O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

A Autoridade Tributária está a levar a cabo uma fiscalização e auditoria às empresas e lojas em todo o país, com o objectivo de aferir se estas estão a pagar os impostos, com maior incidência no Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA). E a Confederação das Associações Económicas (CTA) veio a público repudiar a inspecção, alegando que a mesma vai sufocar cada vez mais as empresas que já enfrentam situações adversas, decorrentes da crise económica que o país atravessa, agravada pelo corte de financiamento ao Orçamento do Estado por parte dos parceiros de cooperação e instituições de Bretton Woods.

Na verdade, não esperava ouvir este posicionamento por parte da CTA, antes pelo contrário, devia apoiar a iniciativa da Autoridade Tributária, sensibilizando seus associados a receber os auditores, bem como a cumprirem com as suas obrigações fiscais. E mais, devia ajudar aqueles que, até ao momento, estão em dívidas com o fisco para regularizarem a sua situação e negociar a melhor forma de pagar as suas obrigações, beneficiando, se possível, de algum tipo de perdão. Mas condenar a AT pela inspecção e auditoria é uma mensagem errada da parte da CTA.

Se eu fosse a presidente da Autoridade Tributária mandava os inspectores irem auditar as contas dos dirigentes da CTA em primeiro lugar, porque o seu posicionamento mostra que temos muitas empresas que não estão a pagar os impostos e, como as multas são pesadas, estão todos receosos sobre o que vem aí.

Caros, chegou o momento do Estado moçambicano viver dos seus próprios recursos e isso significa que todos nós “sócios” deste Estado temos que contribuir para a sua sustentabilidade. E essa contribuição é feita através do pagamento dos impostos. Não podemos mais viver de mão estendida para outros povos que tiram dos seus rendimentos, limitando-se de alguns luxos, para financiar o funcionamento dos seus Estados e ainda nos dar dinheiro para sobrevivermos. Enquanto isso, aqueles que entre nós podem contribuir para o funcionamento do nosso Estado furtam-se para financiar seus luxos.

Até porque aproveito a ocasião para propor à Autoridade Tributária para adicionar a esta medida a sensibilização aos cidadãos a exigirem facturas sempre que adquirirem produtos e serviços ou mesmo quando tomarem refeições nos restaurantes e estimular esse hábito com premiação que faça as pessoas entenderem que esse acto que parece simples ajuda o Governo a ter recursos para financiar as suas actividades. Porque auditar empresas e lojas, quando as mesmas não passam facturas aos seus clientes, pode não ter o alcance que se pretende, aliás, há empresas e lojas que assim procedem que até deviam ser alvo de pesada multa.

Como ficou demonstrado pela reacção da CTA, a medida da AT choca com os interesses dos grandes empresários nacionais e pelo poder que a maior parte tem, esforços não faltarão para tentar travar as inspecções, por isso, apelo ao Governo a manter-se firme e não se deixar abalar pela pressão de quem quer que seja. O país precisa se endireitar e precisa de dinheiro para pagar salários, financiar a agricultura, educação e saúde. Os capitalistas e lobbistas devem conformar-se com a lei e não se pode permitir que capturem o Estado.

Entretanto, há que assumir que a moeda tem outra face e, por isso, reconheço e alinho com a CTA, quando diz que os impostos em Moçambique são caros e sufocam as empresas, pelo que apoio incondicionalmente a luta para que os mesmos sejam reduzidos e sejam tomadas medidas para que mais moçambicanos contribuam para financiar o nosso Estado. Essa, sim, é a luta que a CTA deve travar.

De facto, pagar impostos em Moçambique dói muito, principalmente para as Pequenas e Médias Empresas que cada metical que ganham procuram reforçar a sua capacidade de intervenção no mercado. Senão vejamos: as empresas têm que pagar 17% do IVA, que na verdade é imputado ao consumidor, o IRPS que também é pago pelo trabalhador ou sobre rendimentos do empresário e o IRPC pago pela empresa.

O IPRC, por sua vez, subdivide-se em Pagamento Especial por Conta que é igual ao valor correspondente a 0.5% do total da facturação anual e tem o limite mínimo de 30 000,00 Mt e máximo de 100 000,00 Mt. O segundo é o Pagamento por Conta que é tirado do lucro das empresas num determinado exercício económico. Por exemplo, se uma determinada empresa teve o lucro de 100 000.00 Mt a fórmula para pagar este imposto é: 100 000.00 Mt x 32% = 32000.00 Mt. Isto é o valor de impostos a pagar é de 32 000.00 Mt, mas, mesmo assim, as finanças solicitam um adiantamento do mesmo valor na ordem de 80%, ficando assim 32 000.00 Mt x 80% = 25 600.00 Mt. Os 25 600 Mt devem ser pagos em três prestações e podem ser usados pelo contribuinte no ano seguinte. 

Em outras palavras, o lucro de 100000.00 Mt paga por impostos um total de 57 600.00 Mt. E a empresa fica com 42,400.00Mt. E se ela decidir pagar dividendos ao accionista, o mesmo volta a estar sujeito a pagar o Imposto sobre Rendimento de Pessoa Singular (IRPS). Ou seja, dos 42 400.00 Mt, o Estado volta a ficar com 15% definidos pelo Código do IRPS. Isto é, 42 400.00 x 15% = 6 360.00 Mt. Por fim, o empresário fica apenas com o lucro líquido de 36 040.00 Mt.

O Estado fica com cerca de 64% do lucro das empresas e se tivermos em conta a dedução do Pagamento Especial por Conta, o valor que fica com o Estado sobe um pouco mais.

Segundo o demonstrado acima, a maior parte das empresas prefere fugir ao fisco ou declara ganhos muito reduzidos para pagar pouco pelos impostos. Mas agora com a inspecção e auditoria por parte da Autoridade Tributária, a empresa ou loja que for achada sem ter pago o IVA ou um dos impostos acima, terá de pagar o valor em dívida e mais uma multa de seis mil meticais por cada dia, desde a data em que deveria ter pago até à data que efectuar o pagamento, mais os juros de mora que são definidos no momento pela AT.

Há de facto que reduzir este sufoco às empresas, mas tal não passa por manter o actual status quo. As empresas e os singulares são obrigados, por lei, a cumprir estas regras e nem devem impedir o Estado de fiscalizar o seu cumprimento.

Aliviar o custo dos impostos deve também permitir ao Estado ir buscar impostos a sectores que estão praticamente isentos deles. Por exemplo, o Estado pode acabar com isenções fiscais aos Grandes Projectos, pode ir buscar impostos nos arrendamentos de imóveis; na venda de viaturas e dos imóveis, como voltar a cobrar IRPS a todas as categorias salariais, incluindo o trabalho doméstico, o comércio informal, combater todas as formas de contrabando, cobrar as barracas e contentores que preenchem cada esquina dos nossos bairros, entre outras actividades.

Ao alargar esta base de tributação e reduzir os impostos pagos pelas empresas, a Autoridade Tributária terá mais empresas, mais pessoas e mais comerciantes a contribuir e isso vai ajudar a combater o défice orçamental que antes era suprido através de doações.

Mas o Estado tem, igualmente, que se assumir pobre. Os impostos não podem ser usados para pagar vida luxuosa aos governantes. Servir o Estado tem de ser um privilégio e não uma forma para enriquecer. Há que reduzir os funcionários a mais no Aparelho do Estado. Porquê os Ministros, Governadores e outros funcionários seniores do Estado não podem pagar pelo seu próprio combustível? Seu telefone? Casa em que vivem? O rancho para as suas residências? Porquê não podem andar numa viatura modesta? Se até os nossos doadores andam em classe económica, porquê os nossos governantes, até de nível mediano, têm de viajar em classe executiva?

Se a maior parte dos moçambicanos vive na pobreza, não podem os governantes viver como se estivessem a governar um povo rico. E estes cortes na despesa do Estado, combinados com o alargamento da base tributária, vão certamente permitir-nos alcançar a sustentabilidade e independência orçamental. Não vamos precisar de viver de mão estendida, seremos senhores do nosso destino. Exemplos há muitos pelo mundo. Cuba e os países nórdicos devem nos inspirar para a transformação que se mostra muito urgente se quisermos ser um país independente e soberano ao nível económico.

Que Deus abençoe Moçambique!

Quando o mister Miguel Guambe convidou-me para apresentar a sua primeira obra “Educar e treinar Basquetebol”, interroguei-me logo: porquê eu?

É certo que comecei o jornalismo no desporto, fui um atleta de basquetebol. Aliás, Miguel Guambe foi o meu primeiro treinador do Basquetebol federado, no Costa do Sol. Mas não fui nem um lustroso atleta, nem sequer treinador para fazer, com autoridade, uma leitura crítica de uma obra que é um verdadeiro manual teórico e científico sobre o processo de treinamento do Basquetebol.

Mas o Miguel lembrou-me que eu também sou um professor, e que, como o demonstra no livro, há uma relação histórica entre o Basquetebol e a educação, porque este jogo nasceu no contexto escolar; o treinador é um professor e o campo de jogo uma enorme sala de aulas, delimitada, não por paredes, mas por linhas em toda a sua extensão, e as tabelas são os barómetros da avaliação, que determinam as aprovações (leia-se vitórias) e as reprovações (leia-se derrotas).

O treinador tem, assim, a obrigação de utilizar o jogo como um meio prático de educação ou quanto muito como uma alternativa educacional.

Estamos, portanto, em presença de um livro didáctico, que como afirma o seu autor, tem o objectivo de satisfazer as necessidades de quem quer melhorar o seu desempenho e educar através do treinamento das técnicas e tácticas do jogo de Basquetebol.

Através deste livro, o mister Miguel compartilha as suas vivências de décadas como treinador e professor, focalizado em dois públicos-alvo: a) o primeiro – dos professores-treinadores, que lidam com as crianças e adolescentes desde a fase da sua iniciação desportiva até à fase de aperfeiçoamento dos fundamentos e princípios do jogo. b) O segundo – dos treinadores que se focam na fase de especialização dos processos técnicos e em que o foco é a obtenção de resultados. A fita Alta Competição.

Estruturação do livro
O livro está estruturado em 7 capítulos, designadamente: O que nos fala da relação da história do Basquetebol com a educação. O que estabelece relação entre educar e ensinar Basquetebol. O que nos fala da função do treinador. O que nos fala dos fundamentos técnicos do Basquetebol. O que nos fala dos conteúdos tácticos de um jogo. E finalmente o que trata da planificação e programação do Basquetebol como actividade basilar para o sucesso.

No primeiro capítulo, o autor discorre pela história do Basquetebol, desde a sua fundação, no final do século XIX, com a particularidade de nos lembrar que o basquete nasceu na escola, tem uma dimensão pedagógica profunda. Ensina-nos os valores da entreajuda, do sacrifício, da superação, do aprender a viver com a derrota para poder chegar à vitória. A centralidade do Desporto na educação do homem.

No segundo capítulo, o autor centra-se sobre a necessidade de o treinador fazer uma selecção criteriosa do conteúdo e método do treino para facilitar aprendizagem do jovem jogador, elucidando-nos de três fases cruciais. a) A de iniciação desportiva, cujo foco devem ser actividades lúdicas, participativas e alegres. Considera-a mesmo ideal para ensinar a técnica. b) A fase de aperfeiçoamento. Aqui, sugere o autor, o treinador deve proporcionar ao atleta a oportunidade de praticar os fundamentos aprendidos e automatizados em situações que se aproximam do jogo, da competição. Por isso, deve ter exercícios em maior grau de dificuldade no desenvolvimento dos fundamentos, privilegiando resistência, força, velocidade, flexibilidade, coordenação, agilidade, etc. c) Especialização – aqui o foco é a obtenção de resultados.

No terceiro capítulo, o mister debruça-se sobre a função do treinador, realçando a dimensão humana de um mister. Com efeito, Miguel Guambe lembra-nos que um treinador é simultaneamente líder e gestor. Líder porque ele deve ser inspirador, agregador, mobilizador e ter o inequívoco reconhecimento dos próprios jogadores que lidera. Gestor porque a sua função é rentabilizar os activos que são os jogadores, obtendo deles o melhor rendimento possível. APROFUNDAR

No capítulo 5, o autor propõe-nos os fundamentos técnicos do Basquetebol. Apresenta-nos, com o labor de um treinador com sensibilidade para lidar com atletas principiantes, passo a passo, os principais movimentos e gestos a realizar no trabalho do domínio do corpo, a técnica de movimentos para execução de paragem a dois tempos, a forma como se deve pegar e dominar uma bola de basquetebol em varias situações de jogo, nomeadamente em pressing; a técnica de demarcação, recepção, passe, lançamento, drible, ressaltos, bloqueio. Neste capítulo estão os fundamentos técnicos mais elementares do conhecimento na área do treino, que nenhum treinador deve dispensar no processo de treino.

No capítulo 6, o autor apresenta-nos a dimensão activa do jogo, destacando o contra-ataque como o conteúdo táctico mais determinante, por ser a primeira forma de ataque de que dispõe uma equipa a partir da altura em que tem a posse da bola. Apesar de o autor nos propor o desenvolvimento do contra-ataque em múltiplas nuances tácticas, nomeadamente dois para zero; três para zero; quatro para zero e cinco para zero, sublinha que deve e pode ser realizado com a participação dos cinco jogadores de campo, requerendo a aposta na rapidez e na execução e organização colectiva.

Para além do contra-ataque, o autor apresenta-nos outras ideias tácticas suas sobre o jogo, nomeadamente os ataques contra defesas posicionais à zona, nos sistemas ofensivos, a recuperação defensiva, a defesa homem a homem e a defesa à zona, isto nos processos tácticos defensivos.

No sétimo e último capítulo, o autor escreve sobre a pedra angular de qualquer actividade que desenvolvemos, seja ela um jogo de Basquetebol ou de outra modalidade, ou o nosso trabalho ou ainda a nossa vida quotidiana: a importância da planificação e da programação.

O mister Miguel lembra-nos que também no processo de treinamento, o sucesso depende de boa rigorosa planificação e programação. Sem ela, nenhuma técnica ou táctico alcança resultados.
Como afirma numa das passagens da página 87, o entusiasmo do treinador contribui para o sucesso do exercício da sua função, mas é fundamental que o trabalho por si desenvolvido não fique exclusivamente entregue às suas emoções nem aos seus impulsos. A boa sessão está dependente da organização que o treinador introduz no seu trabalho, da programação da actividade por si dirigida, sempre com os interesses e as necessidades dos praticantes e da equipa. Por isso, o autor desperta-nos para a
necessidade de definição de metas colectivas e ou individuais para cada período da época como ponto de partida do trabalho de um treinador, a necessidade de especificar o trabalho e conteúdos a serem trabalhados no processo de treino, de saber se os jogadores estão preparados o suficiente para o que se lhes propõe, etc.

Aliás, um aspecto que este livro deixa evidente é o papel dos jogadores no trabalho do treinador. Já ouvimos falar de treinadores que dizem “Quero, posso e mando”. Os jogadores que os suportem!
O mister Miguel mostra-nos, neste livro, que não é assim como as coisas funcionam. Os atletas não são meros receptáculos das decisões do treinador. Este tem que contextualizar toda a sua acção de concepção, planeamento e implementação da sua ideia de jogo com e para os jogadores. Isto é, focalizando sempre os interesses e as necessidades dos atletas, afinal, o centro do jogo.

Esta é uma obra inovadora entre nós.
Não é comum entre nós um treinador decidir transpor para livro os seus conhecimentos teóricos, científicos e práticos sobre o treinamento no Desporto. Por isso, o mister Miguel marca território nisso. Valoriza o título de treinador, ainda visto, entre nós como alguém que trabalha em improviso.

Por isso, todos os que se interessam em desenvolver as suas capacidades intelectuais no campo do treino e da interpretação do jogo, não hesitem em ler esta obra. Leiam-na para aprender, mas também para a enriquecer. Porque não há nenhuma obra acabada. Como defende Vincent Jouve (2002:56), a leitura é uma actividade de antecipação, de estruturação e de interpretação. Ou como nos ensina Imbert (1986:56) a leitura de um texto é um exercício interpretativo, que encerra o ciclo do processo criativo iniciado no autor. Este livro vem mostrar que, ao contrário do que se possa pensar, há ciência por detrás da acção de um treinador e o sucesso de uns e de outros não é um mero acaso de a bola entrar ou bater no espigão.

O mister Miguel provoca os outros treinadores e estudiosos do Desporto a criar e enriquecer a nossa doutrina, com esta valiosa e poderosa ferramenta de trabalho.

Numa era em que o conhecimento é a trave mestra, talvez esta obra nos faça despertar para o que o Prof Chico da Conceição escreve no prefácio: que a qualidade de jogo e os progressos nacionais e internacionais que pretendemos alcançar, a formação de atletas de alto nível técnico, táctico e físico, que amiúde apressadamente pretendemos formar, continuarão a ser uma miragem se passos importantes e significativos não forem dados pela generalidade dos nossos professores de Educação Física e treinadores das várias modalidades, à escala nacional.

Que passos são esses? interrogar-se-ão alguns: e responde esta obra. Pensar o Desporto como uma disciplina científica e cujo resultado depende, em muito, do método que escolhemos seguir no nosso trabalho. 
 

Quem quiser desmentir esta afirmação arrisca-se a não ser convincente. A corrupção está mesmo na moda. Desde que o país experimentou a democracia que ela se evidenciou, entranhando nos mais finos tecidos da sociedade, até se auto-afirmar independente e livre de sanções. Já de barba branca e altamente nociva, ela torna-se um trunfo político, uma arma de guerra com balas de borracha que ferrem, mas não matam.

A corrupção como uma acção ou mesmo um conjunto de letras que produzem um significado constrangedor para quem o decifra longe do contágio social de um povo embriagado pela prática, é uma triste realidade nacional que repele o desenvolvimento do país.

Na eloquência dos seus discursos “cor-de-rosa”, o Presidente da República tem falado da luta contra a corrupção como um pastor quando prega a Palavra de Deus na luta desesperada pela conquista de fiéis. Quanto mais emocionante e embalador for, melhor. Assim foi no discurso de 15 de Janeiro de 2015, reeditado a 26 de Setembro de 2017 – para os camaradas no 11º Congresso – e agora com mais feitiço, no dia 13 de Outubro de 2017, para uma plateia de dirigentes intermédios da Função Pública.

Enquanto uns socorrem-se do ditado popular que diz “cão que ladra não morde”, outros, viciados de esperança, encontram na sabedoria popular a teoria que diz “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. O ângulo da verdade está na rigidez da crença individual; a crença directamente proporcional à verdade. Portanto, dispensa discussão – diriam os sábios.

O Orçamento do Estado para o próximo ano denuncia, em simples leitura, que poucos esforços serão encetados na luta contra a corrupção. O Presidente Nyusi quer instituições da Justiça fortes e independentes. Estas clamam por fundos para que tenham mais pujança e o Orçamento pouco altera no que aloca ao sector. E a grande corrupção vai-se enraizando, com a anuência objectiva das ferramentas cirúrgicas obsoletas.

Em voos rasantes, também se contempla o agudizar da pequena corrupção. A tesoura entrou no sector dos transportes, retirando mais de metade do valor que lhe foi atribuído no ano passado. Se indigna é a forma como são transportadas as pessoas, pior é o fomento das teias da corrupção. Os “my love” – salva-vidas – passam por inúmeras chantagens no trajecto em que actuam. Enquanto operam como alternativa possível, são cobrados formalismo, como se os desejássemos legalizar.   

Não pretendo ser a uma antítese à governação do dia, mas ainda que emocionalmente embale como os melosos discursos anestesiantes, passado o finito efeito insciente, afogo-me na arrepiante realidade, que aponta para mais décadas com esta moda em alta.

De uma declaração recente da senhora Graça Machel retirei, com a devida vénia, a ideia que tem muita profundidade que coloquei em título. Ela cabe, que nem uma luva, na realidade que hoje se vive no nosso desporto, sector que deveria ser um farol a iluminar a sociedade, porque guiado pelas máximas olímpicas da mente sã, em corpo são.

Não é isso, infelizmente, o que se vive de uma forma geral no nosso país, com enfoque, pela negativa, no futebol. Tudo é pegado pela rama, estamos preocupados com o imediato, pois o médio e longo prazo… a Deus pertence.

Mas o mais preocupante, é que não se vislumbram caminhos para inverter este cenário. É triste e doloroso, sobretudo quando os estudiosos nos fazem recordar que nos anais da mais importante entidade da FIFA estão lá, gravados de forma indelével como dos maiores futebolistas de sempre, dois nomes que nasceram na Pérola do Índico: Eusébio e Coluna.

Patrocínio e mão estendida

Profissional, amador, não amador, recreativo… onde colocar, com verdade, o nosso futebol? De acordo com as conveniências, o nosso desporto-rei vai gravitando de forma indefinida entre o sim e o não, ficando-se pelo… nim!

Pelo mundo, não é preciso aprofundar muito para se concluir que o dinheiro, no profissionalismo, é quem dita as leis. Não é por acaso que nas duas últimas décadas, os que venceram a mais importante prova de futebol entre clubes no Mundo – o Campeonato Europeu – são os que maiores receitas movimentam em todo o planeta: Barcelona, Real Madrid, Manchester, Bayern, Juventus…. Eles recrutam os melhores e mais bem pagos futebolistas do Mundo, realizam receitas extratosféricas vindas dos seus activos, da publicidade e da bilheteira.

E nós por cá? Quais as bases de sustentação para se criar um clube de alta competição e, mais do que isso, para a sua sustentação? Os novos emblemas, em regra vêm de elevador, em detrimento dos que possuem história e bases. Daí que o que (pre) domina tenha a ver com uma palavra mágica: patrocínio. Dele dependem os clubes, a Federação, a Liga. Jogadores para negociar são escassos, publicidade é quase nula, quotização idem, e a receita da bilheteira mal chega em muitos casos para pagar à arbitragem.

Quer isto dizer que vivemos à mercê de uma “teta” – o referido patrocínio – que tem que ser, a cada temporada renegociado, dependendo em regra da “sensibilidade” dos gestores das grandes empresas públicas, que dão o aval para garantir as competições.

E como o desporto não é uma ilha, é de prever dificuldades face à nova realidade nos transportes aéreos, por exemplo, que quase por milagre permitiu às LAM descontos e privilégios na ordem de 70% para a competição recém terminada.

Daí que…

Planificar com propriedade para não andar à última hora com as “calças na mão” e de braço estendido, seja crucial. Estamos a qualificar turmas para o próximo Moçambola, sem saber se começará em Fevereiro – o que seria bom para as nossas representações nas Afrotaças – ou mais tarde, pois ainda não estão fechadas as contas desta temporada. Vamos para o defeso e depois se verá, num tempo em que as contas do Mundial da Rússia no próximo ano e o do Qatar em 2022, já estão “fechados”!

Afinal, as nossas vitórias, improvisam-se!.

