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ARTIGOS DE OPINIÃO

A lendária paixão de Freddie Mercury pela voz e pelo belo canto de Montserrat Caballé está na origem de um dos mais fascinantes encontros no universo da música do século passado. Desde que a viu cantar Giuseppe Verdi, em 1981, na Royal Opera House, de Londres, que o cantor popularíssimo dos Queen alimentou o sonho obsessivo de cantar com a diva catalã. Ele fora ver Luciano Pavarotti, outra figura legendária, mas saíra dali obcecado pela cantora lírica. Anos depois, em 1987, para a convencer, depois de muitas investidas sem sucesso, através de emissários, instalou-se, com uma equipa de som e um piano, no Hotel Ritz de Barcelona, e cantou, quando ela assomou, “Exercises in Free Love”, fazendo os falsetes que haveriam de corresponder à prestação de Montserrat, caso ela assentisse. Nasceu assim a mais improvável das parelhas: ele diria, zombando dela, afectuosamente, que a tinha transformado numa espécie de “rock star”. Esta afirmação não deixa de ter algo de verdadeiro. Agora que Caballé viaja para o planeta onde está Mercury desde 1991, é, recorrentemente, lembrada por esta parceria. Não há nenhuma injustiça nisso. Ela já era a grande voz. Considerada por muitos a maior do século. Talvez, sim, com uma ressalva: Maria Callas seria a soprano de todos os tempos. José Carreras (na verdade Josep Carreras) diria que nunca havia visto ninguém cantar como Caballé. O facto de Freddie a considerar a mais bela voz do Mundo não era apenas uma estratégia de sedução. Isto num tempo anterior aos famosos duetos do próprio Pavarotti com outros tantos cantores.

Freddie Mercury e Mike Moran (e Tim Rice) compuseram as belíssimas músicas que constituem o disco “Barcelona”, que uniria para sempre a soprano catalã e o líder dos Queen. Esse encontro é um verdadeiro milagre. Acontece uma alquimia feliz e uma empatia irrepetível. A letra de “Barcelona” traduz esse sonho de Mercury. “I had this perfect dream/ This dream was me and you/ I want all the world to see/ A miracle sensation/ My guide and inspiration/ Now my dream is slowly coming true.” A faixa “Ensueño”, que corresponde ao originalíssimo “Exercises in Free Love”, é outra das epifanias. Ao ouvi-los a cantar esta música compreende-se o poder do sonho e a força persuasiva de Freddie, excessivo, exuberante e vibrante: “Tu voz penetra em mi/ Vibra en ti/ Vibra en mi”, cantam em castelhano, acompanhados de piano, como fizera o cantor inglês no Hotel Ritz de Barcelona, quando a arrebatou.

Eu tenho ouvido recorrentemente esta música e este belíssimo disco. Eu tenho uma paixão obstinada por Barcelona, pela cidade, por estes dois cantores. Antes de “Barcelona”, conhecia modestamente Montserrat Caballé, ouvira falar dela, via referências quando ia a Madrid, onde vivia a Ana Juliana. Eu ia amiúde a Madrid e os nomes de Montserrat Caballé, José Carreras e Plácido Domingo eram comuns. Ouvia-os com frequência, mas não tinha a mesma paixão, quase insana, que nutria por Freddie Mercury, que era e é o meu cantor de culto. (Na época também tinha um amor excludente pela Maria Callas. Ainda hoje a oiço. Sobretudo “Carmen”, de Georges Bizé – “Habanera”, como ficou conhecida a ária “L´amour est un oiseau rebelle”). A reunião dos dois sob o signo da cidade condal impõe-me, desde então, essa trilogia indisfarçável: Montserrat Caballé, Freddie Mercury e Barcelona. Quando o cantor inglês morreu, em Novembro de 1991, o primeiro pensamento que tive foi de que ele não cantaria mais com a Caballé nos Jogos Olímpicos de Barcelona, no ano seguinte. Inadvertidamente fizera o hino da cidade a partir do seu génio e da sua fixação pela voz e pelo canto de Montserrat. Ela já era um mito, mas esta parceria fê-la muito mais conhecida no Planeta.

Agora oiço-os de novo. Impossível falar deles sem falar da “cidade dos prodígios” e do meu amor literário, também obsessivo e implacável pela cidade. Levei muitos anos antes de ler o notável romance de Eduardo Mendoza – A Cidade dos Prodígios. É um dos livros que mais me enlevou na vida. Um belíssimo romance. Lera antes um livro que concitara leitores e que me parecera, também, de algum modo, prodigioso: A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. Tenho os livros de Juan Marsé para ler. Tenho, no entanto, lido e relido o poeta Jaime Gil de Biedma, de quem sou um incondicional admirador.

O escritor irlandês Colm Tóibín escreveu um dos livros mais belos sobre a cidade – Homenagem a Barcelona. O título acena para um título mítico – Homenagem a Catalunha -, de George Orwell, que relata a experiência do escritor inglês sobre a guerra civil espanhola. Aliás, as páginas do próprio Tóibín sobre esse tempo sombrio da guerra são brilhantes. Para além disso, as páginas sobre o tempo da República ou as que falam do Bairro Gótico, de Picasso, de Miró, de Gaudí e ainda da geração de 1992, para resumir, são igualmente excitantes.

Cheguei a Barcelona de comboio, numa viagem remota.  Sonhara durante anos com a cidade na voz de Caballé e Mercury, que oiço esta noite, que oiço repetidamente, que oiço obsessivamente, num incessável arroubo. “Barcelona”, na voz deles, tem um efeito mobilizador para mim, dá-me ânimo, é uma espécie de tónico. Quando exulto, grito: “Barcelona!” ou procuro pelo vídeo desta música na Internet. Seja por que razão for. É o efeito catártico da voz poderosa do Freddie cantando com a imensa Montserrat. É como se o apelo que está contido na letra e na voz de Mercury me transportasse para outra galáxia.

A cidade de Antoni Gaudí colheu-me de espanto desde o primeiro momento. Tenho um poema algures, publicado primeiro no livro A Cidade Lúbrica, dado à estampa em Bolonha, em Itália, em 1998, nunca publicado aqui, onde falo da minha fuga perante o espanto daquela monumental obra. Retomei esse poema no livro A Viagem Profana, de 2003, que resgatou alguns poemas daquele livro anterior. O poema termina dizendo: “Saí da Catalunha a fugir/ não sei se de mim ou de Barcelona.”

A Sagrada Família é incontornável. Talvez seja o monumento de Barcelona, sendo que a cidade não está desprovida de monumentais obras. De Gaudí e não só. Aliás, esta igreja representa aquilo que a criação se permite a um espírito completamente desvairado. É a loucura genial de Gaudí. O arquitecto morreu atropelado em 1926 e a obra ainda hoje prossegue com desassombro. Já a visitei diversas vezes e sempre me empolgo ali. O génio humano e o toque divino encontram-se naquele projecto. Não o sei descrever. O meu vocabulário é, por certo, incompetente para o fazer.

Já que temos o Gaudí à mão: falemos de La Pedrera e Casa Batló, dois marcos arquitectónicos da cidade, em pleno Passeig de Gràcia. Eu gosto do Passeig de Gràcia. Gosto de ali estar. A beleza, a beleza, a beleza. O esplendor do Bairro L´Eixample. Há quem goste mais do Bairro Gótico. Aliás, Colm Tóibín, na sua Homenagem a Barcelona, traça páginas belíssimas sobre o Bairro Gótico. Gosto de passear pelo Gótigo, mas o Passeig de Gràcia é o Passeig de Gràcia e está tudo dito. É como estar na Quinta Avenida em Nova Iorque, no La Spiga em Milão, na calle Serrano, em Madrid.

O Bairro Gótico testemunha a cidade como um dos guardiões do gótico na Europa. Os modernistas, como Gaudí, revêem-se no gótico e nele se inspiraram para as suas arrojadas criações arquitectónicas. Este bairro é o repositório de uma época do florescimento da cidade. A Catedral ou mesmo o Palau de La Generalitat são imperdíveis.  Também gosto de andarilhar por La Ribera. Esta cidade tem mar e isso faz toda a diferença. O templo de Santa Maria del Mar ou o Mercat del Born. O Museu Picasso e o incrível Palácio da Música Catalã são igualmente imperdíveis.

Ainda não me referi a Rambla e isso parece indesculpável. La Rambla deriva do árabe “areia”. Esta ampla avenida era um ribeiro que se estendia até ao mar. Quando secava transformava-se num extenso areal. A Rambla tem cafés, tem artistas, tem vendedores ambulantes, tem charlatães, tem vendedores de todas as ilusões, tem encantadores da noite. É a movida catalã, de manhã, à tarde e à noite. A Praça da Catalunha, no alto da Rambla, e o monumento a Cristóvão Colombo no final da mesma.

A primeira vez que ali cheguei, saí da boca do metro e fui, literalmente, tolhido pelos sons apátridas de músicos oriundos da América Latina. Foi uma chegada exuberante a esta praça e ainda hoje aqueles sons reverberam em mim. O mercado de São José, conhecido por La Boqueria, é o mais antigo dos mercados de Barcelona e está na Rambla. Não se perdoa a quem não o visite. Porto Velho e Barceloneta. A zona do mar, do porto, o antigo bairro de pescadores, Barceloneta, conserva o charme e o encanto dos tempos. Um antigo armazém alberga o Museu de História da Catalunha. O ambiente popular da Barceloneta prossegue até à praia onde se pode admirar uma obra peculiar – a estrela ferida, de Rebecca Horn, a modelar a paisagem. Ainda na zona de mar, o Port Olimpic, El Poblenou e El Forun, fazem o fascínio da cidade.

Ver a cidade de Montjuic, “colina dos judeus”, a colina mágica, dizem muitos e o mito reitera-o, é uma experiência única. Vale também visitar a Fundação Joan Miró. Miró é um dos meus pintores electivos. Tóibín faz um retrato fabuloso de Miró e conta a história desta fundação. Vale ainda a pena desfrutar dos parques e jardins, olhar o Mediterrâneo dali, admirar as piscinas olímpicas, o anel olímpico, a torre de comunicação do Calatrava, outros ex-libris da cidade. Há uma escadaria que nos leva para a Praça de Espanha. Descê-la é uma experiência ímpar.

Quem é louco por futebol e, sobretudo, pela equipa do Barça, tem, no Camp Nou, o museu do clube para visitar e viver a magia de um grande clube. A fábula da equipa do argentino Lionel Messi. Mas eu prefiro atardar-me no Parc Guell. Em 1900, Eusebi Guell sonhou implantar uma “cidade jardim”, em 20 hectares debruçados sobre o mar. Desafiou a imaginação de Antoni Gaudí. Este, porém, desistiu do projecto inicial quatro anos depois, o que não impediu que as suas criações imaginosas estivessem na origem de um dos parques-emblema da cidade.

Barcelona é uma cidade que nos convida a caminhar, a andar de bicicleta ou a sentar num dos seus belos bancos, num café e admirar quem passa; cidade para quem gosta de ir às compras; para se comprazer com a excelente e diversa culinária; cidade de artistas, de pintores, de escritores, de músicos; de homens-estátuas, de quiosques; cidade dos chineses no bairro Raval; onde avultam prostitutas ou dos gays no L´Eixample; cidade de todos.

A cidade nos esquissos de Antoní Gaudí, nos livros de Eduardo Mendoza, Manuel Vásquez Montalban, Montserrat Roig, Juan Marsé, Carlos Ruiz Zafón, nos poemas de Jaime Gil de Biedma, nas pinturas de Pablo Picasso ou Joan Miró, a minha cidade literária, a cidade dos meus sonhos, onde sempre sonhei um dia viver, escrever e amar, a cidade das cidades, minha cidade também. Sonho postergado o meu: Barcelona está exaurida pelo extenuante turismo de massas. Hoje também é uma cidade atormentada. Por vezes, vejo as imagens lancinantes de Barcelona na televisão.

A Catalunha está na origem desta escrita. Foi um texto, que eu fazia circular entre amigos, no qual discernia sobre a velha e irresolúvel questão da República Catalã, que me empurrou para estas páginas. Nunca deixei de pensar Barcelona sem estas duas vozes: Montserrat Caballé e Freddie Mercury. “Barcelona! / It was the first time that we met/ Barcelona! / How can I Forget?/ The moment that you stepped in the room/ You took my breath away.” Sempre senti esta mesma pulsação de Freddie Mercuy. Comigo nasceu também um amor incessante e obsessivo, num momento de vibração e de celebração, numa empatia inesperada e, provavelmente, num dolorido e incompreendido amor, como o são os amores exultados e exultantes. Freddie canta para Caballé e é profético: a música e Barcelona os uniu para sempre: “And if God is willing/ We will meet again/ Someday”. Neste sábado, 6 de Outubro, cumpriu-se a profecia. Freddie Mercury (1946-1991) e Montserrat Caballé (1933-2018) encontraram-se de novo e cantaram, indubitavelmente, entre outras músicas, “Barcelona”.

 

O seu nome, Carlos Paradona Rufino Roque, mais lembra um pseudónimo pois não é comum na onomástica do Vale do Zambeze. Mais ainda, o facto de insistir naquilo que é supostamente o seu nome completo, tem o seu quê de original no mundo literário, onde os autores mesmo quando usam os seus nomes próprios e não recorrem a pseudónimos, é regra e estilo a utilização de dois, com ou sem determinantes, José Craveirinha, Mia Couto, Noémia de Sousa, Paulina Chiziane, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, Viriato da Cruz. Quando muito, três Mário Pinto de Andrade, Francisco Sá de Miranda, e por aí em diante em quase todos os sistemas literários. Por isso, a primeira originalidade que nos aparece nas obras deste autor é o facto de ele fazer questão de usar o nome completo, Carlos Paradona Rufino Roque, tal como nos nossos documentos de identificação.

Pode não haver causa e efeito entre este pormenor e a sua escrita. Mas como prefaciador, isso não me passou ao lado.

O autor pediu-me para dizer algo em jeito de prefácio sobre a sua última obra, ??Carota N?tchakatcha, Feitiços e Mitos”. Mas como tinha em mão, as suas duas obras anteriores, nomeadamente e por ordem cronológica, ??Tchanaze, a Donzela de Sena″ e  ″N?Tsai Tchassassa a Virgem de Missangas”, procurei cotejar os três textos.

Na realidade, não sabia exactamente o que buscava, mais a leitura paralela dos três textos revelou-se de extrema utilidade para quem tinha a missão de escrever algo sobre um texto para motivar a sua leitura.

Reparei que o autor cultiva obsessivamente a sugestão erótica quando apresenta as suas protagonistas, todas elas virgens, donzelas, de rara beleza, mas também possuídas de mil mistérios e fatalidade várias, Tchanaze, N?Tsai ou Carota não são mais que simultaneamente, metáforas da beleza misteriosa da mulher do Vale do Zambeze e de maldição que essa beleza pode atrair para si, quando é chegada a hora da passagem para a fase adulta, nomeadamente, a sexualidade e o casamento. Por outro lado elas também são metonímias da mulher donzela deste mesmo Vale, de que se conta no seu vasto reportório literário oral com todas as vicissitudes atribuladas face ao conjunto de valores, crenças, obrigações e interdições que a cultura dos seus habitantes transformam em forma de conhecimento. Beleza, visibilidade erótica e fatalidade entrecruzam-se com os rituais e busca de compressão lógica das coisas.

 Mais reparei ainda que o autor procura registar com algum rigor a denominação do espaço antropológico e geográfico onde decorrem as acções. O nome das terras são aquelas, não tem nada de ficção, os ritos, as crenças e todo o sistema de valores também são aqueles, não ficciona, o que transforma a sua obra num ensaio antropológico com uma geografia bem determinada.

O autor tem uma preocupação de ser exaustivo quando narra ou quando descreve, mais fá-lo com a alguma mestria, o que torna os textos de leitura ligeira que permite o leitor percorrer as obras quase que de um fôlego.

Se o prefácio que me foi pedido destinava-se ao texto ?Carota N?tchakatcha, Feitiços e Mitos ? que me perdoe Carlos Paradona Rufino Roque, não pude resistir a cotejar os três romances. Neles encontro uma certa continuidade. As particularidades temáticas de cada um e em particular neste último são quanto a mim variações de uma grande narrativa, de que é peculiar o vasto património das narrativas de transmissão oral, do Vale do Zambeze, em particular e de Moçambique e porque não, africanas em geral.

Experimente o leitor ler as três obras em simultâneo, encontrará de uma forma adicionada todas as questões tratadas no dia-a-dia dos povos do Vale do Zambeze quer na vida familiar, privada, na vida pública, nas crenças de valores do mundo físico e metafísico, com os seus feiticeiros, mortos, espíritos dos antepassados, interacção entre o homem e aqueles animais que são considerados umbuidos de poderes mágicos.

Moçambique pode orgulhar-se de autores como Carlos Paradona Rufino Roque, que não precisam de ficcionar nem nomes, nem lugares, nem histórias, mas demonstram competência para actualizarem com arte o que nosso povo vem fazendo e contando no seu dia-a-dia. No fundo, Literatura é isto.

*prefácio do livro ?Carota N?tchakatcha, Feitiços e Mitos?, de Carlos Paradona. O título é nosso.

 

Viver é um verbo que reúne todas as palavras conhecidas e desconhecidas caracterizadoras da nossa existência. Envolto na beleza desta noite de Outubro, que se entrega voluptuosa ao Outono como uma virgem apaixonada, são muitas as palavras que me ocorrem. Contudo, neste momento, só uma me parece suficiente para dar vida aos viventes que habitam em mim: reconhecer.

Reconhecer o passado é vencer o futuro, assim reagiu um grande amigo à minha recente visita a Moçambique. Já passa mais de um mês que me enamorei vorazmente por essa frase simples e muito sábia. E como que me refugiando das indagações filosóficas que levantaria a sua interpretação, apenas olho para um passado muito recente e reconheço-o como pedaço da minha vida.

Há dois anos que chamo dez de Outubro dia de ano novo em referência ao início de um novo percurso que me obrigou a deixar familiares, amigos e minha terra e reinventar-me continuamente na esperança de construir um crescimento humano e académico sólido.

Há dois anos pisei pela primeira vez estas terras lusitanas que sonhei e vivi antes de ser real! Cheguei à Lisboa ao início de uma tarde em que o céu azul me parecia mais próximo da cabeça, o calor familiar e o ar picante. Era dez de Outubro de dois mil e dezasseis. No primeiro olhar, Lisboa cheirava-me a cigarro e café, mistura que criava um ar picante para os meus sentidos. Meus olhos torturados por essa mistura acérrima, escondidos debaixo de um par de lentes suspensas num aro de ferro, lacrimejavam continuamente. Por algum momento ainda me inclinei a associar aquelas lágrimas ao sentimento de mais um sonho realizado. Mentia-me descaradamente, aquilo era pura reacção à tortura que sem gritos sofriam. Disse Fernando Pessoa, primeiro estranha-se e depois entranha-se. E assim foi, passaram-se poucos dias e ganharam hábito.

Por razão das horas que cheguei e do cansaço causado por quase vinte e quatro horas de viagem, pouco fiz no primeiro dia para além de ir à sede do Instituto Camões, onde tinha uma reunião importante, e deitar-me na macia cama do Hotel VIP Executive Zurique que me tinha sido reservada. Era a primeira vez que passava a noite num hotel, em Lisboa, fora de Moçambique, e longe do que sou, contudo os sentimentos que caracterizariam o espírito de um rapaz de dezoito anos que se aventurava mundo fora pela primeira vez me passaram desapercebidos e foi tudo abafado por um cansaço que me consumia sem pena.

