenómenos naturais e, principalmente, com o Universo. Eramos incapazes de compreender e interpretar, racionalmente, todos os fenómenos que ocorriam ao nosso redor. Por conseguinte, foram criados, ao longo de séculos, um vasto panteão de Deusas e Deuses que explicavam, ou serviam de base para explicar, todos os fenómenos naturais. Estas Deusas e Deuses serviram de argumento para a falta de racionalidade científica, mas era, sobretudo, o conforto e a protecção o que mais importava.

As Deusas e Deuses que ganharam diferentes denominações e designações justificavam, desde as mudanças sazonais com Perséfone, até as subidas e descidas dos mares que eram atribuídas a Poseidon, ou até, a infertilidade causada por Juno. Por conseguinte, estas inúmeras divindades não explicavam, apenas, os fenómenos da natureza, como serviam também para explicar as enfermidades e as doenças com que a humanidade se debatia.

Com o aumento do conhecimento científico as lacunas da compreensão humana foram, gradualmente, sendo preenchidas, na mesma proporção que as divindades foram desaparecendo. São poucas o que resistiram ao tempo e todos eles estão, hoje, associados ao fenómeno de fé.

Actualmente, com uma sociedade intelectualmente evoluída e com níveis tecnológicos excepcionais, não só deixamos de acreditar e depender das divindades, como podemos recriar esses fenómenos.

Persiste a relação científica baseada e produzida no hemisfério norte. Vivemos dependentes da ciência produzida e estruturada nas escolas e correntes de pensamento eurocêntricas. É, por outras palavras, uma relação colonial com a própria ciência. Não nos emancipamos cientificamente. Persiste a falta de cultura científica e encontramos justificação para os fenómenos que acontecem ao nosso redor em mitos e crenças.

As Epistemologias do Sul
Diferentes cientistas começam a questionar esta relação norte-sul e apelam para que se aposte num conhecimento intrínseco e que explique e redescubra os fenómenos locais. Maria Paula Meneses escreve, a propósito desta relação, “A constituição mútua do Norte e do Sul e a natureza hierárquica das relações Norte-Sul permanecem cativas da persistência das relações capitalistas e imperiais. No Norte global, os ‘outros’ saberes, para além da ciência e da técnica, têm sido produzidos como não existentes e, por isso, radicalmente excluídos da racionalidade moderna. A relação colonial de exploração e dominação persiste nos dias de hoje, sendo talvez o eixo da colonização epistémica o mais difícil de criticar abertamente. … Esta hierarquização de saberes, juntamente com a hierarquia de sistemas económicos e políticos, assim como com a predominância de culturas de raiz eurocêntrica, tem sido apelidada por vários investigadores de ‘colonialidade do poder´.”

As epistemologias do Sul seriam a minha proposta de argumentos para que este debate integrasse a agenda das  instituições de Ensino Superior em Moçambique. Precisaremos  de ter consciência e assumir a nossa dependência  em  relação ao poder  hegemónico e científico do Norte. Deste modo, reequilibrar os saberes e encontrar racionalidade para vários fenómenos sociais e culturais dos nossos países e povos, começa a ser uma tarefa urgente e obrigatória.

Como explicaremos, epistemologicamente, um crescente número de fenómenos que ainda grassam no campo e, por vezes, nas cidades e que ultrapassam, largamente, a normalidade?

Os Desafios de Pós-Graduação em Moçambique
Os desafios da pós-graduação passam por prestar mais atenção a autonomia epistemológica – produzir conhecimento comprometido com a realidade de Moçambique.

Produzir ciência e tecnologia com os olhos voltados para o Sul e, não somente, para o Norte. A inspiração para a pós-graduação não deveria ser apenas para os centros internacionais de conhecimento localizados em contextos distantes da própria realidade africana.

Com certeza, o intercâmbio internacional e a produção científica produzida no eixo Norte têm muito a contribuir e, ao vislumbrá-los, compreenderemos o tanto que, ainda, podemos avançar.

Mas o mundo é muito maior do que o Norte. Há beleza, conhecimento, tecnologia, sabedoria no Sul, onde se encontram, por exemplo, África, Ásia e América Latina. São conhecimentos ancestrais e cristalizados pelas guerras civis, conflitos e colonialismo ou agora pelo Neo-liberalismo.

Temos o dever de olhar para dentro, para as nossas comunidades, a nossas universidades devem fazer eclodir um diálogo epistemológico que valorize os conhecimentos que produzimos. Compreender o quanto nos falta de investimento interno para fazer desabrochá-los, bem como, reconhecer os sujeitos que os produzem e o potencial de ciência e tecnologia que temos em Moçambique. Isso poderá ajudar a repensar a formação de quadros, repensar as áreas que mais necessitam de investimento, os critérios para a internacionalização.

A internacionalização, a troca científica entre Moçambique e restantes países parceiros só atingirá um carácter emancipatório se não negarmos os conhecimentos produzidos pelo próprio país e potencializamos o nosso desenvolvimento científico e tecnológico interno.

Epistemologias do Sul como Conceito e Prática
Nas últimas décadas, diferentes cientistas apresentaram o conceito “etnos”. Ubiratan d’Ambrosio e até o Etnomatemático Paulus Gerdes sempre lutaram por uma ciência emancipar e de raiz culturalmente forte. Boaventura de Sousa Santos, igualmente, propôs o conceito de “Epistemologias do Sul”. Essas intervenções poderão ser um aporte importante para nos fazer avançar na compreensão da pós-graduação em Moçambique no contexto da ciência. Por meio das Epistemologias do Sul podemos compreender como a constituição conjunta do Norte e do Sul marcada, historicamente, por relações coloniais de poder e hierarquia continuam perdurando até hoje e são retroalimentadas pelas relações capitalistas.

