“Querer ser livre é também querer livres os outros.”
Simone de Beauvoir
Afigura-se-me que o homem de bom senso seja aquele que não teme compreender as coisas, independentemente do fardo que resulte disso. Mais do que uma faculdade, a compreensão é uma disposição mental para aceitar o sentido menos subjectivo dos factos. E não é, deveras, fácil configurar essa disposição de compreender o sentido dos fenômenos numa circunstância em que somos arguidos, ou seja, é difícil estar disposto a compreender quando é a sua tese que está em debate. Quanto mais interesse manifestar sobre um determinado objeto, mais intolerante te tornas a novas alternativas. É como um amante que, uma vez enamorado por uma amada cruel, se arrisca a sofrer todo tipo de repúdio a ser dissuadido a livrar-se do encanto. Por isso, para compreender é mister perder interesses particulares sobre o objeto. Isto é, torna-se imperioso marcar um distanciamento emocional e livrar-se de quaisquer segundas intenções se quiseres uma compreensão menos subjectiva em que é o intelecto que se adequa às propriedades do objeto, e não objeto forçado a adaptar-se às condições do intelecto.
A filósofa Hannah Arendt é um dos exemplos mais elucidativos sobre o fardo que o acto de compreender comporta, quando esta mulher judia que foi vítima de repreensões anti-semitas foi capaz de inferir que não há matéria jurídica para condenar-se os oficiais nazistas que empurraram milhões de judeus a câmaras de gás. Isto porque na Alemanha hitlerista não constituía crime exterminar judeus. Eles haviam criado o seu próprio o mundo e definido o que era crime e o que era justo, cabendo, deste modo, a todos alemães cumprir a lei. É assombroso ver as coisas desta maneira, sobretudo, quando dentro do enredo em análise ocupas a posição de vítima. Mas é a assim que o processo de compreender devia ser conduzido, livre de manipulações e sensacionalismo dos factos.
Deste modo, quando nos pomos a compreender, declaramos ao mesmo tempo guerra contra o preconceito. Ou seja, o acto de compreender em si já é uma desconstrução de todo o tipo de preconceito que havia ganhado um espaço na mente, atravancando-lhe a progressão a novos horizontes. Todo e qualquer preconceito é, de certo, o efeito de uma ferrugem na nossa mente. Uma mente que labora não abre espaço para a consolidação de um juízo concebido de modo acrítico. Pensar é, por conseguinte, desconstruir velhos hábitos mentais em busca de novos sentidos.
É tão prejudicial à mente quanto é perigoso para o mundo que a humanidade continue a guiar-se de ideias velhas com isenção a dúvidas. O perigo final de uma humanidade acrítica estaria em proferir sentenças antes do julgamento.
Urge sempre julgar antes de condenar, pensar antes de agir, escutar antes de falar. É mediante estas precauções que julgo ser importante compreender o ser gay no mundo. Em quase todos os cantos do mundo, indivíduos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) sofrem perseguições e descriminações devido à sua estranha orientação sexual. Mas será que já pensamos com afinco a condição dos LGBT no mundo ao ponto de adoptarmos uma dada forma de tratamento para com eles? Os nossos juízos sobre os LGBT serão uma herança sócio-cultural com interesses implícitos de proteger o mundo contra a complexidade de que é feita a realidade? Se assim o for, então como humanos procedemos mal, pois não podemos fundamentar a nossa relação com gays a partir de um preconceito sócio-cultural ou histórico desprovido da crítica do nosso próprio pensamento. A forma justa de julgar a condição dos homossexuais no mundo não se deve basear em princípios sócio-culturais incluindo a religião, pois estes elementos variam de espaço a espaço geográficos. No mundo, há sociedades, culturas e religiões tanto mais homogêneas como mais heterogêneas. Sendo assim, se tivéssemos que julgar a causa dos gays, teríamos sentenças dispares em diferentes locais sócio-culturais. Seriamos forçados a compreender a comunidade LGBT em função de como nós fomos criados pela família, sociedade e religião. Julgando deste modo, seriamos de seguida forçados a condenar toda a humanidade homossexual em geral, por meio de instrumentos particulares que são a família, a sociedade, a cultura, a religião, o Estado, etc. Precisamos basear o nosso julgamento em um denominador universal. Algo comum a todos os homens que é a razão. Somente a partir do exercício da faculdade racional, somos capazes de julgar os gays em si, não como eles são sob o ponto de vista da nossa cultura, sociedade e religião que nos são elementos relativos.
