Num breve soslaio, o velho escultor reparou na mancha que se desvelava ao longe e escurecia o chão. Estranhou, mas não deu importância. Poderia ser a sombra furtiva de uma nuvem distraída. Prosseguiu com a aula:
– A arte é feminina – disse ao neto, seu pupilo, enquanto esculpia –, por isso deve ser tratada com a mesma delicadeza que as mulheres: duras, mas frágeis e preciosas – acariciou o tronco áspero.
De cócoras, sobre o poeirento chão maconde, os músculos contraiam-se e saltavam ao ritmo das marteladas. Falava e respirava no mesmo compasso, como se as esculpidas comandassem a cadência do seu fôlego.
– Fazer escultura, meu neto, é como desvendar mistérios de uma mulher – continuou limpando com as costas da mão, no rosto suado, salpicos de madeira. Voltou a olhar para o horizonte e percebeu que a mancha escura estava maior, sinal inquietante de que estava a mover-se na sua direcção. Mas voltou à aula:
– A madeira, antes de despi-la tens de mimá-la até amolecer – acariciou novamente o tronco áspero –, depois segura com firmeza o cinzel e, sem magoá-la… – completou a frase com uma martelada seca. Lascas soltaram-se e caíram, como peças de roupa feminina, despidas à pressa.
– A escultura maconde é exigente. Ela tem de te aceitar – fez outra pausa em respeito ao vento que, com um remoinho inofensivo, acariciava as lascas caídas.
– Assim como as mulheres, tens de seduzi-la. Quando estiveres a esculpir fala com a madeira – acariciou-lhe novamente a superfície áspera.
– Mas fala na nossa língua, maconde, não em línguas importadas, para que ela te perceba. Faz-lhe promessas e conta-lhe as histórias ao ouvido. Então ela vai sorrindo e essas histórias vão ganhando vida, dando forma à escultura.
Parou de falar quando percebeu que o miúdo não prestava atenção. Olhava, com o sobrolho franzido, para mancha que escurecia o chão. O velho pestanejou e voltou o olhar desfocado para o fenómeno, alarmantemente mais próxima. O neto, com as lentes da visão melhor calibradas percebeu, pelo revérbero subtil, que aquilo era humidade.
– O chão está molhado, avô.
O velho calou-se, como a experiência ensina que se deve fazer diante do desconhecido. A mancha era escura. O escuro e o desconhecido despertam temores inexplicáveis. As sombras estão cheias de fantasmas. Levantou-se, por precaução, porque o instinto ensina que a ter de enfrentar ou fugir, que seja de pé.
– São cheias? São cheias, avô?
– Não! – respondeu sem tirar os olhos da humidade.
– Este rio – virou a cabeça para o rio Rovuma – não é como os rios do sul. Quando se zanga, não enche. Seca.
De tão perto já se percebia o chão molhado a borbotar e no ar um cheiro forte, metálico:
– Sangue! É sangue avô! O chão esta a sangrar.
O velho viu, para além do sangue e areia, pedras reluzentes e gotas de óleo negro. Começou a desconfiar que os mitos contados ao redor da fogueira sobre as pedras e os óleos daquele solo fossem verdadeiros, e temeu que por esses óleos e pedras tivessem ferido a terra até fazê-la sangrar, como dizem as lendas.
– A escultura maconde carrega a nossa história, sonhos e esperanças. Não pode molhar. Vamos!
O velho levou a escultura, com o cuidado e ternura que se leva um filho ao colo. Assim ao colo, o neto percebeu que a escultura tinha forma delicada de uma pomba. Recolheu as ferramentas e correu para alcançar os passos trêmulos, mas largos, do avô.
– Corre!
Com o coração acelerado, fugindo do desconhecido com a escultura ao colo, o velho ofegava. Os calcanhares batiam na secura do chão maconde e ressoavam como um tambor aflito. À medida que as pernas impotentes falhavam, sentia aquela humidade a alcançá-lo: o chão frio e pastoso, os dedos a atolarem. Escorregou.
– Corre avô.
Caído, o avô esbracejava como um nadador desesperado. Os braços debatiam num esforço inútil. O chão de sangue e areia o engolia como areia movediça.
– Não a deixes morrer – gritava agoniado o velho, apontando para a escultura.
Entre a necessidade de se salvar e a impotência para salvar o avô, o miúdo abraçou a escultura e correu. Os pés afundavam no chão lamacento. A cada rápido olhar para trás via o avô cada vez mais distante, agonizando últimas braçadas contra o chão viscoso. Chorava. Soluços desesperados misturavam-se ao cheiro metálico do sangue e ao eco dos seus passos empapados. Parou de chorar, para não inundar ainda mais o chão com as suas lágrimas.
Quando o cansaço e a força da lama já limitavam os seus passos, olhou para trás pela última vez, já não viu o avô. Era só chão e sangue. Olhou para a escultura que lhe escorregava dos braços e teve a impressão que a vida era uma escultura maconde inacabada.
– Voa! – gritou em vão, para a pomba esculpida, quando começou a sentir-se envolvido num abraço frio, sombrio. Era a terra húmida de sangue, que o engolia lentamente.