A estadia da primeira noite foi rápida. Com os pensamentos desorganizados acordei, na minha primeira manhã em Lisboa, num quarto que não era meu e cujas paredes brancas tinham velado sono de muitos viajantes e quiçá testemunhado acontecimentos frenéticos que afastam e chamam sonos.  Tudo me era estranho, desde as mordomias nas quais me via envolto até os meus pensamentos. E porque o tempo urgia e tinha muito por fazer naquele dia, guardei as reflexões e contemplações para outra altura e saí do hotel depois de um forte pequeno-almoço que levava croissant, café, salada de frutas e algumas iguarias da culinária portuguesa.

Com o estômago feliz saí para resolver burocracias de um recém-chegado a um país estrangeiro no qual faria a sua formação superior em Direito. Enquanto caminhava pelas ruas, sem não me deixar me apaixonar, ia conhecendo e reconhecendo a Lisboa que via pela televisão, uma cidade que nos seus edifícios e monumentos de betão, ferro, vidro e telha faz que vários estilos, épocas e gerações se cruzem e conversem em harmonia.

Ao fim da tarde, com uma parte das burocracias resolvidas, fui conhecer o lugar no qual moraria. Quando saí da estacão de metro, um bairro de luxo se deu a conhecer-me dentre prédios bonitos e de grande vulto. Chama-se Picoas. Logo naquele momento uma coisa pareceu-me clara, aquela zona era totalmente oposta ao bairro Ndlavela, de onde sou e cresci, que para além do parcelamento desordenado, alguns charcos de água e montanhas de lixo numa rua e noutra faltava-lhe também asfalto nas ruas. 

 

Suspenso num choro sem lágrimas, um turbilhão de pensamentos e sentimentos apossa-me o ser: êxtase, saudades, alegria, solidão, realização, sonhos. Esforço-me, mas sem sucesso não consigo mais narrar os acontecimentos daqueles primeiros dias, se adiam mais uma vez as reflexões e contemplações. E sob o luar deste bairro lisboeta que mutuamente, eu e ele, nos vivemos, reconheço silenciosamente um passado que sempre me será muito presente.   

 

 “O maior mentiroso é aquele que conhece a verdade”

Platão

 

Estou cada vez mais convencido que o mal facilmente impera o mundo graças à capacidade de o homem adaptar-se facilmente às circunstâncias da vida. Afigura-se-me que o instinto de sobrevivência ou o egoísmo são predisposições capazes de reduzir o homem a mais baixa condição inumana. Quando o homem pretere a sua dignidade e se sujeita à vontade doutro homem seja por que motivo, comete o pecado capital contra a humanidade. Concebendo-se o homem como um animal dotado de pensamento e vontade próprios, chega a ser uma negação à espécie humana quando o mesmo homem é obrigado a viver em função do pensamento e vontade alheios.

O homem aliena a sua humanidade de todas as vezes que se adapta a uma determinada circunstância contra a sua vontade e razão. A adaptação é somente bem-vinda quando visa engrandecer o que há de humano no homem. Ao contrário disso, ela constitui-se uma condição degenerativa da natureza humana. Deste modo, é mais sensato que os homens deliberem sobre as circunstâncias a que poderão se submeter. Deve-se sempre recomendar o tipo de adaptação que enleve a dignidade humana como, por exemplo, um homem que decide apostar em gostos intelectuais a fim de conservar a companhia dos amigos cultos. A má adaptação seria aquela em que um homem decide envolver-se em torpezas para granjear a simpatia dos amigos depravados.

A má adaptação também se aplica a todos aqueles que cometem determinada prevaricação na sua profissão com fim de satisfazer interesses pessoais. Um desses homens que se sujeita a esta ignóbil condição é o bio-epistemólogo, ou seja, aquele indivíduo que provido do conhecimento científico usa-o indevidamente para ganhar a vida. Referimo-nos, em outras palavras, ao sofista do estômago  – homem que põe à venda a sabedoria de desinformação para viver. Aquele homem que sabendo discernir entre o certo e errado escolhe propagar o errado só para ganhar o pão da vida. Em Moçambique, tal como no mundo afora, estes homens diplomados existem em demasia. São bio-epistemólogos. Tal como o bio-político do filósofo Severino Ngoenha que não vive para política, mas vive da política, o bio-epistemólogo é aquele que não vive para ciência, no sentido de manter um compromisso humano na produção e aplicação do conhecimento, mas vive da ciência, no sentido de instrumentalizar o conhecimento para satisfazer as suas necessidades em detrimento do bem-estar das outras pessoas.

Entende-se que a liberdade de expressão é um direito de todos os homens, mas quando os bio-epistemologos servem-se dele para propagar a desinformação, é uma toda nação que fica atrasada. A qualidade de informação constitui condição sin qua non para que o povo tome melhores decisões sobre o futuro da nação. Quando a informação é adulterada para satisfação de interesses particulares, é sempre uma minoria que sai a vencer em detrimento da confusa maioria. Era suposto que os bio-epistemólogos estivessem cientes do atravancamento que impõe no desenvolvimento humano de um povo, quando escurecem a opinião pública por meio de instrumentos da luz.  Usurpar o título de pensador livre e mentir deliberadamente para as massas deveria ser visto como um acto totalmente anti-patriótico, pois não há desenvolvimento humano possível de uma nação, quando ela se apresenta desinformada e acrítica. Quanto mais se mantêm os povos desinformados, seja por meio de ideologias ou retóricas falaciosas, mais aumentam a corrupção, pobreza e brutalidade no mundo. O fim de toda a mentira é de aprisionar os indivíduos em zonas de conforto, enquanto a verdade está para liberta-los e mostrar-lhes a realidade nua e crua com suas qualidades e imperfeições. E só se muda a realidade de uma coisa, quando se tem um conhecimento verdadeiro dela.

A maior condenação contra bio-epistemólogos resulta do facto de eles, tendo conhecimento da verdade, preferirem propagar mentiras venenosas seja a mando de elites políticas, económicas ou religiosas. É deveras penoso que um indivíduo entendido em leis da economia sirva-se dos meios de comunicação em massa para persuadir um pai ou mãe de três ou quatro filhos que é possível sustentar condignamente a sua família com um salário mínimo que mal sustem as despesas do transporte.

O homem que se disponibiliza a tecer argumentos especiosos desta natureza em troca de algum ganho pessoal não só faz mal à sociedade, como também faz mal à sua alma. Longe de eu ser um moralista sobre questões metafísicas, não se me afigura sadia uma alma que se entretém com mentiras fabricadas à luz da verdade, conduzido milhares de outras almas à desinformação e ilusão. O dito que diz “o povo não tem paciência para com a verdade” é uma terrível falácia capaz de consentir o cegamento de uma massa de gente ao ponto dela virar xenófoba, chauvinista e apolítica. A Alemanha hitlerista e a Rússia stalinista continuam os melhores exemplos de Estados cujos povos sob o controlo das ideologias foram capazes de apoiar os mais abomináveis crimes contra humanidade. O povo precisa da verdade para sua própria existência sã e manutenção da democracia – melhor forma do governo que garante a liberdade dos indivíduos.

O estado da alma de um bio-epistemólogo merece um estudo de censura, pois nos apresenta uma crise de identidade ao nível intrapessoal. Onde há união entre verdade e mentira, há violação do princípio de não contradição. O caso de um bio-epistemólogo apresenta-nos tal situação da crise lógica e moral, pelo facto de este indivíduo que, dispondo da verdade, escolhe proferir falsidades, entrando em contradição consigo mesmo. E permitir-se entrar em contradição consigo mesmo, você sendo uno e indivisível, se afigura mais ou menos um caso de psicopatia. Saber que A = A, mas quando questionado dizer A = B, ou A não é A, afigura-se uma psicopatia intencional que é deveras vergonhosa para aquilo que é o propósito da ciência.

A vida só se torna louvável, quando feita com dignidade, sem contradições nem adulações.

Todavia, pelo facto de coabitarmos num século de informação, todos nós somos menos inocentes, quando nos tornamos vítimas dos desinformadores. Os livros, a internet, os jornais tornaram-se cada vez mais acessíveis no séc. XXI graças aos avanços da tecnologia. Então, leiamos mais, investiguemos e, sobretudo, reflitamos para o bem do nosso crescimento como humanos. Ironicamente, os melhores bio-epistemólogos são estudiosos que andam por ai sem escrúpulo a desinformar as massas com a mesma desculpa que é “mentimos porque temos esposas e putos para sustentar”.

 

Exaltação pela Independência, carências que exigiam muita imaginação para serem supridas, produziram várias estórias, bonitas e impensáveis para os nossos dias, que importa recordar:

A solução dos “ex”

1. Vivia-se a euforia da recém-conquistada Independência Nacional, quando num comício, o Presidente Samora Machel orientou a Nação em geral e os desportistas em particular:

– “A partir de hoje, não há mais Sportings, Benficas ou Portos. Nomes tribalistas como Inhambanense ou Gazense, acabaram. Também deixam de existir designações de carácter religioso, como Mahafil Isslamo ou Atlético Maometano. Escolham nomes nacionais e que não criem divisionismo". A ordem vinha do Chefe de Estado e era para ser cumprida.

Mas porque havia que informar sobre o programa de jogos do dia seguinte, como designar aquelas colectividades, se já não se poderiam utilizar os recém-banidos nomes?

A Redacção desportiva do Notícias, recorreu ao então Director Nacional do Desporto, João Carlos e depois à Ministra da Educação, Graça Machel, que dirigia o pelouro desportivo. A resposta: arranjem uma solução, mas esses nomes não podem ser usados.

A saída veio do velho jornalista, o falecido Albuquerque Feire. Ele propôs a inclusão do “ex” antes dos times visados. E assim foi. A partir daí, passavam a jogar o ex-Sporting, contra o ex-Benfica, no campo de ex-Mahafil. Nas classificações, os ex- eram mais que muitos.

O bom humor do poeta Craveirinha

Ai que saudades, do imbondeiro da poesia, mas também do desporto, José Craveirinha, “descobridor” de Lurdes Mutola! Aí vai uma estória desse adepto ferrenho do Desportivo. Disse-me ele um dia:

”Ó amigo Caldeira. Sabe que em Tete, fundaram o Clube da Justiça”?
Sei sim. E o que isso tem de mal?-
Quer dizer que agora eu posso entrar em campo e… driblar, legalmente, um juiz?

Só a deslocação do ar…

Há uns anos tivemos um pugilista do Matchedje, poderoso mas um tanto medroso. No Pavilhão do Estrela, foi-lhe oposto o campeão da então União Soviética, um “bicho” daqueles que do queixo para baixo, é tudo músculos. Pois o nosso representante, após as primeiras trocas de socos, estatelou-se no chão.

No regresso ao balneário, o então Presidente da Federação de Boxe, questionou: “ó amigo, mas aquele murro, nem sequer te acertou!

A resposta do pugilista: “e era preciso? Só aquela deslocação de ar”…

Um árbitro “todo-o-terreno

À recém-nomeada primeira Comissão Nacional de Árbitros, chegou da CAF a primeira oportunidade para a designação de uma equipa de arbitragem moçambicana para uma prova continental. Grande euforia. O trio foi escolhido, enviaram-se os nomes para o Ministério da Educação que então tutelava o desporto, para a emissão das passagens.

A Secretária-Geral 'uma “unhas-de-fome” que reduzia sempre o número de candidatos às deslocações e porque não entendia nada de futebol, deu o seguinte despacho:

– Por questões orçamentais só poderá viajar uma pessoa. Foi difícil explicar que o designado, não poderia dirigir uma partida com o apito na boca e duas bandeirinhas, controlando penalties e foras-de-jogo ao mesmo tempo!

A moda do… obviamente

Há palavras que entram na moda e que até os locutores usam e abusam. É o que aconteceu com o… obviamente.

Vai daí que um dos nossos reputados homens do microfone, numa determinada fase do jogo, grita, emocionado, que o jogador “xis” fez uma boa jogada, passou por todos, rematou e… “obviamente, a bola foi para fora”…

 

Pedro Langa, oriundo de uma família de músicos, onde avultavam os nomes dos seus irmãos Hortêncio e Milagre, ambos mais velhos, apresentou-se, aos 20 anos, em 1979, no Cinema Scala, em Maputo, com duas canções originais, perante um público que queria ouvir versões de músicas estrangeiras, como era o apanágio do Hokolókwe, conjunto que então o acompanhava. O público não entendeu a originalidade do jovem músico e exigiu impetuosamente que ele abandonasse o palco. Mesmo perante a vaia monumental que recebeu, o obstinado Pedro Langa cantou até ao fim as suas duas composições. Não seria a primeira nem a última vez que ele seguiria o seu instinto e o seu génio a despeito da adversidade. Os verdadeiros criadores, muitas vezes, não são entendidos pelos seus contemporâneos. Estão à frente do seu tempo.

Entre este episódio e a fundação do grupo Ghorwane, quatro anos depois, registam-se outras contrariedades na vida de Pedro Langa. Colocado, desde 1978, na EFEP, Escola de Formação de Professores, é expulso da mesma, o que está na origem da sua ida compulsiva para a tropa. Cumprido o serviço militar obrigatório, torna-se assíduo do Chai, o Clube da Juventude, onde se apresenta com o conjunto Mbila. É uma espécie de tempo de espera e de amadurecimento.

O ano de 1983 será, no entanto, um ano de prodigiosos acontecimentos: funda o grupo Ndzuti (significa sombra) para se apresentar a um concurso promovido pela EME, produtora dirigida por Eddy Mondlane, influente na área, na década de 80. Pedro Langa alia-se, para este propósito, a Simão Mazuze e ambos formam o Xigutsa Vuma, que teve fulgurante e efémera existência, mas que deixou marcas indeléveis. Os dois são rebeldes e cantam sem ocultar o desacordo, a crítica e a contestação. Mazuze, aliás, terá uma dura experiência que constitui uma das suas mais inspiradas músicas: “Bilibiza.”

A Operação Produção foi algo sinistro e recordo-me de vivermos em pânico: nunca sabíamos se, à saída de um cinema, pelo facto de não estarmos na posse de documentos, não poderíamos ser presos e levados para o Niassa. Mas, para além disso, alimentou perversões e enormidades. Está por estudar e esclarecer essa política e essa fase da nossa história. Está por esclarecer esse período da nossa história. Eu vi empolgado o Simeão Mazuze a cantar sobre Bilibiza, um campo de reeducação. Mas isso é matéria para outra conversa. O facto é que Pedro Langa e Simeão Mazuze conquistam o prémio de melhor composição naquela competição. Não obstante, a aventura comum terminou ali. Nesse mesmo ano, Pedro Langa funda o Ghorwane.

Os músicos fundadores: o baterista Hilário, o guitarrista Tchika, o trompetista Júlio Baza, o saxofonista e vocalista Zeca Alage, o percussionista Dingo e o baixista Lot. Em Novembro desse ano começam a ensaiar. O mito regista que o fazem nos bancos do jardim Tunduru e com uma viola emprestada de David Macuácua, que cumpria o serviço militar no Norte e para onde não regressou, ao que parece de uma licença, quando se encontra com estes companheiros de aventura. Submetem músicas para gravação à Rádio Moçambique, mas estas são rejeitadas. Embora não houvesse uma censura institucionalizada, o critério do que era adequado, do que era permitido, do que se podia dizer ou cantar era difuso e poderia ser o critério obtuso e ilegítimo de quem nem sequer perceberia o que é a arte. Ouvidas a esta distância, as músicas do Pedro Langa ou mesmo do Zeca Alage não deixam de ser assombrosas e percebem-se os pruridos que provocavam a espíritos incautos. A sua crítica é de uma grande virulência. Mas eles cantavam a realidade, não a inventavam. Interpretavam o quotidiano daqueles que estavam cobertos pelo anátema da desgraça: a fome, a seca, a miséria, a guerra, as vidas perdidas.

No início de 1984, Roberto Chitsonzo procura uma banda para gravar as suas músicas. Ele vivia em Inhambane onde era professor de Educação Física. A doença da filha obriga-o a pedir transferência para Maputo. Eu ouvia o seu nome e a sua voz sobretudo num mítico programa da Rádio, “No coração da noite”, da Luísa Menezes e do Izidine Faquirá. Pessoalmente, sou grato a esse programa. Não só pela sua extraordinária qualidade, mas porque permitiu a revelação de muitos talentos. Antes de fazer 20 anos ganhei um concurso de poesia no programa e isso foi muito importante para mim. O poema não devia ser grande coisa. Recordo-me apenas do título – “Tiko”, que significava terra – e lembro-me de que era longo. Ouvi-lo na rádio e naquelas circunstâncias deu-me a ilusão de que, provavelmente, teria futuro na literatura. Estou grato a ambos: à Luísa e ao Izidine, meus amigos.

Uma das músicas que eu ouvia na época era “Xizambiza”, do Roberto Chitsonzo. Essa música é o prólogo de uma brilhante carreira. Nela se inscreve o sonho do tocador. Ele tem uma belíssima voz e canta sem a mesma exuberância dos seus futuros companheiros. Mas é absolutamente corrosivo e, provavelmente, o mais corrosivo e violento de todos. A grande crítica social do Ghorwane deve-se, em muito, à sua verve, à sua inventiva, ao seu génio criativo. O Roberto é um extraordinário compositor e um cantor inimitável. Um tocador.

Roberto Chitsonzo faz um acordo inédito com Pedro Langa. O Ghorwane acompanha-os e este permite, nessa permuta, a gravação dos temas rejeitados de Pedro Langa. Assim haveriam de ludibriar a Rádio. A gravação ocorre em Fevereiro. Entretanto, Lot abandona o grupo e entra para o seu lugar o baixista Carlos Gove. A verdade é que Roberto Chitsonzo entraria, deste modo, para o grupo. No dia 23 de Junho de 1984, Pedro Langa, Zeca Alage, Roberto Chitsonzo e os seus companheiros fazem o primeiro espectáculo no Cine África. Roberto tem 22 anos, está à beira de fazer 23 em Agosto; Pedro tem 24 anos; Zeca Alage a mesma idade. A partir daí começa a saga dos Ghorwane, o mais emblemático dos grupos moçambicanos.

A guerra, a miséria, a fome, a pobreza são os temas que estão na origem do seu sucesso. Transformam o sofrimento e a dor em alegria. Não lamentam apenas, como se ouve em muito do cancioneiro moçambicano. Interpelam a realidade, mas fazem uma profissão de fé. Uma das músicas de Pedro Langa (“Vhôry”) sobre a chuva comove-me por essa obstinada esperança que evoca, convoca e interpõe. A seca foi um drama terrível para nós. Essa saudação da chuva de Langa, nesta música e tudo o que a ela associa, constitui um momento emocionante. Comove-me a esperança nela contida. A guerra é tema incontornável. Eles cantam-na, mas querem a paz. É de paz que falam. Eles fazem crítica dos desvios sociais.

Na época, os prosélitos do regime ficam assustados. As suas apresentações contam com agentes de informação, disfarçados entre o público, para captar as mensagens desses jovens insurrectos e reportar. Pobre o país que se assusta com a música de uns miúdos de vinte e poucos anos. Samora Machel sentirá uma empatia por eles e lança-lhes o epíteto: “Bons rapazes.” A lenda, pelo menos, assim reza. Mas quem conhece os factos regista que antes o jornalista Augusto de Jesus foi quem se lhes referiu naqueles termos no jornal “Domingo.” Mas nada como a força que tal epíteto irá adquirir depois de pronunciado por Samora. Foi o bastante para se livrarem da perseguição velada que sofriam. Pedro Langa, entretanto, abandona o grupo. Prossegue uma carreira a solo. O Ghorwane faz o seu caminho.