 

Confusão é uma palavra que inventamos para descrever uma ordem que não compreendemos

Henry Miller

Confusão é a palavra que, logo à partida, serve para caracterizar a família Nhaligagane, na nova peça da Companhia de Teatro Gungu: “Jogo de intrigas”, na qual se levantam vários problemas misturados relacionados com à actualidade moçambicana, como os desvios de fundo do sector público, a intolerância social, as burlas, os lobbies e a urgência em conseguir-se boa vida com pouco trabalho. Então, mais do que uma família, Nhaligagane é um país em fragmaneto, pintado a preto e branco com todas as rugas e vaidades. Eventualmente, por essa razão, mais uma vez, na peça do Gungu a corrupção não só é um tema recorrente como aparece com destaque, mostrando-se que directa ou indirectamente aquela mazela social afecta-nos a todos.

À medida que a estória do “Jogo de intrigas” ganha relevo, a peça permite que se obtenha, digamos, a personalidade de cada personagem. A partir daí, o expectador começa a relacionar as personagens com pessoas que conhece, pois as feições, as artimanhas, as necessidades e os vícios são propositadamente retratados com esse propósito. Assim, as magaivices de um Vítor (Gilberto Mendes), um gigolô que não se cansa da vida fácil de que se beneficia na casa dos sogros, onde vive, constituem modelos sociais de uma juventude carente de boladas como quem vem nisso o auge da dignidade humana. Aliás, Vítor é a personificação de um Homem egocentrista, capaz de virar as costas a tudo – à família, à moral e ao sentimento pela esposa – em troca de uma satisfação banal: a sensação de grandeza que, paradoxalmente, se confunde com fraqueza.

Cada personagem de “Jogo de intrigas” foi dada voz para com pretensão de construir uma imagem verosímil, tão perto da realidade que chega a parecer-se connosco próprios ou com quem está ao nosso lado. Sandra (Beatriz Munguambe) é um exemplo concreto, no caso, dessas mulheres que por almejarem prender o marido a todo custo não vêem constrangimentos em oferecê-lo uma viatura estatal ou em atropelar os preceitos de uma tradição machista, permitindo que ela e os pais alimentem o marido, quase trocando-lhe as cuecas. Nesse universo de “Jogo de intrigas” há ainda a destacar uma velha rabugenta e ninfomaníaca: Filomena, maravilhosamente bem encarnada por Juanet Rombe, do ponto de vista vocal, das carectas, da postura física e dos movimentos. Naquela personagem entendeu-se tudo: de que as sogras muitas vezes se esquecem de ter sido jovens algum dia e que, elas próprias, também cometeram erros típicos da idade. No entanto, ao contrário da casmurrice das sogras reais, na peça, Filomena aprende a perdoar, quando descobre que a nora, Julinha, engravidou num adultério 10 anos depois de tentar dar um filho ao marido infértil, Titos (Eduardo Gravata) – Emelda Macamo desempenha a um nível alto esse papel de nora inconsequente.

Todo este jogo é feito para configurar um sarcasmo em relação à podridão dos comportamentos que congestionam as avenidas de sujidade. Tudo de desastroso que a peça possui deve-se mais à facilidade que as personagens têm em falhar e menos à capacidade delas corrigirem os erros.  

Esta é uma peça que se centra muito no indivíduo, nas suas acções, pretensões, de modo que disso retire consequências não poucas vezes com efeitos colaterais. Fazendo de cada personagem um universo, a peça encenada por Gilberto Mendes activa em nós quase sempre as atitudes mais negativas para no fim tentar sugerir um carácter exemplar. Também por isso, “Jogo de intrigas” é uma palmatória – que nos obriga a ser mão – que castiga e educa, com responsabilização.

Título: “Jogo de intrigas”

Autor: Gungu

Teatro

Classificação: 13

XIPIKIRI
A chave rodou. O veículo respondeu ao golpe da ignição com um solavanco tímido, mas conteve a precipitação. O motor soltou-se e gemia: hmmmmmmmm! Trémulo, o carro parecia nervoso. O molho de chaves pendurado na ignição tilintava. O escape arfava em suspiro contínuo. Senti uma inquietação súbita, uma quase cócega no peito. A minha mão, instintivamente, tapou a boca. Tossi. A tosse, dizem os sábios que leem búzios e ossículos, é a alma a querer livrar-se de interferências e a recompor-se no corpo.

O painel acendeu avisando das carências do carro. Uma lusinha incómoda indicava gasolina na “reserva”. Mas não há problema, pensei, conheço o carro. Até porque nos dias de hoje poucos veículos se empanturram. Quase todos circulam com o estômago na “reserva”. Voltei a sentir aquela inquietante cócega no peito e a mão em direção à boca. Tossi.

Olhei para o manómetro da gasolina, a tentar calcular, pela distância que o ponteiro baixara do último traço, o que me sobrava de “reserva”. Reparei na forma absurda do ponteiro: parecia um facão. Um facão assustador. Um facão sobre os tracinhos vermelhos que indicam “reserva”. Gume sobre vermelho, estaria o carro a sangrar… a sangrar combustível? Levei a mão a boca, mas não para tossir: aquele gesto involuntário que ajuda a pensar, para perceber a ferida do veículo.
O escape suspirou em aceleração discreta. Pelo sim, pelo não, decidi ir abastecer sem maltratar o bolso. O carro, contornou os buracos de que o tapete da estrada é feito. Os pneus arrastaram o chão como se o chinelo de asfalto fosse uma enorme sola de borracha. Atravessou o trânsito entupido à velocidade de poupar gasolina. Atracou, finalmente, no bom porto da bomba de combustível, a agonizar. Com o carro assim ferido eu cuidava para não o magoar, de tal forma que, evitando movimentos bruscos, segurei a tosse.

A chave rodou em respeito ao sinal de “desligue o motor”. O veículo estremeceu. As luzes do painel apagaram-se. O ponteiro facão de gasolina não arreou porque já estava caído ao limite. O manómetro continuava a sangrar. O motor calou-se. A mangueira da bomba, enrolada ao jeito de uma serpente venenosa, olhava para mim com o bocal a salivar combustível. O homem das bombas aproximou-se, arrastando as botas à passo que se sabe, esforçando-se para preencher o uniforme. Eu tinha de aguentar a tosse até encher o tanque e o ponteiro, o facão, subir e parar de espicaçar aquela ferida.

Desenrolou a mangueira como se adestrasse uma enorme serpente. Bateu no vidro que eu me distraíra de abrir, para me perguntar “de quanto?”, enquanto eu rebuscava o fundo da algibeira e mexia, com a mão livre, o manípulo que abre a tampa do tanque.

Foi ali que percebi que era um assalto. Na mão direita do homem, o esguicho da mangueira era um pistola, tinha o dedo no gatilho e disparou: “sabe que combustível subiu, né?”.

No peito todo o escarro acumulado revirou-se, implodiu num engasgo e deu em tosse interminável, enquanto o assaltante, calmamente, enchia o tanque até onde os meus trocados permitiram.

 

Porque a alma não vive entre as coisas/ mas na acção ousada de as decifrar
Raquel Lanseros

Os subúrbios de Maputo encerram, na sua essência, vários momentos importantes da vida dos moçambicanos. Por isso, não faltam autores que encontram naqueles espaços a lanterna que ilumina o poder da criatividade literária. Um desses autores é Rogério Manjate, homem de teatro que também faz da escrita uma forma de alongar a vida, sempre breve quanto efémera.

Na colectânea de poesia Cicatriz encarnada, Manjate manipula o tempo e regressa ao passado, no qual habita, quiçá, a imagem eterna de um contexto feito de outras vicissitudes. O propósito, a existir algum, é maior: cantar Malanga como quem reconhece que disso depende a sonoridade que se quer afinada. Do mesmo jeito que Adelino Timóteo não se cansa de fazer de Macurungo o centro do mundo, seguindo esta pegada, à imagem de autores como Luandino Vieira, em relação a Makulusu, Craveirinha, em relação às suas Mafalalas – que não são apenas Mafalala –, o nosso poeta, nesta Cicatriz, faz da Malanga um lugar marcante, com o protagonismo que isso merece, mesmo quando o lugar é algo sem esperanças, feito de pesadelos. Deste modo, esta proposta literária exprime sentimentos com apego a certos hábitos e costumes, bem como ao imaginário de uma gente que se dedica a retirar dos pesadelos diários a alegria que a dança, as estórias à volta da fogueira garantem. Temos aqui um espaço-casa, com o conforto que tudo isso implica. Daí nos revermos, nós, os frutos desses lugares suburbanos, em demasia, quase em anacronia.

Cicatriz encarnada não deixa de nos entregar circunstâncias feitas de sonhos enterrados, uma poesia feita de dor de ver a casa, o lar, perder o seu carácter acolhedor: “a mesa já não é o centro da família” (p. 28).
Malanga é a casa dos sujeitos poéticos, onde a mágoa constante de uma realidade cruel dá intervalos intermitentes ao sorriso de uma infância perdida, tudo feito num jogo simétrico.

Sem que esta homenagem a Malanga e aos subúrbios em geral torne-se algo forçado, cansativo de se ler, longe disso, a qualidade reflectida no livro faz das 49 páginas deveras poucas, a versificação leva-nos a uma realidade humilde, por via dos cheiros, da arquitectura dos zincos e caniços que as palavras concretizam, como se fossem ferro e betão armado. Parece-nos que temos aqui uma poesia movida pela saudade ou, pelo menos, temos uma saudade provocada, que aproxima Cicatriz encarnada à escrita de um Aldino Muianga, afinal, Rogério Manjate canta o subúrbio como quem recupera os encantos de um Domador de burros ou mesmo Dos meninos da Malanga, de Calane da Silva. Como calha em Calane, em Cicatriz encarnada Malanga é um espaço indispensável, porque “dentro do céu da Malanga,/ o chão brinca de pensar/ e quer ser pássaro” (p. 35).

À laia de um contador de estórias sobre lugares, Rogério Manjate faz, digamos, da técnica narrativa um truque para que a sua poesia seja penetrante, cativante, algo que nos reaproxima a uma época dos que, à sua maneira, souberam conquistar a cidade.

Título: Cicatriz encarnada
Autor: Rogério Manjate
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 15

 

É virtual campeão, a duas jornadas do fim do Moçambola, com um avanço que não deixa dúvidas. Diante das câmaras da televisão, apresentou-se cansado, denotando rouquidão, mas alegria e gratidão. É o Chiquinho Conde que todos (re)conhecemos, vindo de uma família de Condes em que mais três irmãos jogaram na Selecção Nacional, algo que deveria figurar no livro dos recordes.

E se é verdade que a UD do Songo não é um clube qualquer e que com o seu antecessor, Artur Semedo, foi vencedor da Taça e esteve a “milímetros” do ceptro principal, foi com o novo técnico que a equipa ganhou estabilidade, revelando ou consolidando duas estrelas que já brilham no nosso firmamento futebolístico: Luís
Miquissone e Kambala. Quis o destino que um beirense de gema, assumido, tivesse “operacionalizado” a mudança do ceptro máximo da Beira para Tete. É assim o desporto profissional.

As mexidas operadas deram tranquilidade à equipa e ao clube, ganhando um fôlego que se espera ultrapasse as fronteiras na próxima temporada, seguindo o exemplo do ainda campeão beirense. A pontuação final, tudo indica, poderá figurar nos anais do Moçambola. E se fizer a dobradinha…

Carreira que orgulha a nação

Pela sua trajectória, é o futebolista moçambicano pós-Independência que chegou mais longe. Sporting, Setúbal, Tampa Bay (EUA) e Selecção de África foram algumas das equipas que repre¬sentou. Parecia ter uma “fada madrinha”, para os grandes momentos, mas a condição que fez sempre questão de cumprir foi: trabalho, muito trabalho.

Apesar da carreira pelo Mundo, colocou sempre em lugar cimeiro a presença nos Mambas, a quem ajudou a dar glórias, como capitão. Jogou pela equipa de todos nós 46 vezes, tendo marcado 12 golos. Na retina de muitos, ainda permanecem os “piques” colossais deste filho do Chiveve, que levaram ao rubro as multidões que viveram os momentos mais altos da vida dos Mambas. No pós-Independência foi o primeiro craque a sair legalmente do país, com contrato assinado com o Belenenses, em 1987. Venceu a Taça de Portugal no ano da entrada. O passo a seguir foi uma transferência para o Braga, onde permaneceu uma época, antes de rumar para o clube e cidade onde se tornou um talismã, com três regressos: Setúbal.

O grande salto deu-se em 94, para o Sporting, pela “mão” de Carlos Queirós. Foi, então, convocado para a Selecção de África que defrontou a sua congénere europeia. Ele e Tico-Tico são os únicos Mambas que se podem orgulhar de ter marcado presença em três CAN’s e sempre com prestações largamente salientadas.

Nos dias que correm, o sucesso na sua carreira como técnico, campeão pelo Ferroviário de Maputo em 2009 e agora pela UD do Songo, falam por si..

 

O passado é sempre uma ilusão, um devaneio da nossa imaginação
Carlos do Santos

Voar com asas quebradas é péssimo para qualquer pássaro que quer esbanjar-se na beleza de ser ave. É difícil e isso resulta num conjunto de problemas que fazem do voo um acto de sobrevivência. E sobreviver é tudo que Celinha, a protagonista da nova obra de Aldino Muianga, aprende desde os primeiros anos de vida, quando Macisse, sua mãe, a abandona na casa de um casal que não podia ter filhos. Bem visto, Asas quebradas é um romance feito de lutas interiores, motivadas pela impossibilidade de se fintar as adversidades enfrentadas no universo narrativo. Neste contexto, duas gerações de personagens femininas assumem o protagonismo da ficção, como figuras activas e passivas da acção que alimenta o enredo.

No seu novo romance, Aldino Muianga aposta na ficcionalidade de uma realidade dramática, essa com tios que violam sobrinhas dias antes de se casarem com o homem amado. Macisse, logo no início da estória, funciona como reflexo de quem ao ser humilhada por um parente é igualmente condenada a enfrentar um futuro incerto, com consequências funestas na vida da filha, quem, na impossibilidade de ser feliz vivendo uma mentira, decide romper as malhas que protegem o passado, porque de outro modo é impossível ter um presente tranquilo.

Na verdade, ao escrever a estória de Celinha, Aldino deixa-se levar pela necessidade de mostrar como os erros do passado, quando mal resolvidos, constituem problemas em maturação, categóricos em mandar para os ares tudo o que se leva anos a conquistar: a honra, a paz, o amor e a família. Para o efeito, este romance cruel na subalternização das personagens femininas, condenadas a sofrer como quem não merece outra sorte, instaura uma série de acontecimentos sucessivos, construídos para desestabilizar… Do mesmo modo, Asas quebradas é o grito que dá som à lagrima da mulher, sujeita a ver seu império de sonhos desmoronar-se, porque o homem que a devia proteger, a devora, e os antepassados que a deveriam proteger, deixam-na abandonada à sua sorte. Assim, a protagonista do romance vê-se a perder o sorriso permanentemente e a procurar pelas suas origens. Mais do que por uma questão identitária, as investidas de Celinha traduzem o desejo de se reencontrar com a paz de espírito que perdeu ao ficar sem o conforto de uma família que se acreditava ser de sangue.

Ora, se para Carlos dos Santos “o passado é sempre uma ilusão, um devaneio da nossa imaginação, modelada pelas especificidades da percepção de cada um de nós”, para Aldino Muianga, neste livro, o passado é uma mazela que se impõe no destino das personagens para alterar percursos, eliminar laços de familiaridade, esclarecer episódios e projectar novos caminhos, sem haver preocupação em relação à destruição do amor. Por outro lado, quando o passado é instaurado na narrativa por via de revelações fantásticas, cumprem a missão de punir, no caso de Celinha, até por erro que não se cometeu.  

Título: Asas quebradas
Autor: Aldino Muianga
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 14

 

Somos, cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades
José Saramago

A intolerância é um incidente constante em o mundo que iremos gaguejar de cor, de Pedro Pereira Lopes. Manifestada de formas diferentes, aquela mácula aparece categoricamente no livro mesmo com alguma finalidade: discriminar, condenar ou punir. Nisso, são várias as personagens, sobretudo protagonistas, que são encontradas, como é o caso de sebastião, em “reza as tuas orações todos os dias”. Nesta estória, o narrador apresenta enredo com um quadro emocional muito forte, ao descrever os dramas pelos quais um personagem passa, com impacto acentuado na família. Por via de sebastião, rapaz que se aventura na soruma quando devia concentrar-se na escola, “reza as tuas orações todos os dias” projecta uma animosidade entre as autoridades (polícia popular) e a família do infractor, que em lágrimas, soluços e silêncios à mistura clama por perdão. Todavia, o que poderia terminar com um abraço, um pedido de desculpas, promessas ou mesmo mudança de comportamento acaba numa punição cruel, fria e ideologicamente exagerada. Assim, boas-vindas e fenias, pais de sabastião, esgotam-se no desassossego de não conseguirem aceitar que o filho vá para Niassa numa operação que deveria ser apagada da História.

Portanto, o poder representado pela polícia nesta narrativa é intolerante, pois prima em seguir uma convicção cega em detrimento do tino. Tal decisão, não só desterra um rapaz novo como, anos mais tarde, cria um luto precoce.

Outra estória de Pereira Lopes que também configura um grau elevado no que à intolerância diz respeito é “uma noite na cela”. O protagonista desta narrativa é parafino, e, uma vez mais no livro, a polícia aparece como vilã da cena, mas, no caso, movida por um interesse imbecil: moedas para comprar cigarros. Por não pagar no momento em que é encontrado a circular à noite, sem bilhete de identidade, parafino é obrigado a pernoitar na cela. Podendo ser mais compreensíveis diante da explicação que parafino dá, as autoridades optam por outra via, ao verem frustradas as tentativas de extorquir o rapazola.

Em “o cobrador”, outra estória do livro, o fenómeno intolerância repete-se. Consciente disso, o protagonista da trama bufa num monólogo: “sou o cobrador deste machimbombo, tenho autoridade, sirvo à sociedade, sou, afinal, relevante. útil como nunca fui, mas os malditos suspeitam, não crêem. não porque não o querem, não o podem, não lhes tolera a consciência” (p. 46). E, no texto “a greve”, mais uma vez a polícia não consente, em nenhum momento, mesmo confrontada com uma razão óbvia, às reivindicações dos grevistas, o que faz com que na estória instaure-se um caus social entre as personagens, que leva à morte uma delas, eunito. Há ainda o exemplo de jesuina – em “a invenção do cemitério” –, quem morre de desgosto pela incapacidade de aceitar que não pode gerar filhos. Mesmo com um marido bom, quinzedias, jesuina é intolerante consigo mesma e, assim, parte para longa viagem.

Em todos estes casos – neste livro cujo estilo de escrita bem nos lembra uma Lispector, Saramago e, sobretudo, Lobo Antunes – a intolerância interfere negativamente na vida das personagens, abalando não apenas a vida delas, mas também dos entes queridos. Em geral, estas cinco estórias visualizam o que pode e acontece quando numa sociedade como a nossa as pessoas apenas sentenciam como se os seus telhados não fossem de vidro.  

Título: o mundo que iremos gaguejar de cor
Autor: Pedro Pereira Lopes
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 14  

 

Um nome é um corpo vivo fervilhando de energia

Paulina Chiziane

A poesia moçambicana continua a merecer atenção, com poetas que não sabem fazer outra coisa senão o bom uso da pena. Nesta vegetação, com vários oásis, não nos faltam essas vozes do silêncio feitas de solidão, desejo e viagem, como quem rema para adiar alguma coisa ou, quem sabe, para alongar o que a Aorta conserva. Uma dessas vozes – firme, frontal e livre – a conhecemos lá dos anos 70 e, dizemos mais uma vez, não a esquecemos porque consegue resistir aos impasses da vida, à ingratidão e ao esquecimento que graças (também) a esse deus restante não é colectivo: Luís Carlos Patraquim, a quem faremos, quando acabar, tudo o que White rejeita naquele “A morte” d’Opoeta diarista.

Mesmo a propósito de o deus restante, este é o título do último livro de Patraquim, o qual se constrói por via de uma tessitura textual exímia na apropriação de momentos. E não é apenas isso. A partir daí, o poeta gera um conjunto de elementos estéticos que minguariam se ali houvesse precipitação na expressão de sentimentos e das suas emoções. Nos poemas de o deus restante, Patraquim escreve sobre o seu coração, usando o que a mente armazena como meio para compor cada verso que o instante permiti-lhe criar. Além do efeito belo e comovente resultante da palavra bem combinada com as tais sugestões que nos conduzem aonde o poema quer, este parece-nos um livro que fragmenta lentamente o que Patraquim é: um leitor do mundo, seduzido pela vaidade de eternizar lugares, rostos, épocas e movimentos. Para o efeito, o poeta insere na escrita vários substantivos, próprios e comuns. Tal investimento não se gasta no nada, antes pelo contrário, enriquece e atribui singularidade aos textos, tornando-os um produto para a consolidação pessoal, para onde se regressa, porque em cada alusão sentimos que lá poderíamos ter estado.

Com efeito, os nomes de o deus restante funcionam para tornar a escrita de Patraquim consequência de muita relação com os contextos, além da literatura, mas não preza às previsibilidades da realidade. É como se os nomes fossem o complemento da criatividade, e são, o que obriga o leitor a saber mais para ali não ficar nefelibata. Os nomes emprestam aos poemas imagens, alongando os versos porque assim deixam de terminar no papel. Os nomes aglutinam uma referencialidade, demonstrando, eventualmente, sobre o que o autor pensa quando escreve. Ora, desde modo, porque a poesia não deixa de estar associada ao seu contexto, Patraquim, acompanhado de figuras como Heidegger, Erik Satie, Ivan Goran e William Blake – num traço poético que transporta há muitos anos –, por um lado, garante que um determinado período seja aproveitado no deleite literário, porque, por exemplo, escrever sobre Satie e Goran é também manter cativo na poesia momentos de séculos passados e bandeiras de países.

Por outro lado, Vístula, Zambeze, Xiquelene ou Lhangene funcionam como bússolas que nos ajudam a identificar a localização dos sujeitos poéticos na altura em que a versificação ganhava corpo, algo apreciável, porque enquanto os espaços são configurados pelo poder do vocábulo, quem lê é transportado para uma realidade que conhece ou vê-se na condição de inventar uma verdade. Não obstante, os vários nomes inseridos em o deus restante fazem da poesia uma forma de compreender os universos de que o autor é feito e os que ele próprio produz.

 

Título: o deus restante

Autor: Luís Carlos Patraquim

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 17

 

Xi-Cau Cau

Edil em grande plano…
do governador, nem sombra!

