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O assalto

XIPIKIRI
A chave rodou. O veículo respondeu ao golpe da ignição com um solavanco tímido, mas conteve a precipitação. O motor soltou-se e gemia: hmmmmmmmm! Trémulo, o carro parecia nervoso. O molho de chaves pendurado na ignição tilintava. O escape arfava em suspiro contínuo. Senti uma inquietação súbita, uma quase cócega no peito. A minha mão, instintivamente, tapou a boca. Tossi. A tosse, dizem os sábios que leem búzios e ossículos, é a alma a querer livrar-se de interferências e a recompor-se no corpo.

O painel acendeu avisando das carências do carro. Uma lusinha incómoda indicava gasolina na “reserva”. Mas não há problema, pensei, conheço o carro. Até porque nos dias de hoje poucos veículos se empanturram. Quase todos circulam com o estômago na “reserva”. Voltei a sentir aquela inquietante cócega no peito e a mão em direção à boca. Tossi.

Olhei para o manómetro da gasolina, a tentar calcular, pela distância que o ponteiro baixara do último traço, o que me sobrava de “reserva”. Reparei na forma absurda do ponteiro: parecia um facão. Um facão assustador. Um facão sobre os tracinhos vermelhos que indicam “reserva”. Gume sobre vermelho, estaria o carro a sangrar… a sangrar combustível? Levei a mão a boca, mas não para tossir: aquele gesto involuntário que ajuda a pensar, para perceber a ferida do veículo.
O escape suspirou em aceleração discreta. Pelo sim, pelo não, decidi ir abastecer sem maltratar o bolso. O carro, contornou os buracos de que o tapete da estrada é feito. Os pneus arrastaram o chão como se o chinelo de asfalto fosse uma enorme sola de borracha. Atravessou o trânsito entupido à velocidade de poupar gasolina. Atracou, finalmente, no bom porto da bomba de combustível, a agonizar. Com o carro assim ferido eu cuidava para não o magoar, de tal forma que, evitando movimentos bruscos, segurei a tosse.

A chave rodou em respeito ao sinal de “desligue o motor”. O veículo estremeceu. As luzes do painel apagaram-se. O ponteiro facão de gasolina não arreou porque já estava caído ao limite. O manómetro continuava a sangrar. O motor calou-se. A mangueira da bomba, enrolada ao jeito de uma serpente venenosa, olhava para mim com o bocal a salivar combustível. O homem das bombas aproximou-se, arrastando as botas à passo que se sabe, esforçando-se para preencher o uniforme. Eu tinha de aguentar a tosse até encher o tanque e o ponteiro, o facão, subir e parar de espicaçar aquela ferida.

Desenrolou a mangueira como se adestrasse uma enorme serpente. Bateu no vidro que eu me distraíra de abrir, para me perguntar “de quanto?”, enquanto eu rebuscava o fundo da algibeira e mexia, com a mão livre, o manípulo que abre a tampa do tanque.

Foi ali que percebi que era um assalto. Na mão direita do homem, o esguicho da mangueira era um pistola, tinha o dedo no gatilho e disparou: “sabe que combustível subiu, né?”.

No peito todo o escarro acumulado revirou-se, implodiu num engasgo e deu em tosse interminável, enquanto o assaltante, calmamente, enchia o tanque até onde os meus trocados permitiram.

 

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