Para objetivarmos o debate sobre o ser gay no mundo, proponho de seguida três questões que julgo ser justas para um livre raciocínio. Primeiro: uma pessoa é nascida gay ou se torna gay? Esta questão afigura-se difícil de responder, pois a ciência ainda não chegou ao nível de decifrar códigos genéticos ao ponto de nos informar sobre uma provável configuração de orientação sexual. Se nos desse esse conhecimento, estaríamos certo que pelo menos se nasce gay ou não. Entretanto, o facto de não podermos ainda averiguar a orientação sexual a partir da estrutura biológica não nos é razão suficiente para inferirmos que os homens não são nascidos gays, mas tornam-se gays com tempo. Tal conclusão careceria de evidências, visto que a refutação da hipótese X não é suficiente para validar-se a hipótese Y. É certamente preciso que se traga provas existencialistas que demonstrem que homens são movidos a tornar-se gays pelo tipo de ambiente em que vivem. Mas já se ouviu algures que há homens que escolhem ser gays como forma de ganhar dinheiro ou sobreviver. Para este tipo de caso, é importante notarmos que este homem que se submete a actos de homossexualismo para conseguir dividendos não pode ser identificado como gay, pois a sua entrega ao mundo de homossexuais não é livre e voluntária, mas forçada pela falta de condições financeiras. Isto quer dizer que uma vez suprida a necessidade de dinheiro, o indivíduo poderia abandonar a vida de gay e retornar à condição primária de um heterossexual. Mas ser gay não pode compreender ser impostor. Indivíduos que praticam actos homossexuais não por livre vontade não passam de falsos gays. Não basta que um homem faça sexo com outro homem ou uma mulher com outra mulher para que possam ser considerados gays, é necessário que o acto sexual tenha resultado de um desejo erótico entre ambos os indivíduos. Caso contrário, então seria legítimo que um indivíduo que fosse estuprado por outros homens fosse considerado gay só porque fez sexo anal. O desejo erótico por um indivíduo do mesmo sexo é o pressuposto imprescindível para que alguém seja considerado um homossexual. Sem desejo erótico não há determinação de orientação sexual. E donde nasce o desejo erótico? Do inconsciente ou consciente? Ou seja, o leitor é capaz de dizer se, em alguma parte da sua vida, precisou escolher a sua orientação sexual ou isso sempre esteve a cargo do instinto. Eu julgo que os homens não tiveram nenhuma fase da vida em que tivesse de deliberar a sua orientação sexual, antes de ter o desejo erótico. Parece-me que a orientação sexual não é determinada pelo consciente ou reflexão, mas pelo instinto sexual, pelo acontecer. Um bastou olhar ou tocar para apaixonar-se. E não que “um bastou pensar na Bíblia que diz que o homem e mulher foram feitos um para outro” para, depois, ter desejo sexual por uma mulher. O desejo erótico acomete o homem independentemente do que a sociedade, o Estado, a religião diz sobre relações sexuais. O homem só refreia o desejo sexual quando se encontra num ambiente hostil em que a tolerância seja zero, mas nunca precisou consultar a razão ou a sociedade sobre que gênero ele devia sentir atração sexual – o desejo foi sempre espontâneo como o de um gato que não precisou esperar que a mãe lhe dissesse que era tempo de perseguir o rato. Viu, logo, correu atrás. Esta ordem de ideias nos leva a inferir que o homem já nasce com instinto sexual por um determinado gênero. Se não somos nós quem define a nossa própria orientação sexual, então não nos tornamos homossexuais ou heterossexuais, nascemos já definidos. Ficamos somente à espera de uma ocasião para despertar o desejo erótico, sem nos surpreender com isso, de tanto natural que nos é. O argumento de que o tipo de infância que vivemos quando pequenos pode configurar ou adulterar a nossa orientação sexual é dúbio, pois as experiências infantis não são lineares ou coerentes no sentido de que uma criança que tiver sido tratada desta maneira vai infalível ou provavelmente adquirir um comportamento sexual desta natureza. Isto é, há adultos que, não obstante tenham, durante a infância, sofrido algum tipo de abuso sexual ou brincado de coisas de meninas, são heterossexuais, bem como há adultos homossexuais, mas que, quando crianças, os pais tiveram todo o cuidado de educa-los como rapazes e não como raparigas, de tal forma que a família chega a surpreender-se quando descobre a inesperada orientação sexual do filho. Para alguns filhos, a orientação sexual como um dado nato, chega a transparecer durante a infância sem ter tido sofrido nenhuma influência dos pais. Às vezes, numa família de três meninos, um deles mostra-se mais entusiasmado em brincar com bonecas e não com futebol ou outros jogos mais apreciados pelos homens. Nestes casos, há razões suficientes para se dizer que é a natureza por excelência a expressar-se e concluir-se que o homem não se torna gay ou heterossexual, mas já é nascido assim.