Antes de moçambicanos, somos manachuabos. Este foi o “pano de fundo” que uniu e levou a Quelimane, na Semana da comemorações das Bodas de Diamante, pessoas com ligações à terra, vindas de vários lugares do Mundo, que se juntaram aos que vivem na terra do coco, para um conjunto de manifestações belas, entre as programadas e as espontâneas. Assim sendo, sob um mesmo ideal, cidadãos de vários extratos sociais, muitos deles ignorando a “barriga de misérias” em que vivem, conviveram num de retemperar de esperanças inesquecível.
Entre o crer e o querer surgiram planos para vencer novas batalhas, pelo que as Bodas de Diamante “prometeram ser para ficar”, graças a uma ideia que pode representar um passo importante: a criação da Associação Bons Sinais, sem fins lucrativos, que vai realizar acções concretas, palpáveis, em prol da cidade e dos cidadãos, a começar pela reabilitação da velha catedral, a histórica igreja que marcou gerações e é um símbolo de amor quelimanense.

Feia nódoa em lindo pano

Difícil, muito difícil mesmo, é descrever o que de mais significativo aconteceu na ponta final do mês de Agosto. As cerimónias envolveram o povo anónimo, houve um carnaval quase permanente, a vinda de “muzungos” das embaixadas, quelimanenses na diáspora ou a viverem noutros pontos do país, um jogo de futebol Quelimene-Blantyre, corridas de bicicletas, de almadias, visitas às praias, palestras, comícios e muito mais. Festa para todos gostos e feitios, tocando todos os corações e sensibilidades.

Manuel de Araújo, o edil, falou inglês para traduzir as explanações do Edil do Blatyre, transmitiu, até à rouquidão, o que lhe ia na alma de cidadão nado e criado na terra do coco, levando ao êxtase os presentes no comício diante do Município, usando o seu chuabo “a vati”, o que quer dizer de raiz. Foi o momento mais alto de uma festa que tocou a fundo todas as sensibilidades… mas, provavelmente, houve uma excepção. Qual? A do Governador, que primou pela ausência, apesar da sua residência ser a escassos metros.

O que ficou nas mentes, pelo que testemunhámos? O exacerbar de um sentimento de anti-machanganismo (o Governador não é de lá), sendo também por alguns interpretado como falta de “guizos” de Sua Excelência, face à possibilidade de ser subalternizado pelo Edil, que pertence a um outro partido…

Ouvimos de tudo um pouco. Primeiro, que estava ausente, por assuntos “mais importantes”, o que seria uma péssima opção da agenda a não priorizacão das Bodas de Diamante da Cidade que dirige. Mas não. Afinal, o Chefe estava em Quelimane, aventando-se que tenha recebido “orientações” para não participar. Alguém perguntava: será que ele pensa que a data é do MDM?

Abdul Razak, é verdade, esteve representado, mas o sentimento quase generalizado foi de que se saiu muito mal na fotografia e, por arrastamento, o partido Frelimo de que é membro.

 

Quero partir a palavra aos pedaços para que volte a ser inteira
JR

A escrita literária ainda é o ocaso que conduz a uma peregrinação além do espaço. E nessa peregrinação inusitada quanto fascinante, tudo é feito em várias simetrias, como acontece em Romaria: três dimensões do vento, de Armindo Mathe (autor duas vezes distinguido na edição passada do Prémio Literário TDM, na categoria de Poesia e Conto). Na verdade, a colectânea de poemas de Mathe é um produto que soa como algo gerado pela natureza, explorado com os contrastes da palavra de modo a causar sentidos de um escrita ambulante por percorrer lugares (sólidos, líquidos e intangíveis) que não deveriam ter gente, talvez porque poeta reivindica a solidão como fecundidade de qualquer concretização poética com efeito.

De facto, Romaria é um livro constituído por três dimensões, as quais, em conjunto, vão configurando com que estado de espírito os versos foram escritos. Na primeira parte, a poesia apelativa de Mathe faz das dificuldades oportunidade para renovar a confiança, o empenho em relação a um por vir, daí que os textos “Angelina”, Marinheiro” e “Apocalipse” funcionem como modelo do que se deve ser para que tudo valha alguma coisa. Aqui a versificação traduz caminhos conducentes a um destino enigmático, com sonhos e insónias gerados por uma “obsessão” focada na ansiedade pelo amanhã. Nesse jogo, os sujeitos de enunciação associam-se à grandeza da natureza para recuperar um estado de pureza instaurado logo no primeiro texto do livro: “Natural”.

Como se estivessem numa marcha contínua, em que se escolhe o que interessa e exclui-se as redundâncias, na segunda parte do livro, as vozes dos poemas afastam-se da artificialidade com que se constroem certos saberes, produtos típicos dos trapezistas, agentes da encenação barata? Provavelmente, porque neste campo nada é certeza, mas causas da saga que a este nível tem no país o palco desencantado, onde o amor esfuma-se nas entrelinhas do sorriso. Esse impulso é feito com esse sentido de ser ave: “Não gosto nada disto, definitivamente, detesto fronteiras. Quebro as grades que me circundam. Sou mar, sou rio e sou ave na azul reverberação dos céus, doutra espécie. Não pretendo ser ninguém além da liberdade que sou” (p. 53).

A terceira parte do livro apresenta outras particularidades, atinente à saudade de um tempo feito da inocente sinceridade de um sorriso infantil, suportado por desejos do que é ideal, como ter um espaço insular: “Quero uma ilha desabitada/ onde não possa mais nada ver/ nem saudações inférteis de amor,/ nem sorrisos imprecisos” (p. 67). Do natural ao artificial, nesta dimensão, Armindo Mathe quer é esbanjar-se no desejo ideal, conciliando um cocktail de ingredientes que adocicam a escrita num patamar onde a poesia merece e deve estar.

Armindo Mathe escreve como quem recolhe sentimentos de modo a vendê-los depois de manufacturados. O efeito disso acaba numa obra que nos desliga de quem somos enquanto a leitura dura. Com isso, o poeta leva-nos aonde quer e bem entende, numa romaria cujo propósito é fazer de nós peregrinos da palavra sugerida e repartida.

Título: Romaria: três dimensões do vento
Autor: Armindo Mathe
Classificação: 15,5

 

A bondade é o mais precioso de todos os tesouros
Máximo Gorki

Em Albergue nocturno, Máximo Gorki manifesta um raciocínio: “a bondade é o mais precioso de todos os tesouros”. De facto, o autor russo tem muita razão, quase que na mesma proporção que João Paulo Borges Coelho, quando, em Água, salienta uma verdade: “deste nosso inferno, nos tempos que correm, migram quase todas as boas intenções”. Como que atento no paradoxo imposto pelas duas frases, nos dias que correm (por um lado, a bondade é nobre, no entanto, por outro, não investimos nela), Manuel Mutimucuio escreve VISÃO, uma novela bem ajustada à realidade moçambicana (presente) no que concerne a esse banal instinto de sobrevivência, o qual consiste em virar às costas à dignidade em troca de dólares.  

Tendo como protagonista Enoque, fundador e Director-Executivo da VISÃO, uma organização não-governamental, a narrativa de Mutimucuio concentra-se num jogo de influências que resumem as motivações por detrás de certas boas intenções, quer de entidades nacionais quer das quem vem do estrangeiro aparentemente para prestar um serviço social. Conversa para boi dormir. Este é um livro que retrata o processo de crescimento de uma instituição concebida para facturar em nome de uma filantropia hipócrita e ambiciosa. Nesse sentido, Manuel Mutimucuio investe com êxito numa estória muito bem contada, actual, leve, curta e sarcástica, como se a escrita fosse a única e verdadeira possibilidade de despir a máscara das quizumbas armadas em benevolentes. Escrevendo sobre a realidade que capta, mais do que reproduzir, o autor exprime um sentimento que, sendo seu, também é de um punhado de gente honesta, incapaz de perceber porque o peão de um tabuleiro de xadrez, não podendo ser bispo, num ápice, almeje tanto ser rei às custas dos outros.

VISÃO é sem dúvidas um livro de intervenção social que mostra como a ganância pode conduzir à degeneração de uma família que se revê na honestidade. Simultaneamente, esta obra de estreia de Manuel Mutimucuio brinca com a verdade de a bondade ter, muitas vezes, a ingratidão como paga, porque o oportunismo torna-se mais sedutor que qualquer sensatez. Fatiminha, cunhada de Enoque, é um exemplo disso, quando se aproveita a torto da confiança cedida pela irmã, Lurdes, num negócio na reprografia que beneficiava a ambas.

Esta estória que tem como centro a Beira, amplia o espaço da ficção moçambicana, abrindo uma linha temática nova, longe das repetições do passado. VISÃO é uma novela feita para o leitor actual, que prefere o cimento à palhota; é uma narrativa que não se esgota na ficcionalidade, de forma alguma, a ficção é apenas um subterfúgio para convidar o leitor a seguir um caminho crítico no que concerne à relação ONG e fomentadores de políticas sociais. Se Enoque representa a parte moçambicana, com toda manha que a estória lhe confere, Agnes é a personificação dos que, partindo do estrangeiro, vêm a Moçambique para alcançar uma notoriedade por um trabalho mal feito. Como é possível que ao invés de uma elevada soma de dinheiro permitir criação de programas para prevenir a propagação do HIV, em Sofala, seja convertida em tinta usada para pintar edifícios e estradas?  

Título: VISÃO
Autor: Manuel Mutimucuio
Editora: Fundza
Classificação: 15,5

 
 

 

Você pode apaixonar-se por belos estranhos e pelas promessas que eles fazem
Dire Straits

Como contar a história dos últimos 50/ 60 anos? Certamente, esta pergunta não merece resposta inquestionável. Não existe uma fórmula definitiva, mas sempre há possibilidades de se recuar no tempo e, das suas entranhas, retirar-se o que de mais impactante encontra-se. Em Recados de alma – romance histórico por investir na coexistência de figuras e episódios históricos com eventos e personagens inventados, como bem defende A. Halsall – temos essa hipótese de reconfigurar o cronótopo de um país feito de estórias incríveis, como a de Eugénio e Mafalda, personagens que fazem do amor um recurso que ultrapassa todas as barreiras e derruba preconceitos.

Na verdade, neste flashback atinente à história recente de Moçambique, Bento Baloi forma no casal Eugénio e Mafalda dois estratos sociais que, tendo muito de diferente, ambos aproximam-se e esbanjam-se no amor simplesmente por isso ser bom. É o sentimento cor-de-rosa que aproxima o menino pobre e preto de Mbongolwene, subúrbio de Lourenço Marques, à menina branca da cidade, fazendo do empregado um príncipe encantado entre lutas e promessas.

A partir do amor que surge num contexto de ódio entre pretos e brancos e vice-versa, Baloi tece um Moçambique possível, livre de estereótipos, um país feito de aproximações mesmo nas circunstâncias em que as distâncias são verdadeiramente acentuadas.

Recados de alma é daqueles romances que – se não forem consequência de uma experiência profunda do autor, o que não retira o mérito da imaginação, de modo algum –, seguramente, traduz uma (re)investigação concentrada dos contextos históricos e sociais aludidos. As diferentes ramificações diegéticas incorporadas no discurso do narrador faz deste livro um produto literário tanto verosímil como credível, pois, de forma equilibrada e numa viagem sem sobressaltos, o leitor é transportado sobre realidades conhecidas, no entanto, vistas de um ângulo raro. Tal evento, faz com o romance reconstrua espaços fundamentais por encerrarem em si fragmentos de um povo que se vai esquecendo de onde vem. A partir de uma relação polarizada entre o caniço e o cimento, Baloi apresenta-se muito ambicioso na reconfiguração espacial, o que nos leva a percorrer ruas de Lourenço Marques, Maputo, Harare, Lisboa, e etc., com uma minúcia de quem conhece esses territórios como a si próprio.

Pelo seu carácter atento ao pormenor, estes Recados conseguem despertar, com efeito, um conjunto de emoções no leitor à medida que o retrato e as peripécias de Eugénio, Mafalda, Simões, Cristina ou Original ganham relevo. São estas as principais personagens, elos que aproximam a História de Moçambique à uma ficção audaz, quer do ponto de vista do manejo de modalidades técnicos-narrativas, quer do ponto de vista da amplitude da narrativa contada.  

Esta obra literária é um autêntico contributo para salvaguardar a memória de uma época em que a coragem foi tudo. Por isso, cá temos os contornos heroicos do “Galo, galo amanheceu” que bem recordam a gloriosa Mafalala dos Calianos também eternizada em livro por Le Bon. Bem visto, os protagonistas do romance são exemplos dessa coragem que mais do que na dor, encontra na honra a força interior capaz de mover montanhas.

Título: Recados de alma
Autor: Bento Baloi
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 17

 

A ideia de dar corpo na Sociedade do Notícias a um jornal desportivo, em período de muitas carências no país, mas de grande exaltação desportiva, esteve muito tempo a “ruminar”. Os estádios andavam permanentemente em ebulição, os campeonatos dos bairros, das empresas e dos quartéis idem. Na primeira “luz verde”, o nome escolhido foi “Equipa”. Para corporizar a ideia, a equipa integrava Renato Caldeira como chefe de Redacção e dois repórteres: Alexandre Zandamela e António Marmelo, este a acumular as suas funções com as de repórter fotográfico. Quando tudo parecia estar a postos, a carência de papel inviabilizou. Se não havia matéria-prima para as publicações já existentes…

Finalmente, o parto sonhado

24 de Julho de 1987. Passam-se agora 30 anos. Finalmente, um sonho tornava-se realidade no país. O surgimento de um jornal desportivo. E na hora em que a velha rotativa lançou para o mercado essa publicação inteiramente dedicada a um fenómeno tão querido dos moçambicanos, a bicha à porta da SN começou bem cedo, para uma edição que só sairia à rua às 16 horas. José Catorze, o então director-geral da empresa, apesar de não ser um entendido na matéria, acumulava a direcção máxima do semanário.

A primeira “orientação”: cada pessoa da bicha, só podia comprar dois exemplares. A manchete: transferência de Chiquinho Conde para o Belenenses – a primeira legalmente autorizada pós-independência. Na última página, também pela primeira vez, falava-se de uma menina, um fenómeno de trancinhas Lurdes Mutola. Ela jogava nos juvenis do Águia d'Ouro, tinha um pé esquerdo terrível e “desgraçava” os futebolistas/homens das outras equipas. Deu então entrada na Associação um protesto, que culminou com a proibição de Mutola jogar nos federados com os meninos. Surgiu, em boa hora, a “mão” do falecido poeta José Craveirinha, que possibilitou o aparecimento da maior atleta moçambicana de sempre. Mas voltando ao lançamento do Desafio. O autor destas linhas, então com 38 anos, passou a chefiar editorialmente um projecto que poderia não durar, tendo em conta as experiências anteriores. Completavam a nova equipa redactorial, Boavida Funjua e Domingos Elias como repórter-fotográfico.

Desafio “pegou de estaca"

Cada letra e cada frase transportava um pouco de nós, os fazedores, após horas intermináveis de criação das matérias, revisão e “casamento” com as fotografias. Tudo acompanhado à minúcia até à paginação. E como estariam a reagir os leitores? Essa responsabilidade tirava-nos o sono, a tal ponto que eu, face à responsabilidade que tinha, bastas vezes “espreitar”, sem dar nas vistas, as reacções dos meus leitores, se eram de alegria ou desagrado.

O jornal cedo se popularizou e passou a bi-semanário, integrando novos repórteres dos quais vou recordar alguns: Homero Lobo, Rosa Inguane, Paraskeeva, Rui Rebouta, César Langa, Jeremias Langa, entre outros. Mas o mais importante é que tudo fazíamos para cobrir o máximo de actividades e modalidades. Cada modalidade, sobretudo as menos concorridas e de menor impacto, tinham no seu seio um “repórter” para nos fornecer os dados para as notícias. O mesmo acontecia com os bairros e até quartéis. Dois nomes me vêm à memória pela dedicação a esta causa: Horácio Sucena, do ciclismo e Hamilton Surtin do Xadrez, ambos infelizmente já falecidos.

Do sucesso deste empreendimento, um registo: uma quarta-feira à tarde, no campo do Maxaquene e durante um jogo de futebol, o público, numa avalanche que dava a entender alguma anormalidade, correu em massa em direcção aos portões. Eu que tinha participado no fecho do jornal nessa manhã, questionei a razão da correria. Disseram-me: “o Desafio acaba de sair”. Eram outros tempos e realidades, em que havia um grande nível de interesse, tanto pela leitura, como pelo desporto do país!

 

São assim os homens (…): têm medo das mulheres quando elas falam e mais medo ainda quando ficam caladas
Mia Couto

Mutumbela Gogo estreou há dias Os pilares da sociedade, obra apropriada do dramaturgo Henrik Ibsen, mesmo com o intuito de estabelecer uma relação entre a Noruega de um período e Moçambique destes dias. Tal propósito, com efeito, foi bem alcançado, afinal a peça secular tem no enredo uma actualidade que nos inquieta.

Os pilares da sociedade, à imagem do que acontece com Ibsen, na versão do Mutumbela traz consigo a estória de um empresário que investe na construção e transporte naval: Karsten Bernick (Jorge Vaz). Esse personagem ardiloso, que não mede consequências para atingir os seus objectivos, mantendo a sua reputação, reflecte a ganância que cá se tem pelo dinheiro e pelas negociatas resultantes de várias “comichões”, como diria Sérgio Vieira. Por isso, na primeira oportunidade que tem, Karsten Bernick permite que a honra de um homem leal a si, Johan (Hélder Timane), fique maculada. Na sombra de uma inocência pirata, Bernick ergue seu império de influências e tenta levar a cabo um grande projecto ferroviário. Mas porque a mentira, em alguns casos, tem mesmo pernas curtas, depois de longo tempo de ausência, Johan regressa com a irmã Lona, antiga paixão de Bernick, para lavar a imagem. É nesse regresso que se desenrola uma cadeia de amor de uns com os outros que, afinal, nem o tempo foi capaz de extinguir. Com isso, a peça introduz-nos na intimidade de uma família nobre e nos alicerces que a sustentam.

Assim, mais do que recuar no tempo, com esta obra Mutumbela projecta um país estereotipado, cuja ignorância vinca na incompetência em compreender que os pilares da sociedade não são aqueles que se julgam ser. Antes pelo contrário, são aqueles que não se quer que sejam: as mulheres e essa incessante coragem em resistir à merda, por elas acreditarem que tudo na natureza, de facto, transforma-se. Esta peça dá eco a essas famosas falas de Lavoisier, pois, num contexto de podridão, Lona (Isabel Jorge), contra todas as expectativas, consegue o improvável, tornar Bernick outra personagem. Lona é tão poderosa que Bernick teme a sua fala e o seu silêncio. No entanto, é a inteligência dela que faz a diferença. A mensagem da peça é clara a esse respeito: não se deve desistir de lutar contra as banalidades desencadeadas por endinheirados deste país. A sugestão encaixa bem nos políticos e os navios em referência na estória, como “The Indian Girl”, aproximam ainda mais a peça de Ibsen à nossa realidade.   

Contando com actores como Adelino Branquinho, Vítor Raposo, Yolanda Fumo, Angelina Chavango e, diga-se, com uma belíssima performance de Yuck Miranda, Os pilares não envereda pelo caminho da crítica opaca, forjada para difamar governantes, embora haja muita alusão implícita a eles. O foco é outro, mostrar como dirigentes são para, depois, sugerir o que a sociedade deve fazer de modo a recuperar neles o bom senso. É uma obra feita de convicções, com duas faces da moeda: o problema e a solução; uma obra que se deixa mover pelo objectivo de eliminar o conformismo nos espectadores, e, daí, começar a reconstruir o edifício de uma nação forte, assente nos verdadeiros pilares da casa que queremos. Porque a mensagem é que mais importa, o cenário, o figurino são assuntos marginais. O maior investimento vai para a complexidade da trama feita de repulsa em relação a um quotidiano cada vez mais asqueroso.

Os pilares da sociedade notifica-nos para, ao invés de atirarmos a primeira pedra contra os lobistas do país, passarmos a lutar por eles, porque libertá-los é também uma forma de devolver Moçambique aos carris do progresso.

Título: Os pilares da sociedade
Autor: Mutumbela Gogo
Teatro
Classificação: 15

 

 

Xi-Cau Cau

Belmiro Simango, Claudino Dias, Aníbal Manave, Ernesto Júnior e João Chirindza, constituíam o cinco-base. Mas havia outros como Ernesto Gomes, Firmino e José Moiane, que corporizaram a única vitória de Moçambique num Africano de Basquetebol de clubes, com a consequente ida ao Mundial, em Barcelona. No centro do sucesso, um nome: Chuck Skarshug, um técnico norte-americano fortíssimo no aspecto mental, sem o qual, seguramente a colectividade não teria chegado tão longe.

Decorria o ano de 1985. O Maxaquene era orientado por um treinador português chamado José Esteves. Tinha ganho o título nacional ao seu rival, o Desportivo, onde pontificavam os irmãos Amad e Naimo Mogne, com um base de excelência que dá pelo nome de João Paulo Vaz.

Então, que venha o Africano, a realizar-se entre nós.

Um técnico que fez a diferença

Chuck chegou a Moçambique 15 dias antes do arranque da prova. A sua ideia era mesmo a de ganhar, apesar da reconhecida superioridade dos adversários. O técnico norte-americano falava espanhol, o que facilitou a integração. Numa semana, ele já conhecia os hábitos e o “tamanho do coração” dos seus atletas. Passou a ser um amigão e um professor, quanto à importância da força mental, na alta competição.

Um exemplo: Chuck foi à casa de Firmino Moiane, família humilde e equacionou tudo quanto à entrega daquele atleta. Disse-me: “Caldeira, ele madruga, vai à Universidade, treina duro e ainda dá treinos à equipa feminina. O Firmino tem um coração grande. Por isso prefiro colocá-lo no banco e quando o mando lá para dentro, não preciso de lhe dizer nada”.

Veio o sorteio do Africano e saiu ao Maxaquene, na ronda inaugural, o Kano Pilars, então campeão africano. “Ainda bem” – disse o Chuck. “Vamos quebrar as tremedeiras e ver quem é que os tem no sítio”. Seguiram-se noites inolvidáveis de pavilhão cheio e vibrante, chegámos ao título, algo antes impensável.

Depois, seguiu-se o Mundial de Clubes, em Barcelona. Uma curiosidade: enquanto que no Algarve os baixinhos tugas se espantavam por ver um ajuntamento de pretos altos, em Barcelona, o que causava espanto era o inverso: um grupo de “txotes” a querer confrontar-se com autênticos gigantes.

Chuck era um ganhador. Não tinha meios-termos. No estágio pré-competitivo no Algarve, tudo foi preparado para um teste final, diante do Imortal da Albufeira, a três dias da competição na Catalunha. Os jogadores, contra a vontade do treinador, decidiram poupar-se. Pela primeira vez, Chuck viu o jogo sentado, parecendo indiferente. Interiormente, estava muito zangado.

Terminada a partida em que fomos derrotados por uma equipa da II divisão, encaminhamo-nos para o autocarro, em silêncio. Arrancámos. A meio do trajecto, o técnico mandou parar o veículo e deu ordens para se acenderem as luzes interiores. Seguiu-se uma palestra que até hoje me está gravada. Falou dos sacrifícios que todos tinham que fazer em prol dos milhões de moçambicanos que passam fome, da necessidade de confiarem na sua honestidade e entrega, ele que deixara a família a milhares de quilómetros.

