Vozes Livres, de uma liberdade esperada desde as atrocidades políticas que vitimaram a cultura. Vozes eufóricas na noite excitante do Stewart Sukuma e banda Nkhuvu (do termo referencial a uma ode à alegria, à cultura e à capacidade da música de unir e elevar o espírito). O esperado espectáculo lotado a venda de bilhetes às 14h57, iniciou com um memorial do rei do reggae Bob Marley na interpretação de Redemption Song. Relembramos os perecidos confrades desta pátria, parida dos políticos, em um minuto de silêncio ao pedido da figura do cartaz sentimos a interconexão espírita.
O palco com novo visual, preto da cor do carvão do Craveirinha: Eu sou carvão! / E tu arrancas-me brutalmente do chão/ e fazes-me tua mina, patrão/ E tu acendes-me, patrão, para te servir eternamente como força motriz/ mas eternamente não, patrão, acompanhava o piso cinzento e bancos castanhos, que evoca sensações de estabilidade, conforto e simplicidade. Acredita-se, na espiritualidade, que o uso da cor castanha na decoração de interiores tenha um efeito curativo. Estes foram os condimentos para o concerto ser e estar a medida da enorme banda de ode cultural.
Nove elementos acompanharam o concerto, desenhado após a crise, acredita o Stewart que as artes têm palavras a dizerem “nossa liberdade de expressão está em risco, este concerto é um apelo à luta contra as injustiças”. As lágrimas do Stewart Sukuma caíram em palco, as imagens retratando o sistema, deixaram a plateia inerte e triste. Foram momentos não desejados.
Hakuna Male (literalmente do título original MALE), é preciso dinheiro, logo que nasces nesse país, precisas de respirar, precisas das coisas da terra, uma música que retrata nossa necessidade diária de sobrevivência. Precisamos de dinheiro, símbolo de lutas, pelo poder, pelas conquistas, pela nossa forma negra, clara, branca, mulata de precisar contornar a vida, ele se não fosse filho de Abraão (na referência bíblica diz que teve da sua primeira concubina, Hagar, o Ismael; de Sara, sua esposa legítima, saiu Isaque; e de sua segunda concubina, Quetura, teve outros seis filhos: Zinrã, Jocsã, Medã, Midiã, Isbaque e Suá) não teria as posses do pai, ou seja, não precisava de trabalhar arduamente para ter male, diz Stewart, seria – borboleta (símbolo espiritual que pode representar a transformação, a renovação, a ressurreição, a felicidade, a beleza, a inconstância e a efemeridade da natureza). Não sei ao certo o que leva a entrar o percussionista numa dança desenfreada nesta música. Um homem de show!
Trajado do vestuário do cartaz, Stewart apresenta a cara hirta e alegre. Mas preocupado com tudo!
Seus movimentos de dança são reduzidos à tristeza, sem o bambolear das coristas, a banda Nkuvu estaria inerte a figura icónica do Gonzaga, baixista muito admirado pela claque e fenomenal. Salta para a bancada e senta-se, assistindo um produto da banda. Um Mondlane baterista nato. Stewart agita a segurança à sua segurança, as luzes dos celulares caem no seu rosto para a prosperidade dos fãs.
Transpira na terceira apresentação. A cunhada sente seu coração acelerado. Preocupa-se. Seus fãs querem o abraçar, o palco está alto e todos os dias é preciso cuidar em Mandziku, uma música de dança evocativa à ordem, mistura perfeita de palmas, e no seu dialecto central do mapa à marrabenta, dança que lhe é característica. Agitou o lodo e desfizeram-se dos assentos em compassos de danças de um trio de percussionistas. O ritmo. O som. A tradição. A harmonia. A batida. As imagens para a rede social. O descamisar do casaco do artista, foi de exímios guerreiros e bailarinos Tsongas, em uma noite quente de África. De Moçambique.