Zeca Alage e Roberto Chitsonzo afirmam-se como os grandes compositores do grupo. Cantam o desencanto daqueles anos. Interpretam a dor dos moçambicanos. Vivem-se anos duríssimos: a extrema pobreza, o tempo das calamidades, a seca, a fome, a guerra. A guerra inexplicável e impenitente. Uma das músicas – “Massotcha”, de Zeca Alage –  é o retrato cabal da época. A esta distância, ter-se-ia sempre uma perspectiva enviesada do seu impacto. Esta crítica acerba e acutilante.

“Armas caras, mais caras que sacos de arroz”, canta Alage. Esta denúncia não poupava nenhum dos lados do conflito. A sordidez da guerra, o absurdo da guerra.
Este é um dos esteios do Ghorwane: Zeca Alage. Uma grande voz e um grande saxofonista. Um compositor genial. Oiçam-no em “Majurugenta” e depois falamos. É um dos mais belos temas da história da música moçambicana. O longo solo de saxofone de Zeca Alage, nesta música, é dolorosamente belo, impressivamente pungente, para não falar no balanço da música e na letra ou na interpretação. Quando este morre, brutalmente assassinado, em 1993, sem viver a paz que tanto ansiara, David Macuácua canta soberbamente em seu lugar. A revelação de Macuácua é um dos grandes momentos do grupo. Para além do seu papel esquivo de grande conciliador e pacificador do grupo, que tinha alguns espíritos assombrados. Os génios são assim: podem ser difíceis de conciliar. Ghorwane tinha na sua fundação três músicos geniais.

Majurugenta é o disco de estreia dos Ghorwane.  Zeca Alage assina: “Muthimba”  (dança do sul de Moçambique), “Majurugenta” (que dá o título ao álbum), “Xai-Xai” e “Mavabwyi”. Roberto Chitsonzo: “Matarlatanta”, “Buluku”, “Terehumba” e “Akuhanha”. O disco é de uma rara e intraduzível beleza. Gravam-no para a Real World, de Peter Gabriel, em Agosto de 1991. Iriam, assim, participar da explosão da World Music. Antes deles, os Eyuphuro tinham sido pioneiros nos palcos do mundo. O disco só seria lançado dois anos depois. Alage não participa desse momento. “Massotcha”, a música que o tornara incontornável, não está no alinhamento. Será cantada, ulteriormente, por Pedro Langa, no disco Kudumba, lançado pela Piranha em 1997.

Ironicamente, Pedro Langa, que fundou o grupo, não tem o seu nome no primeiro disco e, tragicamente, Zeca Alage, que divide, quase a meias, as composições deste disco de estreia, com Roberto Chitsonzo, não participa do seu lançamento, em 1993. Este disco traz, emblematicamente, como última faixa, a música “Akuhanha”, que é o paradigma daquilo que o Ghorwane haveria de ser e de fazer ao longo destes trinta e cinco anos: cantar a nossa forma de viver dos moçambicanos. Esta música acompanha-me há três décadas. O desencanto sem resignação, a crítica assertiva e obstinada, o pleno exercício de cidadania. Aquilo para o qual as condições de possibilidade hoje não só se tornaram precárias. É espantoso ver como foi possível fazer crítica social e política naquela época. A Pátria sempre divergiu dos críticos e lançou sobre eles diatribes e intolerância. Durante uma década, um título meu serviu, perante a minha estupefacção, para combater aqueles que tinham opinião diversa: os apóstolos da desgraça. Num país onde a autoria tem cidadania teria como reclamar direitos.  

O nome de um lago de Chibuto que nunca seca – Ghorwane – é uma boa metáfora para o sonho que estes músicos prosseguem. Um sonho de esperança, por conseguinte. Trinta e cinco anos depois, a despeito de todas as vicissitudes, parece que eles acertam: não secam. Conseguem reinventar-se. Foi assim quando foi brutalmente assassinado Zeca Alage aos 34 anos. Seria assim quando o mesmo infausto destino acompanhou Pedro Langa, aos 42 anos, em 2001. Ou quando, em 1999, mergulharam numa aguda crise que está na origem do afastamento de Carlitos Gove, do baterista Paíto, do teclista Jojó Moisés, e do percussionista, compositor e vocalista Jorge César. Saem depois Riquito Mafambane e Tchika Fernando. A despeito, o Ghorwane reinventa-se. Alguns deles, no entanto, retornam.

Pedro Langa regressara e participara no belíssimo álbum Kudumba: “U Yo Mussiya Kwini”, “Vhôry”, “Mamba Ya Malepfu”. Este soberbo ritmo do fundador do Ghorwane. A força portentosa desta personagem. Ele canta, no disco, “Massotcha”, de Zeca Alage. Este disco, aliás, tem a força dos fundadores: Pedro Langa, Zeca Alage, do Roberto Chtsondzo e do Jorge César. Ainda hoje oiço, com o mesmo espanto, “Salabudê”, “Pim-pam-pum” e “Progresso”, três músicas assinadas por Jorge César (assina a terceira com Carlos Gove), que era oriundo da Companhia Nacional de Canto e Dança, cuja entrada no Ghorwane é distintiva e inovadora. Pessoalmente, gosto muito do Jorge César, da sua voz, do seu canto, da sua criatividade, da sua percussão, do seu estilo no palco.  Chitsonzo assina “Txongola”, recupera “Xizambiza” e tem uma espécie de epifania com “Sathani”, uma das suas mais violentas criações. “Massotcha”, de Zeca Alage perfaz as 10 músicas deste notável álbum. Não me esqueço quando eles actuavam no Centro Social do Desportivo e cantavam estas músicas.

Vana Va Ndota (2005) é também um belíssimo álbum e traz 11 composições: nove das quais são do Roberto Chitzondzo, uma do Pedro Langa (“Ndzava”) e outra de Zeca Alage (“Livengo”). O disco é dedicado aos seus mitos fundadores – Langa e Alage – e inscreve-se no DNA do grupo: parodiam o quotidiano, não se furtam à crítica e professam a imperecível esperança. Este talvez seja o mais robertiano dos discos do Ghorwane. Tenho ouvido com regularidade estes três discos, pese embora gostar muito da música que dá o título ao último álbum – “Mussakaze”, com participação do DJ Ardiles. Mas, confesso, ainda não cheguei a um nível de empatia que tenho com Majurugenta, Kudumba ou Vana Va Ndota. Furto-me de referir aquele disco que fizeram para as eleições de 1994.

Creio não estar longe da verdade se eu aqui e agora asseverar que os três álbuns (Majurugenta, Kudumba ou Vana Va Ndota ) são uma impressiva e notável imagem do nosso tempo – aqui estão decantados o nosso quotidiano, as suas misérias, as suas desgraças, pessoais e colectivas, mas também aqui se encontra o apelo inequívoco aos valores, à dignidade, à honradez, à probidade. Eles atravessam estas nossas décadas – desde os anos 80 -, eles falam do quotidiano, das assintonias sociais, das contradições do quotidiano, eles são os intérpretes da sociedade, eles escalpelizam a sociedade, eles são críticos. De Vana-Va-Ndota gosto sobretudo de “Ubiwitolo”, “Tlhanga”, “Ndzava”, “Nudez”, de Roberto Chitsonzo. Sempre fiel à sua matriz. A poesia, o ritmo, o balanço. A crítica. Outro belíssimo disco.

Creio, finalmente, que o que faz este percurso notável de 35 anos, para além da extraordinária inventiva, que se vê nos sucessivos temas e sucessos que criam, tem muito a ver com o facto de estes extraordinários artistas, que têm uma lucidez implacável, em relação ao devir moçambicano, cantando-lhe as suas mais profundas contradições, nunca terem desistido de ter esperança – nem quando cantaram a guerra inexplicável, a fome e a miséria, a desgraça social, nunca cederam ao desespero. Eles são o testemunho e o testamento de um tempo indeclinável da nossa história. Mas também percutiram nas suas notáveis músicas o amor por este país. O maior acervo do Ghorwane é essa declaração de amor reiterada a Moçambique. Quando estou deprimido e procuro reconciliar-me com a Pátria, recorro a estes ritmos – inventados a partir de muthimba ou xitchukete ou outros. Oiço um destes três discos, canto estas músicas, danço estes temas, não importa se falam da guerra, do desvio social ou se são apenas uma declaração de amor, como “Beijinhos”, ou a evocação  recorrente da figura central da mamana.

Empolgo-me sempre com a música do Ghorwane. Espanto-me com o génio criativo de Pedro Langa, Zeca Alage, Roberto Chitsonzo ou mesmo Jorge César. Exulto ouvindo a voz de David Macuácua. Eles fazem uma surpreendente alquimia entre a corajosa crítica social e um som espantosamente belo e luminoso. Têm uma gramática, uma sintaxe e uma dicção únicas. Há quase 40 anos, quando Pedro Langa subiu ao palco para dar notícia do seu génio, foi incompreendido e vaiado. Mas ele, sempre obstinado, não resignou. Ainda bem que perseverou. Dessa profissão de fé na sua criatividade, e no futuro, nasceu, em Moçambique, este grupo que integrou e integra um movimento inovador das músicas do mundo.

 

Todas as cidades têm uma face escondida,

uma face que passa despercebida à maioria dos seus habitantes

Eduardo Paixão

 

Uma das maiores faces escondidas de Maputo é a Rua de Bagamoyo, para os mais velhos, Rua Araújo. E Eduardo Paixão é claro, quando, num dos seus belíssimos romances, Cacimbo, faz a descrição do que ali até hoje acontece. Contudo, as faces escondidas encontradas na exposição fotográfica Vagando Maputo, da francesa Aurore Vinot, são outras, feitas de gentes e de espaços por elas frequentados.

No total, são 20 fotografias que Vinot expõe no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo, das quais em 15 também apresentam-se perfilados artistas como Manuela Soeiro, Mário Macilau, Gonçalo Mabunda ou Filipe Branquinho. A partir desses retratos, os apreciadores da exposição são convidados a tentar adivinhar as emoções das figuras ali existentes no momento em que o clique da máquina disparou. Não obstante, as fotografias foram concebidas de tal forma que, mais do que as faces dos homens fotografados, pudessem apresentar outras, atinentes aos lugares reais ou inventados por um determinado jogo de luz (natural ou artificial). Por isso, escapa sempre a sensação de se tentar adivinhar em que parte da cidade as pessoas deixaram-se fotografar.

Parece que Vinot, neste Vagando Maputo, deixou-se levar por pelo menos duas escolhas: deixar a imaginação fluir com imagens capturadas ao lusco-fusco e colocar na mente dos visitantes da exposição os nomes dos fazedores de arte. Deve ser esta a razão de ter privilegiado a ideia de narrar histórias sobre a capital do país através dos silêncios aparentemente enigmáticos de Mia Couto, The Mute Band ou Ana Raquel Machava, com os olhos fechados, a provocar muitas inquietudes, interrogações na paz interior em que se encontra quem a contempla, tão só quanto abundante. Acabamos ficando cativos àquela solidão feita de África. 

Cinco das fotografias que constituem Vagando Maputo reflectem a imagem de uma cidade decadente, sem esplendor, carente de intervenção humana para que os prédios voltem a fazer parte do belo que se esconde por detrás dos cenários desbotados. A fotografia “Vila Algarve” ou “Teoria do Groove” são dois exemplos das infra-estruturas esquecidas, condenadas aos impulsos da memória.

Esta exposição de Aurore Vinot é um fragmento muito pequenino do que Maputo é. Tirando as fotos feitas às pessoas, as imagens das construções capturadas na zona cimento aparentam terem sido feitas ocasionalmente, sem grande premeditação. Não se trata, portanto, de uma grande exposição fotográfica, susceptível de causar alguma impressão nos apreciadores. Muito longe disso. Esta é uma proposta que revela como a autora francesa viu Maputo quando cá esteve, sem fotografias encantadoras, aliás, algumas até têm resolução fraquinha para as dimensões em causa. Bem dito, Vagando Maputo poderia ter sido uma exposição mais profunda, por exemplo, seguindo o trajecto das infra-estruturas ou dos rostos. Assim sendo, é apenas mais uma obra exposta no Franco-Moçambicano. Ao menos as paredes ficam coloridas.

Título: Vagando Maputo

Autora: Aurore Vinot

Exposição fotográfica

Classificação: 10,5

 

 

 

DOUTRINÁRIAS LÂMINAS DOUTRINÁRIAS, surge na sequência do nosso anterior título de livro. Imprescindível Doutrina Contra, já apresentado também em Portugal no Grémio Literário de Lisboa, há justamente um ano, e posteriormente na  cidade da Póvoa de Varzim por ocasião das Correntes D’Escritas.
          
É o primeiro livro de uma trilogia poética cujos seguintes -já escritos- intitulam-se: Mortíferos de Doutrinária Sapiência   e Complexas Alucinações Doutrinárias.
          
No primeiro volume, o que nos inspirou foi o passado recente da nossa Angola social, económica, cultural e politicamente em transição. Já no segundo, é o presente que vivemos o motivo fundamental da versificação e no terceiro e último volume reside o sonho e a imaginação do país que todos nós positivamente auguramos.

O livro ora apresentado representa-me, enquanto proposta de reflexão poeticamente acusatória,  como que  procurando alguém cuja carapuça lhe poderá servir.
          
Como o anterior, este não é um livro político. É um livro poético, razão pela qual, proponho-me insistente, hiperbólico e, consequentemente,  delituoso.
         
Não estranharei portanto, se em razão de uma qualquer e descabida acusação, vir a ser indiciado por crime de excessivo hermetismo, ou mesmo, por uma tentativa frustrada de um tal de experimentalismo artístico, ou ainda… de um outro superficial mas provocador e, supostamente ultrapassado, concretismo poético.
         
 Na esteira do meu grande amigo -o poeta- José Alberto Marques, direi que sou devoto de uma linguagem para–excessiva (com alguma interpenetração idiomática) sem  controlo académico e com nenhuma preocupação erudita. 

Escrevendo, sonhamos ser cada vez mais HOMEM PLURAL. Espelho de reflexão e estudo. Sempre correndo o risco de ficar, futuramente, sem sistema ou sem rede.
          
Trabalhando a palavra poética, pensamos, lemos e escrevemos 25 sobre as 24  horas diárias, assumindo-se inexperiente profissional.  Estamos sempre predispostos a reescrever,  riscando e sempre   correndo o risco de arriscar mas, jamais descorando o legado do poeta Rui Duarte de Carvalho, em razão dos acentos nos tempos e, igualmente, em razão da urgência de sinais que comandam a emoção, abandonado que está, o timbre do momento e da paixão (de que falava Rilke) pois, antes de tudo: HUMILDADE é a regra primeira.
          
Ao fim de quase quatro décadas publicando poesia, pensamos ser, sobretudo, um aprendiz de poeta ou um escritor que se arrepende e se emenda quotidianamente.  Simplesmente, um leitor ou consumidor de poesia e de poéticas.  
          
Um leitor daqueles que anda consigo mesmo ao colo, sempre sem medo de famosos  fantasmas… em razão do literário colesterol que ainda, infelizmente, graça entre a raça dos que somos (…todos meros aprendizes de poetas, é claro! ).
       
Toda a artística escrita é uma longa, duradoira e misteriosa doença transmissível.
        
Sofremos com ela. Médicos de um lado e pacientes de outro. Sofremos todos. Escritores e leitores. Sofremos.
          
Sofrem as estantes, com ou sem livros, os escaparetes das livrarias que ratamos e os circunstantes   instantes divinos. Sofrem até os nossos ancestrais. As pessoas que nos rodeiam. Os nossos entes queridos e mesmo aqueles que detestamos. Sofrem também. Sofrem muito,  até os que nos apartam, tachando e achando-nos loucos.  
O que mais importa é o aumento da dose medicamentosa ou, se quisermos também, o aumento do tamanho dos pacotes, caixas ou frascos dos medicamentos que suportam, melhoram e elevam a nossa consciência artístico-literária.
         
O segredo reside, na esteira de Eugénio de Andrade, em deixar que a palavra amadureça…  se desprenda e caia, como um fruto maduro, assim que passa o vento que ela merece.
-Finalmente… tentamos ser cada vez mais originais porque , como dizia o poeta José Régio, ser original é simplesmente ser verdadeiro consigo mesmo.  
         
 É justamente isso que vimos tentando ser. Cada dia mais verdadeiro, fazendo de cada livro um outro livro. Com uma outra e nova proposta. Com uma nova e outra mensagem -querendo ser -na medida do possível- cada vez mais original, debulhando e reinventando o trigo, o milho, o massango e a massambala, utilizando a nossa língua portuguesa sem nunca descorar as  nossas línguas africanas !    
 

Cruzámo-nos no saguão do aeroporto de Joanesburgo, numa quarta-feira usual, era 29 de Junho, estávamos em 2016, pouco antes das 19 horas. Eu ia a sair a caminho da porta de embarque do meu voo para Londres e levava na mão a minha filha Mayisha. Ele ia no sentido contrário ao nosso. Quando o observei, com discreta admiração, ele acenou com a cabeça. Parei e recuei para o cumprimentar. Ele assentiria que a Mayisha tirasse uma fotografia do meu telemóvel e despedimo-nos de punho cerrado como velhos e bons amigos depois de me ter abraçado. Naquele instante fugaz, disse-lhe que era de Moçambique e que o admirava muito. Não houve ocasião para mais. A caminho do avião, expliquei à minha filha que acabávamos de ter estado com um dos vultos do jazz a nível mundial, indubitavelmente o mais proeminente e indeclinável em África. A bordo, rascunhei uns versos:

“Mr. Abdullah Ibrahim acena-me como se eu fosse/ um velho conhecido seu do District Six/ na Cidade do Cabo/ ou de algumas cidades que frequenta/ no seu longínquo exílio da África do Sul./ Digo à minha filha Mayisha que aquele homem/ é o maior pianista de jazz em toda a África/ e viro-me para ele: / – Mr. Ibrahim: sou moçambicano/ e um velho admirador seu. / Ele anui e trocamos um cumprimento de punho fechado / como se fôssemos velhos cúmplices. / Mayisha faz-nos uma fotografia com telemóvel. / Mr. Ibrahim abraça-me e eu faço-lhe depois uma vénia. / Levo pela mão a minha filha enquanto Mr. Ibrahim prossegue o seu destino. / Também a cumprimentara de punho cerrado. / Explico à Mayisha que aquele homem é um soberbo músico de jazz/ do District Six/ na Cidade do Cabo onde ela vive / e acodem-me à memória os sons de “Mannenberg”. / Era assim quando ele era Dollar Brand. / É assim agora que é Abdullah Ibrahim. / Partilho, no auricular, “Woza Mtwana”, “Tintinyana”, “The Wedding”, “African Sun”, “Mannenberg”, “District Six”. // Mais tarde, ao rememorar aquele encontro/ volto-me para a imagem das suas mãos/ o punho cerrado/ como nos saudamos/ e lembro-me delas magnificentes e enfeitiçadas. // Aquelas mãos do Mr. Abdullah Ibrahim/ meu vetusto Dollar Brand/ quando ele está sentado ao piano/ parecem-se demasiado/ com as mãos de Deus.”