Do sonho à realidade

Chuck não tinha a noção exacta das diferenças. Da mesma forma que vencera o Africano, achava possível ganhar o Mundial. No primeiro jogo, diante de uma equipa cubana, perdíamos ao intervalo por cerca de trinta pontos. O “mister” estava confuso e por isso mudou toda a equipa-base, metendo os suplentes, reforçados por Amad Mogne. E porque conseguimos um equilíbrio neste período, decretou a inversão: os titulares passavam a banqueiros. E assim foi. Mas as diferenças era enormes, em tudo. No jogo com os donos da casa, o Barça, a meta era a de perder “só” por 50 pontos, o que não foi atingido!

Em tempo de carências no país, várias estórias aconteceram nessa deslocação, mas vou recordar apenas duas:
No período de aquecimento antes do jogo, os catalães, que tinham dois norte-americanos, faziam “afundanços” e tudo o mais para nos impressionar. E quando as duas equipas entraram lado-a-lado para o campo, Lewis, um dos norte-americanos, de 2.15, girou a cabeça de José Moiane, que tinha cerca de 1.60 e exclamou: “você, com essa altura, vai jogar basquetebol comigo”?

Final do jogo com o Barça, as estrelas San Epifânio, De La Cruz, Sibílio, Vilacampa e outros, numa manifestação de simpatia, vieram ao nosso autocarro para fazerem a tradicional troca de camisolas. Uma honra, para nós, sem dúvida. Só que… os nossos atletas receberam as camisolas mas não puderam retribuir pois tratava-se, na realidade, de um dos dois jogos de equipamentos que possuíam. Foi difícil fazer entender essa realidade àquelas estrelas multimilionárias!

 

A casa é amizade construída aos poucos
Zélia Duncan

Na Janela para o oriente, de Eduardo White, e no Livro do desassossego, de Bernardo Soares (um dos heterónimos de Fernando Pessoa), a casa é um lugar distinto para a imaginação poética. É nela que a viagem para o exterior inicia em múltiplas dimensões, porque lá é o ponto de partida para um voo errante, desinibido. Não obstante, a casa não é o começo para aqueles poetas apenas. No seu livro de estreia, Hirondina Joshua sublinha a sua ligação virtual com o espaço que habita dentro e fora de si. São estes alguns cenários encontrados em Os ângulos da casa, um livro de poesia em que a palavra assume-se como um signo empenhado em gerar imagens e sentidos ao que no campo do ser poeta cabe.

Logo no primeiro texto do livro, Hirondina Joshua introduz o leitor à sua poiesis, repleta de salas, paredes e móveis, uma atmosfera feita de nada, no entanto, suficientemente capaz de urdir um sentimento ou tanto ou quanto nostálgico. É uma sensação esquisita esta de ler a autora nas circunstâncias em que faz da moradia um fertilizante na busca de uma combinação estética feita de muita naturalidade. Escrevendo sobre os compartimentos da sua própria moradia intangível, Joshua leva-nos de volta para nossa própria residência de modo a recuperarmos a essência das coisas “vãs”, paradoxalmente constituídas de tanta significação quando bem aproveitas. Os ângulos da casa recicla a poesia com coisas minguantes e sem se deslocar tanto do lugar, afinal partir, aqui, não implica necessariamente ir, também pode ser regressar a um plano que nos torna mais preparados para captar o que desperdiçamos em nós e em nosso redor.

A partir destes ângulos Hirondina sai para apresentar-se ao mundo, explorando exaustivamente a palavra, sem temê-la e sem poupá-la, pois a sua sintaxe é sempre o começo do que se pretende dizer. Então, as 83 páginas que fazem o livro sintetizam a determinação em apostar no ofício, porque, citamos: “Se for para entrarmos [na casa da poesia, pode-se entender] entremos com o corpo todo e depressa e usando a porta da frente” (p. 20).

A melhor Hirondina Joshua deste livro é essa que reconstrói a casa com o poder do verso, nesse retorno ao pormenor. Eventualmente, mais focada ao espaço e ao que a partir disso pode ser feito. Infelizmente, a aposta em retirar da paisagem domiciliar versos revestidos de muita humanidade é rapidamente substituída ao dar-se expressão a entidades textuais mais presas às experimentações do “eu”. Ainda bem que não varia o cuidado com o ritmo, a salvaguardar o equilíbrio da métrica, sobretudo quando o corpo do poema é mais acentuado.

Além disso, vale reparar que Os ângulos da casa é obra escrita por uma autora que não expõe as silhuetas dos seus sujeitos poéticos, mas a alma, de tal forma que cada uma pode trajar-se de qualquer sexo e ser um pouco das nossas entidades adormecidas. O poema da página 81 pode ser usado para notar este traço que impede a prevalência de imagens cor-de-rosa, vulgar em muitas poetisas: “ – Sou igual a todos os humanos. Capaz de amar e matar na mesma intensidade.// Do falo a escrita não precisa, ela por si pode urinar e fazer amor.// Ai, dói isto de pensar que a escrita precisa de um corpo táctil. E erecto”.  

Título: Os ângulos da casa
Autor: Hirondina Joshua
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 13

 

 

Xi-CAU CAU
O BOM – Tudo foi criado e idealizado na governação do saudoso Presidente Samora Machel e os primeiros jogos tiveram um lançamento no Estádio da Machava, em cerimónia irrepetível. Agora estamos nos 13º Jogos Escolares, mantendo-se a tradição de reunir a pequenada, os técnicos, dirigentes e toda uma sociedade, por vezes “extasiada” com algo subestimado mas de capital importância nas nossas vidas: o desporto, sobretudo o infanto-juvenil.

Vivem-se, sem sombra de dúvidas, momentos ímpares de confraternização, ocasião para os meninos e meninas conhecerem um pouco mais do seu país, orgulharem-se das suas zonas de nascimento através de uma competição sã e, nalguns casos até usufruírem, mesmo que por poucos dias, de uma dieta alimentar mais rica e que afinal deveria ser a quotidiana.

Enriquecem-se os conhecimentos, vivem-se dias maravilhosos e sem as quotidianas obrigações dos muitos deveres e poucos direitos, fazendo aquilo que toda a criançada gosta: correr atrás de uma bola, brincar, conhecer gente nova, alargando horizontes.

A presença do Chefe de Estado na cerimónia de abertura, os Ministros e outros “titios” que eles só vêem pela televisão, estão ali, à frente dos seus olhos. Alegria, cor, festa… como anima!

O MAU – Um festival nacional com “pompa e circunstância” deveria ser do culminar de qualquer grande coisa. Não é o caso. Senão, vejamos: os Jogos Escolares, nesta altura, resumem-se às finais, que acontecem de dois em dois anos. No restante período… Andam os meninos e as meninas o ano inteiro, sem que a disciplina de Educação Física e Desportos faça parte do seu currículo real, funcionando como “uma borla” ou tempo para recuperação de outras disciplinas “mais importantes”. Não há memória de um aluno ter reprovado por não ter tido boa nota em EFD. Muito pouco se faz no intervalo dos festivais, tanto no tocante aos movimentos para conferir saúde aos estudantes, como no que à competição diz respeito.

Assim, sendo… É mau, muito mau mesmo, este adormecimento do desporto escolar ao longo do ano, despertando, cheio de frenesim só “para obter medalhas” na grande final. E o que vai acontecer à maioria destes meninos e meninas quando os JE findam? Uma pequena franja – os ditos talentos – vai ser enquadrada para representar clubes ou selecções, mas a maioria só voltará a ouvir falar de desporto daqui a dois anos.

Os especialistas poderão fundamentar o quão pernicioso é para a saúde, “puxar ao máximo pelo físico” durante dois meses, para depois deixá-lo adormecido o resto do ano. Convive-se com a exigência da competição e superação cerca de um mês e depois regressa-se, por falta de alternativas, muitas vezes a actividades perniciosas ao corpo e ao espírito. E quanto à busca de talentos, vem a pergunta: “um campeão nasce, ou faz-se”? A resposta é que, cada vez mais… faz-se! O  que é nato representa um percentual cada vez menor no surgimento dos grandes campeões. Por isso, o trabalho continuado, desde tenra idade, é decisivo.

Tivemos Mutola e queremos enquadrá-la na lógica do talento nacional, sonhando com outras estrelas da mesma grandeza. Foi um milagre e os milagres não surgem todos os dias, anos ou mesmo décadas. Dizia um dia a nossa Menina de Ouro: “quando tu ganhas algo cá dentro, não significa nada lá fora”.

Portanto, uma final pomposa, mas que não resulta de toda uma movimentação regular, tem apenas o condão de nos transmitir ilusões. Estamos, isso sim, em presença de uma pirâmide invertida, ou talvez mesmo de gigante de pés de barro.

 

Quem tem música e asa,/ não precisa de casa

Hélder Faife

“O canto dos escravos” é o título do novo livro de Paulina Chiziane. Escrito com essa sucessão de sílabas/ fonemas que formam unidade rítmica e melódica, isto é, o verso, a obra constrói-se com sentimentos impossíveis de conter na violência sentenciada pelo silêncio. Por essa razão, exprimir-se, aqui, é uma forma de se manter iluminado feito luz de uma mentalidade ainda por firmar.

Ao contrário dos versos líricos – que se esgotam na beleza da sugestão – estes de Chiziane têm num sonho ambicioso uma razão de existir: o sonho de ser ave e de transferir a metáfora do voo para toda a sua gente, do seu país, do seu continente na diáspora porque há toda uma África perdida algures no mundo. Por isso mesmo, a palavra dita objectivamente, sem rodeios e com tão poucos recursos estilísticos que tornam a mensagem ambígua ou algo polissémica, dilui-se com o canto para dar voz ao grito da liberdade.

Neste livro, Paulina Chiziane trava um combate exacerbado consigo mesma, pois nisso sobrevive a frontalidade com que encarra um explorador (in)visível, (in)temporal, além de um espaço. O tom da mensagem deste livro revela-nos um conjunto de entidades fartas da submissão e de todos os estereótipos à volta do Homem preto. Também por isso, a autora de “Niketche”, tal como nessa narrativa, abraça uma causa, não restrita à mulher, mas atinente a uma nação inteira, porque a dor desse chicote agora feito de paleio é sentida por todos. Não há dúvidas, nesta obra Chiziane apresenta-se com uma expressão muito coincidente com África surge et ambula, de Rui de Noronha, em termos de projecto do que este continente fragmentado por toda a parte, por gente imbecil, deve ser: sempre livre dos seus opressores, ainda que essa gente seja os ilustres libertadores da pátria.

Os cantos, de facto, são dos escravos, mas não se precisa recuar até ao séc. XIX para se perceber que os escravos, neste contexto literário, somos todos nós, excluídos/ extintos pelos nossos receios, silenciados pelas bocas que outrora nos deram voz. A esses, Paulina Chiziane, cada vez mais incisiva, algo que se confunde com amadurecimento (?), lembra: “Não é preciso matar gente para construir uma civilização” (p. 52). Outrossim, porque quer repartir com mais alguém as desventuras que não rendem manter trancadas no peito, a autora dá eco aos gritos dos seus sujeitos de enunciação, que nos dizem: “Em nome da salvação conheci os caminhos da perdição” (p. 70), verso melhor de entender quando se pensa no teor de um outro: “Os colonos já foram, mas deixaram capangas/ Fiéis guardiões dos fantasmas do passado” (p. 96).

A partir desta urdidura textual, fica-se mais claro em relação à sugestão deste livro. Paulina quer o mundo para sua gente – que por séculos viveu na sombra das suas cicatrizes – consciente de que só se pode conquistá-lo apropriando-se de território em território. Para o efeito, os sujeitos textuais cantam o canto dos escravos, transportando do passado a memória colectiva para suplantar o novo “Big Brother”. Portanto, nesta nova aparição literária – melhor quando se recita do que quando se lê em silêncio – Paulina Chiziane faz com que o canto seja um testemunho das crueldades antigas e actuais, força motriz para se arregaçar as mangas e partir à procura da liberdade, em qualquer lugar, porque um Homem livre não precisa de casa.

 

Título: O canto dos escravos

Autor: Paulina Chiziane

Editora: Matiko e Arte

Classificação: 13

XI-Cau Cau

O sistema existia e o combate na frente desportiva, à medida que a luta anti-colonial crescia, ia sendo assumido e enquadrada no processo mais vasto de libertação das pessoas e sua dignificação, como seres iguais e pensantes.
Justiça seja feita, numa realidade de puro amadorismo, a maior parte da elite que dirigia o desporto no “tempo da outra senhora” fazia-o com paixão, nos seus tempos livres. E disso se beneficiava uma franja de jovens que, pelo talento indiscutível, eram integrados no desporto do “xilunguine” e aí, facilmente, marcavam diferenças, pela positiva.

Recuando ao “meu” mundo

Vou recuar a 1961, altura em que eu vivia onde nasci, a Cidade de Quelimane. Tinha 12 anos, tudo começava e terminava no meu bairro, Sinacura, onde jogava nos tempos livres, assistindo amiúde ao campeonato de futebol no campo da Sagrada Família. Só nos “dias grandes” ia às partidas da cidade. Era o que a realidade me permitia sonhar, pois o meu Mundo estava limitado a esse espaço e horizonte.

Nas peladas suburbanas, recordo-me, a ideia prevalecente, era a de que “o branco não sabe jogar futebol”. Porém, havia sempre que se fazer uma cedência, pois só o filho do cantineiro tinha uma bola de borracha. Isso garantia-lhe um lugar cativo.

Jogávamos nos terrenos baldios, sonhando com os craques da cidade. Lá, as regras estavam bem definidas. Ferroviário e Sporting eram rivais, batiam-se forte e feio, por razões desportivas, mas não só. É que, até finais da década 60, os leões não admitiam jogadores não-brancos. Nem nas suas equipas e muito menos a frequentarem as suas instalações. Excepção para os mulatos de certas famílias, cujo estatuto permitia “fazer vista grossa” à questão da cor da pele.
Recordo-me perfeitamente do dia em que o campo do Sporting de Quelimane registou uma anormal enchente nas bancadas e cujo motivo central era ver o primeiro negro a vestir a camisola “leonina”: chamava-se Rolando, vinha da então Rodésia. Jogava que se fartava, mas o motivo da curiosidade centrava-se no facto de ver como assentava num negro, a camisola dos “leões”!

Talento venceu segregação

Para além do Sporting, o futebol da urbe quelimanense era dominado pelo Ferroviário, que escolhia os melhores jovens da cidade e lhes proporcionava emprego, o Benfica, enquadrando o extracto social intermédio e a Associação Africana, dominada pelos mestiços, também ela conduzida pela estractificação: admitia os chamados “mulatos de segunda e os cafre-metade”.
Desta forma, as disputas transportavam toda a carga de diferenças e as vitórias ou derrotas representavam oportunidades para afirmação ou humilhação de uns para com os outros.

Na verdade, pela realização permanente de jogos “muda aos cinco e acaba aos dez” nas zonas suburbanas, a ascensão dos mais talentosos da “temba” aos clubes da cidade que se pretendiam manter fortes, rapidamente passaram a algo natural.
Foi assim em Quelimane, mas sei que na Beira, pela proximidade e influência da Rodésia, este processo foi bem mais difícil.

E em Lourenço Marques? No Sporting, o clube dos polícias, as integrações até finais da década 60 eram restritas e tinham o seu quê de cosméticas. Felizmente, quando vim para a capital, em 1964, havia dois clubes que desde a sua raiz se posicionaram como anti-racistas: Desportivo de LM e 1.º de Maio, conhecidos como Nações Unidas, por integrarem negros, mestiços, brancos, asiáticos, chineses e de outras raças, sem quaisquer reservas. O que “mandava” era o talento. O Sporting de LM, já então havia acordado para essa realidade, a tempo de “exportar” alguns dos jogadores que eram os melhores do espaço português de então. Exemplos? Eusébio, Hilário, Madala Gaíza, Maurício, Satar, Armando Manhiça e muitos outros.

É verdade! Sem ter recorrido a armas, o desporto foi um importante factor de combate ao racismo e de aproximação entre os cidadãos.

 

Xi-Ca Cau

Memórias ricas, que o tempo não pode apagar: os novos nomes em clubes nacionais. Já lá vão quatro décadas!

Foi num comício muito concorrido, que o Presidente Samora Machel orientou, de forma enérgica, que não fazia mais sentido os clubes moçambicanos continuarem a ostentar designações dos colonizadores, ou de cariz tribal e religioso. Aplausos. Restava cumprir a ordem.

Nós, os jornalistas, de regresso às redacções, que passo daríamos a seguir? Se já não havia Sporting, nem Benfica, nem Mahafil ou Atlético Maometano; se ao Gazense, Inhambanense e outros, lhes haviam sido amputados os nomes, mas as competições prosseguiam, como é que nós, na Comunicação Social, poderíamos noticiar os próximos eventos?

A longa reunião na Secção Desportiva do Notícias resultou num contacto com o então Director Nacional, João Carlos da Conceição, que por sua vez fez consultas à Ministra da Educação, Graça Machel. Debalde. A resposta foi: contornem vocês o problema, mas esses nomes não podem ser usados.
O que fazer? Foi então que o Albuquerque Feire, um velho jornalista desportivo já falecido, trouxe a “gazua” que resolveu o problema. A introdução do “ex”. Moral da história: até à criação dos novos nomes, os clubes abrangidos seriam tratados da seguinte forma: ex-Sporting, contra ex-Benfica, no campo do ex-Mahafil. Imagine-se a tabela classificativa, cheia de ex…

Só à terceira AG nasceram os Maxacas

No meio deste delicado momento da mudança de nomes, é engraçado recordar o percurso do Sporting de Lourenço Marques, até chegar à designação Maxaquene. Na primeira AG nesse sentido, decidiu-se pela mudança para… Leões da Gorongosa. Dessa forma, manter-se-ia o símbolo e a génese leonina. Palmas e aplausos se sucederam.

Mas o Presidente Samora Machel queria mudanças efectivas e não cosméticas. Num comício dias depois, declarava: “mudaram de Sporting para leões, para nos enganarem. É como mudar a água de uma garrafa verde para um vasilhame branco e dizer que já não é água. Mudem de facto, queremos designações bem nacionais”.

Nova AG, nova tentativa, novo fiasco. Pela ligação às Linhas Aéreas, o novo nome proposto foi o de… Asas de Moçambique. A aprovação não agradou a todos. E mesmo antes da publicação no BR, a Direcção foi obrigada a convocar uma nova sessão magna.

A quem coube então a proposta, que acabou ficando, de se adoptar o nome do bairro em que o clube estava inserido? Ao saudoso Domingos Moura, um adepto de quatro costados, que apesar de leão, entendia a justeza da mudança.

E assim nasceu o Maxaquene, com novas cores, colectividade que com este nome já obteve inúmeros troféus, sobretudo em basquetebol, onde conquistou, em masculinos e femininos, títulos africanos.

Beira: Palmeiras, sim… mas com o leão!

Parece uma anedota, mas não é. A obrigatoriedade da mudança de nomes era para todo o território nacional. E nada obrigava as províncias a copiarem-se os nomes dos clubes da capital, até porque alguns optaram pelos dos seus bairros, designações apenas existentes em Maputo.

Vai daí, o Sporting da Beira, cujo presidente era um magnata chamado Abdul Azize, após muito resistir à mudança, concordou com o nome Palmeiras da Beira. Mas era preciso mudar o emblema, tirar de lá o leão. O mais lógico e acertado, era o símbolo passar a ser uma bonita palmeira.

Que fazer? – pensou o Azize. E acabou aceitando, mas… mandando desenhar na base da palmeira, a espreitar, um leãozinho do seu Sporting.

Foi, na realidade, mais uma batalha que se teve de travar, para remover o último símbolo do sportinguismo da colectividade beirense!.

 

Deus ajuda os bons quando são melhores que os maus
Isabel Allende

119 páginas fazem o livro A pátria do João Lucas, de Luís Artur, o qual baloiça entre a novela burlesca e o romance. É um livro de leitura fácil, cuja beleza discursiva é a que mais surpreende o leitor que entra em contacto com o autor, rico por possuir várias estórias contadas numa, por um narrador brilhante, com alto sentido de humor (isto vai dar teatro) e que, por isso, obriga-nos a ler com um sorriso guardado perto, pronto a manifestar.

Aparentemente, temos neste livro de Artur uma estória quotidiana, entre João Lucas e Rosa, dois namorados à moda antiga, daqueles casais que o amor é um meio para se chegar a um fim… à felicidade… Mas essa finalidade é interrompida, porque, nos tempos de cólera, entre guns and roses a vitória balança para a força. Assim, à saída de uma sala de cinema, o que era para ser até à morte é brutalmente interrompido por um conjunto de soldados que viu no João um potencial recruta. Daí, o nosso protagonista vai à tropa, levando consigo apenas uma bagagem de sonhos encarcerados no coração, portanto, insuficientes para continuar a ter sua Rosa perto de si.

Toda a estória de amor entre João e Rosa é contada de modo envolvente, com recurso a esses vai e vem provocados por analepses oportunamente inseridas no relato. Tudo a condizer do ponto de vista do relato diegético e de construção desse universo fictício. A alternância de focalizações, sobretudo omnisciente e externa, são elementos-chave nessa busca por verosimilhança atinente a uma realidade que nos tocou, para que o passado não fique perdido.

A partir do amor, este belo livro de Luís Artur conduz-nos a Nhezi e arredores. De lá, sem que nada seja forçado, confluímos nos anos da guerra entre uma posição e os tipos armados em bandidos. É essa cólera de uma atmosfera insana, envolvendo duas alas e muitos mais, que, comprometendo o sentimento do nosso casal, desterrando famílias (veja-se o rumo que tiveram Mandava e Julieta, pais de João), faz com que a astúcia do poder representado no comandante Bila ou na IGREJA UNIVERSAL REINO DOS RICOS vença. Bila é sinédoque do que a força é capaz na sua essência. De forma peremptória, Bila torna-se o vilão que se esmera para domar Rosa, vítima do seu próprio amor e da sua ingenuidade.  

A pátria do João Lucas é ainda um notável livro porque as linhas que fazem o enredo garantem uma sucessão de frases feitas com eufemismo e troça, motivadas pela vontade narrativa de minimizar o peso das circunstâncias. Logo, é comum encontrarmos no livro frases como: “o senhor Mandava chegou à casa mais cedo do que o costume. Pegou um autocarro expresso, que de expresso só tinha preço” (p. 44) ou “o cemitério tinha engordado tanto, que foi impedido de comer mais” (p. 52). Com isso, o livro não deixa de encarnar a alma das maiorias nessa vitimização imposta pelo poder que as impele (as maiorias) ao sofrimento e à fuga, no mato ou noutras direcções, porque a fronteira entre o inimigo e o aliado é ténue no que às balas diz respeito.  