Vamos dançar a marrabenta para que todos se sintam satisfeitos. As luzes morreram. O cheiro encantado do perfume das mulheres espalhou-se pelo ar abafado. Canta o músico: deixe a preguiça, venha dançar na alegria da gente, um convite para o baile das nossas conquistas. A música remete a libertação do ego. A música de Stewart desfigura um momento entre a transmutação e a maturação auditiva. É preciso perceber a mensagem para o baile. A música levou no final ao dedo do Fred Mercury na chamada da Felizmina ao namoro do bairro, uma bela mulher de Moçambique, uma bela mulher focada no coito e no prazer de viver com seu guerreiro trovão. Uma mulher que acabará com o sofrimento no bairro. Em especial no lar, depois de casada. A Julieta e a Josefina, duas cobras do passado que não respeitavam o homem, são esquecidas na anciã da beleza corada, de olhos brilhantes como diamantes. Essa Felizmina, mulher que atrai homens de posições romancistas, adornou a sala grande do franco. Surgiram beijos e lágrimas de casais em briga, que usaram as Vozes Livres para a reconquista. Para as pazes. Para um bem maior que o ego. É lindo. Foi lindo. É essa a função da música.
Educação para Todos, um movimento seguido pelo Stewart, trouxe a triste certeza que a educação está obsoleta, decadente e precária, contrariada pelos políticos que mantém a certeza de haver crianças a sentarem em carteiras pelo país todo.
É embaixador do Conterpart e SESC, cujo objetivo é de levar alimentos aos mais favorecidos. Stewart apela ao fim da mão estendida, para um Moçambique cheio de terra e riqueza, temos de produzir alimentos diversos, bens diversos necessários à diária dos moçambicanos.
Eu e tu, um dueto entre Stewart e Oliver Mtukudzi, gelou a sala grande do franco, em coro de esperanças. Há sempre guardians of the light protegendo-nos. E Vozes Livres foi isso, uma esperança que embalou nosso psíquico cheio de mágoas. Mtukudzi ali patente no palco, ajustou-se ao microfone e deleitou-se na transmissão musical. Sua imagem velha ostentava uma biblioteca aproveitada pela Banda Nkhuvu. É um facto.
Precisamos de respostas, porquê (Why?). Esta música apresentou imagens dos últimos feitos negativos do sistema político, perpetrados pelas eleições e seus resultados, precisamos de dar respostas, um dueto de Stewart e Fermom Mondlane (um artista com a capacidade de fazer mais de 8 vozes diferentes e interpretar vários personagens é um dublador de filmes), com cabelos da moda, esticados por pentes de ferro quente. Terminou em abraços fraternos à sua apresentação.
Faça a mudança que queremos ver no mundo (Gandhi).
Azagaia e Eduardo White. Foram relembrados num reggae de espírito e de profundidade oceânica, infelizmente, vivemos de matéria, não podemos desistir. Vozes Livres foi este êxtase de mensagens antigas e novas misturas de vários sons da banda Nhkuvu. Vozes Livres, é estar livre no palco, dizendo os problemas. Dizendo as soluções e prevendo o futuro.
Os meninos à volta da figueira/ vão aprenderam como se ganha uma bandeira/ e vão saber o que custou a liberdade/. Liberdade essa em círculo no palco das vozes livres, uns meninos disfarçados de adultos convidados, apresentaram o coração (Mbilu Yanga), o musculo mais importante do corpo, que a cada batida fornece alimento e oxigênio às células. A música alerta para que tenhamos um coração saudável, como a chave para um corpo saudável. Em uma roda de estrada de vida, sonho, bairro e homem, um grão de areia ao vento, uma luz no fundo, um sonho distante, perdido. Num beco sem saída. Meu coração, minha rosa, és um sonho que não tive. A história que não quis contar. Um sonho distante, firme nas estrelas. Uma poesia cantada em sinfonia de uma caixa, uma viola baixo e chocalhos. Um segredo de um passo engasgado na noite. Cantar poesia, em vozes livres trouxe nossa musicalidade de leitores dos nossos poetas. Isto é que torna o músico, uma figura de respeito. Uma figura que altera o estado de esqueletos e mentes, um historiador que não quer calar.
O mel é doce por si mesmo. Canção interpretada por vários duetos, onde os jovens se preocupam com o mel, lutam lutas de amores perdidos nas raparigas cheias de doçura. Um sol para aquecer. A preocupação dos jovens. Por causa do mel, Wulombe. É uma metáfora cantada. Explica-nos esta falta de amor. Este nosso bárbaro desejo. Não em uma carnificina. Mas em ter e dar amor a cunhada, a esposa, a avó, a nação.
