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Os protestos

“Há quem tenha medo que o medo acabe”
Mia Couto

O que de substancial se pode aprender dos jovens sudaneses e argelinos que recentemente recorreram a manifestações para dizer basta aos regimes ditatoriais com mais de duas décadas no poder? Ou que as eleições são impotentes para mudar governos em democracias precárias como as de África ou que o grito contra opressão quando se impõe por via de tudo ou nada quase sempre triunfa. Faltavam algumas semanas para eleições de 18 de Abril, quando jovens argelinos decidiram se opor à candidatura de Abdelaziz Bouteflika, antigo general de 82 anos que estava no poder havia 20 anos. Bouteflika, além de já estar velho para acompanhar a vida política do seu país com minúcia, vivia uma saúde frágil que lhe roubou a fala, o movimento dos pés e o afastou da esfera pública nos últimos cinco anos. Ante um homem desta condição orgânica desfavorável para comandar a coisa pública – pois na política, o aparecer e o parecer são de uma importância vital para conquista do eleitorado – o que custava aos argelinos esperarem pelas eleições que já estavam à vista para chumbar definitivamente a tentativa do quinto mandato presidencial de Bouteflika, sem terem de perturbar a ordem? 

A mesma indagação se coloca sobre os eventos políticos no Sudão – onde Omar al-Bashir, para além de estar no poder há 30 anos num país que se diz democrático, enfrenta acusações do TPI sobre crimes de guerra e crimes contra humanidade bem como a grave crise económica cuja responsabilidade recai sobre si. Bashir, à semelhança de Bouteflika, também se apresentava a olho nu como um candidato desfavorável para vencer as presidenciais. Entretanto, os sudaneses não quiseram esperar pelas urnas de voto para formalmente vaiar o presidente. Preferiram a arriscada desordem para pôr fim à governação deste presidente de 75 anos. Mas por que preferiram protestos a eleições para derrubar os seus governos ditatoriais? Simplesmente porque, em Estados ditatoriais, as eleições raramente expressão a vontade popular. São amiúde impotentes, putativas e contraproducentes.  Se um governo consegue ludibriar o seu povo durante quatro, cinco ou seis anos do mandato presidencial, difícil não será defraudar um dia de eleições por meio de compra de votos, de suborno aos agentes eleitorais e, ou, de intimidações à oposição. 

Contudo, não significa que as eleições tenham de ser banidas, ao todo, em países em desenvolvimento com democracias precárias. O que se deve maximizar é a educação dos povos e a politização das esferas públicas.

Quanto mais se elevar a consciência cívica dos cidadãos, mais votos “conscientes” cairão na boca das urnas e mais democrática tornar-se-á uma nação. Enquanto estas condições não forem estabelecidas, a todo custo, somente os protestos podem servir de luz no fundo do túnel. Somente os protestos podem construir um trampolim entre uma minoria ciente da sua opressão e uma maioria vulnerável ao populismo. Às vezes, a maioria ganha consciência da opressão, mas não se consegue mobilizar. Falta-lhe a liderança. Dai que é preciso que uma minoria seja a fonte de emancipação das massas. Perante a impotência das eleições, por razões acima mencionadas, a vontade das massas só ganha expressão em protestos populares.  Desta forma, os protestos apresentam-se como uma alternativa da democracia representativa. Os protestos populares configuram-se como uma democracia directa, pois são os próprios representados a falar diretamente com o governo de maneira civilizada ou rústica sobre os seus anseios, após períodos de esquecimento ou opressão. Assim sendo, o direito ao ajuntamento e manifestação é um dos direitos mais sagrados da democracia. 

Se se quiser avaliar a saúde da democracia de uma nação, basta contabilizar-se o número de protestos ocorridos num determinado período em função das crises existentes. Se as crises quer econômicas, políticas ou sociais persistem, mas as marchas nas ruas da cidade, os confrontos com a polícia são quase inexistentes, então, se está ante uma sociedade cobarde ou apolítica – para não dizer idiota como diria Aristóteles. E nessa nação não se pode falar da democracia.

Benditos sejam os protestos nas democracias como meio de comunicação entre governo e o povo sobre situações sensíveis que não podem passar em branco. O silêncio popular dentro de nações que se arrogam democráticas é a manifestação, por excelência, de um povo envelhecido pela ditadura.

O dito popular de “quem cala, consente” aplica-se perfeitamente na área política. Mas ele tem de ser suplantado com a expressão “quem se importa, não dá costas”, enfrenta, envolve-se, indigna-se, grita… E o grito dos indignados, por última instância, só se torna barulhento, quando dado nas ruas em uníssono. O mesmo grito só se torna insuportável quando a dor que o pari parte do íntimo de cada protestante. Ou seja, os protestantes que queiram se mostrar firmes nas suas exigências têm a obrigação de pessoalizar – não individualizar – os problemas que apoquentam a comunidade, a sociedade, o país, o continente, o mundo no seu todo. Enquanto se protestar com a consciência de que esta injustiça em objecto diz respeito ao outro, o movimento estará fadado ao fracasso. O ânimo facilmente poderá se esvair em cada empecilho que se opuser à marcha. É, portanto, mister a pessoalização dos problemas para que o grito na rua soe natural e sério. Ademais, o problema de outro não passa de um problema nosso, quando partilhamos o mesmo espaço, tempo e espécie. E só nos podemos considerar humanos numa relação ético-moral entre eu e outro. Por essa razão, o direito a protesto em Estados democráticos não só catapulta a maioria, bem como as minorias. A ditadura da maioria sobre as minorias, como tem havido em Estados democráticos, só pode ser minimizada ou contida com a garantia de protestos para todos. 

O cúmulo da liberdade de expressão dentro de uma nação traduz-se em respeito e atenção dados aos protestos. Mas dar respeito e atenção aos protestantes não significa logo ceder às suas reivindicações ou objeções, mas em primeiro lugar, permitir a criação de um espaço de diálogo em busca de uma solução necessária – e não uma solução de contenção. Julgo solução necessária aquela que responde à causa do problema e uma solução de contenção uma resposta ao efeito. Os protestos devem ser vistos não como uma queixa, mas como uma negociação, sobretudo, lógico-racional em que as duas partes em confronto se propõem a chegar à solução final, livre de emoções, ainda que num clima inquietante. A abertura a negociações não pode implicar na interrumpção dos protestos. Eles devem continuar, como forma de tornar o acordo urgente. Ademais, quando se quer governar, é preciso aprender-se a pensar sob a pressão, como um marinheiro que se sente obrigado a controlar o barco no meio da tempestade marítima.

Na política, não devem ser permitidos ensaios. Ou sabe governar ou cede o poder ao outro. Na política, todo o erro só é humano quando passível de correção. E os protestos não são o perdão, mas uma pressão para uma correção, com todos os riscos de os manifestantes dividirem uma cela com marginais e vítimas do sistema, ou acabarem deficientes devido a repressões abomináveis das forças de segurança, ou ainda acabarem hospitalizados ou mortos. Mas, seja como for, essas fatalidades não deviam servir de intimidações àqueles que são contra opressão e injustiça, porque os acidentes acontecem e são inexoráveis. Se não nos ocorrem numa marcha contra uma injustiça, podem nos ocorrer numa esquina de cerveja, num quarto com amante, ou num trabalho desgastante ou mesmo estando em casa sem fazer nada.

Para dizer que os acidentes acontecem, mas são de pouca monta perante causas que nos levam às ruas e nos tornam mais humanos.  
 
Hélder Augusto
O inconvencional
tsembah@gmail.com

 

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