Contudo, os últimos dois capítulos do livro mereciam ser outra coisa, pois bem poderiam estar mais ligados ao passado de João. Mandava, Julieta, ainda se entende, mas Rosa e Bila desaparecem precoce do foco narrativo. Aí faltaram eventos que justificassem a escolha do narrador em relação ao sumiço daquelas personagens, que até é oportuna – faz com que o leitor imagine mais. O retrato emocional de João também poderia ser mais catártico, considerando toda a trajectória negativa que a sua vida teve e o facto de Deus não lhe ter ajudado, quiçá, por não ser melhor que o mau (Bila). Seja como for, esta A pátria do João Lucas não deixa de ser uma grande obra (escrita com uma graça que muito nos lembra Hinyambaan, de João Paulo Borges Coelho), confrontando, como nos diria García Márquez, o amor aos tempos de cólera.

Título: A pátria do João Lucas
Autor: Luís Artur
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 16.5

 

XI-CAU CAU

Balanço dos jogos na voz dos adjuntos

Tudo o que possa dar força, vida e credibilidade ao Moçambola deve ser estimulado. É que a prova-maior do nosso futebol, depende mais da asserção política de unidade nacional, da tradição de envolvimento de empresas públicas como CFM, EDM, LAM e outras, do que “peso específico” da sua qualidade.

Na competição-mãe do futebol que está a decorrer, a ZAP associou, em boa hora, o seu nome à prova, parecendo claro que como negócio, a haver retorno efectivo, será daqui a uns tempos. Da parte dos beneficiários directos – os agentes da modalidade – impõem-se por isso acções de reciprocidade a vários níveis,  uma vez que se não está em presença de uma acção de caridade, mas de publicitação de um produto, a sugerir retorno.

Bons jogos de futebol, muitos golos, comentários repletos de visibilidade, balanços e outras acções, tudo isso permitirá atrair atenções e dar mais dignidade ao Moçambola.

Oratória também se trabalha

Pois bem. Na competição-mãe do nosso futebol, salta à vista, pela negativa, a recorrente “delegação” por parte de alguns treinadores, aos seus adjuntos e por vezes aos directores do departamento, da tarefa de falarem à comunicação social no final dos jogos.

Que imagem se está a passar com este comportamento?
Não está em causa para nós, os destinatários, qualquer desvalorização dos adjuntos. Apenas a questão de se subestimar algo importante após os jogos: conhecer a forma como uma partida decorreu, as opções de cada momento, pela voz do mais alto responsável técnico.

É assim em todo o mundo e se estamos a querer ser diferentes, neste caso será pela negativa. O futebol joga-se dentro e fora das quatro linhas. Ao treinador, como condutor de homens, exige-se o ser e o parecer. Não virá mal ao mundo que alguns técnicos, ao sentirem-se com deficiente capacidade de comunicação se preparem para essa tarefa, que faz parte das suas atribuições. Isso só aumentará o seu prestígio, o do grupo de trabalho e, em muitos casos, até poderá acalmar os adeptos nos momentos difíceis ou refrear optimismos extremos em situações inversas.

E é verdade que da mesma forma que se exige aos jogadores boa técnica e muitos golos, também se pede aos “misters” que trabalhem alguma eloquência na comunicação, de forma a saírem dos habituais 'copy-e-paste' do “levantar a cabeça e continuar a trabalhar” quando se perde, ou “fomos superiores ao adversário”, quando se ganha. Fica-se mais com a sensação de um “frete”, do que da explanação de um conhecedor dos meandros de um desporto que o apaixona.

 

 

A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser

Johannes Pfeiffer

No futebol, as fintas dos jogadores são celebradas, mesmo porque conseguem acrescentar ao jogo pormenores relevantes. Com fintas, feitas artisticamente, o espectáculo torna-se algo mais e os animais ferrozes contidos nos homens nas bancadas revelam-se aos gritos. Uma finta é uma obra de arte. Imaginemos tantas concretizadas no relvado por um Ronaldinho Gaúcho ou pelo próprio El Pibe? Ballon d’Or inevitável… Fosse poesia um campo de futebol e as palavras uma bola, teríamos no Mr. Bonde, bem dito, M. P. Bonde, um candidato a Melhor do Mundo por nele existir um craque pujante, com rigor que derruba qualquer Cannavaro concentrado.

Mas poesia não é nenhum campo, é um jogo, no qual as metáforas geram iluminação no ser que a lê. Em “Ensaios poéticos”, essa imagem de luz ligada ao encanto da subjectividade é algo duradouro, pois Bonde, ao escrevê-lo, apresenta-se com uma susceptibilidade visível na forma como expõe o que lhe vai às veias: uma mistura de beleza com tédio, nostalgia com desejo, humildade e certeza, como se o seu destino fosse caminhar de lês a lês, à beira-mar, e a escrita surgisse dessa escolha persistente. Esta proposta literária é um exemplo de que a poesia bem floresce na liberdade interior de quem a escreve. Por essa razão, nela temos entidades que sabem o que desejam: “Quero estar solto na escuridão” (p. 38), de onde surgi o compromisso renovado com os “Exercícios poéticos”.

Nesta partilha dos mundos (coloridos e cinzentos) que lhe constituem, M. P. Bonde é suave e cuidadoso com o que revela do seu interior. Tal atenção, permiti-lhe não ser óbvio sem ser distante. O poeta quer é ser presente, estar perto das pessoas com a pretensão de as roubar deste plano rotineiro para um outro que interesse mais por garantir a absorção das nossas atmosferas diárias por via de outras perspectivas. Além disso, consciente de que “A geração passada deixou-nos de braços atados para o futuro que não chega, criou em nós a preguiça da espera, o calor da transpiração à hora da criação” (p. 17), Bonde agara-se tanto à convicção de Johanne Pfeiffer quando prefere na poesia a concentração em detrimento da distração.  É essa concentração desinibida que permite o poeta fintar e exibir-se ao público sem fogos-de-artifício na escrita. Na naturalidade sobrevive a personalidade deste poeta que leva ao mundo elementos de um poema vertical, rumo à inpiração celeste, já que para si “as ruas são menos expresivas”.

O que não tem de criativo no título, este livro de M. P. Bonde esbanja na capacidade de sorver certos recursos como ruído, o tempo, a água, fazendo disso um fertilizante fecundo à poética, sem ser previsível. Também nisso reside a beleza das fintas do poeta, as quais deixam para trás as ofertas do espaço urbano porque “A cidade tornou-se num vendaval, um hálito de fobias, onde as sombras mulatas alimentam mentes marcadas pela amnésia aguda” (p. 40).

Deixar-se levar pela estética de M. P. Bonde é não se importar por se perder na poesia; é querer voltar à realidade mais leve, com a certeza de que, de facto, na literatura reside a cura para os males da vida.

Título: Ensaios poéticos
Autor: M. P. Bonde
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 16

 

 

XIPIKIRI

Samora regressou de Nachingweya como quem regressa, ao fim do dia, de uma intensa jornada de trabalho. Aliviou-se da espingarda que lhe pesava o ombro, pousou-a sobre um móvel, como quem pousa uma sacola com o expediente do dia. Deu um beijinho à sua esposa, cumprimentando-a, como se tivesse saído de casa naquela manhã. Nos braços, embrulhada em panos com o sangue e as poeiras da guerrilha, uma criança chorava docilmente.

– Trago-te uma filha da guerra – entregou-lhe a criança com o cuidado de quem oferece um presente frágil e muito valioso.
– O teu filho é meu filho – respondeu a esposa, encostando o nado ao peito.
– Chama-se Independência! – disse Samora. Ela arrastou os olhos de cima do bebé, levantou a cabeça devagarinho e olhou para ele. Trocaram brilhos nos olhares. Ele abraçou-a e ficaram os dois a olhar para a bebé que acendia no colo, como se ela carregasse um xiphefo entre os braços.

Desapertou os botões dos trajes militares desbotados pelos anos de uso, como se desapertasse a forca executiva de uma gravata. Tinha um ar cansado, mas realizado. Regressava de um expediente de dez anos com o mesmo ímpeto que se regressa de dez gloriosas horas de trabalho diário.

Adormecida a criança, a esposa descalçou-lhe as botas e acariciou-lhe os calos. Aparou-lhe a barba, o cabelo e outras pelugens. Manicurou-lhe as unhas sujas da guerrilha. Samora lavou os dentes, corpo e a alma sujos de sangue.

– Agora quero ver os meus filhos – disse em tom de marechal da família.
– Estão no quintal.

Abriu a porta e viu os seus filhos, espalhados do Rovuma ao Maputo do seu quintal:
– Meus filhos! – chamou-os para um comício familiar.
– Papá! – responderam, correndo para os seus braços.
– Trouxe-vos uma irmã – disse olhando para a mãe sorridente, com a criança nos braços. Acercaram a mãe, com pirilampos acesos nos olhos. Samora abraçou-os.
– Chama-se Independência!
(…)

Está crescida, a Independência, e fez anos. Havia uma vela de aniversário hasteada no meio de um pão de lenha. A chama desfraldava-se como uma bandeira irrequieta. Mas alguém recusava-se a cantar “parabéns:
– Não podes fazer anos, Independência. Tu não existes.
Em resposta, o rosto dela imitou a chama e acendeu um sorriso.

Devagarinho, desenhou, com a mão, um círculo sobre o ventre. Ouviu-se “oooh” entre cochichos.
– Independência, estás grávida?

De olhos fechados gingou a cabeça, para cima e para baixo.
– Existo, tanto é que estou grávida.
– Não, tu não existes, Independência. Nós nunca fomos independentes.
– É uma menina e vai se chamar Democracia.
– E quem é o pai? – cochicharam.
– Parece que o pai é Sofrimento.
– Não. Dizem que Independência foi esturpada pela Guerra e agora está grávida.
– Yuh!, afinal não é Corrupção, o amante da Independência?

Ela fingiu não ouvir os sussurros. Virou-se, assoprou a vela. A chama recusou-se, mas cedeu. As pessoas começaram a cantar “parabéns” com palmas tímidas. No meio do pão, o pavio da vela a fumegar, lembrava uma haste sem bandeira e um país chamuscado. Sorriu. Acariciou o ventre. Repartiram o pão e começou a festa da Independência, enquanto esperavam pelas bebidas que os doadores prometeram.

 

Quantos dos que escrevem/ chegam a dizer o que quiseram que fosse dito?
Filimone Meigos

Um poeta nasce, cresce e morre. Se a sorte sobrar, antes da morte o abraçar, reproduz e espalha poesia por tudo quanto é lado, em livro, perfeita janela para eternidade. Nada gratuito, pois tudo nesta vida tem preço. Por isso, neste contexto, a eternidade paga-se com a delicadeza conquistada ao lapidar-se a palavra enquanto recurso que afaga a alma daquele criador ou que lhe condena a um labirinto obscuro, sem nenhum fio de Ariadne para de lá retirar-se com vida.

Enfim, parece que o verso acaba por se tornar um reflexo de quem escreve, algo grave quanto a consequência daí resultante, sobretudo se for negativa, afinal os livros podem sempre decepcionar como tudo. Assim, valerá a pena lançar uma obra e assumir os riscos causados pela exposição? Bernardo Soares, no “Livro do desassossego”, proporciona-nos uns versos categóricos a este respeito: “SABER QUE SERÁ má a obra que se não fará nunca, pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita”. E esta “As idades do vento”, de Jaime Munguambe, diga-se o que quer que seja, está feita e vale tanto por essa coragem escassa nesta época em que urge inventar uma nova “Geração da utopia”.

A pena deste autor distinguido com o Prémio Literário do Banco de Moçambique, na categoria de poesia, em 2015, reflecte permanentemente o desejo de existir (por se perceber que o anonimato nesta atmosfera é um acto cobarde) e de ser vivido. Assim, com a sua inocência, Jaime Munguambe passeia pelo seu interior para buscar os primeiros frutos de uma árvore ainda pequena, mas cheia de vida. Com isso, o poeta vai redescobrindo o encanto da palavra (repetindo-a exageradamente ao longo das páginas, é certo) ao mesmo tempo que a tenta colorir com subtileza. Nesse aspecto, Munguambe é instintivo e muito sensitivo. Não admira, por essa razão, o retrato das imagens captadas pelo olhar, pelo tacto dos dedos. Em sintonia, esta harmonização poética resulta, obviamente, na subjectividade quase que na mesma dose que acaba na sugestão feita de possibilidades: de ser, estar ou partir para um lugar distinto, onde se pode “(…) reencontrar a coreografia da lua/ entre os braços longos das estrelas” (p. 42).

“As idades do vento” é um livro de partida, no qual ainda é notável a contensão do poeta. Como livro de partida, talvez não se deva procurar uma poesia estupefacta, que nos deixe abananados. Deve-se, sim, gozar-se esta partilha literária como quem testemunha, eventualmente, o começar de um percurso vasto, cujos percalços apenas podem advir da impossibilidade de se escutar a solidão.  
Sem revelar-se um alto livro do seu tempo, longe disso, “As idades do vento” trazem o compromisso do autor com escrita lírica, feita de universos em que as asas dos pássaros constituem desejo como subterfúgio para o alcance do firmamento e dos mais apreciáveis mistérios naturais. É neles que se esclarecem “As sílabas da fantasia”: “Chego à Vénus/ com o corpo aberto/ sobre o poema/ e com as mãos antigas do sonhar/ abro as blusas do tempo” (p. 24). Este pacto com a palavra, portanto, permite-nos renascer na nossa infinidade.

Título: As idades do vento
Autor: Jaime Munguambe
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 11.5

 

 

XI-CAU CAU

Vencer uma batalha, pode estar muito longe de ganhar uma guerra. Mas poderá ser um passo importante e até decisivo, no caminho de colocar o desporto no lugar a que tem direito na sociedade, proporcionando saúde a novos e velhos, alegria para o aumento da produção, atracção para o turismo e motivação, muita motivação, para a auto-estima real dos moçambicanos.

E quando o Chefe de Estado, na sua mensagem aos Mambas, refere que o desporto está de volta, o que podemos daí concluir? Que está de volta, tendo em conta novas perspectivas, enquadradas numa realidade em que o país, com mais saúde financeira, reunirá condições para mais investimento no sector do desporto. Só com modernização e novos métodos de gestão no horizonte, poderemos sonhar com glória, dinheiro e prestígio.

Acertar o passo com a actualidade

Temos poucos campos e espaços livres, na cidade de cimento e nos subúrbios. Porém, mesmo para esses escassos terrenos, a juventude revela pouca apetência. O tempo dos jogos de muda aos cinco e ganha aos dez, já lá vai. Porquê?

Tudo começou com erros políticos de que ainda nos ressentimos. A proibição da transferência de atletas que “não cabiam” no nível interno, provocando uma debandada; o desaparecimento de muitas das colectividades pequenas que alimentavam as principais; a venda de espaços dos clubes e por aí adiante.

Mas agora o tempo não é o de “chorar sobre o leite derramado”, mas de agir. Nada será como dantes. Os meninos e meninas na actualidade, desde cedo estão sujeitos a pressões de todo o tipo, inclusivamente às de cedo se terem que tornar chefes de família, mal se revelem os primeiros indicadores de talento. A oferta da sanduíche e do refresco, já não convencem o clã familiar…

“Cavalgar” esta onda favorável

Vive-se nos dias que correm um ambiente favorável à retoma. Há mais de uma década que não vibrávamos com feitos similares aos do Ferroviário da Beira e dos Mambas. Há que capitalizar o entusiasmo e motivação desses feitos, independentemente do que se vier a passar daqui para a frente, fazendo tudo para que a presença na alta roda africana seja a regra e não a excepção.

Não podemos querer ser profissionais com condições para amadores, com o rigor a ser aplicado só no que nos convém, desvalorizando as regras e “reprimendas” das entidades internacionais quanto à obrigatoriedade de movimentar camadas jovens, ter pelo dois campos de treino, etc. Investir na juventude, infelizmente, continua a não passar de um “slogan” para justificar seminários, viagens e promoções.

O país está de volta, também no desporto – disse o Presidente Nhussy. E se se antevêem novos paradigmas para o país, o desporto não pode continuar a viver de mão estendida aos patrocínios, mas bem pelo contrário transformar-se num sector vitorioso, capaz de colocar as marcas e os homens de negócios “à bulha”, para encontrarem um lugar de privilégio onde publicitem as suas marcas, seguros de que terão retorno garantido.

 

(…) respeitar as leis, defender os desvalidos e desprezar o dinheiro, porque os heróis nunca esperam recompensa
Isabel Allende

“Não vamos esquecer o tempo que passou. Não vamos esquecer o tempo que passou. Não vamos esquecer o tempo que passou. Quem pode esquecer o que passou?”. A canção (com a letra) é a antiga, e é das mais conhecidas do repertório “revolucionário”. Mais que aquela, só mesmo o Tiyende pamodzi ndi mtima umodzi, por esboçar imagens de Tete, Niassa, e, claro, por nos recordar Samora. Lembranças não se apagam, porque esquecer é deixar de existir no instante; lembranças não se calam, porque o silêncio pode trazer do passado a dor escusada no presente. Então, vamos ou não esquecer o tempo que passou? “Comboio de sal e açúcar”, de Licínio Azevedo, responde categoricamente: De modo algum. Esquecer é errar pela segunda vez, e um erro deve ser assumido para se tornar uma lição. Se quisermos ir por aí, esta é uma das mensagens do filme que ficciona a realidade sinistra porque passaram vários moçambicanos numa altura em que a esperança quase morreu na tosse de uma kalashnikov.

A partir de um comboio, com momentos de avanço e de pausa condicionados pelas emboscadas na linha férrea, Licínio Azevedo leva à tela as consequências que a guerra entre o Governo e a Renamo teve na vida, quer dos que manipularam as armas quer dos que desses artefactos necessitaram para se sentirem protegidos. O comboio metaforiza o país inteiro, mais ameaçado por heróis que, ao servir o povo, esperam ser bem recompensados. Dinheiro e prazer parecem ser a paga ideal. Por isso, temos um alferes Salomão (Thiago Justino) prepotente, quem, por exemplo, arranca a mulher de um civil para a abusar vergonhosamente. Como calha em “Mayombe”, de Pepetela, “Comboio de sal e açúcar” tem cuidado ao insinuar que nem sempre o verdadeiro inimigo é apenas quem julgamos sê-lo. Dando crédito à ideia, revoltada com o que os soldados “governamentais” fazem, uma personagem bufa agastada: “Às vezes, aqueles que nos defendem são piores do que aqueles que nos atacam”. Logo, desenrascar até chegar ao destino (Iapala e Malema, para alguns, Ribaué, Cuamba ou Malawi, para outros) é a palavra de ordem.

Este filme é uma estória sobre a sobrevivência, que nos conduz à nossa História recente, feita de rancor, ganância e muitas falsidades, afinal, poucos, como tenente Taiar, estão deveras preocupados com a causa nacional. Bem visto, Taiar, no meio de tantos lobos maus, é a esperança ténue, por ser amável, mas também é a desilusão, quando o mal triunfa sobre ele e Rosa, sua namorada, ficando sem pétalas. O momento em que isso acontece, merecia melhor representação de Matamba Joaquim (Taiar). As suas feições, o modo como anda e fala depois de ser baleado pelo seu camarada Salomão, com quem disputava os encantos da Rosa, não convencem. Ali o actor angolano poderia ter dado o melhor de si, para que estivesse ao nível de Melanie Rafael (Rosa), quando abraça a dor.

À parte a narrativa muito bem contada, com diálogos maduros entre as personagens, este “Comboio” tem êxito no que ao casting dos actores diz respeito: distribuição dos papéis bem elaborada. Se Taiar e Rosa distinguem-se pela doçura, Caravela (Victor Raposo) e Omar Imani (Abdil Juma) dão-se bem com o medo. E o que dizer do comandante Sete Maneiras (António Nipita) daquela tropa que protege o comboio de Nampula a Malawi, com tatuagens macondes na face? O comandante é a personificação dos homens leais aos antepassados, o exemplo de que uma guerra não se faz apenas com coragem. Há sempre mistérios cuja essência os mais imberbes são incapazes de compreender. Ao configurar o fantástico a partir do comandante, com poderes sobrenaturais, o filme enaltece a cultura bantu, lançado um debate sobre o que não existe, mas nos mexe.  

Este “Comboio” de Licínio Azevedo, sem deixar de ser um retrato do contexto das rotas comerciais de sal e açúcar; sem deixar de ser um registo histórico dos erros cometidos no passado; e, acima de tudo, sem deixar ser uma bela obra de arte, que investe com sucesso na componente emoção, é um veículo que nos devolve a letra da canção, para não cairmos no mesmo precipício: “Não vamos esquecer o tempo que passou. Quem pode esquecer o que passou?”.

Título: Comboio de sal e açúcar
Autor: Licínio Azevedo
Filme
Classificação: 18

 

 

Há trinta e poucos anos, vivíamos motivados em fazer evoluir “a nossa dama” que é o desporto, com vigor e patriotismo, por África e pelo Mundo. Era o fervor pela recém-proclamada Independência Nacional. Com pouco dinheiro, na chamada época do carapau, “moviam-se montanhas”, apesar da inexperiência.

Se os estádios enchiam em dias de treino, imaginem nos grandes jogos, tanto internos como internacionais.

Agora, tudo mudou. Nos rostos onde fervilhavam sonhos de evoluir, só resta estampada a desmotivação, talvez mesmo desilusão. O fervor que alimentava a alma e contagiava os mais novos desapareceu. Agora vive-se e vibra-se só com as “importações”, de terras e lugares longínquos, nalguns casos por vezes “nunca navegados”.
E é ao sucesso dos outros, que antigos atletas, dirigentes do futebol, boxe, basquetebol, atletismo e outras modalidades vão buscar as suas emoções e referências. E pouco importa que a nossa criançada, devido a este corte na nossa auto-estima, vá vivendo de “play-station”, definhando paredes-meias com este novo paradigma assumido, de viver como seus os sucessos dos outros.

A frustração parece ser total. A excepção vai para a meia-dúzia de “teimosos e persistentes”, que por acreditarem e apoiarem o medíocre desporto indígena, não escapam ao epíteto de… medíocres.

Sinais dos novos tempos…

Os que pertencem à elite urbana, com possibilidade de pequenas fugas à Europa, por lá “tiram a barriga de misérias”. Os menos ou nada abastados, vão criando movimentações de veteranos, como forma e razão para a realização da “3ª parte”, onde demonstram que continuam craques, numa competição em que os adversários são as médias ou as bebidas espirituosas.

Na busca dos culpados para esta realidade que não pode ser vista nem sentida como normal, são identificados todos factores, menos os que moram em cada um de nós. A primeira explicação aponta para a baixa qualidade do nosso desporto. Como se a eles, que acumularam experiência, não coubesse qualquer obrigação de participar, para reverter o cenário; depois, a falta de “oportunidade e espaço”, que se diz ocupado por oportunistas e infiltrados. Seguem-se: Governo, que não prioriza a actividade desportiva, clubes que se esqueceram deles e por aí fora.