O conceito ajuda a compreender como no Norte Global, os “outros” saberes, que não fazem partem do que, historicamente, foi construído como ciência e técnica tem sido produzidos, activamente, como inexistentes e, por isso, foram excluídos da racionalidade moderna. Há um processo histórico de dominação e exclusão que hierarquiza saberes, práticas e os sujeitos que os produzem.

Trata-se de um processo complexo que também envolve a economia, a política, a cultura. Ao olhar para Moçambique podemos perguntar:
1.Vivemos ainda sob a égide da colonização epistêmica na nossa pós-graduação?

2.Ou avançamos para práticas epistemológicas mais emancipatórias e que nos valorizem?

Mas há alternativas a construir. Entendendo que o eixo Sul do mundo é responsável por uma rica produção de conhecimento, transformada intencionalmente em ausência no contexto das relações de poder e dominação, porém, podemos nos desafiar a olhar com outros olhos para o lugar de Moçambique, no contexto africano, e internacional, da ciência e tecnologia e construir um novo lugar para a nossa pós-graduação. Um lugar que nos retire da periferia em relação a ciência e indague a relação centro- periferia, Norte/Sul, à luz das Epistemologias do Sul.

Ser periferia é, também, uma posição política atribuída de fora para dentro. Mais do que pensar, perifericamente, em relação a um determinado centro, é importante discutir por que ocupamos esse lugar no mundo, quem nos atribuiu esse lugar, por quê e o que perdemos e o que ganhamos com essa situação. E ainda como sair dela. Não nos orgulha ser a imagem e semelhança do Norte, prestigia sim construir e posicionar a nossa academia no eixo Sul, com o entendimento crítico que nos podemos conduzir as Epistemologias do Sul. As Epistemologias do Sul poderão ajudar a focar onde temos que nos posicionar no mundo para que nossos conhecimentos, riquezas minerais, forma de produzir alimentos, comunicação vertical e horizontal, ancestralidade e relação com África e diáspora sejam reconhecidos, valorizados, potencializados e fonte de mais investimento.

As Epistemologias do Sul mostram que existe uma constelação de saberes produzidos no Sul e que nem sempre são considerados, enquanto, tais pelo padrão hegemónico da ciência ocidental. Olhar a pós-graduação em Moçambique com essas lentes significa um olhar emancipatório sobre nós mesmos. Que reconheça nossas riquezas e esforços. Que saiba dos nossos limites e construa políticas e estratégias para superá-los. Mas que sempre nos valorize como país rico em cultura e conhecimento.

Temos o desafio de as nossas universidades e a pós-graduação construírem os seus currículos na perspectiva das Epistemologias do Sul. O facto de vivermos em Moçambique e em África nos coloca no Sul. Um Sul geográfico e político. Fazemos parte dos países do hemisfério Sul que, politicamente, lutam para se estabelecer como nação autónoma e democrática no contexto das recentes formas de dominação capitalista e neoliberal, as quais são reedições da actual dominação colonial.

Essa localização geopolítica não deveria ser vista como algo negativo.
Se soubermos lidar com a nossa História de forma positiva, valorizando o nosso processo de libertação colonial, de construção da paz e, os desafios de nos efectivar uma democracia mais consolidada, poderemos tirar vários exemplos que nos direccionem rumo à emancipação social, política, cultural, social e epistemológica necessária. E essa emancipação epistemológica poderá estar na compreensão de que Moçambique possui todas as condições para colocar em prática as Epistemologias do Sul no campo do conhecimento.

E esse é um papel da Universidade. Moçambique possui uma diversidade e riqueza cultural incríveis, diferentes línguas nacionais, tradições, costumes que são a base da nossa forma de viver, por mais que estejamos inseridos no mundo globalizado. Apesar da desigualdade socioeconómica e regional que lutamos para superar, temos técnicas agrícolas milenares ainda sendo desenvolvidas que, em diálogo com os referenciais modernos de plantio e de colheita poderiam dar espaço ao surgimento de algo novo.

Esse processo violento, muitas vezes, é internalizado pelas suas próprias vítimas e o cidadão e a cidadã comuns acabam por desvalorizar os ricos conhecimentos ancestrais dos quais são herdeiros e que orientam a sua vida, a relação com a natureza e com a cultura. Mesmo aqueles que ocupam lugares de destaque na sociedade, possuem melhor poder aquisitivo e as lideranças políticas, de forma global, no seu quotidiano familiar, na criação dos filhos, quando saem para o exterior em missão de trabalho ou, de a estudo e, até mesmo aqueles moçambicanos que residem em outros países, guardam em si saberes, práticas, visões de mundo, línguas locais que aprenderam na sua comunidade, possuem um pertencimento étnico que os vincula com Moçambique, o seu contexto local e a sua cultura.

Essa pluralidade de experiência, de jeito de ser na vida e na sociedade, congrega uma riqueza de produção de conhecimentos. Compreender esses conhecimentos e, inclusive, admitir que eles podem ajudar a indagar o próprio conhecimento científico, principalmente quando este se distancia do povo e da vida, seria um interessante caminho para a Universidade na perspectiva das Epistemologias do Sul. Conhecer a sabedoria dos anciãos, das pessoas comuns, das comunidades de onde vêm os nossos estudantes, entender que no interior há riquezas de práticas e de conhecimentos tanto quanto na capital poderá também nos aproximar dessa perspectiva.

Conclusão
O grande desafio é como transformar os currículos das nossas universidades. Entender que a Universidade vista como lócus do conhecimento científico deveria ser, também, uma habitação digna para as outras formas de conhecimentos com válidos, implica em primeiro lugar reconhecer, valorizar e compreender os sujeitos que os produzem.
Interagir e não as separar. Socializar e não guardar para si. Democratizar e não privatizar.