Acho que o ouvi até adormecer na minha viagem a Londres. Vira-o pela primeira vez a tocar em Joanesburgo e ficara empolgado com a sua figura majestosa e os seus gestos soberanos. Abdullah Ibrahim ao piano é indescritível. Um Deus ao piano. Os sons que ele tira daquele instrumento são inexplicavelmente belos. Talvez seja o último dos grandes mitos planetários. Foi parceiro e admirador de outras grandes figras legendárias do jazz: Duke Ellington, Thelounious Monk,John Coltrane, eu sei l. Não deve haver hoje entre os vivos figura tão comensurável do jazz. Em África, pelo menos. Desde os 15 anos que comecei a ouvi-lo na Rádio Moçambique. A RM tocava reiteradamente, naqueles anos 80, “Mannenberg”, que se haveria de transformar num hino anti-apartheid. Manenberg (a capa do disco e a música estão grafados como “Mannenberg”, mas a zona é conhecida como Manenberg) é como se chama a township para onde foram levados os não-brancos residentes do District Six (mais de 60 mil), obrigados a abandonar a sua zona de origem por força de um ditame do apartheid, em 1966 (Group Areas Act, 11 de Fevereiro de 1966). A desumanidade do que ali aconteceu é uma das marcas distintivas da política de segregação racial. A geografia da separação e do confinamento. Construíram-se auto-estradas e linhas férreas para separar comunidades. Destruíram tudo à volta, apenas deixaram intactas algumas escolas e lugares de culto. District Six é lugar de origem de muitos nomes insignes da cultura sul-africana. Ibrahim é oriundo de lá, como o saxofonista Basil Coetzee, que com ele tocou este extraordinário libelo contra o apartheid que é “Mannenberg”, ou o escritor Alex La Guma, de que ninguém fala hoje em dia, mas que chegou a ser um dos nomes proeminentes da literatura sul-africana. Morreu no exílio, em Havana, em 1985.

Nascido Adolph Johannes Brand, a 9 de Outubro de 1934, no District Six, na Cidade do Cabo, Abdullah Ibrahim iniciou a sua carreira em 1955. Contudo sete anos depois estava exilado na Europa. Em 1965 casar-se-ia com Sathima Bea Benjamim, uma cantora de jazz, também da Cidade do Cabo. Foi ela quem haveria de convencer o mítico pianista Duke Ellington a ouvir, em Zurique, o “Dollar Brand Trio”, onde pontificava o seu futuro companheiro de uma vida. Sathima morreu em 2013 com 76 anos. Musa e companheira de Ibrahim. “Song for Sathima” é uma bela homenagem.

O encontro com Duke haveria de mudar a vida deste virtuoso pianista sul-africano e definir-lhe o rumo, que é hoje um dos mais consagrados nomes do jazz, não só ao nível do continente, mas no mundo.  “Ode to Duke Ellington”, de 1973, testemunha isso mesmo ou “In a sentimental mood”, de Ellington, também conhecida a extraordinária gravação do compositor e o saxofonista John Coltrane. O casal Brand seguiu para Nova Iorque onde emparceiraram com nomes luminosos do jazz, como Ornette Coleman, John Coltrane (que ele haveria de homenagear na músca “For Coltrane”), Archie Sheep, Max Roach, entre outros.

Nos anos 70 ensaiou um regresso à África do Sul. Entretanto, convertera-se ao islamismo em 1968, o que explicará a sua mudança de nome artístico de Dollar Brand para Abdullah Ibrahim, anos mais tarde. Foi nesse interregno do exílio, nos meados dos anos 70, que cria “Mannenberg”, em 1974. Participam nela: Dollar Brand (Abdulah Ibrahim) ao piano; Basil Coetzee, que toca saxofone tenor; Robbie Jansen, saxofone alto; Monty Weber na bateria e Morris Goldberg ao saxofone alto. Não sei quantas vezes ouvi este tema. É um grande momento na inventiva deste pianista genial. A música é gravada em Junho, ele está à beira de fazer 40 anos em Outubro desse ano.

Ali estão as influências todas que bebeu na infância, na juventude e na idade adulta: nos ritmos locais conhecidos como marabi, mbaqanga, ou kwela, que tem uma extraordinária influência no chamado jazz sul-africano. Não é desprezível a influência do jazz americano. Ali estava o jovem que tocara nos The Jazz Epistles, uma banda de bepop, onde pontificaram alguns dos mais insignes nomes do jazz sul-africano: Kippie Moeketsi (saxofone alto), Jonas Gwangwa (trombone), Hugh Masekela (trompete) Johnny Gertze (baixo) Makaya Nstholo (bateria). Esta experiência durou pouquíssimo. Iniciada em 1959 (a banda própria de Ibrahim é de 1958), a sua actividade seria coarctada após o massacre de Sharpeville, que está na origem de uma grande repressão cultural que atingiu estes músicos. Muitos deles emigram. Curiosamente, Basil Coetzee empurrado do District Six para Manenberg nunca irá emigrar.

Rui Knopfli: “Depois do turkish coffee meto-me/ até ao Cul de Sac e fico-me/ a ouvir o sax maravilhado / de Kippie Moeketse. O jazz, sim, é genuíno e tem um bite/ todo local.”

Dollar Brand, primeiro, Abdullah Ibrahim, depois, percorreu o mundo, tocou nos palcos mais importantes, compôs temas inesquecíveis e tornou-se um verdadeiro mito do jazz. Em 1982, Dollar Brand esteve em Moçambique. Em casa de Ricardo Rangel descobriu – já aqui contei – um disco seu que já não tinha. Há aliás uma fotografia desse encontro: Abdullah Ibrahim, Ricardo Rangel e Malangatana. Rangel, sabe-se, era um impenitente coleccionador de LP, o mais importante coleccionador moçambicano de jazz. Eu acompanhei essa visita pelos jornais e ouvi-o tocar na Rádio. Sempre quis ouvi-lo ao vivo. Desde aquela altura. Em Março de 1983, Mia Couto publica o seu livro de poesia de estreia, intitulado Raiz de Orvalho. Tem este poema com o título “Dollar Brand” escrito a 18 de Agosto de 1982.

Mia Couto: “Eu quero uma canção/ que se renda insubmissa/ mas não a peço/ porque sei que morre quem pede/ e eu sou fiel/ aos passageiros desconhecidos/ da minha fraternidade / Assim me chega/ o primeiro acorde/ a primeira lágrima sonora/ e os teus dedos vão esculpindo/ uma arca de fascínio/ do mundo dos sons/ tu retiras/ os sons do mundo/ e na sua suave febre/ da tua maneira/ ouvimos tudo/ de todos os lados/ porque em nós desagua/ a canção de todas as canções.”

“Mannenberg” atravessou a minha vida. É um dos temas que mais ouvi nas últimas quatro décadas. A história da África do Sul dizia-nos muito, dizia muito à minha geração, e nós, naquele tempo, empenhámo-nos no sonho de ver o país livre do apartheid. Provavelmente, hoje, isso não tenha significado ou expressão para os jovens deste tempo. Minha filha tem 18 anos e eu queria que ela tivesse um pouco desse legado. Queria, sobretudo, que ela entendesse um pouco daquilo que eu, na idade dela, vivia e sonhava numa cidade sitiada e acossada, sobretudo pelo facto de Moçambique ter apoiado aquela luta. O preço duríssimo que pagámos. A desmemória pode ser uma factura ainda mais elevada. Daí a minha obstinação pela memória. Comecei a falar-lhe dos anos 80 e fi-lo através da música dos Ghorwane: sobretudo “Akuhanha” e “Terehumba” de Roberto Chitsondzo. Ia a caminho de District Six, esta segunda-feira, e explicava à Mayisha estas duas músicas. Era o prelúdio para ela entender como era o nosso tempo, sendo que estas duas músicas não são datadas, antes pelo contrário. Permanecem actuais. Parece um paradoxo introduzir a conversa sobre a importância de Abdullah Ibrahim ouvindo antes os Ghorwane? Pode parecer, mas não o é. Foi naquela circunstância dos anos 80 que eu comecei a ouvi-lo e esse era o meu contexto. Queria transmitir-lhe isso.

Abdullah Ibrahim, “Water from an Ancient Well”, no The Fugard Theatre, no District Six, tem um significado incalculável. Já o vi tocar em Joanesburgo ou na Cidade do Cabo diversas vezes, e em nenhuma delas o vi tocar “Mannenberg”. Hoje sucedeu o mesmo. Por que razão Abdullah Ibrahim não toca “Mannenberg”? Ele esteve soberbamente durante hora e meia no palco solitário com o seu melancólico piano: “Woza Mtwana”, “Little Boy”, “Tintinyana”, “The Wedding”, “African Sun”, “District Six”, entre outras composições. Tinha uma pauta para o conduzir na intersecção das músicas e um rabisco onde estavam escritos os títulos das músicas. Eu estava na primeira fila e a dois metros do seu piano e consegui enxergar alguns dos títulos rascunhados no roteiro que começara com “Chisa”: vi redigido “Tintinyana”, “D-6”, entre outros títulos.

Acabo de regressar dessa missão exultante. Ali naquela sala encantadora, daquele teatro emblemático, do District Six, dei a conhecer Abdullah Ibrahim à minha filha Mayisha. Foi o mesmo que contar também a minha história dos últimos 35 anos. Nós somos aquilo que ouvimos, lemos ou admiramos. As obras magistrais de criadores como Ibrahim escrevem, de algum modo, a nossa biografia individual e até colectiva. O teatro chama-se Athol Fugard, um renomado dramaturgo sul-africano, de 86 anos, que escreveu peças que denunciavam o apartheid. Recordo-me de ouvir, na Rádio Moçambique, no “Cena Aberta”, uma peça dele, adaptada pelo Leite de Vasconcelos. Ao ver aquele nome ali estampado, também revi um pouco do meu percurso e sobressaltei.

Ao longo de hora e meia deixei-me empolgar, emocionar, arrepiar com o génio de Abdullah Ibrahim. Enquanto ouvia aquele piano devastador – a arte quando é tão bela e lancinante pode ser igualmente devastadora – eu olhava de vez em quando para a Mayisha e tentava transmitir-lhe, por caminhos ínvios, provavelmente, a emoção de estar ali e ver e ouvir aquele Deus africano ao piano: soberbo e generoso, genial e inultrapassável, hierático e sublime.  Não sei descrever mais o que senti naquela noite no District Six. A exultação de todos, com palmas intermináveis, que ele humildemente pediu para que cessassem, senão não poderia retirar-se, atestam o raro momento que ali vivemos e comungamos. Oiço-o agora, enquanto batuco esta prosa canhestra e volto a comover-me.

 

Nenhum inferno é maior que o da voz traída

e nenhum bem vale o da sua integridade.

Rui Knopfli – in CALIBAN 3/4

 

Ao FMT:

  Ferdinando Manuel Torres!

A poeira evoluía como tufão sobre o chão da avenida. Uma cortina de areia vibrava no ar cortejada por papéis, fiapos de plásticos num movimento descontrolado. O passeio montava a sua própria feira, um castelo oferecido por aquela brisa matinal de Agosto. O Sol andava envergonhado lá nas Alturas. 

Um rapaz de mochila às costas, as calças de ganga enormes flutuando entre as pernas, ao sabor da dança ou hesitação intermitentes? Ele movia-se, ora para frente, em gestos desconexos, os braços vagueando no ar com os dedos a apontarem para um lugar qualquer. Noutras vezes para trás e para cima e para as laterais. Será isto rap?

No passeio havia uma fila de senhoras sentadas junto de caixotes exibindo fruta de época, bolachas, doces, pastilhas, peneiras de amendoim torrado, pão e tigelas contendo badjias, ovos fritos e cozidos, palones, etc. Havia moços vendendo jornais, outros expondo um montão de sapatos, outros ainda em correria desenfreada ao mínimo assobio de quem precisasse de uma recarga para o telemóvel. Um senhor estava sentado num banco de madeira, costurando sapatos, sempre à espreita de um sinal para engraxar ou atender a um outro caso urgente relacionado com o calçado.

Vim a saber que o moço de calças de ganga chamava-se Mapulango quando duas raparigas saudaram-no. De seguida meteram-se num «chapa cem», com lugar reservado no assento da frente. Ele continuou ali a olhar para o boneco. Resolveu subtrair das suas economias uma nota para comprar uma recarga. Talvez assim encontrasse amparo no telemóvel.

O vento serenou. Dos semi-colectivos desciam dezenas e dezenas de passageiros. Alguns moviam-se logo pelo passeio, a pé em direcção aos locais de trabalho. Mapulango que também usava um gorro preto à cabeça, uma t-shirt vermelha de mangas compridas, permanecia no passeio da avenida 24 de Julho. Pelos vistos estava à espera de outro chapa para os lados do Museu da História Natural, no bairro da Polana.

Muitos chapas que fazem a trajectória até ao Museu andavam apinhados de passageiros, nem sequer paravam para carregar quem quer que fosse. «Sorte tiveram as minhas colegas» – Pensou Mapulango.

Do local onde ele estava voltou a ensaiar timidamente uma abordagem aos cobradores. Qualquer coisa fazia o moço hesitar. Ele gesticulava exibindo cinco dedos aos cobradores. Muitos ignoravam o gesto ou talvez desconhecessem a mensagem por detrás daquele código?

Mapulango voltou a remexer as suas calças em busca de uma solução para o chapa. O Sol já ia alto. Duas senhoras penduravam roupas no estendal da varanda prédio, alheias à preocupação do rapaz. Dali a pouco os colegas que já se encontravam nos bancos da escola haveriam de entrar para o segundo tempo da aula de Teoria de Comunicação. As moedas recolhidas nos bolsos das jeans azuis já coçadas pelos anos de uso suspeitavam seriamente das contas feitas mentalmente por Mapulango. As moedas não chegavam para pagar o transporte. E nestes momentos de aflição amigos para dar uma tchova, como se diz por aqui, escasseiam como a chuva em Mabote ou em Xicomo.

E vezes sem conta os cobradores que por ali passavam gritavam à porta dos seus mini-bus, animando o que sobrava daquela manhã de quarta-feira:

–        Bááixaa, báixou, bááixahhh, bááixa.

Como não era aquela a música que Mapulango queria ouvir mudou de canal e virou-se para o outro lado do passeio onde outros cobradores gritavam:

–       Liberdade, liberdadêê. Cine 700, Cine 700. Cidade da Matola: Casa Branca-João Mateus – Cidade da Matola. Matola halenoôô.

Mapulango estava já à beira de um ataque de nervos. O moço ergueu os dedos no ar, com insistência para três chapas do Museu que se aproximavam do passeio. Havia sinais claros de que alguns passageiros pretendiam descer. Ele foi acenando, com os cinco dedos alertando aos cobradores do valor que ele tinha para pagar. Houve um golpe de misericórdia e um cobrador aceitou, abanando a cabeça num sinal claríssimo «azgo!».

Depois de tantas negações Mapulango estava ainda incrédulo. Certificou-se com um olhar insistente sobre a aprovação do cobrador. Dirigiu-se ao chapa num passo, imitando a solenidade monárquica de um desses príncipes rumo ao trono. E passados dois minutos encontrava-se à porta do chapa com a inscrição lateral Fomento-Museu. O moço tirou o auricular da orelha esquerda e fez um aceno a quem passava doutro lado da rua. Retirou o outro auricular da orelha em falta e de olhos fixos no cobrador perguntou:

–       Tem música?

 

O desgosto dado por uma mulher só se cura com o amor de outra mulher

Albino Magaia

Chakil Aboobacar é autor de um livro que, com mais cuidado, seria um romance muito apreciável. Pétalas d’água é o título do livro em causa, no qual perpassa um carácter narrativo de quem sabe traduzir em história o que se revela num universo interior. Ao construir o seu enredo, logo se nota, Aboobacar esmera-se em aventurar o leitor pela beleza das palavras, quase sempre constituídas por esses plurais valores semânticos que fazem do texto literário um produto em permanente redescoberta.

No que tange ao trato da língua/linguagem temos na obra de Chakil Aboobacar um exercício sugestivo. Em contrapartida, há tantos outros recursos indispensáveis à trama olvidados ou deixados à margem, daí certas fragilidades imporem-se no livro. Comecemos pelas descrições. A este respeito, há pobreza generalizada. Por exemplo, na primeira parte do livro, “Compromissos adiados”, o narrador não explora os espaços onde as acções ocorrem, desvaloriza o retrato dos cenários, o carácter das personagens e o discurso é vazio, frágil e breve. Duas personagens são introduzidas nesse segmento: André e Marisol. Mesmo assim, não se sabe, por exemplo, a altura de cada uma, e quem diz altura pode referir-se à idade, ao peso, ao comportamento, à virtude, à vaidade, às convicções e incertezas, quer dizer, a tudo o que é relevante na personificação da personagem, seja nuclear ou secundária. Do André, o protagonista, escapa muito pouco: é artista plástico, jovem e ama uma mulher chamada Marisol, a quem se dá uma atenção mínima a partir da segunda parte, “Pensamentos, desejo e silêncio”. Aboobacar poderia ter traçado um retrato prolongado daquela personagem, pegando bem no nome (Mar + Sol), explicar, por exemplo, por que os pais a deram esse nome, relacioná-la com essas duas condições da natureza e explicar o que na vida dela a tornou materialista, sujeitando-se até ao kutchinga, quando poderia optar pelo amor que tanto ela como André sentiam. Esse retrato pormenorizado da personagem ficaria agridoce, bonito, pois o leitor reuniria informação que o permitiria amar e detestar Marisol. Nunca ficar indiferente. Recorrendo a uma analepse, então, o narrador heterodiegético, que não participa ma história por si contada como personagem, saciaria a sede do narratário, essa entidade intangível que está para o narrador, digamos, na mesma relação que o leitor está para o autor. 

Diante de uma história sobre o amor, numa vertente actual e necessária, Chakil Aboobacar deixa passar ao lado muito detalhe, é demasiado linear. Com isso, fica difícil a história surpreender.

Tzevetan Todorov considera, no livro As estruturas narrativas, o seguinte: “para que as personagens possam viver, devem contar”. Honestamente, o narrador deste livro é tão apressado que nem essa recomendação é capaz de seguir. Os diálogos das personagens são ocos, sem nenhuma comoção. 

Este livro é exageradamente pequeno, justamente por se ter deixado à margem as ramificações de que se tece uma boa narrativa. Dessa desvalorização, aparentemente, emergiu o esforço de se fazer com que o livro ficasse com as 71 páginas, resultantes de um espaçamento muito acentuado entre as linhas.

Na terceira secção, “Destino”, o narrador diz, ao referir-se ao marido de Marisol: “Mas de momento não se é de falar de Matavele e suas tradições, sua inépcia pelo trabalho, pois, o propósito do relato é mesmo Marisol” (p. 43). Essa afirmação seria apropriada se o narrador tivesse investido três, quatro ou cinco mil caracteres de focalização em Matavele. Não dando azo a esse evento, como calha noutras personagens, a ficção desagua numa tremenda superficialidade. Para além de que o narrador contradiz-se logo depois de afirmar que, naquele momento, não importa falar de Matavele, falando.

Na nossa percepção, são estas as fragilidades desta história em que as personagens desencontram-se e decepcionam-se, quando tentam amar.

Título: Pétalas d’água

Autor: Chakil Aboobacar

Editora: AEMO

Classificação: 10,5

Era um dos jovens escritores mais promissores. Era também jornalista, trabalhava no Jornal Notícias, diário onde haviam pontificado alguns dos grandes nomes do nosso jornalismo e outros tantos da nossa literatura. Estávamos em Dezembro de 1986, mais precisamente a 15 de Dezembro, uma segunda-feira, quando fui ao seu encontro, a meio da manhã. Conhecia e admirava o seu trabalho literário. Dos jovens de então, ele se destacava. Marquei o encontro ao telefone, naquela época havia apenas o telefone fixo, ou PBX, e terá sido por essa via que combinei ir ter com ele ao jornal. Conversámos sobre o que andávamos a escrever, não publicava e não escrevia desde que caíra doente. Eu estava a organizar uma colectânea de poesia para fazê-la editar na “Gazeta”, onde colaborava. Creio que esse projecto não passou de uma simples ideia. Mais tarde, com a Fátima Mendonça, haveríamos de o coligir, numa antologia que ambos organizámos, a Antologia da Nova Poesia Moçambicana. Ele concordou em colaborar e ficou combinado que em Janeiro, a seguir às festas, eu haveria de o contactar. No entanto, antes de abandonar a redacção, pedi que ele me levasse ao arquivo do jornal, o que o fez sempre prestimoso. “Fica aqui a entreter-te”, disse-me, e lá me deixou. Eu, entretanto, prometera: “Depois falo contigo”. Mergulhei nos jornais. À hora do almoço, fui-me embora. A 6 de Janeiro de 1987 passei pelo Notícias. Ele não estava. Na manhã seguinte liguei ao jornal. Ele também não estava. No dia 8 de Janeiro, disco novamente o número do Notícias:

– Bom dia, pedia para falar com o Senhor Baltazar Maninguane.