O café referenciado por Stewart é cheio também de tristeza, mas carrega amor. Entre os agricultores. Mas esse café não tomado está patente na cor negra do africano. É cheio de sangue invisível, de sofrimento na roça. Um café tomado na história de batalhas às conquistas. Nossos heróis são aqui exaltados em uma harmonia de dó menor. Uma rota de café com estórias de tristeza ao toque quente da chávena. Com acordes de fá e ré. Entra um som dos instrumentos africanos para apimentar a final.
Os ossos. Os músculos. Os tímpanos. O corpo começava a fraquejar. O único meio de nos retirarmos. Em txopela de Moçambique. Numa boleia das lendas. De uma condução segura do motorista. Regressaremos um dia. A música confraterniza com a cidade. Suas gentes. Sua beleza. Tem ritmos de dança a dois. Não é um bailado. Mas sim uma música de pares.
Seus fãs conhecem suas músicas. Vi isso e sei o que escrevo. Mesmo a língua sendo diferente do meu dialecto. O seu dialecto encanta na musicalidade. Na perfeição entre as cordas vocais, entre as cordas da viola. É preciso prática e ensaio para se chegar a um concerto de vozes livres e não nos cansarmos de remexer e ouvir. Os técnicos deste concerto afinaram o aparelho à medida dos 20 hertz auditivos. Não doía. Doeu não ter saltado ao palco e se juntar ao baile desordenando do branco alegre na terra de Mondlane. Livre dos estereótipos do seu continente. O presente. Um quadro em grafite retratando sua imagem caiu às mãos em ofertório do Cubo de Gelo (tradução livre do nome).
Mundo primitivo. África cresceu ouvindo sua história contada pelo outro e diminuindo o africano. Contada para transmitir os heróis e heroínas africanas ao esquecimento, Stewart embala na mbira. O coro em onomatopeia solfeja. Os guerreiros na tela batem os escudos, festejando o nascimento da criança. O filho do rei. A rainha trouxe o salvador.
Ntunia, não diga adeus, não diga até amanhã. Na voz de Ana Girão foi fenomenal. Cabeças abanavam. Aceitando a colocação vocal livre. O coro dos mais de 700 espaços ocupados, e em pé, contavam-se rapidamente, um número sem sentido. Aplaudiram eufóricos. Esperando pelo fim em Olumwengo.
A simbiose entre as artes, uma colaboração solicitada pelo Stewart.
Não terminou, apesar de terem sido canceladas pelo sistema, a banda continua esperando mais eventos. Continua firme a causa. A música não pode ser algemada.
Relembrou e agradeceu ao Aurelio Lebron e Manuela Soeiro. Um beijo selou a amizade de mãe e filho. Um beijo dado com vênia pelo trabalho feito em prol da cultura de palco.
Marrabenta é nossa história, nossa identidade cultural. Cultura do homem pobre e cheio de riqueza no bailado e na alegria. Esta música gira a mente alegre dos fãs da banda, esta música não se inventa, inspira algo em cada bailarino no palco. A marrabenta é de todos os povos de Moçambique. É dos expatriados que acompanham o remexer que dizem que vale a pena casar. Parece combinação.
No dia seguinte não queríamos esperar pelo próximo cartaz do franco, mas sim, contemplar o ontem.
Um ontem cheio de gratidão a organização deste concerto fabuloso!
Um concerto que desmistificou as horas de uso do palco, das 20h de início, o concerto divorciou-se de nós às 23h.
Não vale a pena confiar na banda Nhkuvu para abrir uma época cultural no Centro Cultural Franco Moçambicano, onde o caranguejo tentará te calar e te puxar para o lado como sua caminhada à beira mar. Ao topo chegaram e ergueram a bandeira de uma banda simplesmente exímia no tocar de instrumentos e na libertação de vozes. Caricaturadas pelo Zimba esquelético em palco vimos desenhos reais e com sabores do chef Graça, provamos a refeição típica da nossa casa Nhkuvu.