Reconhecer a pluralidade de saberes ao invés de primar por uma monocultura de saberes. São alguns princípios fortes que nos desafiam se queremos mudar os currículos e as práticas epistemológicas e políticas das universidades e da pós-graduação. Mas para isso, há que se realizar um processo complexo e necessário: descolonizar o conhecimento e o currículo. Só assim, teremos abertura para iniciar a transformação necessária que poderá nos levar rumo na Pós-Graduação emancipada.

Referências Bibliográficas
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2.AULP. Ensino Superior e Investigação Científica no Espaço da CPLP: XXII Encontro da Associação das Universidade de Língua Portuguesa. AULP: Maputo, 2012
3.CASTANHO, Sérgio (Org.). O que há de novo na educação superior: do projecto pedagógico à prática transformadora. Campinas: Papirus, 2000
4.FULLER, Alison; HEATH, Sue; JOHNSTON, Brenda (Eds.). Rethinking widening participation in higher education: the role of social networks. London: Routledge, 2011
5.LUCKESI, Cipriano [et al]. Fazer universidade: uma proposta metodológica – 17 ed. São Paulo: Cortez, 2012
6.OMAR, Maomede Naguib. O ensino superior em Moçambique: políticas, concepções e práticas dominantes. Maputo: Alcance Editores, 2017
7.Sousa Santos, Boaventura de. A Universidade no Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2004
8.    Sousa Santos, Boaventura de; Menezes, Maria Paula (orgs.) Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009

Felizardo Vanica era o cabeça do grupo vencedor do concurso “Poetas distritais de Moçambique”, organizado pelo Centro Cultural Franco-Moçambicano.

Vanica era o Alberto Caeiro de Matsinhane, no distrito de Manjacaze, onde a pastagem e o cultivo da terra continuam a ser os meios de subsistência por excelência. O seu jeito manso, pacato e encantador, trouxe-lhe a alcunha de “Alberto Caeiro”, atribuida pelo ex-professor de português recém chegado do Ribatejo (em Lisboa), que se tornara no único padeiro de Matsinhane.

Felizardo Vanica não era porém averso a metafísica e entendia muito de política e de história política europeia, encorajado por uma biblioteca situada nas instalações da sua igreja, que por algum motivo, tinha uma vasta colecção da história francesa, de A à Z, desde a idade média baixa ao modernismo. Era à hora d’almoço que Vanica passava a "sesta" a ler no cemitério — o único local onde estava certo de que o silêncio era respeitado, mas também porque tinha prazer em ler para os mortos.

– Faltam 4 dias, Vaquinho! – gritou seu vizinho, acenando o “adeus” corriqueiro, pelas 6:30 da manhã, quando Vanica regressava do seu primeiro ofício – a pastagem. E as crianças (levadas pela onda) corriam atrás de Vaquinho, exclamando inocentemente: “faltam 10/4/3/2 dias, Vaquinho!” – em jeito de provocação, para que Vanica desviasse a sua atenção das vacas por alguns segundos e simulasse uma perseguição as crianças.

Finalmente chegou o dia em que aquele madrugar seria o início de uma data histórica para todo o distrito de Manjacaze e quiça da provincia de Gaza. “Alberto Caeiro” iria subir avião pela primeira vez, rumo às terras de Napoleão. Durante o percurso a Maputo, iriam parar em outras localidades para levar outros poetas, igualmente vencedores.

O CCFM achou por bem organizar a viagem para janeiro, para que os viajantes pudessem vivenciar um ambiente totalmente diferente.

Para o constrangimento de Vaquinho, uns tantos dos seus comparsas traziam mantas consigo e andavam pelas ruas de Paris embrulhados nelas. “Epah, parece que manta aqui é só para dormir!” – gozou Vaquinho, apontando para um negro sem abrigo, deitado num banco do Jardim de Luxemburgo.

– A tal de “Mana Elisa” nem bonita é! Afinal de contas, por que tem tantos likes? – desabafou Agostinho.
– Mona Lisa foi inovador no seu tempo. Na altura, a tendência era de pintar perfís e não bustos numa perspectiva frontal. Depois temos aquele sorriso misterioso, namoradeiro e comunicativo dela, que também não era comum ser retratado; a questão da paisagem tornar-se desfocada a medida em que a distância aumenta, é também um conceito inovador nos quadros da epoca … – ia explicando a madame Chateau.

– Aaah, enquadrado na actualidade, aquele quadro não é nada, madame! Desculpe a sinceridade! – continua Agostinho, na sua abordagem pouco contida.

– Pois é, mas nunca se deve esquecer o contexto no qual uma realidade se insere. “Il n'y a pas de hors-texte!” disse Jacques Derrida, hmm? – pergunta que se manteve retórica por conta de Vaquinho que beliscou Agostinho a tempo.

Vaquinho pediu que lhe levassem à Rue de la Ferronnerie, onde o seu herói francês foi assassinado. Aquele que, tal como o seu herói moçambicano (Eduardo Mondlane), por razões distintas, era tido como símbolo de unidade nacional.

A boa diferença entre os franceses e os bons costumes da ética e etiqueta moçambicanas é que, embora a cabeça de Eduardo Mondlane fosse também valiosa, em caso algum seria leiloada – literalmente – como foi o caso do Rei Henri IV, ainda que de “mero” crâneo se tratasse.
Fim

Os fundadores das organizações que deram origem à FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique, refiro-me ao Matias Mhole, Baptista Chagonga e delino Gwambe, merecem um lugar na história libertária de Moçambique, ao ousarem criar organizações para fazer frente ao colonialismo português.