– O Baltazar faleceu…

Fiquei atónito.

– Faleceu?!

Do outro lado, ainda me lembro, o homem estava impaciente:

– Sim. O Senhor não leu o jornal?!

Ler o Notícias, logo cedo, era uma tarefa obrigatória naqueles inesquecíveis, emblemáticos, sofridos e exaltantes anos 80. Não o fizera ainda. Fiquei estarrecido, devo ter balbuciado algumas palavras sem sentido e não me recordo de como desliguei o telefone.

Quando, em 2004, organizei, a pedido do Nelson de Matos, então meu editor na D. Quixote, a antologia Nunca Mais é Sábado, resgatei do livro que fizera com a Fátima Mendonça três poemas do Brian Tio Ninguas, o seu nome literário. Num texto breve e comovido que redigiria para a “Gazeta”, em Janeiro de 1987, chamava-lhe camarada (de letras, entenda-se) e dizia: “Os poetas não morrem nem emudecem”. Tinha ele 26 anos, fora publicado, para além da imprensa local, na revista África, promovida por Manuel Ferreira, em Portugal.

Brian Tio Ninguas: “Sinto a respiração do aroma das palavras/ que viajam nos teus olhos// Sinto a pulsação da vontade desfraldada/ que no teu corpo acolhe a vida// Enrolo um cordel de esperanças nesses seios/ que alimentarão sóis que chamar-te-ão Mamã.”

Lembrei-me, a partir daquele episódio dilacerante, de alguns escritores que subscreveram, ao longo dos anos, uma espécie de anátema da nossa história cultural: a fatalidade na literatura moçambicana. A notícia de escritores mortos muito jovens é extensa. Para além do Brian Tio Ninguas (1961-1978), vou aqui tributar a favor de Castigo Zita (1961-1988), Celestino Jorge (1956-1998), Gulamo Khan (1952-1986) e Orlando Muhlanga (1963-1996). Poderia fazê-lo, se o espaço mo consentisse, a Carlos Cardoso, Hilário Matusse, Bahassany Adamogy, Júlio Bicá ou Amin Nordine, debruçando-me apenas sobre os que conheci ou com quem convivi, ou que me são próximos em termos geracionais. Fá-lo-ei, espero, um dia. Do Eduardo White e do José Pastor lavrei aqui longos e comovidos preitos.

O Castigo Zita visitava-me amiúde na redacção da revista Tempo, da qual era colaborador, onde assinava uma coluna intitulada “Trópico”. Sentávamo-nos lá no fundo e falávamos de literatura. Para além de escrever contos, era um activo membro da Associação dos Escritores (AEMO), onde coordenava, com António Firmino e Edgar Cossa, a Brigada João Dias. Editavam a revista Forja, que nasceu do sentimento de marginalização que alguns jovens sentiam da Charrua. Também era investigador. Chegou a compilar, a pedido do Albino Magaia, director da revista Tempo na época, os textos de João Albasini, o primeiro jornalista moçambicano de renome e um dos precursores da literatura moçambicana. Abasini fundou e dirigiu importantes jornais como O Africano e O Brado Africano. Dedicado e paciente, o Castigo recolheu textos, copiou-os dos jornais O Africano, O Brado Africano, tanto das colecções em papel do Arquivo Histórico como dos micro-filmes que encontrara no Centro Cultural Português em Maputo. Este trabalho árduo e minucioso iria emperrar na fase composição do livro projectado – na época a composição de textos era feita a chumbo na Tempográfica – e não chegou a ser editado na colecção “Cadernos Tempo”, como Albino Magaia almejava.

Quando a morte o surpreendeu, por congestão, numa piscina em Harare, enquanto passava férias a seguir ao dia de Natal de 1988, ele tinha 27 anos e preparava-se para fazer o mesmo trabalho em relação a outra grande figura do nosso jornalismo – Estácio Dias. Estácio Dias é um dos nomes míticos do nosso jornalismo e era pai do escritor João Dias, falecido prematuramente aos 23 anos em Lisboa, para onde se transferira, depois de ter frequentado 3 anos de Direito em Coimbra. A Brigada que Castigo animava homenageava João Dias, um dos primeiros nomes da ficção moçambicana. João Dias dedicou-se à crítica cinematográfica, ao jornalismo e à literatura e deixou uma obra que seria publicada postumamente – Godido e outros contos. Castigo era de uma grande generosidade e humildade. Um homem bom, excelente conversador. Um entusiasta e dinamizador de múltiplas iniciativas, das que ele febrilmente intentava. Zita nascera no Guijá, em 1961. Não deixou livro publicado. Neste país de amnésia e descaso, sem referências, nem interesses culturais, ninguém pegou no seu trabalho e o publicou. Ficou emperrado nas linotypes da vetusta Tempográfica.

Castigo Zita: “Na sua cabeça as coisas transformavam-se e ficava apenas a lembrança do túmulo diante da palhota, para que a mulher não esquecesse dele de cada vez que entrasse nela. E caso trouxesse um homem para dormir com ela, esse homem que o vinha cornear, visse e reconhecesse o verdadeiro dono das roupas, dos seus bens que para sempre continuariam a seu cuidado. Apesar de viver agora na cidade, levava consigo na memória o respeito pelo morto: estaria enterrado diante de qualquer casa onde quer que ela fosse viver para não ser esconjurado pelos deuses e para que os seus filhos não sofressem no futuro o castigo de não parir por causa disso.”

Colega de redacção, o Celestino Jorge era, para além de jornalista, poeta. Tinha sido professor. Publicara alguns poemas nas páginas literárias da época, figurara em algumas antologias, não publicou em livro. Durante anos trabalhámos lado a lado. Também era nosso colega o Fernando Manuel, que era o repórter mais destacado do nosso tempo. Ele próprio poeta e ficcionista, para além de ser um cronista brilhante. Tenho saudades das conversas amenas que tinha com o Celestino, da sua extrema elegância e perspicácia, da sua humildade extraordinária. Saí da Tempo, em finais de 1990, quando fui estudar em Portugal e perdi contacto com ele. Retornei a Moçambique em 1995 e recordo-me de nos termos visto fortuitamente algures na cidade. Quando eu estava a preparar a antologia Nunca Mais é Sábado, em 2003, descobri, ao procurá-lo, que ele morrera, cinco anos antes. A recorrente tragédia da nossa literatura e do nosso país.

Celestino Jorge: “Como sumo de mafwilo açucarado/ flui e reflui no lábio/ teu anunciado beijo// E uma mancha de ansiedade/ sobre mim suave desce/ com a cor arco-íris do crepúsculo/ Na solidão/ um feixe de ansiedade/ derrama-se em jorro/ do teu olhar impostor/ Ansiedade…”

Quando entrei para a Rádio Moçambique, no início da década de 80, ainda me cruzei com o Gulamo Khan nos seus vetustos corredores. Conhecia-o também, ou sobretudo, do mundo literário. Para além de poeta, o Gulamo era um extraordinário declamador. Tenho na memória alguns dos poemas do José Craveirinha que ele dizia de forma superlativa. Ele celebrizou as “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane”, que as surripiou afectuosamente e as difundiu. Craveirinha haveria de redigir, na dedicatória, quando deu letra de imprensa ao poema: “Homenagem póstuma ao muito Amigo Gulamo que as descobriu e divulgou”. A AEMO também era um dos lugares de encontro. A última imagem que tenho dele: estava sentado num dos bancos do Tunduru – antes de um “Msaho”, que ocorria no coreto do jardim, onde nos últimos sábados de cada mês íamos dizer poesia -, combalido com jat leg de uma viagem ao Japão. Falámos brevemente. Nascido em 1952, em Maputo, morreu no acidente de aviação de Mbuzini, com Samora Machel, de quem era adido de imprensa. Moçambicanto, obra editada postumamente, em 1990, é a súmula da sua produção poética.

Gulamo Khan: “céleres as águas/ zambezeiam pela memória/ das almadias do silêncio// nem o zumbido da cigarra/ me entontece// nem o troar do tambor/ me ensurdece// as vozes que são/ sulcos das nossas esperanças// Oh pátria/ moçambiquero-te/ neste alumbramento/ e amar-te/ devo-o à carne e ao nervo/ deglutidos em revolta.”

Por fim, quero lembrar-me do Orlando Muhlanga. Não fui amigo dele, embora o conhecesse e tivéssemos falado ocasionalmente. Tive pena de não o ter entrevistado. Quando, na década anterior, eu interrogava os escritores, na minha resoluta busca da memória, havia uma questão sacramental: o lugar da guerra no imaginário moçambicano. Ali estava o livro que na década anterior intuíra vir a ser escrito – Diário de Sangue. Li-o logo que ele o publicou. Foi das primeiras obras que li quando regressei, em meados de 1995, a Moçambique. Creio que esta obra fez do Orlando a mais importante revelação, nos anos 90, da nossa ficção narrativa. O livro foi escrito no interior da guerra e sobre a guerra. É de uma perturbadora imagística, de uma efabulação esquizofrénica, de uma linguagem que retratava, com crueza, uma realidade cruel e violenta, demente e inexplicável daquela guerra, daqueles ataques a inocentes, dos massacres às populações, que a amnésia hoje cultua e parece não se importar com a sua reincidência. Valeria a pena (re)lermos este soberbo libelo contra a guerra do Muhlanga. Talvez assim se desse conteúdo ao vocábulo Paz. Orlando Muhlanga foi professor de História e de Português, integrou o exército entre 1984 e 1988, foi jornalista, publicou ainda alguns contos. Morreu com 33 anos num inexplicável acidente de viação, no dia 7 de Abril de 1996.

Orlando Muhlanga: “Não faziam barulho, andavam como hienas e batiam às portas devagarinho, mandavam os donos das casas entregarem tudo o que tinham na sua imaginação. Os que eram desconfiados de serem ‘secretários’ eram amarrados numa corda grossa e escoltados sob máxima vigilância. Dos bandidos quem sentisse vontade de matar, faziam-no a baionetas suáveis e mortais para a vítima não gritar.”

Brian Tio Ninguas, Castigo Zita, Celestino Jorge, Gulamo Khan e Orlando Muhlanga, tal como outros que eu gostava de os celebrar aqui, não merecem o descaso da pátria e a nossa complacente e persistente deslembrança. Faço quezília de os trazer à memória, afectuosamente, hoje e sempre.

 

Há tanto tempo que uma dor o arrasava e o varria impetuosamente no peito. Uma sensação intransigente atravessava-o constantemente como um veneno. Seu infortúnio de achar uma mulher para satisfazer sua apetência sexual absorvia-o os pensamentos; torturava-lhe o sexo. Vivia momentos insuportáveis!

     Por vezes corriam-lhe ideias de estuprar a qualquer mulher que lhe viesse pela frente. De mais aborrecido que estava consigo mesmo, num certo dia, ao pôr-do-sol, a noite estendia-se sobre os tugúrios, montanhas, e as estrelas cintilavam paulatinamente uma a uma, decidiu depender alguns meticais que os tinha em posse para pagar uma dessas mulheres que leiloam sexo de noite.

     – Ah, seu idiota, viva como quiser viver! – Persuadiu-se.

     Despendurava a jaqueta de capuz que pendia num prego com o feixe de ar que se adentrava, no seu minúsculo compartimento, por uma janela escancarada. O jovem saiu perambulando pelas traseiras da noite em direcção à avenida da marginal

     Avizinhou-se duma dessas mulheres vilezas que superlotam as cercanias da marginal no bosque escuro da noite. Por sinal a com beleza celestial. Tinha peito alto e parado. Trajava uma saia-colante de pouco tecido que deixava suas cochas alaranjadas descobertas, e revelava os contornos de toda a sua figura.

     O jovem adoecera de tanta beleza na besta. Mas não doença de doença. Seu órgão se flagrava hirto de furar as calças.

     – Quanto vales? – Pôs-se a indagar sem delongas.

     – 120 (cento e vinte) – disse a mulher.

     Num tremeluzir do olhar, dissolveram-se seus espectros pela boca escura do tugúrio.

     Um murmúrio quase surdo ressoou no interior do tugúrio evadindo-se pelos porros da ventilação: – Paga! Ressoou a voz da mulher cheirando a hálito de canábis. Num instante efémero, ouviu-se, seguidamente, farfalhos repentinos e indistintos conferindo os meticais. Uns minutos depois, a mulher ergueu o saiote e prostrou-se sobre uma capulana esticada no soalho, deixando suas intimidades alienáveis, enquanto, o jovem baixava as calças aos joelhos deixando seu cajado involucrar-se pelo preservativo.

     Um apagão dos sentidos fundiu-se. Num ímpeto de hesitações efémeras, espargia fluido branco e espesso directamente no orifício, pois a estourara o preservativo. Nem com isso, nenhum perigo o corria pela cabeça. Sorridente, suspirava de alívio; seus olhos brilhavam uma nova esperança; seu sangue corria como o chumbo derretido, dentro das veias. Sem dizer palavra, apressou-se a levantar as calças e saiu aos passos galopantes, sem se despedir. No mesmo instante, mais outro par fazia das suas num canto ao lado. Enquanto, mais um outro par percorria vão escuro do porão adentro.

     De tanto vicio, havia dias que binava, mas com mulheres diferentes; a maior das vezes quase sem protecção, pois sempre se rompiam os preservativos. 

     Doze meses depois, uma febre alternada com calafrios apoderava-se dele, e por momentos repentinamente o coração começava a bater-lhe com tanta força que se via obrigado a se apoiar em alguma parede. O diagnóstico da sua situação medicamentosa sai próxima semana, entre quarta-feira, quinta, ou sexta-feira, porque é um final de semana prolongada, e o departamento das análises e testes não trabalha aos finais de semanas nem feriados e tolerâncias.

     – Seja lá o que for, infernizem-se essas bestas! – Murmurava com os lábios inflamados estrebuchando. – Paguei a morte! – Continuou crucificando-se pelos seus erros.

     Pelo resto do corpo todo floriam feridas à flor da pele. Dois dias antes do resultado do diagnóstico, encontrara-se óbito.

 

Entre a surpresa de ter em mãos um romance à satisfação de lê-lo num ápice, o resultado foi o contentamento de folhear com agrado a memória do passado colonial de Moçambique, traduzido em obra literária que não deixa margens de dúvidas, sobre o facto de estarmos ou não perante um livro de ficção inserindo todos os artefactos que lhe possam valer como tal. O arrebatamento com que o livro nos toma e transporta para o universo do imaginário, alicerça a sensação com que fiquei, como leitor, ao receber RECADOS DA ALMA. Quanto a mim este livro veio para enriquecer o nosso património literário, e como diria Suleiman Cassamo, está acima da linha da água, surpreendendo sobremaneira, pela sua arquitectura e densidade do enredo.

Lido o livro, e por um sentimento de alma, como o próprio autor nos sugere no título do livro, fica realmente um sentimento de estima e gratidão para quem sabe amar e sonhar sem fronteiras e sem preconceitos. Aliás, uma alma nunca tem limites, ela própria é como o divino, no seu absolutismo. 

À medida que eu ia lendo o livro, iam-se sucedendo em mim múltiplas emoções, remetendo-me sempre à condição humana, ressumada na dor e também na vontade e alegria de viver. O livro espelha com efeito o universo que são as contrariedades da vida, a acessibilidade e inacessibilidade da felicidade.

“Custa a uma mãe branca, por muito progressista que seja, entregar a sua única filha aos ditames da vida do subúrbio de Mbongolwene. Mas ela tem que optar entre atirar a própria filha a um palco em que dias antes se testemunhou a matança indiscriminada de brancos ou então enfrentar mais um tiroteio em casa. Com um coração totalmente despedaçado, encharcada de lágrimas de uma incerteza quanto ao futuro, decide deixar que a filha se vá juntar ao homem que ela escolheu para a vida. Se é esse o destino que Deus traçou assim terá que ser. Quem pode lutar contra o destino?" (P103).  

A história do livro é como a própria vida, que é uma teia de enredos, permeando toda a conjugação do verbo Ser. Mais interessante ainda é a fusão que o autor faz do real e do imaginário quanto a algumas pessoas e lugares, numa mescla de passado, presente e futuro. O livro está muito bem estruturado, e escrito numa linguagem simples, suave e doce, mas ao mesmo tempo numa linguagem revestida de sabedoria e cultura, conhecimento profundo da terra e dos homens que propõe levar-nos a desvendar.

RECADOS DA ALMA não sendo um livro de poesia é certamente um poema que nos convoca à vocação da busca da reivindicação do SER em oposição ao TER. 

“Mais do que estas dificuldades materiais ela enfrenta o estereótipo de como os vizinhos a encaram…

Ela ganhou coragem e jurou determinação em querer provar que acima do ser branco ou preto e acima do ser rico ou pobre há um valor sublime que deve ser respeitado: o valor do ser humano" (P112).

Sublima a necessidade do aperfeiçoamento da pessoa humana independentemente dos seus conflitos interiores e exteriores. Em RECADOS DA ALMA, o autor convida-nos a perseguir a Alma, ou seja, a essência humana contra todo o tipo de alienação; ele exprime a necessidade do cultivo permanente dos valores mais profundos do ser humano, tais como os da honestidade, bondade, solidariedade e sinceridade.

O livro leva-nos ainda a outras paragens, como por exemplo, ao encontro da Afrodite, aquela da mitologia grega, representada na capa do livro em forma de estatueta, e outros pro-personagens que perfilham e fazem deste romance, um conjunto de saberes universais, fazendo um acasalamento entre a mitologia africana e a europeia, numa comunhão de espíritos sem fronteiras.   

Para não cair na tentação, aliás o que seria impossível, de transcorrer aqui todos os lugares e recantos do livro RECADOS DA ALMA, pararia por aqui renovando o convite à leitura deste lindíssimo livro que permite conhecer personagens de características singulares como são os casos dos eternos apaixonados Eugénio e Mafalda. Do multifacetado Zé Mundoni. Da boa e sensata Cristina. Do gingão e engatatão que leva o nome de Original. Do racista e fascista Lopes. Do Simões, o funcionário municipal que as circunstâncias transformaram-no num jornalista, entre outros. 

Depois de lido o livro, como que a digerir o que acabardes de consumir, fica uma pulga na orelha em forma de pergunta que só o leitor, destinatário dos Recados da Alma, saberá talvez responder: afinal quem é o Castro? Será uma sombra dum mensageiro escondido algures ou no próprio autor?  

 

Jogam-se os provinciais, ascende-se à Divisão de Honra, mas o sonho é chegar ao Moçambola. Ascensão legítima, mas…
Há gato escondido com o rabo de fora. É que, se até aos citados níveis é necessário aos clubes encontrarem verbas para viabilizarem a participação, o cenário na prova-maior muda radicalmente. Estadias, viagens e até as respectivas marcações, ocorrem inteiramente por conta da Liga Moçambicana de Futebol, que por sua vez vive de patrocínios.
Daí um dos sonhos em chegar à competição máxima, para lá do prestígio que a prova-maior confere. Sai-se do panorama provincial, vem a mediatização nacional e a redução drástica das despesas. Esta é uma das motivações da ascensão ao MoçamBORLA!