Será que no desporto, em crescendo em todo o mundo, considerado o maior e melhor remédio contra as doenças previníveis, combate à droga e por aí em diante, a geração que sentiu e viveu o despertar pujante das modalidades neste país, não consegue encontrar outro tipo de resposta que não seja a indiferença e um virar costas que tanto prejudicará esta e as próximas gerações?

Sente-se que quem ergueu as bases para o percurso do desporto até hoje, claramente atirou a toalha ao chão. Mas é sempre tempo de a reerguer e, de mãos dadas com os mais novos, voltarmos a (re)jubilarmo-nos com triunfos dos novos talentos. O “furacão Mutola”, que tanto nos encheu de orgulho, é para replicar em várias modalidades!

É por estas e por outras que estou a pensar em candidatar-me a sócio do Ferroviário da Beira…

 

Passa hoje um ano após a investidura de Filipe Nyusi como Presidente da República. Uma data que o Presidente fez questão de tor­ná-la inesquecível com o seu discurso inovador e renova­dor de sonhos. O povo ouviu, aplaudiu e sorriu com a espe­rança de que uma nova página da história do país se abria.

O encanto foi profundo e generalizado. Mas, com o aflo­rar dos dias negros, o sorriso não permaneceu nos rostos. As rugas de preocupação ca­racterizaram muitos moçambi­canos que viram seus sonhos, pessoais, profissionais, acadé­micos, esmagados pela conjun­tura política e económica que esteve a desfavor.

A começar pela tão almeja­da Paz que esteve sempre ao reboque de duas pessoas: Fili­pe Nyusi e Afonso Dhlakama. Dois “irmãos” desavindos que não conseguem se reconci­liar e fazem da imprensa um pombo correio. Nyusi prome­teu que tudo faria para que jamais irmãos se voltem contra irmãos seja a que pretexto for. Mas ainda não conseguiu se entender com Dhlakama e por conta disso o país se afunda em instabilidade, por receios de investimento e avaliações negativas de agências rating internacionais.

Vivem uma guerra excitante, mas perigosa. Aliás, o político britânico Winston Churchill há décadas despertava para os seus riscos, na célebre frase: “a política é quase tão excitante como a guerra e não é menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas”.

A cada pancada que o pri­meiro ano de governação de Nyusi deu ao povo, uma urna se abria. Assim como se abria para Dhlakama sempre que agitava o país quando recuava os passos pacificadores.

Nyusi prometeu tudo e mais alguma coisa. Sublinho rapidamente a promessa da transparência, presente em muitos parágrafos do discur­so de investidura, por ser uma das que menos cumpriu neste primeiro ano. Por exemplo, disse: “asseguraremos que as instituições estatais sejam o espelho da integridade e trans­parência na gestão da coisa pú­blica”. Infelizmente, o dossier Ematum esvazia seu discurso ao continuar às cegas tal como vinha no governo do seu ante­cessor. A pouca claridade que se deu não foi suficiente. Aliás, neste capítulo, maior ganho seria a institucionalização da transparência nas instituições públicas, para que não pareça caridade ou boa vontade de alguns sempre que fornecem informação de interesse públi­co. Afinal, governar pressupõe saber prestar contas. No caso, ao povo, para que o contrato social tenha valor.

Com todos os socos, pan­cadas e rasteiras do primeiro ano de Nyusi, o tempo para remendos e uma nova rodada na ignição ainda é extenso. As­sim, vale renovar as esperanças para os próximos 4 anos.

XIPIKIRI

O calendário sorriu, marcava sexta-feira. Jesus largou o expediente. Desapertou, sem cerimónia, a gravata. Saiu do escritório antes da hora, sem despedir. A semana toda se concentrava na goela. A saliva raspava a garganta. Sentia uma sede incontrolável que lembrava os mais originais anúncios de cerveja. Sob o burburinho do trânsito já ouvia o coro clássico da música de copos a encherem-se de espuma. Decidiu passar por casa, para roupas mais cómodas e menos suadas. Madalena, a mulher de Jesus, pilotava um fogão a gás de três bocas. Com uma colher de pau comandava uma panela e dava ordens ao caril de amendoim. A mulher desconfiou:

– Vieste cedo.

Demorou a desenrolar o novelo emaranhado das respostas que os homens dão às sextas-feiras. Dizia palavras-chave como “meeting”, workshop. Madalena dobrou o sobrolho. Algo lhe fugia do sentido.

– Reunião? Sexta-feira a esta hora?

Jesus demorou com a fivela da sandália, ganhando tempo para raciocinar. Falou-lhe de team building, e outros termos em língua distante, de modo que Madalena se encurralasse com as perguntas.

– E vais de sandálias?

Assegurou o aperto das calças jeans. Lambeu o desodorizante roll on nos pêlos rebeldes das axilas. Mergulhou numa túnica. Tudo à velocidade de se manter ocupado e com a demora construir respostas cabíveis. Fez cara de reunião e atirou palavras mais fortes como stakeholders, partnership, join venture. Mexeu, teatralmente, alguns em papéis. Falou de doadores e da crise. A panela dançava sobre o fogão de três bocas, ao ritmo das volutas com que madalena remexia o caril de amendoim. Estava calada. Engana-se quem pensa que o silêncio de uma mulher é de resignação. Ela cala-se para te deixar escorregar, enrolares-te até te entregares sozinho.

Jesus reparou na chama azul do fogão a gás a amarelar-se, anunciando o fim da botija. Foi à carteira e trouxe um maço de dinheiro discreto, mas gordo para os tempos de crise e muito para o que maria madalena se habituara. Com aquele gesto que rebenta com o argumento das mulheres, disse:

– Toma, é para pão, energia e gás e cabeleireiro.

A desconfiança aumentou. Madalena intensificou os gestos circulares de pilotar a panela de caril de amendoim. A capulana agitava-se com os gestos. A mulher manteve-se calada como fora instruída na preparação para o lar. De túnica e sandálias, com uma pasta a tiracolo, outra na axila e estilo executivo, foi para onde os homens vão às sextas-feiras (e eu não posso, obviamente, revelar aqui).

Mergulhou na sexta-feira, de tal forma que quando deu por si já era domingo. Voltou para casa, dois dias depois, Madalena sempre no fogão, fritava badjias. Jesus rebuscou uma explicação dramática, convincente. Dizer que fora arrastado, crucificado, espancado, morto e só ressuscitou naquele domingo, seria demasiado óbvio. Preferiu dizer que foi a polícia, estava detido por conduzir embriagado e só fora solto naquele dia. Mal terminou a explicação esfarrapada, com hálito à sexta-feira acabada em domingo, viu a frigideira de óleo quente a voar-lhe para a cara. E assim, frito, feito badjia, Jesus passou pelo hospital e foi parar ao céu.

 

Cada pessoa nasce com uma predisposição para cuidar de si própria, construir uma consciência da sua condição humana, desenvolver mecanismos de auto-afirmação e auto-defesa e exprimir a sua continuidade através da reprodução e transferência de conhecimentos.

Na interacção com os mais próximos, acumula o seu capital social primário, a nível familiar ou através dos vínculos de amizade e vizinhança. Esses laços são muitas vezes sustentados pelo pragmatismo da partilha de objectivos imediatos, sacrifícios, recursos e interesses, mas sempre na perspectiva de grupos restritos e coesos.

Há os que transcendem estas fronteiras dominadas por laços de sangue e cumplicidade para abraçar relações e causas mais abrangentes, e por isso mais complexas, a nível comunitário. Na generalidade dos casos, dedicam-se a projectos sociais, económicos, ambientais ou culturais que beneficiam preferencialmente a comunidade.

Mas há também os que encaram visões mais transcendentais, a nível nacional ou internacional. Constroem laços de empatia e cumplicidade, que são cimentados por uma consciência sublime da importância da comunhão alargada de esforços entre seres humanos, da partilha em largo espectro de um propósito para essa condição e missão privilegiadas, e da convivência sã baseada em valores.

Apropriam-se de uma maneira peculiar das dores alheias e colectivas. Sentem fervilhar dentro de si turbilhões de motivações, vontades, energias, coragem e determinação para se dedicarem a uma visão partilhada e altruísta.

São pessoas que sonham a humanidade. Por isso, a devida vénia deve-lhes ser prestada. Não apenas por representarem casos raros, mas também por serem fundamentais para fazer girar a roda do progresso nos variados campos da organização política, social, científica, cultural, artística, religiosa e ambiental.

Qualquer nação que queira desenvolver-se deve ter a capacidade de gerar pessoas com tal mentalidade. Que demonstrem uma fé extraordinária na humanidade e nas pessoas, que acreditem no poder das ideias e ideologias, que partilhem as oportunidades e possibilidades que a vida oferece, que condimentem a vida com o tempero das emoções naturalmente humanas, e que equacionem a vida como um equilíbrio entre direitos e deveres.

Fé nas pessoas

A sua determinação em fazer coisas extraordinárias que beneficiem a generalidade de pessoas, e não simplesmente a si próprias, exige sacrifícios e muita fé na humanidade. É uma postura que se distingue e se eleva, porque não concebe o ser humano apenas com base nos elementos biológicos e materiais. Rejeita que a vida se resuma aos sinais vitais, posses, números e cifrões (capitais, trocas, preços, lucros, etc.).

Para essas pessoas, a condição humana impõe um propósito individual e colectivo, que transcende as necessidades circundantes e imediatas, e projecta-se no espaço e no tempo. Busca o encanto, a magia e a poesia de ser gente, numa harmonia que não segue uma fórmula aritmética, porque se exprime na diversidade, em múltiplos tons e tonalidades (que se harmonizam ou se desarmonizam em função de contextos, realidades e aspirações).

Essas interacções resultam em situações positivas ou negativas que influenciam o desenvolvimento das comunidades, países ou da humanidade como um todo, fazendo-os progredir, estagnar ou regredir em função de factores económicos, sociais, ambientais e culturais. A escravatura, a inquisição, os conflitos armados e a segregação contra mulheres, crianças, jovens, e idosos são exemplos lamentáveis de factores de retrocesso.

Por isso, através da sua fé na condição humana e sua determinação em fazer o bem, essas pessoas inspiram e motivam correntes positivas e previnem o mal e a negatividade.

O poder da “ideia” e da ideologia

Tais pessoas compreendem que a melhor resposta à complexidade da vida é uma abordagem simples, mas pensada. Compreendem que a vida é repleta de surpresas e armadilhas e que o desenvolvimento sustentável, eficiente e eficaz deve ser pensado antes de ser posto em prática. Isso começa sempre com uma ideia que é gerada e partilhada, partindo de desafios reais (vistos, sentidos ou previstos), e que resultam em ideias sobre soluções e fórmulas de partilha de responsabilidades, tarefas e resultados.

Compreendem que uma ideia recheada de racionalidade e valores representa uma luz que mostra o caminho, inspira, motiva, orienta, ajusta e faculta. A ausência dessa luz orientadora, induz ao improviso, ao comportamento instintivo, a impulsos imediatistas que acentuam o egoísmo e egocentrismo, e acabam por gerar a desconfiança e a ruptura de sistemas de valores.

Entendem ainda que essa ideia só é válida quando pensada no colectivo. Reduzem o egoísmo e egocentrismo a níveis mínimos (estritamente necessários para apimentar a competitividade e os processos de desenvolvimento), pois a sua presença em doses excessivas retarda o desenvolvimento da humanidade como um todo.

Há o exemplo dos políticos desprovidos de uma “ideia partilhada” ou ideologia que se encontram perdidos na sua ambição, vulneráveis às pressões sociais e apelos cleptocratas e corporativos, e sucumbem à formação de cartéis e bandos criminosos. Acabam recorrendo ao nepotismo, amiguismo, corrupção, para cristalizar os resquícios do poder que exercem.

Partilha de oportunidades e possibilidades

Para os que sonham a humanidade, a vida plena é encarada como uma oportunidade para exercer a liberdade e escolhas positivas (como trabalho, inovação, expressão, realização, organização, partilha, colaboração, etc.) ou negativas (como a delinquência, frieza, egoísmo, guerras, destruição, vandalismo, boato e desordem).

É uma questão de escolha e de partilha das mesmas. Ao revermos a história da humanidade deparámo-nos com muitos exemplos positivos: a invenção da roda há cerca de 5.500 anos, da prensa por Johannes Guternberg no século XV, da fotografia em 1826 por Joseph Nicéphore Niépce, da lâmpada em 1835 por James Bowman Lindsay e Thomas Edison, do telefone por Alexander Graham Bell, da internet no início do século XX, do aço que permitiu a construção de arranha-céus já no século XVIII, a viagem à lua em 1969, a luta revolucionária através da não violência no inicio do século XX por Mahatma Ghandi, o discurso “I have a dream (tenho um sonho)”de Martin Luther King em 1963, o primeiro transplante cardíaco em 1967 pelo Dr. Christiaan Barnbard, a libertação triunfante  de Nelson Mandela em 1990, o início da luta de libertação de Moçambique sob liderança de Eduardo Mondlane nos anos 60,  e a proclamação da independência do país em 1975 por Samora Machel.

No lado negativo, podemos citar as duas grandes guerras, o nazismo, o apartheid, a escravatura, a Inquisição, a Guerra Fria, o terrorismo, a mutilação genital feminina, as seitas do mal, os genocídios etc.

O tempero das emoções

Sonhar a humanidade implica compreender que o ser humano é um turbilhão de vontades, ideias e emoções (risos, lágrimas, zangas e brigas). Exprimir emoções, fragilidades e vulnerabilidades mostra a dimensão humana e desenvolve o espírito de luta. Sem ela a vida fica desprovida da sua “alma”.

Os que sonham a humanidade sabem que as emoções têm um verdadeiro potencial de desenvolvimento, desde que as mesmas sejam vividas com realismo e seriedade, e que sejam exercidas de forma equilibrada e na dosagem certa.

Elas compreendem que quando as emoções são dominadas pelo ódio, ganham um efeito tóxico, incentivam a rivalidade animalesca, inibem a competitividade racional e construtiva, provocam um desperdício de valores e qualidades, e tornam o terreno fértil à mediocridade, descrença, irresponsabilidade, medo, coerção, exclusão, agressividade, cinismo e frieza.

Assim, os que sonham a humanidade, utilizam as boas emoções para combater o desânimo, a intriga, o derrotismo, a indiferença, a passividade e o fatalismo.

Direitos básicos e deveres essenciais

As pessoas que sonham a humanidade dedicam-se à defesa do direitos e deveres essenciais, partindo do princípio que o maior património de um ser humano é a sua dignidade. Entre os direitos mais básicos e elementares para expressão das potencialidades humanas estão a alimentação, a saúde, a segurança, a justiça, a educação, a liberdade de expressão ou a fruição de um meio ambiente puro e saudável.

Conscientes dos problemas que o mundo enfrenta, estas pessoas lutam por os corrigir: cerca de 800 milhões de pessoas vivem privadas do seu direito a uma alimentação condigna; 2 milhões de pessoas estão anémicas, sobretudo devido à grave carência de micronutrientes como o ferro;  2 biliões de adultos padecem de sobrepeso, dos quais 600 mil são obesos; cerca de 11 milhões de crianças morrem, anualmente, devido a doenças que poderiam ser tratadas com medidas de prevenção sanitária (como a malária, cólera, diarreia simples, parasitoses, pneumonia, desnutrição, etc.); 121 milhões de crianças e adolescentes vêm o seu acesso à educação interdito e o seu futuro comprometido; o aquecimento global, o desmatamento, a contaminação do solo, da água e do ar atmosférico ameaçam a biodiversidade e o equilíbrio ecológico no planeta.

Para além de se entregarem a estas causas, elas também se batem para que cada um conheça e ponha em prática os seus deveres: a transparência, o amor, o respeito, a justiça, a caridade, a solidariedade, a colaboração, o respeito pela natureza e pelo ambiente, etc.

A concluir…

Os que apenas se enrolam em torno do seu próprio umbigo permanecem cativos desse minúsculo ponto. São lembrados pela sua rotina corrosiva, seus rastos e destroços, sua ganância desmedida, seu infinito egoísmo e gatunagem.

Os homens que sonham a humanidade e a abraçam em toda a sua plenitude, nas mais diversas áreas e quadrantes, realizam e inspiram acções de progresso, amor, bondade e fé. Mesmo que os seus nomes sejam esquecidos, os seus legados serão reconhecidos, lembrados e perpetuados.

 

Não quero da luz o artifício de uma glória passageira.
Antes a escuridão, com o artifício de uma vida sincera.
JR

Monodia é um termo originário do grego, quer dizer canto isolado. No caso da poesia lírica grega da Antiguidade, bem explica Massaud Moisés, o termo era usado para considerar o poema cantado por um só indivíduo, em especial a elegia, por ocasião de cerimónias fúnebres. Estas são as palavras que sintetizam a escrita de Andes Chivangue, em Fogo preso, uma colectânea de poesia cuja essência habita na manifestação de uma alma turva, conturbada, feita de segregação e muita frieza, como se os versos fossem fruto de uma árvore podre, regada com a urina ingénua das avenidas de Maputo.

Numa escrita compacta, carregada de várias atmosferas densas que no caso fazem o poeta, Fogo preso leva-nos consigo na caravana de trás de uma locomotiva atrelada ao abismo. Ali, estando só e longe de todos, o desafio do sujeito poético é cantar para si, entre o silêncio e o monólogo interior que se ouve. Com esta atitude, os versos tornam-se algo distante da convivência, da alegria e mais distante ainda da felicidade porque isso é algo, de facto, inalcançável. Diríamos que temos nesta obra um conjunto de entidades trancadas no seu universo da palavra por terem percebido que o mundo é uma treta, feito de gente imbecil a esgotar-se na gargalhada do que não foi. E isto incomoda, porque, por exemplo, “A minha geração morre nas encostas do tempo,/ nas páginas de cada livro que fica por ler (p. 24).  

Sendo esta obra literária um bom exemplo da monodia Antiga, faz-se elegíaca, com entidades a queixarem-se do que a vida não é. Simultaneamente, essa vertente poética feita de lamento parece prenunciar uma morte inacabada, qualquer coisa de intangível traduzido por muita aversão à uma realidade, pelo menos, reinventada, a mesma que prende o fogo. Trata-se de uma realidade dura, que o poeta a rejeita com refúgio ao verso. É aí onde ele sobrevive, longe dos artifícios de uma glória passageira, porque para os que habitam nos poemas antes a escuridão, a solidão, se isso conter a sinceridade como recompensa.  
À semelhança do que a escrita de Luís Carlos Patraquim nos habituou, em Fogo preso Andes Chivangue não veicula o impulso que gera sentimentos dos sujeitos poéticos de forma gratuita. Aliás, sendo aquelas entidades parte de si, o poeta vai protegendo a mensagem da sua escrita num gesto, provavelmente, de autodefesa/ precaução. Ainda assim, este livro começa sugerindo que a vida é um tédio e a escrita algo masoquista. Ao longo das páginas, à medida que acaba, a linguagem altera ou alterna, dando espaço à imagem erótica, parca, porém suficiente para romper com a Sibéria presente na maioria dos versos.

Este não é um livro com poemas para serem declamados ou sussurrados ao ouvido. Nem tão pouco. Nesta monodia ao estilo grego Antigo, Andes Chivangue é demasiado pungente para ser doce e meigo.

Título: Fogo preso
Autor: Andes Chivangue
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 13

 

 

Entregou-me uma moeda. Estendi-lhe os balões. Escolheu um. Era amarelo.

Ali mesmo, segurou-o com o trejeito do indicador e polegar. A língua desenhou uma vírgula sobre os lábios, lubrificando-os. Esticou os beiços. Fez um tubo com a boca como se a fosse meter no difícil sistema de canalização de um beijo. Apontou a boca ameaçadora para o balão. Enfiou-a como se o balão fosse um gorro. E assoprou.

O balão respondeu ao sopro. Mas voltou a cair. O puto não gostou. A flacidez desafiava-o. Voltou a assoprar com mais força. Assoprou, assoprou, assoprou. O balão, rendido, inchou, inchou, inchou.
Era um mufana gordo, como aquele do Craveirinha, que “… comprou um balão amarelo e assoprou, assoprou com força…”.

Outro mufana, magro, largou a correria, interrompeu o difícil expediente de brincadeiras, para admirar o balão. O sol, no ângulo poente, acendeu-lhe o olhar. A luz amarelava ainda mais o balão amarelo. O balão já cobria o rosto do gordinho. A barriga inchava e vazava, com a força de empurrar o ar todo para o balão. O balão crescia, crescia, crescia. O magrinho movia a cabeça para cima, cadenciando, à medida que o balão enchesse. A pele do balão esticava e ganhava transparência. O sol atravessava, dispersava a luz e doía nos olhos. O magrinho juntou as pestanas.

Às vezes o ar escapava. O gordinho irritava-se. Dobrava o sobrolho e assoprava o balão teimoso com mais força. O balão não queria mas cedia e crescia, como a barriga do menino. Entusiasmado a dominar o balão, enchia-o a todo o peito. O balão, oprimido, cansado, rebelou-se: puff! Rebentou, como aquele do Craveirinha, em que “… o menino gordo assoprou assoprou assoprou, o balão inchou e rebentou”.

O balão estilhaçou-se. Os putos fecharam os olhos. Sobressaltaram. Saltaram. Levaram as mão à cabeça. Fizeram a cara de susto que fazem os daquela parte do noticiário em que as bombas explodem muito. Caíram.

– Edjê, edjê, a bomba rabentou! – gritaram outros, sem interromperem o que brincavam.

O magrinho riu-se quando viu a cara de susto do gordinho. Riu-se ainda mais quando o gordo, ainda assustado, fez cara de zangado. Ria-se com a boca muito aberta. Rebolando no chão. Agarrando a barriga com uma mão e apontando para o gordo com a outra. O gordinho não gostou e foi-se embora. O magriço pôs-se a recolher os estilhaços da bomba e fez o que fizeram aqueles do Craveirinha quando “… o balão inchou e rebentou. Meninos magros apanharam os restos e fizeram balõezinhos.
Levou o pedaço elástico à boca. Soprou-lhe a areia. Encostou-o aos lábios. Num beijo, chupo-o até fazer um balão pequenino, dentro da boca (os balões dos gordos são grandes e assoprados. Os dos magros são pequenos e chupados). Fez muitos balõezinhos, arrumou-os disciplinadamente sobre um cartão. Olhou para mim. Estendeu o braço como se me servisse, aquele gesto que na língua da rua significa “estou a vender”. Desafiava com os balõezinhos amarelos, os balões inteiros que eu vendia. Dei-lhe um sorriso e ofereci-lhe um balão. Não era amarelo. Sorriu. Foi-se embora aos saltos, como se o sol poente o arrastasse. A silhueta desapareceu na luz. Desejei-lhe, sem falar nada, um feliz dia da criança.

 

A força das circunstâncias é capaz de transformar anões em gigantes

José Eduardo Agualusa

Embora a situação geral da nação mantenha-se firme, conforme assegurou o Presidente da República no seu último informe, a sensatez convida-nos a aceitar que Moçambique vive um momento muito complexo. Se, por um lado, a crise financeira aliada ao alto custo de vida humilha as famílias humildes, por outro, os assassínios (de polícias e ladrões), as explosões de camiões-cisterna, os acidentes de viação, os naufrágios, vendavais, a corrupção e, claro, a tensão militar, são factores que tornam o quotidiano algo estranho.