Na época que o fizeram, mostram que não são cidadãos comuns, são homens que, cada um à sua maneira, queriam um Moçambique livre da colonização portuguesa.

A história de Moçambique não se pode cingir a tratar esses homens ousados como “desertores, traidores ou conspiradores”.

Temos de olhar para essa época fora da visão exclusivista da Frente de Libertação de Moçambique.

Aliás, até os combatentes da Renamo que desencadearam uma guerrilha de destruição maciça e sem precedentes, com milhões de mortos, são tratados como guerrilheiros de luta pela democracia. Por isso, julgo que é chegada a hora de rever a nossa história libertária.

Aqui e agora, não pretendo discutir se os guerrilheiros da Renamo merecem ou não esse tratamento, no entanto temos que ter a honestidade para assumir que seja feita a justiça aos homens e mulheres que no contexto da revolução foram tratados como “traidores”.

A história deve absolvê-los de forma digna e reconhecer o seu mérito.

Celebra-se, a 03 de Fevereiro de 2019, mais um aniversário dos Heróis Moçambicanos.

Trata-se de uma data congregadora, pois foi o dia em que Eduardo Chivambo Mondlane, presidente da Frente de Libertação de Moçambique, ao abrir uma encomenda que continha uma bomba, encontrou a morte, nos escritórios da Betty King, sua ex-secretária.

A história oficial atribui à PIDE (Polícia Secreta Portuguesa) a autoria da bomba, mas não existe uma confirmação oficial.

O que é importante saber como é que esta encomenda chegou ao presidente da FRELIMO e, sobretudo, porquê foi ele a abrir?

A encomenda bomba que vitimou o primeiro presidente da FRELIMO acontece seis meses depois do II Congresso que reelegeu Mondlane como presidente e Urias Simango como vice-presidente.

E foi numa altura em que se agudizavam as contradições internas da Frente de Libertação de Moçambique. Por exemplo, fala-se de Lázaro Kavandane, que era secretário provincial da FRELIMO, ter tentado forçar que o congresso da FRELIMO se realizasse em Tanzânia. Esta atitude pretendia impedir a prestação de contas, numa altura em que os lucros do trabalho de comercialização beneficiava a si e seus colaboradores.

Lázaro Kavandane abandonou a FRELIMO em 1961, depois da morte de Mondlane. Mas outros eventos importantes tiveram lugar em Março de 1968, designadamente um motim de estudantes seguido de abandono da maioria.

Depois das investigações, viria a atribuir-se a responsabilidade pela agitação ao padre católico Mateus Gwengere.

Em Maio de 1968, um grupo invadiu os escritórios da FRELIMO e assassinou Mateus Sansão Muthemba, como forma de exigir a libertação imediata de Cabo Delgado, o que nos leva a presumir que se trata do grupo de etnia Makonde.

Foi nesta sucessão dos acontecimentos que Eduardo Mondlane é assassinado. Mas estas clivagens internas não eram novas no seio da Frelimo. Na verdade, a união dos três movimentos parece que não foi pacífico.

Adelino Gwambe, um dos co-fundadores da FRELIMO, foi expulso do movimento, alegadamente por assumir “comportamentos pouco convenientes”. Seguidamente, criou o UDENAMO – MONOMOTAPA, mas as crispações internas levariam à criação do FUNIPAMO – Frente Unida Anti-Imperialista Africana de Moçambique.

Reza a história que o líder da UDENAMO organizou, em Novembro de 1964, em Lusaka, na Zâmbia, uma conferência que tinha por objectivo reagrupar os movimentos desavindo.

A direcção da FRELIMO não aderiu, mas o líder da UDENAMO voltou a tentar a reaproximação, em Maio de 1965, tendo tido, mais uma vez, a resposta negativa da FRELIMO.

Este facto viria a propiciar a emergência de uma organização nova, constituída pela nova UDENAMO, MANC (Mozambique African National Congress) e da nova MANU, que se juntam ao COREMO, tendo como sede Lusaka, na Zâmbia.

Mais uma vez, a união destes três movimentos ao COREMO volta a estar em causa. A eleição de Paulo Gumene para presidente e Amós Sumane para vice-presidente, na conferência de 1966, não conseguiu criar a serenidade necessária para se desenvolver o trabalho político-militar de forma tranquila.

Aliás, em 1968 verificaram-se deserções em massa, e alguns desertores foram aliar-se à FRELIMO. Em 1971, a união dos três mais a COREMO encontrava-se esvaziada política e militarmente.

Os factos que se sucederam à fundação da Frente de Libertação de Moçambique, a 25 de Junho de 1962, culminando com a morte do Dr. Eduardo Mondlane, deveriam levar o Estado a repensar sobre os seus Heróis Nacionais.

O facto de Matias Mhole ter fundado o MANU (União Maconde de Moçambique) em 1954, e de se ter reforçado em 1959 através da união das associações mutualistas; Baltazar Chagonga ter fundado em 1961 a UNAMI no Malawi; e Adelino Gwambe ter fundado a UDENAMO em Salisbúria, actual Harare, é suficiente para que estes políticos sejam chamados de Heróis Nacionais.

Adelino Buque

 

Ler & Escrever

 (Primeira parte, a continuar)
A maioria das vozes femininas que começa a publicar poesia em Moçambique praticamente no início do século XXI, não evidencia filiações estéticas, ou heranças intertextuais definidas; mostra uma proliferação de dicções muito diferentes: “um emaranhado de formas temáticas sem estilos ou referências definidas” (Heloisa Buarque de Holanda), mostrando que fazem parte de uma certa literatura contemporânea,  que encena a vontade de incorporar no seu seio também aquilo que não é consentaneamente considerado “literatura.” São escritas do sentir e do alheamento, de narcísica exposição do corpo e de seu ocultamento, de temáticas relacionadas com a mulher e a sociedade, entre outros temas. Embora já tudo tenha sido sentido e mostrado e ocultado nesta nossa época, a poesia moçambicana contemporânea das mulheres é uma variação de escolhas, sem ordenamento formal ou temático. Um mix ou combinatória com várias entradas possíveis. Vamos então, para iniciar um percurso, ensaiar ler duas dessas vozes.