Um passo atrás para dois à frente
É uma herança que tem barbas e que não poderá ser resolvida de um dia para o outro, pois está enraizada na “cadeia de valores” da nossa alta competição. Participar, assistir e dirigir o futebol intra-muros – salvo honrosas excepções – depende de patrocínios, maioritariamente das empresas públicas. No fundo, é o Estado-Papá que se encontra por detrás, até porque se diz tratar da festa de unidade nacional, algo que nos “refresca”, num quadro no país em que temos mais razões para tristezas do que alegrias.
Daí que…
Recorrer a medidas radicais, mesmo que nos pareçam realistas, não deverá ser o caminho certo. Na apresentação de propostas de figurinos para o futuro Moçambola por parte da Liga de Futebol, pela primeira vez foram exibidos publicamente números. Um passo na direcção certa a ser seguido pela FMF, que deverá acabar com os secretismos em redor dos custos das operações dos Mambas, salários dos treinadores, despesas de deslocação, etc.

Reverter hábitos sem quebrar entusiasmo
A crise não pára à porta do desporto. Por isso, há que pensar realisticamente em dar dois passos atrás na contenção das despesas, revertendo hábitos, mas sem quebrar entusiasmos. A partir daí, com prudência, começar a pensar no futebol como uma indústria cujo investimento terá, necessariamente, que ir sendo auto-sustentável, até produzir lucros.
No centro, o principal activo: o atleta. Depois, a imaginação na publicidade, que estimule patrocínios com retorno. A partir daí, a apetência dos adeptos por vitoriar as suas equipas, sabendo que a participação no clube obriga a pagar quotas e a assistência aos jogos, o pagamento do bilhete de entrada, para manter a máquina organizativa em acção.
Há que acertar o passo com o continente e com o mundo, na certeza de que temos – com provas dadas – talento em bruto ansiando lapidação.
As provas do que em vários países o desporto beneficia os cidadãos na saúde, finanças e na projecção em geral, são mais do que suficientes e encorajam a introdução de mudanças pensadas, com o objectivo de virmos a ficar mais fortes, no desporto-rei.
Isso exige a participação de todos, de forma a que o actual MoçamBORLA se torne sustentável e a cada ano menos dependente, até atingir a plena auto-suficiência.

 

 

Há dias, o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) anunciou que 3.000 meninas abandonaram a escola em 2017 devido a gravidez (O Pais, 4 de Setembro 2018).

O pior é que o governo confirmou que esta tendência tem aumentado, juntamente com o número de adolescentes fora da escola, que, segundo a UNESCO, aumentou em mais de 100.000, de 360.000 para mais de 480.000, entre 2008 e 2015.

Nada que um plano de ação devidamente financiado, com responsabilização atribuída, não poderia sanar, protegendo e mantendo assim as meninas na escola.

A boa notícia é que o sucesso nesta matéria – ao alcance – reduziria a pobreza em Moçambique mais do que qualquer outro investimento público.

O que sabemos sobre o estado das meninas nas escolas é alarmante. Se bem que datado, 75% das raparigas entrevistadas pelo MINEDH em 2008 relataram que as escolas não são seguras, com o abuso sexual a acontecer e com poucas repercussões para os perpetradores, seja professor ou estudante. Infelizmente, há poucas razões para pensar que as coisas melhoraram nos dez anos desde que a pesquisa foi realizada.

De facto, se mais meninas abandonam a escola por estarem grávidas, as coisas podem até ter piorado.

Será que existe motivo para optimismo nos próximos dez anos? No nível da política nacional oficial, o Despacho 39/GM/2003 faz pouco mais do que culpar as vítimas, relegando as meninas grávidas a frequentarem o curso noturno, o que muitas vezes leva ao abandono escolar.

Revoga-lo mandaria um sinal inequívoco aos moçambicanos de que todos nós devemos ser responsabilizados pelo destino dessas meninas. No nível da estratégia nacional, o MINEDH irá efectuar uma revisão intermédia da sua estratégia de gênero que, por várias razões, tem sido amplamente não financiada e não implementada. Efetuar a revisão é um passo corajoso e esperamos que resulte em ações concretas.

O artigo publicado no jornal O País de 4 de setembro de 2018 e que temos estado a citar, sob o título “Perto de 3 mil raparigas abandonaram estudos por causa de gravidez precoce em 2017”, observa que o MINEDH indicará uma menina por sessão escolar para trabalhar com pontos focais escolares (adultos). Isso pode ajudar a fazer a diferença, mas é insuficiente em comparação com o que é necessário para mudar a situação.

 

Que políticas e ações deverão ser introduzidas? Para começar, precisamos enviar um sinal de tolerância-zero para com os professores e alunos que cometem actos de abuso sexual nas escolas. Esses actos deverão traduzir-se em processos e condenações pelo sistema judicial. Assistimos a alguns casos, mas não o suficiente.

Em segundo lugar, precisamos de um sistema de transporte seguro para levar as meninas para a escola. Isto não é fácil de organizar nem financiar, mas é um investimento que poderá render muitas vezes mais para o país, como foi visto em outros países.

Terceiro, precisamos de outro tipo de apoios para as meninas e suas famílias de forma a melhor incentivar a permanência escolar da rapariga. Apoios esses que podem ser através de transferências em dinheiro, cupons, bolsas de estudo ou outros programas semelhantes.

Na verdade, estas intervenções já provaram não só aumentar a permanência escolar em Moçambique, mas até mesmo a aprendizagem. Acreditamos que mais meninas precisam ter acesso a essas oportunidades.

A falta de acção suficientemente robusta nesta matéria é ainda mais preocupante, uma vez que sabemos que manter a rapariga na escola e assegurar que elas realmente aprendem é provavelmente o maior investimento que Moçambique pode fazer para reduzir a pobreza.

As escolas devem ser e podem ser um lugar tão seguro quanto qualquer outro lugar para as meninas. As ações que fazem a diferença são bem conhecidas.

Com o desenho da nova estratégia da educação para Moçambique haverá sem dúvida mais financiamento disponível. Independentemente disso, algumas dessas ações (como informações aos pais) custam muito pouco e produzem óptimos resultados.

Com uma liderança mais forte dos moçambicanos, seja do governo, da sociedade civil ou das comunidades, toda uma geração de raparigas pode ver o seu destino transformado. E o ganho é nada mais, nada menos que as perspectivas futuras de todo um país.

 

“Nossa casa é onde as pessoas pensam em nós”

Naruto

 “Como vamos vencer esta guerra, se somos todos refugiados?”

Valete in (Refugiados)

 

Dizem que nunca é longe o caminho de volta para casa. E, de facto, não o é, quando a gente considera casa não um conjunto ordenado de tijolos com um tecto, mas uma família, um lar, uma terra natal onde jaz o nosso mais incontestável sentimento de pertença. Quando se trata de um lugar aonde a gente pertence nunca é deveras longo o caminho de volta. Cada passo dado é uma penumbra para alma. A sensação que nos invade é aquela de quem, finalmente, está prestes a encontrar o seu lugar no mundo.

E por quê nos apartarmos da nossa casa, quando esta é o único lugar no universo que encerra as nossas origens? Compreende-se que os fenómenos como guerra, pobreza e deportações sejam factores dominantes para saída das pessoas dos seus locais de origem para o mundo afora, mas é injusto que os exilados tenham de escapar à responsabilização pelo estado em que a sua casa se encontra, pois todo o habitante tem o dever natural de defender o seu habitat, sob o risco de tornar-se um eterno pária.

Deste modo, a todos os africanos migrantes, que arriscam as suas vidas no mediterrâneo em direcção à Europa, são convidados a uma reflexão: quem vos salvará a casa, enquanto estiverdes na diáspora? Que paz buscais nas terras do estrangeiro, quando vossos irmãos são martirizados dia pós dia aqui, em África? Estas inquietações estendem-se também aos cérebros africanos que buscam prosperidade material fora do continente e não mais regressam para melhorar as condições da casa.

Longe de eu defender o banimento do direito ao asilo, julgo que devia haver uma responsabilidade moral dos homens perante a pátria quando esta se encontra numa situação crítica, e fugir não é a solução. O dever dos homens enquanto seres residentes é de defender o seu local de origem, quando este se encontra em risco de ser conquistado, ainda que isso implique que os homens se abeirem da morte.

A história política como narrativa de conflitos civis e internacionais nos revela este espírito de pertença geopolítica por meio de lutas de resistência entre os nativos e os invasores. Desde os primórdios do estado natural que os homens se sentem no direito de defender a integridade da sua propriedade habitacional contra as forças da conquista. A defesa do território permeia a história da humanidade de tal forma que deve ter sido preponderante para o advento do contrato social. O direito à habitação é tão natural que foi determinante para existência das civilizações, e os homens sempre colocaram em risco as suas vidas para defender ou reivindicar o seu habitat. Uma prova disso foi a expansão mundial que desencadeou o colonialismo que, de todas as formas, teve de ser um processo violento, porquanto toda a conquista territorial constitui uma violação a um direito natural que é o direito à casa. Todos os povos colonizados sentiram esta invasão imperialista como um assalto à casa ao ponto de eles se posicionarem para morrer a lutar.

O colonialismo é o mais rico exemplo histórico de que o sentimento de pertença é inolvidável. Longos séculos de subjugação colonial não foram capazes de fazer que os africanos e outros povos colonizados se esquecessem de quem era casa. A luta pela descolonização denuncia a imortalidade do sentimento de pertença. Seria preciso apagar-se definitivamente a memória de uma geração sobre as suas origens para que não mais houvesse sentimentos de rebeldia relativos à reivindicação territorial.

Enquanto não houver um mecanismo que permita que os povos se sintam integrados e, sobretudo, mais autónomos no seu espaço territorial, jamais cessarão as reivindicações de independência do povo da Cabinda em Angola, da Ambazónia nos Camarões, da Catalunha na Espanha, dos curdos no Médio oriente e dos Ucranianos perante a Rússia. Mesmo nas Américas, ainda continuam a se ouvir resmungões dos índios sobre a terra que há séculos lhes foi usurpada com massacres europeus e hipnoses da igreja católica. 

Mas se o terror e a ideologia foram incapazes de lhes arrancar da alma o sentimento de pertença, isto significa que a casa é um assunto sério da condição humana. Sem ela, a humanidade fica ontologicamente amputada como se houvesse perdido as raízes. As três perguntas onto-existenciais (Quem sou eu? Donde eu vim? Para onde eu vou?) tornam-se descabidas, na medida em que a segunda pergunta permanece sem a resposta, quando já não se tem um lugar que se chama casa. Defender a casa é, portanto, um nobre acto de proteger uma identidade. E apartar-se desse dever significa, no entanto, afastar-se da responsabilidade moral que tem para consigo como um ser social. Ante tais responsabilidades, a luta pela casa torna-se um desafio irrecusável para um homem que se julgue patriota.

O direito a refúgio deveria caber a mulheres e crianças pela sua natureza menos audaz para enfrentar batalhas sanguinárias. Os homens que preterirem a defesa da casa e juntarem-se a fila dos refugiados incorrem no risco de serem chamados cobardes. O refúgio só se torna justificável quando nos servir de um lugar de reabastecimento das forças para continuarmos a luta. Mas se fizermos do refúgio uma nova casa, então, temos de aceitar ser um novo ser, sem mais nada a reclamar da nossa antiga casa que encerra as nossas raízes. Mas isso se afigura impossível quando não podemos esquecer definitivamente a casa donde viemos, pois o passado ganhou um espaço na memória do mundo.  Enquanto o passado continuar a caçar-nos, seremos incapazes de ser um novo ser, senão um ser camuflado.

O melhor lugar do mundo será sempre a casa. Estaremos convictos disso, todas as vezes que enfrentarmos resistência para integrarmo-nos numa casa alheia, pois não há nada mais incómodo que estarmos num lugar onde não somos bem-vindos. Como bem observou Hannah Arendt, chega a ser preferível viver perseguido a forçar a sua presença num meio de aversão. Este apelo vai para todos aqueles que se encontram na diáspora, especialmente, os africanos: não vos esqueçais da vossa casa. Ela ainda precisa de vós, portanto, retornai assim que possível. Lutando pela melhoria da vossa casa, vós lutais pela melhoria do mundo. Enquanto a casa não estiver em paz e arrumada para se morar, vós no exílio estais proibidos de esquecê-la. E lembrai-vos. A casa alheia onde vós vos refugiastes teve, em tempos, que ser cuidada a sangue e suor para que ficasse limpa e cômoda como a vedes. Lutando pela melhoria da vossa casa, vós lutais pela melhoria do mundo.

 

A Nicole Kidman estava devastadoramente bela! São incontáveis os meus idílios com actrizes. Nessa tarde, nem as minhas mais ingentes fantasias seriam capazes de estar à altura daquela vertiginosa imagem da musa australiana. Eu acabara de a ver nua em De olhos bem fechados, do mítico Stanley Kubrick, e estava ainda atordoado com o sublime enlevo daquela hierática silhueta. Estávamos no final do Verão de 1999 e fora a Braga participar numa feira do livro. Antes de começar a actividade literária que me levara àquela cidade, fora ao cinema. Essa película tinha sido a última obra do realizador de Spartacus e Laranja Mecânica. Kubrick morrera em Março desse ano, mal acabara de montar o filme. Nesse mesmo dia, conheci o escritor português José Manuel Mendes. Um texto dele (“Até amanhã”) havia empolgado a minha juventude. Era de uma beleza lancinante. Lera-o aos 17 anos, em 1984. Lembro-me ainda hoje de como começa: “Lembras-te, Cristina? Na Gandarela tudo foi verde.” Por alguma razão, durante anos, quando o recitava, em vez de “verde” dizia “azul”. Porque será? Não imagino. Deve estar no desígnio dos deuses.

Ontem, demorando-me entre os meus livros, A Semente nas Palavras, uma vetusta antologia que recolhia aquele texto, surgiu-me, de chofre, ressuscitando o jovem de 17 anos que a lera com fervor. Para além do José Manuel Mendes, havia ali textos e autores importantes: Alves Redol, Fernando Namora, José Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, José Saramago, Maria Judite de Carvalho, Maria Ondina Braga, Santos Simões (que não conhecia e de quem nunca mais ouvi falar) e Urbano Tavares Rodrigues.

Eu lera pouquíssimo Alves Redol, conhecia sobretudo os livros de Fernando Namora. Havia lá em casa dos meus pais alguns dos seus livros: Retalhos da Vida de um Médico era um deles. Na época, José Saramago não escrevera nem publicara os seus mais importantes romances: Memorial de Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis ou História do Cerco de Lisboa, para referir aqueles que mais me arrebataram. Cardoso Pires já tinha publicado alguns livros importantes, como O Hóspede de Job ou O Delfim. Escusado será citar Os Caminheiros e outros contos, de estreia, de onde saíra o belo conto que consta na referida antologia: “Uma simples flor nos teus cabelos claros”. Mais tarde, veio a Balada na Praia dos Cães ou a Alexandra Alpha.

Conheci o Cardoso Pires e fui amigo dele. Vezes sem conta fui almoçar a sua casa em Alvalade e era fascinante ouvi-lo. Também conheci o Saramago. Não posso dizer que fui amigo do Nobel português, mas ele foi de uma grande e impagável generosidade para comigo. Outro escritor que estava na antologia e que eu lera e que cheguei a conhecer foi o Urbano Tavares Rodrigues, que já tinha uma obra significativa. Eu lera, naqueles anos de juventude, A Noite Roxa, e ficara com uma admiração sem tréguas pelo escritor. Emprestei este livro a uma das minhas irmãs e nunca mais o vi de volta. Ao emprestar livros corre-se sempre esse risco. Conheço gente que não empresta livros por isso. Eu já tive de comprar novas edições para repor livros desaparecidos. Mas não é a mesma coisa. Temos por vezes não só pelo conteúdo mas pelo objecto uma certa predilecção. O significado dessa alquimia é por vezes intransferível. É aquela edição e não a outra que tem determinado significado. Ainda hoje penso naquela edição de A Noite Roxa que se extraviou. Do José Gomes Ferreira lera a sua poesia, sobretudo.

Mas retornemos ao belíssimo texto de José Manuel Mendes, “Até amanhã”, um texto marcadamente político, uma escrita incondicionalmente engajada. Tanto o autor, como alguns outros, caso de José Saramago, eram membros do Partido Comunista Português. A minha edição data de 1977, tinha havido uma anterior, de 1973. O que me fascinou naquela escrita foi o cruzamento entre a luta e o amor, foi a poesia na textura da prosa, não obstante o seu tom algo panfletário, o que não me incomodava. Em 1984 vivíamos nós os anos da revolução, antes do refluxo ou do ocaso que acontecerá no final dessa década única da nossa história. Hoje trata-se de uma realidade e um contexto dissolutos. O texto, este texto do José Manuel Mendes, era construído a duas vozes, a do Paulo e a da Cristina, vou citá-los aqui, identificando-os, como personagens e suas falas.

Paulo: “Lembras-te, Cristina? Na Gandarela tudo foi verde. As árvores, copas resfolegando de vento, e os olhos dos amigos. A própria noite, Cristina, a pálida epiderme das luzes, as palavras do Octávio Pato, rijas e enternecidas, entre o cansaço e a coragem.”

Cristina: “Que feliz me sinto por voltar a ver-te. Deixa perder, de novo, um pouco, os meus olhos nos teus. A noite é de festa. E como desagua, Paulo, em delta, no meu peito.”

Paulo: “Nessa noite, Cristina, as estevas da memória rompem nas palavras, nessa noite decidimos viver juntos. Continuaremos o combate lado a lado, a tempestade solidária na cachoeira da ternura colectiva.  (Uma frase retórica – penso agora). Fixaste, por segundos, o relógio no meu pulso. Como quem pára a jangada do tempo. Relanceei, através do vidro, o borrão azul da madrugada. E a tua voz, amo a vida, Paulo. Tanto, despontava pequenas árvores brancas no anis da volúpia. Soube, então, que o teu corpo era um mapa e em tuas rotas me perdi.”

Isto é muito bonito: “o teu corpo era um mapa e em tuas rotas me perdi”. Ainda me lembro, muitos anos depois, do que esta frase, densamente poética, significou para as minhas aspirações literárias. Mas há mais. Como aquela dita pela Cristina algures no meio do texto: “O pássaro da tristeza trepando-te aos olhos.”

Paulo: “O teu rosto, Cristina. Um perfil de praias e solidão. As pestanas negras sobre os olhos inquietos. O teu rosto-cais, espumas e ventos, onde atraca a ternura de preencher-me de ti.”

Cristina: “Este poema, Paulo. Escreveste-o por uma daquelas madrugadas frescas, odorosas de orvalho, o marfim do sol dentro do quarto. Porque releio os teus papéis, uma ponte desde os momentos idos, atravessando-a lentamente, lá ao fundo as águas dos dias partilhados, porque te revejo de novo a meu lado? Sem o nó da saudade e em amor? 

Gosto do poema, Paulo. Não me canso de ler o que escreves.

os teus seios noite vegetal/ longas bagas de suor// os cabelos revoltos/ algas na areia quase líquida/ das mãos// apelo o concreto do teu sexo/ um mar desagua nos teus gritos/ tépidos// freme o ventre/ nos olhos mais límpidos/ que as manhãs// beijo repousado as salinas/ dos teus lábios.

Cristina: “Noite, areia, mãos, manhãs, salinas. Os pontos cardeais, as imagens predilectas. Mesmo na tua poesia de combate.”