A segunda questão: pode mudar-se a orientação sexual de um ser humano? Julgo imprescindível a resposta para esta questão antes de ditar-se a sentença de uma pessoa LGBT. Se admitirmos que há mecanismos pelos quais se pode transformar um homossexual em um homem heterossexual, então deve-se também aceitar que o caminho inverso é possível: um heterossexual tornar-se homossexual, pois em ambos os casos estamos a lidar com orientação sexual. Caso haja tais mecanismos capazes de mudar as vontades eróticas dos homens, torna-se, portanto, sensato converter-se os gays em heterossexuais e considerar-se o homossexualismo uma anomalia. Deste modo, pelo menos, ter-se-ia como base de argumentação a reprodução da espécie humana e a combinação perfeita dos órgãos genitais entre homem e mulher para justificar-se que todos os homens sejam heterossexuais. Entretanto, observando-se a história dos homens, ainda não se encontrou essa fórmula mágica de curar os indivíduos de homossexualismo. Do que se sabe são histórias de homens que passaram uma parte da vida ocultando a sua verdadeira orientação sexual, por temer a descriminação social e, ou, familiar. Em certos casos, estes homens camuflados chegaram a construir família com mulheres de quem não sentiam nenhuma atração libidinosa. Se chegaram a sentir tal desejo sexual por mulheres e, mesmo assim, posteriormente sentiram uma atração pelos homens, é mais provável que se trate de um caso bissexual. Porém, julgo inconcebível que um homem que tenha sido domado pela vontade de possuir uma mulher, perca de vez essa volúpia e seja domado pela vontade de possuir outro homem. Esta metamorfose do desejo sexual afigura-se-me improvável de acontecer, excepto na condição de um ser bissexual que deseja simultaneamente dois sexos. Normalmente, o homem ou mulher homossexuais experimentam, em algum momento da vida, uma confusão de orientação sexual, não porque sejam domados por uma vontade bissexual, mas devido ao meio fortemente sócio-heterossexual em que se encontram. Eles sentem-se obrigados a forçar o gosto pelo sexo oposto e reprimir o gosto pelo mesmo sexo. Mas porque a natureza é inalterável, porém camuflável, chega uma fase em que o indivíduo não mais consegue conter os seus instintos sexuais e decide desafiar o mundo, saindo do “armário”. Sobre este fenómeno, estaríamos enganados se pensássemos que o mesmo indivíduo teve duas fases da vida em que alternadamente sentiu desejo sexual tanto pelo homem como pela mulher. A mudança de orientação sexual é, por enquanto, impossível, salvo em condições futuras em que o conhecimento genético poderá estar avançado para adulterar os instintos sexuais.
Terceira questão: qual fim último do homem na vida? Ou seja, o que há de comum que os homens buscam em todas as suas actividades? Uma reflexão profunda já feita por Aristóteles deu como resposta “a felicidade”. Embora plausível, esta resposta é ainda discutível, pois por mais exótico que seja nem todos os homens colocam a felicidade como uma prioridade na vida. Há gente que prefere ser um génio preocupado a ser um simplório feliz. São excepções raras, porém reais. Mas, em geral, os homens sentem-se mais cômodos em fazer coisas que lhes causa prazer e não dor. E, por conseguinte, se entende que a vida só faz sentido quando há cumprimento da vontade e não a sua constante repreensão. Desde modo, urge perguntarmo-nos se, de facto, vale a pena impedir os gays de viverem felizes devido à sua orientação sexual que fere com nosso padrão social? Seria o mundo um lugar pior se permitíssemos que os indivíduos buscassem a felicidade à sua maneira, desde momento que respeitassem a nossa? Todo o esforço que exerceremos no combate contra LGBT afigura-se-me vil e mesquinho perante a felicidade – um direito natural de todos os homens. Julgo um crime contra humanidade condenar indivíduos LGBT à soledade, quando com ou sem eles, a vida dos indivíduos heterossexuais continua normalmente. Julgo injusto o apelo à extinção dos LGBT, por meio de discursos de ódio, quando a vida é já tão complicada quanto breve. O mundo é feito de pessoas diferentes. Os LGBT não ameaçam a condição dos heterossexuais no mundo de modo algum. Tudo quanto pedem é o direito de amar em função da sua orientação sexual. É ainda por esta razão que os transexuais se submetem a cirurgias para conseguir adequar o seu corpo à sua orientação sexual. O que, deveras, se nos afigura monstruoso: uma mulher no corpo de um homem ou uma mulher num corpo feminizado? Nós somos pensamentos e sentimentos. Se temos desejos e imaginações de machos é porque somos essencialmente homens. E, se assim, preferirmos, devíamos mudar o nosso corpo em função dos nossos desejos e pensamentos. A alma facilmente experimenta a felicidade quanto mais cumprir com a vontade da sua natureza.
Conclusão: se o homem nasce já com orientação sexual predefinida, e não a pode alterar e, em geral, a coisa mais importante na vida é a felicidade, então as pessoas LGBT merecem viver livres. E mesmo que as pessoas LGBT pudessem escolher a sua orientação sexual, se isso lhes causa satisfação e de modo algum ameaça a condição dos heterossexuais no mundo, que sejam permitidos ser livres. O mundo é feito de pessoas diferentes.