Amélia Margarida Matavele, a Pré-Destinada: “A noite convida-nos a dançar xitshuketa”
Começo aleatoriamente com uma das mais jovens autoras, membro do movimento literário Kuphaluxa, com um único livro publicado, Xitshuketa, (nome de uma dança de improvisos e surpresas), Lisboa: CEMD Edições, 2015. Uma escrita debutante que ensaia o registo da música e da pintura, que oscila entre a autoria das imagens, dos ritmos e das cores. A evocação da pintura de Malangatana percorre alguns dos poemas, permitindo perceber a paixão criativa e a procura da arte e da inspiração que guiam a poeta. O sujeito destes poemas é simultaneamente cândido e explosivo nas suas emoções; assume o desejo, interpela o amor; questiona-se sobre ele, oferece-o, procura-o na arte. Uma singela vocalidade que apela os amigos, a escrita, os ritmos da música, que concilia a física dos desejos assumidos com o jogo (cabra-cega) da poesia:

No escuro/ Pisoteio o chão do teu corpo/estudo o teu relevo/ Descubro planícies, planaltos em ti/ E juntos fazemos montanhas.// O escuro da tua pele  incita-me a silenciar a tua boca/ e a aterrar em teu corpo/ Não sendo mais eu, mas uma espécie de corpo-suga/ a montar-te em cabra-cega/ suspirar em ar hipnótico ao teu ouvido,/ amor, hoje, há poesia. (29)

As sonoridades da dança do desejo, do envolvimento sensual explicitam-se nos ritmos do corpo, como se lê em alguns dos poemas como  Timbila: “Naquela noite/ O escuro convidava-nos a celebrar os desejos/desenhávamos nossos corpos.(…) A timbila dos meus olhos Rimou com a serenidade dos teus lábios,/ O roçar dos nossos  desprevenidos lábios/ autorizou-me o deliberar o grito dos bichos. “(33).                                                                                                                           

Também é um sujeito crítico que escreve relativamente à exploração feminina, aos vícios do álcool, ao abuso de menores (poema Catorzinha) e outros aspectos mais problemáticos da sua terra (poema pérola do Índico).  Entre as revelações do corpo e da arte e as lágrimas do amor, a confessional voz de Amélia Margarida é primavera, começo: “Nas primaveras, / Margaridas enamoram as orquídeas,/ A natureza seduz os vocábulos! (24).

Rinkel, temas sobre a mulher
Rinkel é o pseudónimo de Márcia dos Santos e publicou três livros de poesia, Almas Gémeas (AEMO, 1998), Revelações (AEMO, 2006), Emoções e Abstracções (AEMO, 2011). Nascida em 1977, e natural de Inhambane, Rinkel nos primeiros poemas do livro de estreia Almas Gémeas mostra uma escrita ainda um pouco confes­sional e revoltada, em que aborda vários temas, questionando as injustiças sociais, nomeadamente a questão racial, a infância triste dos meninos de rua, dos orfãos da guerra, dos meninos soldados, nascidos e crescidos no meio da violência da guerra civil. Leia­?se nesta perspectiva o poema Mártires da Democracia: “A ti criança/ parida quando tua mãe morreu/ nos teus braços.// A vós heróis antes de serem homens.//Tu que pegaste na arma/ que pegaste na catana/ Tu que mataste impiedosamente/ com a mente pura de uma criança/ adulterada” (14). Os poemas relativos à parte Cores da Vida, ou a Mas o que é isto? questionam as contradições de sentimentos não resolvidos, entre caminhos desencontrados e o confronto do sujeito com uma realidade social e política crua, incapaz de solucionar.” O amor a acabar/ a guerra a dominar o mundo/ É triste, mas é a realidade/ Eu vivo este presente (…) São as crianças que morrem/ As mães que soluçam/ São as dores de parto/ O pranto de perder um filho” (25).

Na sequência destas interrogações que os poemas colocam, os textos seguintes tratam do mundo urbano, em que a droga é fuga e procura de alheamento, um caminho para a morte, onde também o aborto, a sida, proliferam. Rinkel questiona usando o sinal gráfico da interrogação –?Livre? – e centraliza o tema da mulher, tratado sob vários ângulos, nomeadamente na sua condição subalterna, numa sociedade preconceituosa. “Mulher de ti/ Emancipada/ Num mundo cheio de preconceitos/ Reprimida/ Mas livre/ de pensar e de agir/?Livre?” (33)

O poema Eu aponta para o desenquadramento social do sujeito, num desejo de pacificação interior e de descoberta de si: “Não sei o que quero/ quando quero/onde quero” (31). Um outro poema “À procura de espaço” será um dos únicos textos da colectânea onde encontramos alguma empatia entre a vastidão do céu, enquanto procura de idêntica luz de sonho “Eu e as estrelas/ olhamo­?nos incessantemente/ à procura de algo/ Que não sei o que é/ porque elas não sabem o que são// Eu e as estrelas/ no firmamento/ no infinito/ no indefinido (30).

Neste primeiro livrinho de Rinkel verificamos que a enunciação feminina se centra nos temas da maternidade, no tópico da infância, da repressão social sobre a mulher, em suma, no tratamento das limitações dos seres mais frágeis da sociedade, as crianças e as mulheres, em confronto com a violência da guerra, limitados e dominados pela sua periferia social.