Ora, ainda que essa estranheza que inquieta tenha certas tonalidades, o cenário não é novo neste espaço-Índico. Há 50 anos, um poeta, que aguardamos pela morte para o pintarmos com pompa de herói, escreveu um texto distinto no vol. II da Poesia de Combate: “Esses tempos estranhos”, de Armando Guebuza, que o recuperamos para entrelaçar um paralelismo temporal. Com efeito, porque esse fragmento do nosso passado não é o único que se impulsiona para o presente, recuperamos, igualmente, outra herança literária: “Súplica”, de Noémia de Sousa. Por cavalheirismo, começaremos pela rapariga da Catembe, por ser a proveniência da excitação que nos mantém firme neste diálogo entre passado e presente. Vamos ver no que dá.  

Em “Sangue negro” notamos que a poesia de Noémia de Sousa não se acaba na literatura. Com ênfase, os versos da “mãe dos poetas moçambicanos”, como bem assumiu Nelson Saúte, são tão relevantes por tudo o que continuam a sugerir, pois, quando os lemos, enxergamos os estragos do chicote nas costas dos oprimidos e as metáforas daí resultantes. Noémia é uma autora prisioneira da liberdade e criadora de esperanças (utópicas) bem verosímeis. O poema “Súplica” é um exemplo de luta para impedir que a convicção de que tudo é possível, quando cremos, caia no vazio. Então, para reforçar o juízo de que a força motriz para a concretização de sonhos é interior ao Homem, logo, desinibido de factores externos, o sujeito de enunciação põe-se a hipotecar tudo a um opressor: “Tirem-nos a terra em que nascemos,// Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,/ a lua lírica do xingombela// tirem-nos a machamba que nos dá o pão,// Podem desterrar-nos”, mas em troca de tudo isso, avança o poema, “deixem-nos a música”, esse conjunto de harmonias que mantém vivo a determinação pela superação.

Em “Súplica”, Noémia absorve as circunstâncias passíveis de macular a relação entre o moçambicano e o seu país: o poder opressor, que consegue nos arrancar das cubatas e do nosso pão. Fazendo isso, na verdade, Noémia esmera-se em ecoar-nos aos ouvidos essa mensagem que calha em “A conjura”: “a força das circunstâncias é capaz de transformar anões em gigantes”, e, com isso, permitir a demolição de qualquer cordilheira dos andes à nossa frente. Neste caso, basta apenas existir em nós a música, isto é, a vida e o desejo de conquistar a liberdade.

Para Noémia, em “Suplica”, nenhum poder é suficientemente forte para nos derrubar enquanto a vida e a esperança coexistirem. Mas o que este poema tem a ver com o nosso presente? Na próxima intervenção, partindo da leitura do poema de Armando Guebuza, esperamos responder à pergunta.
 

Palavras sem algemas

A guerra já come­çou! Uma oração arrepiante que nos faz estremecer na pro­jecção do futuro. Futuro intangível e sombrio que o presente nos faz experimen­tar. Mas, infelizmente, inde­pendentemente do nome que se lhe atribui – “tensão” ou “instabilidade” política -, a verdade é que os tiros ape­nas nos lembram o cenário de guerra que quem expe­rimentou roga a Deus para que essa página da História nunca mais se abra.

A Renamo veio, esta se­mana, reiterar que este mês vai governar. No seu estilo característico, apimentou as condições de diálogo, alegando ser necessário, primeiro, iniciar a governa­ção efectiva nas províncias onde ganhou, gorando cla­ramente a esperança de que haverá diálogo são nos pró­ximos tempos. Portanto, o céu está altamente carrega­do de nuvens negras, pelo que seria tapar o sol com a peneira negar que a chuva vai ser destrutiva. Uma tem­pestade que nos vai propor­cionar capítulos dramáticos de uma série de terror que a vida nos impinge. E que já vimos.

Infelizmente, as palavras proferidas pelos políticos não são suficientes para travar os tiros, nem os tiros são inofensivos para se pre­ferir o silêncio. Dhlakama prometeu atacar em legíti­ma defesa, mas os ataques que vitimam cidadãos na EN1 e em outros pontos do país nada têm que ver com legítima defesa, mas com banditismo de quem os pro­tagoniza.

E quem é o bandido? Todos sabem apontar, mas poucos podem provar. Não apenas o indicador, como os restantes dedos da mão vão em direcção à Renamo como autor dos ataques a inocentes. Mas a inteligên­cia humana atina e recorda que a verdade é a primeira vítima em tempos de guer­ra. E, neste laivo de lucidez, vale sublinhar que se trata de criminosos desconheci­dos, enquanto não se prova o contrário.

Com rosto ou sem rosto dos autores do mal, o coita­dinho da guerra não é nem a Renamo, nem o Governo, mas o povo, cujos presen­te e futuro são roubados, quando, humildemente, luta pela sobrevivência. Por­tanto, nem palavras nem ti­ros. Queremos paz.

Agora, em voz baixa, mas audível: sobre os refugia­dos, deslocados ou pedintes de asilo, como explica o Go­verno para desdramatizar tudo quanto se diz dos mo­çambicanos que estão no Malawi fugidos de Moçam­bique, advogo o combate à desinformação. Indepen­dentemente da cor partidá­ria, etnia ou género, sendo moçambicanos, merecem o amparo da Governo.

E que as vozes das autori­dades que se pronunciam sobre o fenómeno não en­vergonhem a opção do voto da maioria dos moçambica­nos que escolheram o Pre­sidente Nyusi para governar o país. Que os seus homens de confiança acabem com os discursos antagónicos.

Que haja união!

XIPIKIRI

Khô! Foi um som seco. Mudo. O crânio estremeceu. Os ombros saltaram. Os amortecedores do pescoço cederam. A nuca, sacudida, bateu as costas. Os olhos fecharam-se com uma força brusca, como se a cabeça fosse implodir. No rosto a carranca de dor. O elástico dos músculos retesou. Os dedos saltaram das mãos, como se a dor quisesse sair por ali. O tronco curvou-se. O homem encolheu-se. E a dor desceu, desfazendo-se, de vértebra em vértebra, como os dados comunicantes de um dominó.

Era um gotuâna, aquele carolo que se dá, com o braço em martelo, a falange do dedo médio a espreitar, emprestando a mão, a forma pérfida duma serpente pronta para o ataque. O gotuâna é disciplinador e tem o condão da hierarquia. É dado de mais velho para o mais novo, foi por isso que o homem não entendeu, como é que ele, naquela idade, pôde levar um gotuâna… um gotuâna como se fosse miúdo, justamente ali naquele mato grisalho, onde brilha uma clareira de calvície que, ao que se sabe, significa respeito.

Ouvia o trepidar irritante de um veículo a misturar-se aos zumbidos da dor. Soltou as pálpebras e foi abrindo os olhos, devagarinho, à medida que a dor se ia desfazendo. Não reparou na agitação à sua volta, porque a dor voltava, como uma réplica teimosa de um terramoto, latejando ao compasso da pulsação… e o trepidar irritante de um veículo a misturar-se aos zumbidos da dor. Levou, por instinto, a mão à cabeça. Seguiu as coordenadas da dor para alcançar o local do sinistro. Percorreu a careca, com lentidão desesperada. Acariciou a dor, para a acalmar. Uma dúvida martelava: “Quem seria? Quem seria este filho da… quem ousaria desrespeitar esta calvície grisalha com um humilhante gotuâna?”

Manteve-se sentado sobre o caixote. Virou a cabeça, lentamente, seguindo com o olhar, a sombra do provável autor do desrespeito. Nascia atrás de si, de baixo de um sapato preto, sofrido, maquilhado à graxa. As calças da cor de um uniforme conhecido, alheias ao vento. Um cassetete na cintura e um emblema na fivela do cinto. Levantou a cabeça, mas o sol, sobre o ombro do fulano, não deixava ver o rosto. Tinha o punho ainda cerrado, como uma serpente pronta para outro bote de gotuâna:

– Não sabe que não deve vender aqui?

Por entre as pernas magras do agente viu a viatura com motor de trepidar irritante que se lhe misturava aos zumbidos da dor. Na porta, um logotipo, igual ao da fivela do cinto e a escrita com força das letras maiúsculas: POLÍCIA MUNICIPAL. Uma senhora desesperava, enquanto dois fulanos de uniforme atiravam as coisas que vendia para a bagageira do carro. Outra mulher, caída no asfalto, apoiou-se ao lancil do passeio, tentando levantar-se, ao mesmo tempo que recuperava do chão os seus legumes e frutas, equilibrando um bebé às costas.

– Hein? Não sabe?

Quase riu-se quando viu, ainda por entre as pernas magras do agente, outra mamana perseguida por um polícia, ser acudida por um carteirista, que lhe protegeu os bens. Mas não se riu porque os olhos fecharam-se, com muita força, como se a cabeça fosse implodir, quando sentiu a dor inexplicável de outro gotuâna a alastrar-se pelo corpo, e o trepidar irritante do veículo a misturar-se aos zumbidos da dor. Khô!

– Não sabe?

 

Para dominar uma natureza, deve-se, primeiro, aprender a obedecer-lhe

in O nome da Rosa

Fôssemos convidados a dizer de que é feita a alma de um poeta, partindo da Geografia do olhar, de Amosse Mucavele, talvez mencionássemos o desassossego como matéria-prima, a condizer com a incapacidade de se viver calado. Escolheríamos o desassossego não por julgarmos a palavra razoável e nem por nos lembrar Bernardo Soares ou Costley White. Nada disso, a escolheríamos porque nesta odisseia pela versificação o livro impõem-se como instrumento sintético do que caracteriza Maputo, sobretudo, nesta atmosfera feita de reencontros com o quotidiano, num sprint constante.

Em Geografia do olhar, Amosse Mucavele confere poder aos sujeitos de enunciação, ora numa espécie de introspecção, sonhando em viagem, ora num desabafo, pisando o chão na mesma proporção que os personagens de uma estória real, contada em qualquer entroncamento da baixa da capital. Por isso, os seus poemas, predominantemente curtos, herdam o carácter narrativo do que sucede em Maputo, enquanto espaço de urgências no qual é obrigação enfrentar o pesadelo acordado, para que o sonho possa tornar-se no mínimo verosímil.

Destarte, mesmo sem trazer um tema novo, na forma como o poeta explora a cidade, os seus (des)encantos e as angústias ligadas intrinsecamente, esta geografia percorrida com olhar – preenchida com a íris de um transeunte da palavra, combinando traços de um Okapi ou Bata, curiosamente, um poeta e outro contista – vem com um registo assinalável quanto à preservação da relação homem e espaço, onde desaguam desejos há muito transformados na “Guerra Popular”.

Esta iniciativa literária constitui um ponto de partida de regresso ao local em que o leitor se encontra, se for Maputo ou Lisboa, por exemplo, pelos ecos a transbordarem, em jeito de Retratos do instante, imagens e circunstâncias relativas.

Ao escrever este livro, longe do melhor de si, ainda pode voar mais alto, Mucavele levou em consideração a ideia tão apresentada nesse O nome da Rosa, de Annaud, claro, adaptado do Eco: “Para dominar uma natureza [da literatura, neste contexto], deve-se, primeiro, aprender a obedecer-lhe”. Então, logo se vê o poeta a reconhecer, ao longo dos versos, e a obedecer várias naturezas de que ele próprio se completa, autores como Borges das Ficções, a personificação de gostos e preferências.

O campo de visão desta Geografia de Mucavele tem mérito por nos levar a enxergar como as cidades são centros aglutinadores de mágoas, uma larica que consome o corpo, a esperança. O livro vinca essa ideia de a urbe ser uma nau no alto mar sem bússola, feita de vazios, mas sem que isso signifique o fim, porque os sujeitos poéticos vêem o sol em toda a sua glória. E mesmo a propósito do mar, temos aqui entidades a sugerirem que, se o cimento é uma circunstância de angústias, aquele espaço líquido oferece o encanto e o aconchego, portanto, um farol.

É este poeta feito de cimento e água que encontramos reflectido nesta Geografia, um poeta em formação, produto das suas conjunturas, urbano por excelência.

 

Título: Geografia do olhar

Autor: Amosse Mucavele

Editora: Cavalo do mar

Classificação: 12.5

 

Ano de 1994, Estádio da Machava, minuto 90. Chiquinho Conde “tira” dois adversários da jogada, endossa o esférico ao recém-entrado Tico-Tico, que não perdoa. Moçambique, 3-Guiné Conacri, 1. Os mais de 50 mil espectadores presentes, rejubilaram. Na Tribuna de honra, Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama (este pela primeira vez no futebol), dançaram e abraçaram-se, efusivamente. Já lá vão 24 anos.
Será que aquele gesto de paz, após a assinatura dos Acordos de Roma, poderá repetir-se no final da Taça de Moçambique, fecho da época futebolística actual, tendo agora como protagonistas o Presidente Nyusi e o líder da Renamo?

Política e desporto: reciprocidade subestimada

Em países mais desenvolvidos que o nosso, o simbolismo da presença dos mais altos magistrados faz parte da tradição e da história. Por exemplo: em Espanha é o Rei, na Inglaterra a Rainha ou seu directo representante, em Portugal é o Presidente da República quem, obrigatória e tradicionalmente se fazem presentes na Final da Taça para entregarem ao capitão da turma vencedora, o simbólico troféu.
Nós seremos dos poucos países do Mundo em que essa tradição entrou em desuso. Chegou a acontecer na vigência do Presidente Chissano, depois no primeiro ano de governação de Guebuza. A partir daí, por razões que se desconhece, passou a estar em desuso.
Estamos a falar de um “não” casamento em que todos perdem. Porquê? A “obrigatoriedade” do retomar desta tradição seria um sinal inequívoco de que o desporto é um assunto de Estado, símbolo de concórdia e união entre as pessoas, ao mesmo tempo que se valorizaria, através da Festa da Taça com a presença do Chefe de Estado, toda a actividade desportiva do país.
Imagine-se o Estádio do Zimpeto, repleto de alegria, com os adeptos a apoiarem as suas equipas numa tarde  memorável. Todo o mundo galvanizado: jogadores, árbitros, dirigentes dos clubes e da Federação, adeptos com as cores das suas colectividades – e não dos partidos políticos – comunicação social em peso, fotografias para a posteridade!
Uma tarde que poderia, porque ímpar, (re)motivar e ajudar a melhorar muito o tão sedento desporto nacional. Ocasião também para quebrar um ciclo cada vez mais agudo em matéria do desporto, em que os moçambicanos parecem virar as costas à actividade indígena, encontrando motivação e paixão no que se passa além-fronteiras.
No nosso país, dia-a-dia e infelizmente, a tendência é cultivarem-se mais razões para tristezas e cada vez menos motivos para, com abraços e saudações, exaltarmos as virtudes dos nossos melhores executantes!

 

A vadiação é coisa santa, foi inventada por Deus no paraíso
Jorge Amado

Quem acredita que a compreensão do presente depende do passado, tem mais uma razão para ler Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz, novo livro de Adelino Timóteo. Não que esta obra seja feita de fundamentos, nem pensar, mas por encerrar um contexto deveras ignorado, no qual ainda vivem personagens de estórias sobre os prazos do Zambeze e as belas mulheres de uma época a imortalizar.

É verdade que um Borges Coelho, Ungulani e Paradona já foram passear a Tete, tendo retirado das profundezas do grande rio mil eventos de amor, ódio, apropriação cultural, terror e mistério. Mesmo assim, o Zambeze, sendo água, é terra por desbravar. Razões? Várias, não fosse aquele território electrizante ser o encontro e a separação das sociedades patrilineares e matrilineares.

É naquele território que, seguindo a pena de Timóteo, encontramos uma figura incrível, a qual a vida deu a escassa ventura de possuir maridos que conviviam em harmonia mais do que alguns casais monogâmicos de Goengue. Trata-se de dona Luíza Michaela da Cruz, aparentemente ninfomaníaca por não conseguir resistir a um falo cujo tamanho estivesse bem desenhado. Logo, a história desta senhora dos prazos, e deste livro consequentemente, é feita de amores, oficiais e clandestinos, pois no processo da personagem buscar a felicidade o êxito dependia desse carácter possessivo estender-se aos homens a quem se juntava por atracção ou por conveniência. Nada feio, afinal, acreditando no Vadinho, de Amado, “a vadiação é coisa santa, por ter sido inventada por Deus no paraíso”.

A fim de nos contar esta história recuperada do séc. XIX, Adelino Timóteo reconstrói com eficiência peripécias de um cenário constituído de rivalidades entre pretos (entre si) e brancos, na luta pelo poder. E porque “nenhuma fortuna possui o pano limpo” (p. 32), o livro abre alas à honra, que, quando necessário, é lavada com sangue. Por essa razão, a história de Luíza começa logo com lágrimas, causadas pelo irmão Bonga ao assassinar Inominado, seu filho, fruto da relação extraconjugal entre a protagonista e um escravo preto, Fazbem, traindo assim Belchior, um português.

Esta também é uma narrativa de disputas territoriais, bem à imagem dos eventos anteriores à colonização, contada por Livingstone, um missionário inglês cuja tarefa passa por evangelizar os pretos nas terras do Zambeze. Por via daquela personagem histórica, as vitórias e os dramas de Luíza da Cruz são contadas por um narrador homodiegético, essa entidade que nos conta a história na primeira pessoa sem que seja protagonista. Talvez, essa, não tenha sido a melhor opção. Um narrador heterodiegético, portanto, que não fizesse parte do enredo como personagem, seria mais interessante. Quando Livingstone é o centro dos eventos, configurando focalizações omniscientes, há um encanto que se perde em termos técnicos-literários, ainda que isso não comprometa o universo da história. Outra coisa, há demasiada coincidência entre o discurso do narrador – configurado por um missionário iluminado como é o inglês – e os diálogos das personagens, inclusive pretos. Uma clara diferenciação de estilos calhava bem nos relatos.

Os oito maridos de dona Luíza é uma história dos espaços e do que neles se gerou, com o tempo, quase na mesma proporção que Lueji: o nascimento de um império, romance de Pepetela, no qual também se encontra personagem feminina com poder de mandar e escolher o homem que lhe desse vontade de levar ao leito, como dona Luíza, confrontando a tudo e a todos.

Com este romance, constituído por narrativas paralelas, Timóteo vai contribuindo para a multiplicidade literária voltada a uma riqueza cultural que deve ser recontada, demonstrando uma paixão por mulheres poderosas. No livro anterior, foi Cleópatra, resgatada do Egipto. Eis que agora chegou o momento de Luíza da Cruz, do Zambeze, pretexto para veicular mensagens: “o pior na morte não são as lágrimas, mas a hipocrisia que elas contêm” (p. 145).
 
Título: Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz
Autor: Adelino Timóteo
Editora: Alcance
Classificação: 14.5

 

Xi-Cau- Cau

Foram horas de festa encarnada na Praça Robert Mugabe, com carros exibindo a bandeira do SLB, manifestações inequívocas de benfiquismo envolvendo alguns portugueses, mas muitos, muitos mesmo, moçambicanos. A festa no Marquês de Pombal, centro de Lisboa, teve uma filha legítima em Maputo. Idêntica situação seguramente aconteceria se o vencedor da Liga Portuguesa fosse o FC do Porto, detentor de um penta, ou do Sporting, eterno candidato ao “tenta”.
Estamos em presença de um fenómeno comum a várias modalidades e até actividades. Creio, sinceramente, que não fará mal ao Mundo que as actuações das grandes estrelas do planeta sejam por todos vividas e até apropriadas. Vi cidadãos portugueses, vitoriarem Lurdes Mutola a correr por Moçambique como se de uma atleta lusa se tratasse. Em Angola, Cabo Verde e outros países lusófonos, o futebol português é algo incontornável, alterando agendas para ser acompanhado em pormenor. E nem mesmo a anglofonia “escapa” a esta onda de fanatismo, relativamente ao Manchester, Liverpool ou Arsenal.
É também o que acontece na cultura, nas artes e até na ciência.

O “BUSILIS” DA QUESTÃO

As estranhas diferenças, residem no seguinte: nos outros países, sejam eles anglófonos, francónos ou lusófonos, para lá de se vibrar com os triunfos das outras paragens, onde o nível é inequivocamente mais alto, também se sofre, se chora e se explode de alegria, consoante a “doença” de cada um, quando as colectividades ou atletas locais têm os seus desempenhos. Por exemplo: uma eventual vitória no Girabola do 1º de Agosto, Petro ou outra turma angolana, faz parar o trânsito de Luanda, Lobito ou Benguela. Há festa rija, apaixonada e espontânea. Com desfile de bandeiras em caravanas de viaturas.

Porque tudo é diferente entre nós? Que não me venham com a história da nossa má qualidade, pois o campeonato angolano não se situa a um nível acima do nosso. Prova-o, por exemplo, o facto de a nossa prova ter uma equipa na fase de grupos da Liga Africana, ao contrário dos nossos “kambas”.

Portanto Maputo, particularmente, é um caso “sui generis”. Os componentes das claques das principais equipas, em número bastante reduzido, é composta por cidadãos sem grandes posses e sem poder para desfilar com bandeiras e cachecóis. Daí que não seja difícil antever que caso uma das turmas da capital ganhe o título esta temporada, o desfile será, como nas épocas anteriores, de “meia-dúzia de gatos pingados”. Os poderosos, os adeptos das águias, leões e dragões, não terão tempo, nem disponibilidade, para se juntarem aos que se contentam com o nosso mísero futebol “de trazer por casa”.
Felizmente que este retrato, não se replica da mesma forma pelo país fora. Apraz-me constatar a união dos beirenses em redor do seu representante e dos gazenses, relativamente aos seus guerreiros do Chibuto, o que se replica um pouco pelo Norte e Centro do país.
Porque temos – há que o reconhecer – um futebol medíocre comparado com o europeu, os maputenses não se revêem nele. E talvez considerem que quem nele se revê, seja também… medíocre.

Para quem como eu viveu momentos tão exaltantes do nosso desporto, sobretudo o basquetebol, que em femininos até fazia corar de inveja os lusos, é dolorosa esta realidade.  Apetece-me – mas não o vou fazer – gritar a plenos pulmões que este virar as costas tem relação com a auto-estima, ou melhor, com a falta dela. Enquanto o corpo vai “definhando” por cá, o pensamento “esvoaça” por outras latitudes em muitos casos nunca algumas vezes visitadas…

 

 

Sonha como se fosses viver para sempre e vive como se fosses morrer amanhã

James Dean

É bem provável que a melhor receita da vida esteja nesta frase: “Sonha como se fosses viver para sempre e vive como se fosses morrer amanhã”, pois nisso acontece o encontro entre o ideal e o real em plena harmonia. Deve ser esta uma das razões de Carlos dos Santos, em O eco das sombras, ter feito referência a James Dean. E a presença de Dean, aqui, tem nos Passos de magia ao sol, de Mauro Brito, uma justificação, não fosse o livro de estreia do poeta uma “verdadeira alusão” ao conselho daquele “personagem”. Nada de propósito, que nestas coisas da escrita aceitam-se coincidências e, sobretudo, o dialogismo textual há muito apontado por Bakhtin.