Foi isto justamente o que me fascinou neste texto, o amor, o erotismo dissimulado – a poesia é a arte da dissimulação, ensinou-me o meu Mestre de sempre -, as imagens, as belas imagens poéticas, entrelaçadas, por entre mensagens e imagens de uma poesia de combate e de intervenção. Também me encantou a cadência do texto, a sua poesia, a voz do autor, que se ouvia, como se dissesse o texto, como se o declamasse. A tessitura dessa voz.

Passam 34 anos desde o ano em que li isto. Releio o texto esta tarde e sinto um arrepio. Sentado, na sala anoitecida, na companhia sucessiva de vozes esplêndidas: Ella Fitzegerald (“I love Paris”), Helen Merril (“All of you”), Louis Armstrong (“Let´s do it”), Tony Bennet (“Ça, C´est L´amour”), Frank Sinatra (“Anything goes”), Sarah Vaughan (“Ev´ry time we say goobye”), Abbey Licoln (“You do something to me”), Anita O´Day (“My heart belongs to dady”), Shirley Horn (“Love for sale”), Lena Horne (“What is this thing called love?”), Shirley Bassey (“I get a kick out of you”), Johnny Hartman (“I concentrate on you”), Peggy Lee (“Do I love you?”), Julie London (“I love you”), Nat King Cole (“Just one of those things”) Billy Eckstine (“In the still of the night”), Oscar Peterson (“From this moment one”), Rosemary Clooney e Frank Sinatra (“Cherry pies ought to be you”), Carmen McRae (“Easy to love”), Fran Sinatra (“Night and day”), Louis Armstrong (“Just one of this things”), Abbey Lincoln (“I concentrate on you”), Fred Astaire (“I´ve got my eyes on you”), Anita O´Day (“You´re  the top”) e Sarah Vaughan (“Easy to love”).

Oiço estas vozes que cantam, todas elas, Cole Porter. Gosto maningue do Cole Porter. Ele compôs muitos dos clássicos do jazz.  Oiço-o nas vozes que citei acima enquanto retorno aos meus 17 anos, aqui sentado, neste dia que finda absorto, imerso, melancólico, profundo, de domingo, como muitas vezes são os meus domingos nesta cidade, que parece desabitada da sua azáfama dos meios de semana, quando finalmente é possível transitar pelas ruas em paz, com a soberana tranquilidade que não se comercia em outros dias.

Curioso este meu retorno ao passado, no dia em que percorri algumas lúgubres ruas da cidade – depois da minha ronda pela casa dos pais no Infulene -, onde inclusive divisei a casa de madeira e zinco, na Malanga, que o Luís Bernardo Honwana fotografou e fez a capa do seu belo e instigante livro A Velha Casa de Madeira e Zinco. Isto, enquanto passeava entre a Malanga e o Alto-Maé, em busca de um ângulo, que me permitisse divisar o futuro: a hierática ponte entre Maputo e Catembe. Vi e fiquei instantaneamente enfeitiçado com aquela obra imponente e ocorreu-me pensar nesta contradição em que nos encontramos: termos diante de nós um prodígio que nos projecta para o outro século, mas em tudo permanecermos arreigados ao passado, sem imaginação, largueza de vista, inteligência, cultura e arrojo, ou incapazes de nos libertarmos desta paralisante realidade em que estamos verdadeiramente atolados.

Então, depois daquele passeio algo paradoxal, no qual me empolguei por alguns instantes com o incauto futuro, tendo-me precipitado de imediato para o fosso da dura realidade, que é este nosso inepto quotidiano, vim-me embora para casa, acendi as luzes – a minha sala é escura, mesmo à tarde precisa de luz -, e pus-me a reler este venturoso e antiquíssimo texto do José Manuel Mendes, que tem, aliás, um título que agora parece ser inquietante: “Até amanhã.” E lembrei-me de ter encontrado o autor, em Braga, naquele dia em que vi a Nicole Kidman arrebatadoramente nua, na tela do Stanley Kubrick, e não tive o atrevimento de confessar ao escritor português o entusiasmo do rapaz de 17 anos, que agora, com as mãos nos meus ombros, enquanto releio aquele belíssimo, debruça-se sobre mim e sobre os meus demónios. 

 

 

“Mais importante que saber escrever é saber ler. Não persiga os sonhos! Constrói-os”. Leitor, pensei nisto agora, parece-te bem? As frases feitas estão cheias de más intenções ou de traduções mal-intencionadas, sabes que é mais fácil reter os “chavões” e nunca se permitir a uma experiência com o livro. Não é fácil ler, obriga-nos a explorar outros planetas mentais ou físicos e não estou certo de que o nosso veículo esteja disposto a levar-nos para lá, leia sobre tudo e sobre todos, porque o importante é nunca ter opinião sobre coisa algumas, são os limites da função, o ponto de descontinuidade.

O mundo é uma representação, os livros não fazem mais do que dar uma opinião sobre o mundo e não se preocupe leitor, não é vinculativo. Pegas aqui, pegas acolá e fazes um vestido, arte da costureira. Os filhos da Eva têm a particularidade de puder acrescentar ao mundo, chamam eles isso de imaginação, a liberdade de dizer que o mundo não chega, é insuficiente, insuficiente na medida que não entende muito bem cada angústia representada na luz acesa no edifício ao lado. Que estará fazendo acordado a essa hora? O vizinho, claro.

A serpente merecia um julgamento mais digno, pobre coitada, não pude defender-se. Resignou, deve ser por astucia, a insustentável condição da leveza do ser. Não nos acusa à espera que reconhecêssemos a nossa falta, a arbitrariedade daquele julgamento. Não entende nada da natureza humana, pobre serpente, a acusação é sempre de um único sentido, é de nós para eles, desculpa, não há cá dupla transmissão, os filhos da Eva acusam-se e acusam-se, falam e falam, mas eles escutam-se pouco, serpente. Eles trabalham muito, resta pouco tempo para essas coisas.

É para isso que lemos, para essas histórias de serpentes, deus, Eva e outras asneiras. Os movimentos caóticos são interessantes para a ciência; a teoria de incerteza de Heisenberg, match no tinder, trajectória do fumo do cigarrete, tudo que é caótico é interessante, guarda um mistério, é dissimulado, é uma dança delicada cujos movimentos dizem o inverso do estado da alma. Ler é aceitar o caos, ir até a boca do vulcão, aceitar as neuroses, olhar para o homem que cruzo as pernas e segura o jornal, e pensar, que personagem eu daria-lhe? O que ele tem para me contar? O que ele comeu ontem à noite? Me parece que o senhor é um corretor da bolsa, não, deve ser um corporativo, temos muitos deles hoje. Os rapazes lá sentado são os alunos estrangeiros que chegaram a universidade, eles sempre fazem aqueles jogos para facilitar a integração, é divertido, dão mais vida a este lugar e claro, mais opções no tinder.

Vi um artigo no jornal há dias atrás que dizia: esgotaram os recursos do planeta, que tragédia leitor! Agora vivemos de excedentes. Os nossos recursos esgotaram quando não conseguimos diferenciar a macro da má economia, o liberalismo nunca mais encontrou a riquezas das nações e o proteccionismo já não sabia o que era produto nacional, explodiu o racismo, a xenofobia e a culturofobia. A pouca leitura levou-me a ver estrangeiros em tudo na rua, o único estrangeiro era a falta de emprego, a falta de pão, a minha fome e do estrangeiro é a mesma, é a mesma.

A propósito não existe prémio para leitor? Não tenho muito apreço pelos prémios, nunca tive capacidade para ganhá-los, sou tímido, não consigo ver pessoas a olharem para mim. Fujo, escondo-me e escrevo estas asneiras porta adentro das sanitas, deixo as merdas que trazia no estômago e as que trazia na cabeça, tudo cheirando a mesma merda. Não se tente imortalizar, o rio leva tudo e o mar joga fora, quando morrer, morra. Eles também têm direito a suas asneiras, o nome da rua com o teu nome, a tua face na t-shirt não dizem nada, apenas angústia de algumas pessoas deprimidas que acham que viveste a vida que eles gostariam de ter vivido, tolice. Claro que depois da tua morte a tua vida parece um perfeito roteiro, talhado para a telona, não és mais que isso; um repositório de vidas que nunca existiram, dores reais e imaginarias. Não viveste para sempre, aquela rua não tem nada a ver contigo e os teus prémios não tinham nada a acrescentar, estátuas.

Quando fechaste o livro em que pensaste? No universo, na estupidez, na menina do café, no ruído provocado pelo frigorífico, em que pensaste? Esta doença que é disputar afectos, o vazio de uma vida muito cool, a insignificância de ser a presença mais agradável da sala. Achas que devia ter sido aquele o final? Não é uma questão de saber terminar leitor, o livro é que quis assim, não havia nada a fazer, a história seguiu o seu rumo assim como a sua vida, desculpa.

 

Nervosismo. Rangeu os dentes. Olhou, em quase desespero, para o papel com contas. Aritmética simples, simples, mas os cálculos estavam antipáticos. Torceu a boca. Suspirou.

Percebeu que estava nervosa quando a esferográfica estalou, com a força da mordida involuntária. A mando do pulso a caneta rasurou o papel com gestos largos e irritados. Emendou os rabiscos. Inspirou fundo, buscando novo alento para os difíceis cálculos fáceis e voltou a suspirar, agora com mais calma, técnica milenar para o auto-controlo

Fez, instintivamente, aquele gesto feminino de afastar os fios de cabelo postiço que costumam estorvar a visão. Percebeu que não tinha cabelo postiço: os cabeleireiros andam caros. Ia roer as unhas que já pediam uma demão. Não roeu, não fosse comprometer o que restava da manicure possível. Amarrotou o papel como se este fosse o culpado de toda a crise. O papel, na subserviência que se conhece, deixou-se amarrotar, calado, com estoicismo de um funcionário antigo em véspera de reforma. Recuperou, no papel amarfanhado, os dados dos cálculos e rectificou-os num papel novo, com teimosia de quem regateia o custo de vida. Atirou-se aos cálculos, agora com mais respeito pelos algarismos.

Estava deitada, posição de réptil, sobre a cama. Assim de capulana, era uma lagartixa em trajes caseiros. Os gestos ansiosos denunciavam a urgência das contas. Ergueu a cabeça. Os braços eram dois pilares aguentando o tronco. Os cotovelos afundaram no colchão. As tangerinas do peito esmagavam, na superfície do lençol, os papéis rabiscados. A cabeça afundada sobre os ombros. As omoplatas espreitava denunciando toda engenharia do esqueleto. As costas em arco desenhavam, numa hipérbole dramática, o gráfico da cadente economia nacional.

De nervosismo balançava os calcanhares de tornozelos entrecruzados e emprestava delicados abanões ao conteúdo da capulana. Riscou, escreveu, esquematizou, calculou, somou, somou, somou. Depois subtraiu…  Mas quando multiplicasse pelos dias do mês, ou dividisse pelas despesas fixas, não batia!! Suspirou. Chamou a calculadora do telemóvel para ajudar. Foi quando viu a mensagem “oi”, à qual respondeu, com expectativa de uma isca num anzol, outro “oi”. E foi trocando “ois” simpáticos, sabendo que a solução para a crise sempre foi fortalecer parcerias e amanteigar o relacionamento com os doadores.

Mais tarde:

– Amiga!

Bateu com a palma na mão da outra, ouviu-se um pah! de cumplicidade e ficaram de mãos dadas, as digitais coladas, confundindo o álcool dos vernizes das unhas e trocando, entre uma fofoca e outra, os códigos  da comunicação feminina.

— Tens de me ajudar.

— O que foi? –arregalou os olhos.

— Vou sair com o “cabeça-de-pão”

— E depois? Paga bem, esse.

— É que também tenho encontro com o “cabeça-de-coco”.

— Marca para mais tarde.

— O problema é o “cabeça pequenina”, quer vir hoje.

— Cancela esse… — atirou os dedos em jeito de desprezo –, manda passear.

— Não posso, ele é o meu cabeça-de-lista.

— Cabeça-de-lista? — Ajustou o nó da capulana —  Yuh! Já elegeste?

— É que — colou a mão ao peito e olhou para cima, para o nada — gosto dele.

— Não é altura para gostar — franziu a testa — Agora é tempo de democracia — friccionou a ponta do polegar sobre o indicador.

— Mas eu o amo. O amor é melhor que a democracia.

A amiga revirou os olhos, resignada a cegueira que o amor causa — mas podes adiar. Diz-lhe que uma comissão familiar ainda estava avaliar as condições da candidatura…

Riram-se e no meio das gargalhadas ouviu-se o som da cumplicidade:

a mão duma a bater na doutra, pah!, enquanto o toque do telefone celular avisava outra mensagem: “oi”.

Outros países cobiçam

Nós subestimamos!

Uma oportunidade de ouro foi dada ao nosso país: a possibilidade de participar com quatro equipas na nova temporada futebolística africana, fruto do reconhecimento das prestações do Ferroviário da Beira, Songo e da própria Selecção nacional no Continente.

A Federação submeteu o assunto aos clubes, para “referendar” quem é que teria unhas – leia-se capacidades – para, em nome de todos nós, não deixar fugir uma oportunidade de ouro para a fuga às pré-eliminatórias, ascensão nos “rankings” e colocação das nossas estrelas em montras mediáticas. Apenas a UD do Songo se apresentou com musculatura financeira e desportiva para avançar. Outros, pescados ou repescados, vão-se ficando pelo “nim”.

Recuperar

De erros cometidos

Há riscos, e não são poucos. Enquanto que na Europa os departamentos dos grandes clubes sonham com a qualificação às competições continentais, que garantem à partida encaixes financeiros consideráveis para toda a época, entre nós, a margem de risco é bem grande pois torna-se imperioso investir e triunfar na primeira fase. Só a partir daí se pode pensar em mais-valias, que, diga-se, agora são “de encher o olho”.

É um facto que a derrapagem que o futebol moçambicano deu nas últimas décadas – basta ver as bancadas vazias mesmo nos jogos grandes – impõe um repensar e uma actuação profunda, devidamente enquadrada na realidade que o desporto-rei hoje vive no mundo.

No topo, está a falta de qualidade das nossas competições, com o Moçambola à cabeça. Seguem-se erros históricos que vão levar alguns anos a corrigir e que têm a ver com as integrações às correrias dos principais clubes em empresas e ainda o fecho de fronteiras que impediu a continuidade de vermos as nossas estrelas a brilharem no estrangeiro.  

Os sinais que

Poderemos estar a dar

Precisamos de “acordar” do ritual a que nos habituamos – quebrado pelo Ferroviário da Beira e pela UD Songo – de entrarmos nas provas africanas, apenas para fazer número.

Os clubes, face à realidade que vivem, sozinhos não poderão avançar e disputar, com tostões, onde os outros se apresentam com milhões.

E se eles não avançarem, quem perde? O país! E estamos a falar de uma oportunidade que poderá não se repetir em breve.

Neste caso, a solução “mais à mão”, teria que vir do “Estado-papá”, para libertar novas verbas, depois das que foram disponibilizadas para levar o Moçambola até ao fim. Será a melhor ou a única saída, tendo em conta que existem muitos talentos mas o cenário de crise?

A questão central é, com realismo, avaliarmos o custo-benefício e… os riscos! Até porque é um assunto nacional que pode ditar o futuro. Temos ou não condições transformar o nosso futebol de desporto a indústria de massas?

O exemplo da Croácia no recém-terminado Campeonato do Mundo é ilustrativo. Ganham, o turismo; os atletas que passam a activos valiosos; a auto-estima e a produtividade dos cidadãos. As empresas terão retorno de prestígio ao publicitarem um produto nacional e em última instância a juventude que, com alegria e sem grande pressão, passará a beneficiar de mais saúde e menos vícios.

É preciso que fique claro que a possibilidade que a CAF nos oferece, é cobiçada e seria agarrada com as duas mãos por outros países, alguns até com menos expressão política, desportiva ou financeira no Continente.

Além do mais, em caso de recusa a este presente raro, estaríamos a dar a África e ao Mundo, um sinal de miserabolismo que nos poderá condenar a largos anos nas pré-eliminatórias!

 

O rastilho foi o Michael Jackson. Via, com alguma displicência, um canal de televisão quando se refiram ao Michael, que naquele dia faria 60 anos. Eu estava em Berlim, quando, a 25 de Junho de 2009, no pátio em que nos encontrávamos, numa embaixada cultural, a actriz Graça Silva veio derrubar-nos com aquela incauta notícia: a morte do Michael Jackson. Corri para o quarto para me ligar a um televisor diante da incredulidade que tomara conta do mundo. O Michael Jackson teve uma importância danada na minha vida e de muitos. Creio que nunca contei isto à Graça e ela já não está cá para ler este texto. Deu-me agora para ouvir todo o Thriller de novo: “Wanna be startin´somethin´”, “Baby be mine”, “The girl is mine” (com Paul McCartney), “Thriller”, “Beat it”, “Billie Jean”, “Human nature”, P.Y. T. (“Pretty young thing”), “The Lady in my life”. Tinha 15 anos quando este disco foi lançado e vivia numa cidade sitiada. Lembro-me de ver, na Karl Marx, a capa do vinil. Era o famoso Thriller que eu ouvia na rádio ou via na televisão – era então um telespectador errático. A Rádio Moçambique tinha um programa dos meus amigos Abel Chambal e Anísio Matangala de disco, soul music e funk. Foram pioneiros. Não frequentei o Clube da Juventude, mas sei que era o point. A vetusta TVE passava uns vídeo-clips, sobretudo como interlúdios musicais, onde avultavam composições instrumentais do saudoso Fernando Azevedo, com imagens de Moçambique. Foi nessa altura que passava o “Maputo”, de Marcus Miller. Na TVE, Dino Chiche e Quim Barbosa (ambos já não habitam este mundo) são outros dos pioneiros na divulgação do deste tipo de música; depois veio o Miguel de Brito. Foi onde vi surgir o Rogério Dinis, que mais tarde se distinguiria naquela dança a imitar o inimitável Michael Jackson, agora como MC Roger.  

Há uns dez anos que não ouvia assim devotadamente o Michael. A última vez que isto me aconteceu foi há mais de 10 anos, vivia então em S. Paulo e ouvia obsessivamente o Michael Jackson. Recordo-me de estar em Higienópolis e de entrar uma chamada do Eduardo Coelho, que era meu editor, na Língua Geral, todo satisfeito porque o Rio dos Bons Sinais fora escolhido para uma pré-lista do prémio PT. Eu estava absorto a ouvir o Thriller, que então comemorava 25 anos. Sobressaltei mais pelo facto de o Eduardo interromper aquela minha epifania do que propriamente pela notícia que me nobilitava sem dúvida, mas não trazia mais do que isso. Ouvia este disco e o Bad, sobretudo por causa de “Liberian girl”, “Smooth criminal”, “Man in the mirror”, eu sei lá. Há, sobretudo, um vídeo do “Billie Jean”, na festa dos 25 anos da Motown, em 1983, absolutamente espantoso. Michael tem então 25 anos, usa a luva mítica, as meias brancas e a sua indumentária inesquecível. Procuro-o agora na Internet. Durante anos punha este vídeo para o meu filho Irati. Hoje ele explica cada detalhe da actuação brilhante do Michael. Quem nunca viu este momento não conhece a verdadeira revelação chamada Michael Jackson. Ali está não só o cantor, mas também, ou sobretudo, o dançarino. A actuação é fabulosa. Naquele tempo, para além deste vídeo, víamos com espanto o “Thriller”. O disco saiu no ano em que eu fui estudar para a Josina Machel e lá me encontrei com o Manuel Maurício. O Luís Loforte era meu condiscípulo da Maxaquene (da mítica 6ªB) e ele reencontrou o velho amigo Manuel quando fomos para a Josina. O Abdul Ussene, que nos morreu aqui há anos, entra também aí na nossa história comum. Um pouco mais tarde o Ismael Gulli. O Orlando Mavie – que iria herdar na Rádio a divulgação deste tipo de música, muitos anos depois -, é outro dos meus companheiros, encontrámo-lo, anos mais tarde, na Francisco Manyanga. Era comum, nas tardes, irmos à casa do Manuel para ver os Betamax que ele tinha e que traziam estes vídeos. O Manuel era um incondicional do Prince e do “Purple Rain” e a nossa discussão girava à volta da expectativa de este ultrapassar o Michael. O Manuel acreditava nisso. Nenhum de nós punha semelhante hipótese.