No seu segundo livro, Revelações (AEMO, 2006), encontramos uma voz mais amadurecida e sensualizada. Como o título indica há revelação do sujeito e da sua relação com o mundo. A dedicatória do livro insiste sobre a condição da mulher. Aí lemos: “Às sofredoras./ Às batalhadoras./ Às Amantes da vida./ Às grandes mulheres./ Às verdadeiras mulheres./ Às que carregam o mundo nos seus ventres.” Nota­?se ao longo do livro a aprendizagem da dor e do prazer de ser mulher e o fortalecimento do sujeito mediante este conhecimento.                                                                            
 
Uma parte do livro denuncia as histórias do quotidiano das mulheres, como, por exemplo, a ilusão amorosa. Leia­?se Ana Faria e a Lua: “Em delírios lunares/ de borboletas gritantes,/ ao som de patéticas/ confissões// E a lua!// Eu e ela,/ ambas sem sol./ Sós. (…) Em delírios lunares/ borboletas gritam/ patéticas palpitações,/ de patéticos /corações” (16), ou  leia-se o poema Maninha que conta a história do estrupo de uma menina de 11 anos, e nesta sequência  surge um outro tema  como o HIV (27).

A oscilação entre liberdade e cativeiro da mulher é tratada no poema com esse mesmo título: “Na procura da minha liberdade/ Encontrei a injustiça e o cativeiro/ quis mudar o mundo,/ Mas o mundo mudou­?me a mim” (12), bem como no poema Menina Cheia: “Menina das cheias/ Cheia de desgraça/ Cheia de nada” ( 13), mas é sobretudo o poema Oh Mulher! (24) e Lei da Família Moçambicana, em que a autora denuncia a condição de dependência feminina: “Barrigas grávidas/ De pais ausentes, infiéis, polígamos// Amantes/ Sem planos/ Sem promessas/ Sem esperanças/ Sem futuro// Apenas amantes” (23), que retoma o que na ficção o romance Niketche, de Paulina Chiziane, tão bem documentou.

Há um outro conjunto de poemas neste livro que trata do amor, o amor de ser mãe, e o de ser filha, que são a revelação de um amor maior e incondi­cional. Em Conforto lemos: “Ouço uma voz de conforto/ Imagem feminina que acalma os meus sentidos./ Como se estivesse ainda em seu ventre.// É noite e sinto­?me segura/ Na escuridão/ Deitada no colo da minha mãe.” (p. 29). Por outro lado o tema da maternidade ganha uma especial evidência, como observamos em especial no texto A Minha Mais linda Poesia (a essência da mulher: ser mãe); é uma pequena ode de gratificação pela dom de dar vida: “És a poesia mais linda da minha vida!/ Meu ventre gerou o mundo, gerou o teu ser/ Eu tornei­?me poeta da tua existência.// Sem ti minha poesia era apenas palavras” (33).

Outros poemas do final do livro como por exemplo Beijos, Adormecida, Teu Corpo Meu Corpo, Não Te Cales fazem uma outra revelação, a de uma sensualidade harmonizada. O interior do quarto ou a plenitude do mar e da maresia renovam o sujeito na sua merecida harmonia física e espiritual: “tropeço e continuo o caminho…// Ponho os pés na areia da praia/ Respiro profundamente/ E sinto­?me livre” (26), “as estrelas olham para eles os dois/ Como borboletas esvoaçantes/ Estrelas candentes, amor, amantes” (40).

Emoções e Abstracções (Edições Fundac, 2011) um terceiro livro publicado pela autora revela novo amadurecimento das emoções, nomeadamente dos sentidos físicos e mostra uma sensualidade mais assumida, como se pode ler no poema Tu és: “Teu corpo/ Minha perdição// Tua pele/ cheiro a flor// Tua boca/sabor a mel// Teu olhar/ verde e penetrante// Tu, minha casa/ Meu destino” (28), ou ainda no poema Mais Turbo e Acção, em que o sujeito se auto satisfaz numa plenitude solitária, através da imaginação: “Ela está sozinha/ No seu quarto escuro/ começando a sentir o sono/ a apoderar­?se de si e do seu corpo/ Solitário…/ Mas satisfeito…” (34). Os males de amor são desta forma torneados. Por outro lado, o poema Amar diz o seguinte: “Amar…/ duro teste!/ Se não correspondido! (27); há como que uma sabedoria de aprendizagem emocional, como se pode ver no poema Depois, em que observamos a aceitação dos contrários em pacificada harmonia: “Depois da paixão …a separação/ Depois do amor…o ódio/ Depois da vida…uma outra/ Um novo início…// Depois do dia…a noite/ Depois da luz…a treva/ Depois da terra…o mar/ Ondas rolando…” (30). Vários dos poemas da primeira parte do livro, em que se concentram os temas sobre as emoções, tratam o desespero, a guerra, a perdição, aliados a outras emoções que encenam a harmonia, como por exemplo o poema de abertura, Mundo Colorido: Pinto os meus quadros/ Com as cores da vida/ Verde esperança/ Amarelo de angústia, desespero// Pinto a minha vida/ Com as cores do amor/ Sangue vermelho/ Rosa romântica/ Laranja doce// Pinto as minhas emoções/ Com as cores da natureza/ Céu azul marinho/ Puras nuvens brancas/ África negra” (13).