Portanto, lembramo-nos de Dean porque nestes Passos de magia ao sol revestidos de muita simplicidade linguística e imagética, Mauro Brito, mais do que tudo, faz o leitor sonhar em direcção ao passado na mesma proporção que ao futuro, levando-o a renascer na beleza infante ou a florescer na presunção de uma maturidade sempre no meio do percurso. Nesse movimento, o autor consegue tornar a poesia, simultaneamente, um acontecimento que nos toca diariamente num conjunto de sensações que afagam a alma nos passos mágicos. Está nisso a lhaneza das entidades textuais, as quais expressam horizontes de um mundo colorido, que lhes habita, estando no exterior. Trata-se de um mundo iluminado de estrelas do céu, preenchido pela água azul do mar, por onde passam navios a chegar e a partir, em constante viagem, daí a necessidade de se ter o poema “Farol” a inaugurar as páginas de uma saudade que começa na leitura, por se saber que ao fim de 28 fecharemos o livro com a mesma vontade de voltar a lê-lo novamente.

Mauro Brito escreveu este livro para um público sem rosto. Talvez não se tenha apercebido disso, mas os versos de Passos de magia ao sol, ao reflectirem uma parte de si, “que o tempo guardou nas gotas de chuva” (p. 06), por isso fértil, converge idades, todas, na circunstância de terem de se livrar da memória natalícia para serem vidas apenas, protegidas por um “cobertor de sonhos” que é o livro.

Este é um livro cuja abordagem vale por ser reinventada, com boas conjugações verbais e óptima selecção das palavras: curtas, claras, impactantes e muito próximas à sugestão nessa relação entre significado e significante. Com isso, Brito dá vida a sujeitos humildes, sinceros, capazes de cativar ao som do verso dito em surdina e de obrigar uma reflexão, por exemplo: “Para quê inventar heróis,/ se o papá e a mama/ já o são?” – os versos são do poema “Os meus heróis” (p. 26).   

Enfim, a obra de estreia de Mauro Brito é um pequeno livro para se ler em família, acomodado na certeza de que a magia poética funciona eminente, como um recurso onírico, quando se dão os passos certos.

 

Titulo: Passos de magia ao sol

Autor: Mauro Brito

Edição: Escola Portuguesa de Moçambique

Classificação: 14
 

A felicidade não tem história, com uma vida feliz não se faz romance

Jorge Amado

Hakuna maguezi (do rhonga, não há luz). Foram estas as primeiras palavras que ouvimos, quando, nesta quarta-feira, manifestamos o interesse de apreciar a nova exposição de Sebastião Matsinhe, patente no Museu Nacional de Arte até 30 de Abril. Como se aquilo pudesse ser uma interdição, não deixou de nos chamar atenção, afinal teríamos de ver “Mistérios da noite” – e esse é o título da mostra do artista plástico – num ambiente, digamos, com efeitos nocturnos, já que as salas com as obras estavam escuras, uma mais do que a outra. Ainda bem que os chineses inventaram uma lanterna tão capaz quanto aquela de um Huawei que a empresa soube e bem oferecer. Assim, houve maguezi, por um instante, o tempo necessário para ver, avaliar e intrometermo-nos na dimensão ou no imaginário do autor que, enquanto fervíamos os miolos, devia estar a gozar a precipitação da chuva miúda no hotel Santa Cruz. Poderíamos ter-lhe ligado naquela altura, rematando-lhe a perplexidade ou algo assim. Mas não, que os mistérios tinham de ser desvendados em silêncio num pacto perpétuo.

Então seguiu-se a odisseia, a qual, logo à partida, deu-nos a emoção e a razão, num nível subtil, em que a primavera anímica dizia-se ser viagem. E tudo aquilo resumia-se na frase do autor baiano: “A felicidade não tem história, com uma vida feliz não se faz romance”. E nem artes plásticas, eventualmente, se nos guiarmos pela presunção de apenas ter a mostra de Matsinhe como modelo. Porque essa obra surge oportunamente para exprimir o sentimento de que a melancolia impõem-se como uma ferramenta distinta na tessitura de qualquer enredo. Isso, misturado com suspense, intriga e mistério, de facto, torna uma obra digna de ser e existir.

Estas telas de Sebastião Matsinhe conseguem conter um impacto acutilante na ordem do pensamento de quem as contempla ou deixa-se levar a um patamar em que a fantasia mistura-se com o impulso gerido pela inquietude interior do autor, arrogante por exigir existência material num paralelismo harmónico com a subjectividade do que se sugere por via da pintura.

Com efeito, “Mistérios da noite” revela-se como veículo que em si transporta várias imagens: a tradição e a natureza, e as suas derivações. Nisso encontramos a mulher, que bem pode estar, igualmente – acreditamos nisso –, a representar o pecado e a terra. No primeiro caso, com tudo o que a inferniza. No segundo, usando das transferências metafóricas já projectadas por Craveirinha naquele velho texto: “Mãe” – na mostra, disfarçado em “Mãe e filho” (2013), por exemplo, pintada, adivinha-se, com sentimentos profundos, daí as cores com tonalidades deveras acentuadas.

Mesmo a propósito de sentimentos, “Mistérios da noite” junta vários afectos, com primazia para o amor que liberta um farol suficiente para iluminar a noite que aqui também sugere o lado sombrio do Homem, incapaz de respeitar a espécie e o meio que a sustenta. Por isso temos, nas seis dezenas de telas aproximadamente, uma com o título “Violência contra a natureza” (2012), colocada com destaque para chamar atenção, com um stop, a conduzir uma introspecção voluntaria. Essa é das telas mais bem concebidas do ponto de vista temático, actual. Na companhia, aparecem as mais belas, como: “Máscara” (2007) – simples e simpática –; “O baptismo da avó” (2016) – uma espécie de passagem de testemunho que conduz à sabedoria agora ignorada por tudo –; “Figura central” (2014) – das mais complexas e incómodas, e bem localizada ao lado de “A riqueza” (2010), com mesmas cores e múltiplas sugestões. Essas merecem lá estar. Existem as que não merecem? Na nossa opinião, certamente. Por exemplo, a tela “A beleza da natureza” (2017), banal, machista e vulgar, por colocar a imagem feminina cruelmente desnudada, de tal modo que nem inspiraria a garrafa de Laurentina Preta. “A biquiri” (2016) é outra descartável.  

Contudo, nesta exposição, feita de acrílico sobre tela, Sebastião Matsinhe leva-nos consigo rumo a um diálogo com o nosso mundo interior, em momentos em que somos dia, por conseguirmos nos manter completamente sisudos, bem como em momentos em que somos noite, pedaços de uma escolha que gera “Fome” (2014) e, depois, uma “Tempestade” (2014) generalizante, como se “Mistérios da noite” quisesse ser um farol, e é, mostrando quem somos e quem poderemos ser.

 

Título: “Mistérios da noite”

Autor: Sebastião Matsinhe

Exposição de Artes Plásticas

Classificação: 13

 

Palavras sem algemas

Sim, sou mulher. Mas por que sou? Desen¬gana-se quem, precipitadamente, responder que o sou porque nasci do sexo feminino. Ser mulher é muito mais do que o sexo, os cabelos trançados, as unhas longas e cintilantes, os batons coloridos nos lábios, as saias e os vestidos, os saltos altos, as bolsas grandes, os brincos que baloiçam com o roçar dos ventos, ou qualquer outro adereço que pos¬sa ostentar.

Quando se aprecia o sexo à nascença, o bebé ganha à partida um destino: o de ser homem ou mulher. Do homem não me iria pronunciar, relegando para outra inspiração. Mas, porque está intrinsecamente ligado ao da mulher, vou fazê-lo.

Ser homem ou mulher é, à partida, uma expectativa social. Portanto, há um conjunto de comportamentos pré-fabricados pelos que têm o poder de definir valores numa sociedade, os quais, uma vez entranhados, se transformam em normas sociais.

Neste sentido, das mulhe¬res, em muitas sociedades, espera-se que sejam boas donas de casa (saber lavar, passar, cozinhar e cuidar do marido). Para isso, tem uma infância que a induz a essa responsabilidade. Brinca com bonecas para crescer a saber cuidar dos filhos, com panelinhas e fogões forjados para saber cozinhar. E tudo gira à volta desta implícita e imposta preparação, sem contar que, ainda criança ou na adolescência, passa da simulação para a acção verdadeira ao participar nos trabalhos de casa.

Do homem, espera-se que seja o provedor da família, garantindo a arrecadação da renda para suprir as necessidades. Colocam-nos a brincar com carrinhos para lhes incutir o espírito de luta pela vida no mundo fora… impingem-lhes a ideia de que homem não chora, de que deve exibir a sua força para parecer valente, etc… e, por vezes, constrói-se um monstro que se apaixona pela violência e pelo crime gratuitamente.

Sucede que as sociedades se transformaram com o evoluir dos tempos e, rapidamente, a mulher começou a desempenhar as tarefas tidas como próprias do homem, mas o contrário ainda é a excepção. E aqui reside a heroicidade da mulher na actualidade – ela consegue, virtuosamente, conciliar o que a sociedade reserva para ela e para o homem. E quando se foca numa só função, o sucesso é ainda maior.
Todos passam por uma socialização pré-definida pela sociedade, embora não faltem excepções. Mas para os que rejeitam as vontades so¬ciais e seguem puramente os instintos, sobra-lhes a sorte de serem percebidos e aceites ou enfrentarem a dura rejei¬ção social.

A todas as mulheres virtuosas, faço-lhes uma vénia.

 

 

Palavras sem algemas

São inúmeras as lições de contos populares que moralizam sobre a importância de nos solidarizarmos com os pro¬blemas dos outros por puro altruísmo. As voltas que o mundo dá provam que muitos dos tropeços da vida são consequência da perspectiva individual de viver a vida.

O país está às cambalhotas. Assiste-se a um coktail de males que ainda sabe bem na ingenuidade de al-guns paladares pouco apurados. Gente inocente que reconhece o sabor amargo, mas desconhece as razões e acredita que a receita se mantém genuína. Um es¬tado de sonambulismo que será duramente quebrado com a pancada da vida quando nada mais houver para beber.

É mesmo assim. O individualismo excessivo, com uma dose de ignorância à mistura, leva algumas pes-soas a pensar que a crise económica em que o país está mergulhado é problemas dos outros, mesmo quando no dia-a-dia sentem que o custo de vida elevado esvazia os bolsos num sopro.

Os dados são tenebrosos. O Investimento Directo Estrangeiro reduziu para níveis de há 15 anos, ao sair dos 7.1 biliões de dólares americanos em 2014 para 1.3 em 2015, segundo revelou o ministro da Econo-mia e Finanças, Adriano Maleiane, que prima pela transparência quando atin¬ge o limite da tolerância da compreensão da omissão. Mas, ainda que apresentada aos bocados, montado o puzzle, a imagem que se vislumbra é triste. Por um lado, é a dívida pública que está próxima da insustentabilidade e sufoca as contas do Governo, colocando a Autoridade Tributária a aplicar mão dura às empresas numa busca desesperada de receitas. Por outro, é a actividade económica que está a abrandar, a factura¬ção das empresas a reduzir, os preços de quase todos os produtos a subir, a tensão político-militar a inibir e/ ou travar a actividade económica, pessoas a perde¬rem emprego e outras sem esperança de o conseguir.

E para amargar mais a vida, a seca que assola a re¬gião Sul e as chuvas no Centro e Norte do país afectam a produção agrícola, dizi¬mam vidas humanas e de animais, levando famílias a migrarem à busca da sobrevivência.

Com tudo isto, há quem acredita que o problema ainda é dos outros. Para este nível de ignorância, cuja cura é a pancada directa, só o Governo pode evitar, salvando o país da queda no precipício.
Moçambique merece sonhar com dias mais color idos , s enhore s governantes.

 

Quanto tempo leva para aprender que uma flor tem vida ao nascer?

Maria Gadú

Vácuos é uma flor a sonhar ser vagem. Bem dito, é o próprio fruto de uma semente fértil por sobreviver a todas intempéries, quais tremores de terra capazes de abalar uma substância constituída pela resistência do vazio. O que mais se perde, quando se está nu, mas verdadeiramente puro?! Eventualmente, nada. Logo, há-de ser por isso que Mbate Pedro (re)escreve o seu quarto livro despido de tudo: das amarras literárias, da pressão da vitória efémera e das expectativas do leitor.

Na condição de um poeta educado, esgotando-se até à exaustão para salvaguardar o pacto rubricado com a escrita, Mbate, nesta proposta, parte para longe a fim recuperar “o barrulho escutado quando uma flor cai lá do alto” (p. 17). Um momento mágico quanto cheio de naturalidade; um momento beleza, em que o chão vai colhendo parte do que melhor gera. No livro, obviamente, quem colhe, o que quer que seja bem feito pelo milagre da gestação, é quem ousa ler a poesia cuja essência habita no jogo de palavra efectuado com suavidade; de palavras comuns, é facto, mas a sugerir sentidos complexos, que nos levam a almejar perceber o que se pretende dizer ou a desistir, deleitando-se pela estupefacção. Porque todos estes vácuos que paradoxalmente preenchem os sujeitos desta composição poética correspondem ao labor da palavra vivida, sentida e partilhada. Tal situação, não passa modesta, pois, do início ao fim, a poesia aqui trazida evolui no ritmo que quase boicota qualquer interesse de se largar o livro. As vozes das entidades enunciadoras tornam-se tão presentes que parecem sussurrar palavras de excitação feitas de mel, a invocar um amor Bethânia, feito de composição cubista (numa renúncia à perspectiva), como diria Caetano Veloso.
 
Estes Vácuos confrontam-nos com uma versificação ponderadamente perfurante e comovente.
 
Se é verdade que o livro nos conduz a um lirismo focado, ganhando corpo num monólogo de quem fala para não minguar calado, não é mentira que os poemas nos dão uma outra dimensão, subjectiva, de ver o mundo real.
 
Nos encantos da palavra em Mbate, descobrimos as impurezas das nossas vestes, os desencantos do que vai mal em casa – que concorrem para estes Vácuos, precisamente – e “o desespero que me é dado a/ assistir nos rostos bafientos e medrosos/ dos poetas novatos” (p. 62). Tudo isto, possuído pela reivindicação de colorir a poesia com a sua matéria-prima, a palavra, nua como a flor a sonhar ser vagem. E é aí onde a poesia acontece, na capacidade que a alma do poeta tem de se livrar dos paraísos terrenos em troca de um lugar santo: perto do mar e longe da cruz.

Em Vácuos, mais do que no livro anterior, Mbate Pedro consegue impressionar ao dar-se mais tempo para pintar as páginas da existência… com uma poesia distante das perspectivas quotidianas. Assim, Vácuos, título inquietante quanto oportuno, solidifica, com efeito, que a angústia e a repugnância podem ser transformadas numa obra que nos preenche o vazio de coisas sãs. Simultaneamente, a macha gráfica e o verso bem dito – com simplicidade, a lembrar-nos que poesia não é escrever difícil –, fazem desta obra um marco a registar. Por isso, discordamos daquela personagem do Jorge: não é verdade que “médico SÓ sabe dizer palavra bonita e ter caligrafia ruim”.

 

Titulo: Vacuos
Autor: Mbate Pedro
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 16

 

XIPIKIRI

– Ntlha!!!

Maússe dobrou a língua em sinal de desprezo. Levantou-se sem pedir permissão. Abandonou a reunião como se saísse duma discussão informal num bar qualquer. O chefe engasgou o discurso. Engoliu o espanto de queixo caído. O rosto, habituado a vassalagens, derreteu a expressão. Os tentáculos desfaleceram, sem reacção, sobre o tampo da mesa. O silêncio estendeu-se pela sala como um elástico tenso, em quase ruptura. Para cortar o silêncio, o microfone acusou interferência e assobiou como uma faca sonora.

– É o quê, Maússe? – Perguntou Fenias, colega e companheiro, em tom e volume de não desrespeitar a solenidade da reunião, chamando-o à razão, quando Maússe passava por ele, disparado para a porta, como um touro enfurecido pelo salário magro.

Maússe respondeu com um gesto curto, grosso e claro: atirou a mão e os dedos para trás, por cima do ombro, num óbvio futseka!, que é como se manda lixar, por estas bandas. A imprensa registou, mas iriam obviamente “desregistar”. Não ficaria bem um futseka ao chefe aparecer na TV.

Mais tarde, porque o principal sintoma da fúria de um funcionário raso é uma estiagem interminável nas goelas, Fenias iria procurar pelo amigo no local mais óbvio: o quiosque da Dona Marta, onde a possibilidade de fiado compensava a qualidade da cerveja.

– O que te deu, irmão? – Perguntou Fenias, dando um gole do copo do colega.

– Estou cansado.

– Do salário baixo? Do cargo anão? Do gigante custo de vida? Estamos todos cansados, mas já nos habituamos. Nós, funcionários públicos, estamos talhados para aguentar.

Fenias falava com palmadas no ombro do amigo. Entornou a garrafa para o copo do Maússe, com o copo na posição certa para não fazer muita espuma.

– Há gente a viver bem, a afundar o país, nós aqui sem salário e mandam-nos desfilar para o 1 de Maio… desfilar sem salário. Poxa! Estou cansado de mentiras – deu um gole infinito

– Mas a mentira sempre existiu, irmão. Este país cresceu sobre a lógica de mentiras. Por isso cresceu. Temos de manter a coerência. A fundação e os pilares deste nosso país têm a robustez da mentira.

– É isso que não concordo: viver por cima de mentiras. Aumentam o salário mas não recebemos o tal salário.

– A verdade, no meio de muita mentira, é falsa e chega a ser imoral. Se diante desta mentira toda em que vivemos, andares a proferir verdades, não vais conseguir viver entre nós.

– Não vou!, eu não vou ao desfile de 1 de Maio.

Maússe encharcou a goela com mais um trago. Fenias não o deixou pousar o copo na mesa. O copo passou da mão trêmula de um para a do outro. Partilhavam o copo como têm partilhado as dores de bolso.

– Esquece isso irmão. Queres ser expulso e perder a reforma?

Deu um gole fundo, profundo, abissal. Ia encher o copo mas a garrafa estava vazia, apenas pingou, ironicamente, um cuspo de espuma. Estalou os dedos a pedir outra.

– Desfilar no dia do trabalhador sem salário – suspirou –, preferia desfilar no dia das mentiras. Trocassem o 1 de Maio pelo 1 de Abril!

O amigo riu-se. Calaram-se. Ficaram ali sentados a olhar para o fundo sem sentido do copo vazio. Maússe levantou o braço e com um gesto cancelou a cerveja pedida. Estava intragável.

Palavras sem algemas

Não é difamação, muito menos injú­ria. Fomos mesmo ludibriados pelo Presidente Nyusi. A desilusão já pas­sou de sensação para realidade, tal e qual pas­sou o período de graça e de paninhos quen­tes. Na avaliação, após um ano e três meses de governação, em matéria de transparência o nosso presidente chumbou. Fez inúmeras pro­messas públicas que não se compadecem com o quotidiano da sua nublosa governação. A pretensão da transparência não se compadece com adiamentos. É imediato. E transparente o seu o Governo não é.

A começar pelo meloso discurso de investi­dura, reproduzido no discurso de tomada de posse do Governo e noutras ocasiões, o Presi­dente Nyusi sempre pregou a transparência, mais para a sepultura do que para a vida, num túmulo já enterrado pelos seu antecessores.

Recordemos algumas das falsas promessas:

“Exigiremos maior eficiência e melhor qua­lidade das instituições e dos agentes públicos que respeitem os princípios da legalidade, transparência e imparcialidade por forma a servir cada vez melhor o cidadão”.

“Asseguraremos que as instituições estatais e públicas sejam o espelho da integridade e transparência na gestão da coisa pública, de modo a inspirar maior confiança no cidadão. Queremos uma cultura de responsabilização e prestação de contas dos dirigentes”.

“Este Governo deve ser comunicativo com o povo. Os membros deste Governo devem enca­rar o acesso à informação como um direito de cidadania consagrado na Constituição e na lei. A nossa acção deve estar alicerçada nos mais altos princípios da ética governativa, como a transparência, a integridade,…”

Hoje, somos alfinetados com informações de que o país se afunda no abismo do endivi­damento descontrolado e insustentável. Uma curva para a desgraça de um povo inocente, cujo único e exclusivo tranquilizante seria a transparência e responsabilização que tanto nos prometeu o Sr. Presidente, quando disse: “Não aceitaremos a violação deste contrato so­cial firmado com o nosso povo. Ninguém está acima da Lei e todos são iguais perante ela”.

Sem este paliativo, como podemos respon­der ao seu apelo de, juntos, edificarmos Mo­çambique? Como podemos projectar o nosso futuro? Sim, gritamos, “Nyusi eu confio em ti”… Mas de que nos vale a confiança às cegas quando vemos as instituições de Bretton Woo­ds a um passo de nos estenderem a mão para o resgate do abismo? Como podemos confiar na sua liderança para reconstruir a esperança de um futuro melhor, com a força da mudan­ça? Quando disse que o povo era o seu único e exclusivo patrão, afinal, que sentido tinha esta oração, para além do valor estético nas colori­das linhas do seu discurso?

Pior, como interpretar o convite que fez aos moçambicanos e aos partidos políticos da opo­sição para, “de forma patriótica e responsável, participarem no processo de fiscalização do novo ciclo governativo”, quando o partido que dirige é o primeiro a negar esclarecer as con­tas do Estado na Casa do Povo? Afinal, o di­nheiro do Estado não é nosso? Sendo, porque não podemos conhecer os destinos que toma quando chega à vossa gestão? Por que conhe­cer parte do estado das contas da nossa casa através de terceiros?

“Queremos que Moçambique continue a ser refenciado como um dos países do mundo que mantém taxas de crescimento elevadas”. Como será possível, se esses países são os primeiro a saber da nossa precária situação financeira?

A nossa pacata condição de cidadãos, atro­fiada pelo individualismo e certa cobardia, está à beira da extinção. A pressão da vida está prestes a roçar o limite da paciência e a activar o estado natural do Homem na luta pela so­brevivência. É mesmo assim, o caos acontece quando a todos tudo falta. Não deixe que falte, Sr. Presidente. Que a boa governação seja, de facto, a vossa palavra de ordem e que fique a lição de não prometer o que não tem.

Alô, senhor Presidente!

Espero que a minha saudação chegue à sua excelência como dose de brasa, para quebrar o gelo e o nervosismo que, com certeza, flui neste

Escultura Maconde

Num breve soslaio, o velho escultor reparou na mancha que se desvelava ao longe e escurecia o chão. Estranhou, mas não deu importância. Poderia ser

+ LIDAS

Siga nos