Observamos um sujeito feminino que assume esteticamente os contrastes do amor como uma pintura, e mostra domínio da realização sensual, mantendo a relação com o amor de forma emocionadamente prazeirosa. Na segunda parte da colectânea, intitulada Abstracções, como observa justamente Lourenço do Rosário é retomada a faceta intervencionista da poeta e são tratados, entre outros temas, de novo o tema do HIV, da mulher e da maternidade. Leia­?se o poema intitulado Mulher (40) ou outro Flores de Mim (42), que tratam do esforço de conquista da mulher e dos seus sonhos num mundo de luta e de desigualdades. Neste livro, outros poemas fazem crítica social como Sem Sistema (50) ou Corrupta Democracia: “No lixo tem um bicho/ O bicho gosta do lixo/ O lixo alimenta o bicho/ E o bicho cresce a cada dia// O bicho, o lixo gosta/ Gosta do lixo, o bicho/ E faz do povo o seu luxo”. (51). Os sentidos da utopia e do sonho são todavia interrogados ainda com certa esperança, apesar de muito desencanto: “Patriotismo e integridade faltam/ Nesta geração julgada promissora/ Porém desprovida de ideais/ Reais?…/ Não. Apenas ilegais…// Os belos e radiosos dias/ Serão alguma vez contemplados? (54).

 

–          Temos de vender alguns a Fernando Po!
Dito e feito. Pressionados pela concorrência internacional, os líderes américo-liberianos decidiram vender seus escravos clandestinamente aos espanhóis da Guiné Equatorial, onde os escravos iam trabalhar em diversas plantações, em pleno século XX.

Quando cheguei à Libéria em 1880, tinha eu 15 anos. A nossa mudança de Virgínia para Libéria foi relâmpago. Lembro-me dos meus pais chegarem do emprego – como empregados domésticos do único médico da vila – muito atrapalhados. Minha mãe mandou-me arrumar as roupas dos meus 4 irmãos nos sacos de batata que reservávamos para viagens.

–          Temos de fugir outra vez, mamã? – perguntou o meu irmão mais novo, de 5 anos.
–          Sim! Desta vez vamos fugir para a Liberdade! – respondeu a minha mãe enquanto apertava-lhe os pequenos braços. De seguida abraçou-o, ao mesmo tempo que continuava a gritar no sentido de que nos devêssemos apressar.

A excitação dela era indecifrável. Ora gritava como se a casa estivesse a arder, ora como se tivesse realmente obtido a carta de alforria naquela mesma manhã.

Por fim decidiu revelar que o barco que nos levaria à Liberdade, partia dentro de duas horas.

Enquanto arrumávamos os bens possíveis de serem levados, meu pai ia partindo madeira num cantinno por baixo da cama deles, para de lá extrair o dinheiro depositado trimestralmente. Ele era carpinteiro, serralheiro, pedreiro, padeiro e tudo o que fosse preciso. Trabalhava duro e por vezes, eventualmente grátis, pois os seus clientes, que se comprometiam em pagar no final do mês, iam adiando os pagamentos. Houve uma certa vez em que um dos clientes, ao ver o meu pai no portão, soltou o seu pastor alemão que não poupou nada ao meu pai. Hoje ele é coxo graças a esse ataque.

Não se chamava Liberdade mas sim Libéria.

Fomos recebidos por uma comitiva da igreja. Encaminharam-nos logo para um prédio novo, que ainda se encontrava em construção. Nós nunca tínhamos entrado num prédio. O encanto dos meus irmãos era tanto, que muitas vezes brincavam nas escadas, subindo e descendo, escondendo-se pelos andares.

Os prédios tinham duas entradas: uma frontal e outra traseira. Esta última era por onde a população nativa entrava.

A primeira vez que tive a oportunidade de ver um nativo, foi logo no dia a seguir à nossa chegada. Ele encontrava-se amarrado a uma árvore no jardim localizado na parte traseira do nosso prédio. Estava a ser disciplinado pelo empreiteiro do edifício – um americo-liberiano – por ter roubado 1kg de cimento. Outros nativos testemunhavam o acto emitindo sons que pareciam de reza. Eles falavam outra língua ou então um inglês estranho.

Libéria rapidamente tornou-se na liberdade que nós podiamos ter. Passei a identificar-me como américo-liberiano. Uma classe distinta da dos negros que deixei em Virginia e da que encontrei na Libéria. Se em Virginia éramos negros, aqui éramos brancos.
Fim

 

                                                                       Fomos enganados?!
A evolução das sociedades demonstrou ao longo do tempo que nem todas elas dependem de si mesmas. Há momentos em que claramente se conclui que alguém (estranho) manda nalgumas sociedades e determina o que deve ser feito e como deve ser feito. Isto acontece em sociedades onde o poder político é fraco ou depende dos outros, ou quando está comprometido com outras agendas que o povo desconhece. São outros que, geralmente, determinam as regras de jogo político-económico e que acabam influenciando o ser e estar da sociedade no seu todo. Se a soberania de um Estado reside no seu povo, conforme se tem defendido nas ciências políticas e sociais, verdade é que esse mesmo povo nalgum momento deixa de ter o poder de exercer e decidir sobre matérias que lhe dizem respeito. Não se pode compreender um Estado que se deixa amordaçar por interesses alheios ao seu povo que é a razão da sua existência. Da mesma forma que não se pode deixar de criticar uma actuação passiva em relação a matérias de grande interesse e impacto social como é a das dívidas contraídas sem legitimidade e muito menos obedecer o que a Constituição da República preconiza.

O mais grave é o facto de todo o poder instituído parecer desconhecer (!) que era necessário que a Assembleia da República se pronunciasse e autorizasse previamente a realização de tais dívidas. Valeu a pressão popular para clarificar o mal cometido e exigir a responsabilização, que, infelizmente, ainda não aconteceu.

O arranjo político protagonizado pela Assembleia da República para que as dívidas ocultas fosses inscritas na Conta do Estado, peca por não ter aguardado pela clarificação de todo o processo relacionado com as mesmas, razão pela qual o questionamento popular. Não se pretende com isso dizer que não se podia votar a favor, o que se pretende dizer é que a votação deveria ter obedecido os princípios da prudência e certeza. Ora, se já está claro que as dívidas foram contraídas sem o consentimento da Assembleia da República e se elas estão a causar um mal-estar maior ao povo, então, no mínimo, o que o poder político deveria fazer é pedir desculpas e reconhecer o erro cometido, recuar na sua decisão e exigir que se clarifique a situação antes de se carimbar o voto de aceitação parlamentar. Para além disso, é necessário que se mostre ao povo que há vontade política de se responsabilizar os autores da referida dívida e não deixar que qualquer pessoa especule sobre matérias tão sensíveis de que não possui conhecimento. Tudo quanto se tem dito não mostra clareza absoluta sobre o que aconteceu ou está a acontecer, colocando ainda mais confusão na mente das pessoas.

Não se fala doutra coisa senão das dívidas ocultas. Vive-se um ambiente de especulação e desconfiança que não é benéfica para o País. Uma coisa é certa: Contraiu-se uma dívida que não se sabe ao certo quanto é como é que foi gasto o dinheiro. Ora, os últimos pronunciamentos e desenvolvimentos em face da detenção do ex-Ministro das Finanças, Manuel Chang, sugerem que fomos mesmo enganados. Aliás, considerando o que alguns membros do Governo tem dito, também não sabem ao certo o que aconteceu, senão de que há uma dívida por pagar, resultante de um empréstimo feito a favor das empresas Ematum, Proindicus e Mam. Então, se o Governo não sabia ao certo o que estava a acontecer com as referidas dívidas, porque é que remeteu à Assembleia da República para o seu reconhecimento? Quer parecer que a Assembleia da República ao votar a favor de inscrição das dívidas ocultas fê-lo na plena consciência de que o Executivo estava consciente de que as mesmas eram reais. Partindo do princípio de que os Bancos emprestaram o dinheiro àquelas empresas tuteladas pelo Estado e este avalizou tais empréstimos através das garantias que prestou, certamente que alguém do Governo esteve envolvido nesta operação. Além disso, e ao que se sabe, a empresa promotora da operação foi a Privinvest que montou todo o negócio juntamente com alguns dirigentes moçambicanos. Quanto é que cobrou pelo trabalho? A actual tese de que o Governo não tem conhecimento exaustivo do dossier não é aceitável, embora se compreenda que se trata de membros do novo Executivo, contudo, um dossier que vale 1 bilião de dólares não passa despercebido. Aliás, um dos grandes problemas que ainda não foi esclarecido é se todo o dinheiro foi usado ou ainda existe algum por usar?! Se porventura ainda existe, onde está depositado tal dinheiro e quem foi que depositou? Será que todos os equipamentos foram fornecidos? Se as empresas que beneficiaram de tal montante são do Estado, significa que pertencem ao povo, por isso, o mais certo seria que os seus responsáveis convocassem uma conferência de imprensa e informassem ao povo sobre o que aconteceu em relação aos projectos que ditaram a contracção das tais dívidas e o estágio das empresas em causa! Se o Governador do Banco de Moçambique apareceu em público (embora pressionado) para explicar sobre o apagão das ATM’s, os tais responsáveis deveriam, também, dar a cara. Da mesma forma que seria bom, senão mesmo imprescindível, que um representante da Privinvest viesse a público informar o que aconteceu, pois, quer parecer que em relação ao seu trabalho, se pode aferir um cumprimento defeituoso do contrato, que lhe sujeita a ressarcir o Estado moçambicano pelos danos causados. O mesmo em relação aos bancos que concederam o empréstimo sabendo de antemão que tais projectos não eram viáveis. Depois de o povo conhecer a história, o resto seria deixado a cargo da justiça. A propósito, o Governo moçambicano até poderia (e ainda vai a tempo) intentar uma acção judicial contra todos os que orquestraram as dívidas ocultas, ou seja a Privinvest, os bancos, membros do Executivo moçambicano, funcionários, beneficiários das comissões, etc. e vasculhar o envolvimento de tais empresas americanas que se diz terem sido lesadas e que levaram com que a justiça americana emitisse o mandato de captura internacional contra o ex-Ministro das Finanças moçambicano, os trabalhadores dos bancos mutantes e funcionários da Privinvest.  

A não ser isto feito, nada mais resta senão dizer que fomos de facto enganados, e de que maneira! A detenção do antigo Ministro das Finanças é um filme para desviar as nossas atenções, pois, não visa discutir o cerne da questão, mas sim, as comissões recebidas. Isto é assunto dos outros. O que interessa aos moçambicanos é saber dos meandros da dívida no seu todo. Já agora importa dizer que a nossa justiça brincou em serviço e propiciou um espectáculo barato ao não avançar com os processos na base dos factos em seu poder. Ela tinha tudo para iniciar um ou vários processos judiciais sobre a matéria e mostrar interesse em desvendar este caso. A questão de fundo não são as comissões, mas sim, o grosso do dinheiro que constitui a dívida que pelos vistos foi contraída com o apoio dos bancos que concederam o dinheiro e que os seus responsáveis deveriam ser chamados a esclarecer. Como se pode ver, ao invés de nos atermos ao caso do ex-Ministro das Finanças, devemos prestar maior atenção ao assunto principal que é de facto a dívida no seu todo e que afecta todo o povo moçambicano. Finalmente, o que pagar e como pagar, só é possível dizer depois de tudo estar devidamente esclarecido. Enquanto isso, está mais que claro que a dívida não deve ser paga.

Likane, o Sedutor de Corredores

Os corredores do Centro Universitário Cristão de Pembene, tão serenos à primeira vista, escondem histórias que se espalham como folhas ao vento, carregadas de sussurros

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