Ao rever o Michael na festa da Motown, a gravadora criada, em Janeiro de 1959, por Berry Gordy, em Detroit, no Michigan, que esteve na origem e no lançamento de importantes talentos do rhythm and blues, soul, pop, hip pop ou mesmo rock, lembrei-me das The Supremes, dos finais dos anos 50, onde avultava o nome de Diana Ross. Mas há mais: Marvin Gaye, The Commodores, Lionel Richie, Stevie Wonder, Jackie Wilson e os Jackson Five. Os The Temptations (“Lady soul”). Desta associação de nomes da Motown nasceu o desejo de revisitar Diana Ross a cantar “Missing You”. A música da Diana é uma pungente evocação de Marvin Gaye. No mesmo ano de Thriller, Marvin lançou Midnight Love, que trazia “Sexual healing”. Quando anunciaram a morte de Marvin Gaye, no início de Abril de 1984, assassinado a tiro pelo próprio pai, na véspera dos seus 45 anos, eu estava no pátio da Josina Machel, distraído a ver um jogo qualquer. Busco Marvin depois da Diana: “Oh, baby now let´s get down tonight”. Inesquecível. Acabo de rever o Marvin Gaye e vem-me à memória a música dos The Commodores. Ainda hesito no título, mas não muito tempo depois surge-me: “Nightshift”. Belíssima e tocante elegia. O Lionel Richie não pertencia mais ao grupo quando eles lançaram, em 1985, esta composição, que é um sentido tributo a Marvin Gaye e a Jackie Wilson, que tinham morrido no ano anterior. Jackie foi um cantor e performer muito importante na sua época, tendo tido influência sobre o próprio Michael Jackson e Elvis Presley. Aliás, Presley visitava-o quando estava hospitalizado – teve um ataque cardíaco num show em 1975 e ficou em coma durante 9 anos. Elvis morreria antes, em 1977, também de coração, ao que se sabe. Mas foi ao ouvir esta lindíssima música que os anos 80 fizeram sentido para mim e vou tentar esclarecer isso agora.

Foram dois versos da música que me fizeram chegar aos anos 80 com uma nitidez quase cortante: “Gonna be some sweet sounds/ coming down on the nightshift”. Era isso que nós procurávamos naqueles anos 80. Já descrevi aqueles anos atrozes algures: foram demasiadamente brutais, a guerra alastrava, os ataques na Estrada Nacional número 1, os massacres – Homoíne é um deles -, de uma virulência indescritível, vivíamos num cerco, numa circunstância obsidiante, sem perspectiva de futuro e num pavoroso quotidiano. Hoje, a persistente desmemória faz tábua rasa a isso tudo. Quem ouve alguns dos prosélitos é capaz de chegar à conclusão de que nada disto existiu e que foi apenas um pequeno equívoco. Para nós, para mim, era um quotidiano ensombrado e assombroso. No entanto, encontrámos alguns pontos de fuga. A música era uma delas e estas vozes com estas “sweet sounds” fizeram uma diferença extraordinária entre nós. Nós que não sabíamos nunca o que iria acontecer no dia seguinte, quando nos fechávamos em casa do Manuel, esquecíamos o mundo lá fora e buscávamos uma espécie de catarse dos fantasmas que nos perseguiam. Michael Jackson, Lionel Richie, Diane Ross – “Endeless love” -, Jackson Five, New Edition (grupo assim chamado porque intentavam ser os novos Jackson Five, que integrava Bobby Brown, que mais tarde se casaria com a Whitney Houston.) A Gloria Estefan tinha uma música que ouvíamos sempre: “Dr. Beat”. Havia o breakdance, vibrávamos com James Brown, ou o moonwalk do Michael, eu sei, a lista dos nossos espantos não caberia aqui.

Outros refúgios eram as bangas de sábado. Era difícil arranjar cerveja, ou mesmo Coca-Cola, improvisávamos uma feijoada, o Abdul tinha disponível uma casa na Salvador Allende, convidávamos algumas das miúdas mais giras e dançávamos slow ou funks que então “estavam a bater”, como diz hoje a geração da minha filha Mayisha. “All night long” – tinha razão o Lionel Richie. Lembro-me tanto de “Shake you down” de Gregory Abbott. Que emoção puxa! Escrevo isto e fecho os olhos. Até me comovo. Ou “Live to tell” da Madonna. Sonhei com todos os amores improváveis a dançar esta música. É do disco True Blue, de 1986. Também tinha “La Isla bonita”, “Papa don´t preach”, “Jimmy Jimmy” (Madonna é também agora sexagenária, vejam lá!). Não sei descrever a emoção do “Live to Tell”. Os anos 80 têm isto de contraditório na minha vida: se, por um lado, representam uma vivência terrível, um quotidiano cruel, um tempo de todas as carências – de bichas, de fome, de madrugadas a pôr pedras nas bichas de carne do Botswana, do carapau de Angola – hoje não como carapau -, do repolho da ementa diária, ou nas padarias onde não havia pão, do medo e da guerra, da desesperança e do infuturo, da incerteza; por outro lado, estes anos 80 ligam-me a um conjunto de músicas que ainda hoje me emocionam, sobretudo pela sua doçura como queriam os The Commodores naquela pungente homenagem a Marvin e a Jackie.

Numa remotíssima viagem a Lisboa, ainda naqueles anos 80, tive a bordo a companhia de um escol inesquecível: Terence Trent D´Arby (“Sign your name”); Black com “Wonderfull life”; Glen Medeiros (“Nothing´s gonna change my love for you”, que gravou aos 17 anos, conhecida antes pela voz de George Benson); Modern Talking – “You´re my heart, you´re my soul”; “Let´s Groove”, dos Earth, Winds & Fire; Rick Astley (“Never gonna give you up”); Thompson Twins (“Hold me now”); Alphaville (“Big in Japan”), Billy Ocean (“Caribbean Queen” ou “Suddenly”). Eu não queria que aquela viagem terminasse. Provavelmente nunca terminou. Estava possuído por aquela trilha sonora. Nunca mais me esqueci daquela viagem, sobretudo por causa destas músicas. Como não me esqueço da Dionne Warwick, na companhia de Stevie Wonder, Gladys Knight e Elton John a cantarem “That´s what friends are for”. A harmónica de Stevie Wonder ainda ressoa na minha memória. Naqueles anos cantávamos “I just called to say I love you”, do Steve Wonder. Ou vibrávamos com “Ebony and Ivory” do Paul McCartney e Stevie Wonder. Era o tempo dos Cool & Gang: “Celebration”, “Fresh”, “Get down on it”, “Ladies night”, “Cherish”, eu sei lá. Era o tempo da Donna Summer. Morreu outro dia. Parece inacreditável! Acabara de a ver num dueto com Seal num espectáculo de David Foster. Não sabia dela havia décadas.

Oiço os Milli Vanilli (Fabrice “Fab” Morvan e Rob Pilatus – este morreu também): “Girl you know it´s true.” Reggae e dance music. Um balanço único. Animaram as nossas bangas. Volto a ouvir e faço uma descoberta: a influência do soul makossa, do grande Manu Dibango. O Michael também incorporara o soul makossa na música inaugural do seu álbum Thriller. Prossigo a viagem pelos anos 80 e defronto-me com a voz da Jennifer Rush: “The power of love”. Nunca mais a ouvi. Outro slow. “Never too much” cantava então Luther Vandross. Ouvíamos Aretha Franklin, “Who´s zoomin´ who?” Luther morreu primeiro, Aretha parte agora. “A house is not a home”, de homenagem a Luhter, na voz da Aretha, é uma interpretação de outra galáxia – arrepiante. Era este ritmo e eram estas músicas, estas súplicas de amor, estas declarações. Como o dos Foreigner: “I want to know what love is.” Acho que era isso que nós procurávamos, tínhamos menos de vinte anos. Naquele tempo íamos ao Búzio dançar Phil Collins, “Another day in Paradise”. Quem ficava incólume? Lembro-me de Chris de Burgh – “The lady in red”. Ou de Tina Turner: “What´s love got to do with it”. As pernas da Tina ainda hoje enlevam-me. Foi até parodiada numa telenovela brasileira pela Regina Casé, que fazia de Tina Pepper em Cambalacho. Muitos dos nossos jovens ídolos, alguns apenas uns anos mais velhos do que nós, morreram cedo. Black (Colin Vearncombe), morreu em 2016 num acidente de carro, em Janeiro. Em Dezembro do mesmo ano morreu George Michael. “Careless Whisper.” O Orlando Mavie cantava como nenhum de nós o George Michael. Devo confessar que eu sentia a mesma insegurança do George quando pedia uma menina para dançar: “I feel so unsure/ As I take your hand lead you to the dance floor.” Tremiam-me as pernas e suava-me a palma das mãos. Mas por razões bem diferentes das do George. Nunca me esquecerei: um dia dos meus anos a dançar Tracy Chapman com a mais bela musa da Francisco Manyanga. Cedo demais ela seria chamada pelos deuses. Lá onde ela agora está, emigrada no Paraíso, dança ainda comigo “Baby can I hold you” e “She´s got her ticket”. Foi nessa época que nasceu a minha insana paixão pelo Freddy Mercury. Outra divindade morta. Oiço “África”, dos Toto, um idílio sobre o nosso continente. Por associação, entronco em “We are the world”. Ali estavam quase todas as grandes vozes americanas: Michael Jackson, Lionel Richie, Stevie Wonder, Paul Simon, Kenny Rogers, James Ingram, Tina Turner, Billy Joel, Diana Ross, Dionne Warwick, Willie Nelson, Al Jareau, Bruce Springsteen, Cyndi Lauper, Bob Dylan ou Ray Charles. A iniciativa, que partiu do empresário de Lionel Richie e Kenny Rogers, fora antes pensada por Harry Belafonte. África sofria uma seca impenitente e a fome produzia algumas das imagens mais lancinantes do continente: Etiópia, entre outros países africanos, concitaram a empatia e a generosidade de muitos. Antes da filantropia se transformar na indústria da ajuda que Dambisa Moyo critica ferozmente em Dead Aid. Lionel Richie e Stevie Wonder tinham ficado de escrever a música. Entretanto, Richie convidou Michael, que então lançara o álbum Thriller, que era o grande sucesso da época. Jackson disse que participava e que queria também participar na composição. Ficaram os três com a tarefa: Stevie, Lionel e Michael. Wonder, por alguma razão, ficou indisponível e só entraria a cantar – o seu contraponto com Springsteen é marcante. Michael e Lionel fizeram a música. Quincy Jones faz a regência do grupo e produz o disco. Não sei se eles sabem, mas acabaram por fazer das nossas infâncias e juventude menos amargas e menos infelizes, apenas por cantarmos esta música emocionante. Vi duas vezes o Lionel Richie: em Lisboa e na Cidade do Cabo. Em ambos os momentos ele terminou a cantar esta música e a convocar à lembrança o amigo Michael.

Agora, tenho eu de terminar esta longa, arrastada e evocativa prosa e verifico que há coisas estranhas. Tudo começou com um rastilho – Michael Jackson – que me levou a rememorar uma década de formação para mim. Ouvi obsessivamente uma música que magnificava esse sentimento contraditório que tenho destes anos: “Nightshift” dos The Commodores. Foi por causa das “sweet sounds” de que eles falam que me lembrei das músicas que encantaram a minha adolescência. Ora, os Commodores eram o conjunto de Lionel Richie e eis que termino a minha doce noite de memória a ouvir “We are the world”, que junta Michael Jackson a Lionel Richie e a tantos outros mitos que eu ouvia naqueles ingentes anos. De permeio, os nomes da Motown e aquela prestação incrível do Michael a cantar e dançar a misteriosa “Billie Jean”. Não tinha pensado em nada disto quando iniciei esta prosa. Queria escrever ou falar daqueles anos incoerentemente belos e fabulosos. Tinha alguns acordes na memória, lembrava-me de algumas músicas, mas nada fazia prever esta quase incessante e comovida associação. Era apenas um sentimento contraditório, uma mistura de exultação e nostalgia pelos anos 80, que aquele ritmo e aquela música do Michael Jackson haviam provocado em mim.

 

Hoje caiu-me uma surpresa que pouco esperava. O Miguel Luís José, aquele que anda em todo lado com a sua Operação “RRR”, veio cruzar o meu singelo caminho. Miguel é estudante de Direito em Portugal e, como eu, carrega um par de óculos, que se sustenta nos círculos das orelhas e no trapézio do nariz. Está de férias e em breve voltará a Lisboa. Sentei-me com Miguel em frente ao pequeno jardim que se situa em frente ao Museu da Moeda. Parecíamos velhinhos. A todo momento ajeitávamos os óculos que não paravam de gotejar sobre a liquidez das nossas gargalhadas. E soube que a operação “RRR” quer dizer: Reencontrar, Reviver e Recarregar. E de facto fizemos tudo isso naquele jardim. Reencontramos os ares da nossa cidade pelas narinas da Europa, revivemos o pouco que as nossas idades minúsculas permitiram-nos e recarregamos os nossos sonhos com botijas de esperanças e soros de certeza.

Miguel encontrou-me enquanto estava terminando um texto para essa coluna; ligou-me. Saí correndo para o receber. Abandonei a crónica e fui ver o jovem estudante de Direito. Miguel é um jovem de uma humildade de atrapalhar até a sua sombra. Fala com o corpo todo; não que se agitasse quando falasse, mas sim, sentia-se o corpo todo presente em cada palavra. Em cada palavra Miguel pouco falava; expulsava a sua alma coberta de humildade e agitava o silêncio que nos rodeava. Falamos de Portugal, dos livros clássicos que sonho em ter, que em Portugal se compram a preço bem barato. Havia uma espécie de ligação mútua em nossas conversas. Falávamos dos mesmos lugares, das mesmas pessoas, das mesmas peripécias da nossa cidade de oportunidades predestinadas e do crescimento material da nossa cidade.

Dentro de mim me recordei que Miguel já esteve no Estádio de Frankfurt; bem na entrada. Sangrei lembranças amargas no mesmo momento. Veio-me à memória o dia em que perdi a minha mala no Aeroporto de Frankfurt e para abençoar a desgraça perdi o voo que me deixaria na cidade de Hannover. Só com a operação “RRR” para me recordar disso. Só com o Miguel para essa imagem me aparecer a preto e branco na memória.

Miguel em breve voltará a Portugal para terminar o curso de Direito. Regressa para novamente cruzar as ruas de Lisboa com uma mochila de livros carregados de leis e normas. Ele regressará e eu ficarei aqui na cidade procurando uma acácia qualquer para urinar o refrigerante que não tomarei com ele. E ele regressa a Lisboa; sairá de Ndlavela para Lisboa. E escrevo esta crónica porque sei que ninguém mais será capaz de me interromper daqui a alguns dias. A cidade é o fardo que terei nas costas quando Miguel regressar a Lisboa. Se aprendesse de Miguel a ciência das leis será que denunciaria nas mais altas instâncias a pobreza que me persegue em todas esquinas? Tenho uma pobreza que em todas esquinas me faz parar e aponta-me um canivete de fome.

Parecíamos dois velhos sentados nas cadeiras brancas do jardim. Tínhamos vergonha de olharmo-nos sem intermediários, por isso cada um espreitava dos óculos. Miguel conhece Áustria e vários países da Europa; ele vive e estuda na Europa. E eu recordo-me que já beijei uma moça da Áustria. Uma moça que não conhecia vários países da Europa; vivia e estuda em qualquer país fora da Europa.

O Miguel fez o ensino secundário onde eu, também, fiz. Tivemos os mesmos professores, circulamos nas mesmas salas, entoamos o hino nacional no mesmo pátio e equilibramos os nossos corpos gordos de magreza nos mesmos corredores. A operação “RRR” meteu-me no comboio do tempo. E esse comboio era muito rápido; parecia um daqueles comboios eléctricos da Europa. A operação “RRR” teve um pequeno momento de contramão. Miguel disse que queria fazer filosofia e que um dia sentar-se-ia para mergulhar nela. Rimo-nos porque eu disse a ele que meu sonho era ser um grande advogado. E prometi que ainda faria. Terminou a operação de Miguel e termino assim a crónica. Termino agora senão ainda vem o Miguel com seus óculos interromper-me.

É uma sociedade de loucura aquela que pretende

sobreviver no regime do ódio e da represália

João Salva-Rey

Mais de 20 textos compõem O barrigudo e outros contos, de Hélder Muteia. Neste livro, o escritor revela que contempla na literatura um veículo que deve transportar em si as vicissitudes de uma sociedade. Por essa razão, é comum encontrar ao longo da obra uma tendência moralista típica das histórias contadas à volta da fogueira ou de geração em geração por povos que ainda encontram na oralidade um lugar privilegiado para transmissão de saberes e de conhecimento. Este Barrigudo constrói-se a partir das sensibilidades, emoções e dos incómodos que o autor foi colhendo ao longo do seu percurso literário e, principalmente, de vida. Desde o conto inaugural até ao último texto, Muteia sedimenta que a arte de pensar é concomitante a de (re)criar universos acutilantes, nos quais, de facto, as derrotas das personagens são reflexos de um mundo a reinventar.

Dá a entender que este O barrigudo e outros contos – que não é uma colectânea de histórias burlescas, como inicialmente julgamos, embora o burlesco manifeste-se com êxito em determinados momentos, veja, por exemplo, o texto “A capoeira” ou “O julgamento do pato” – é lançado para provocar nos leitores incómodos que os leve a questionar os contextos em seu redor e, com isso, quiçá, tornarem-se pessoas apreciáveis. Nesse sentido, Hélder Muteia apresenta muito enunciados susceptíveis de causar resignação, enfado e revolta. Por exemplo, o primeiro conto do livro, em memória das vítimas dos bombardeamentos na Matola, em 1983, pelo regime do Apartheid, foi escrito para devolver à realidade dos povos o que nela deve ser extinta: a intolerância social e, logo se vê, a morte gratuita. Para dar carga à gravidade daí consequente, Muteia coloca no centro da história um menino que, como “Mabata-bata”, deixa-se explodir por uma bomba. Esta história trágica, claramente, é contemplada no livro para mostrar até onde vai a crueldade dos homens. O mesmo acontece com um outro texto, “O homem feio”, feito de discriminação e dessa disposição em retirar dos homens ou das personagens antropomórficas as qualidades urgentes em detrimento das leviandades.

Ao pretender pôr os leitores a raciocinar com critério sobre Moçambique e no que cá acontece nas ruas, Muteia dramatiza o cenário em que crianças, ao invés de estudar, colocam-se na condição de vendedeiras para conseguirem sustento. Esse é o caso de “A menina das pedras”. E esse carácter áspero da realidade também reflecte-se em “O homem dos sonhos gigantescos” – no qual, na verdade, o grande sonho é ter-se um prato de comida à mesa – ou em “Se os homens fossem bons” – no qual um personagem é condenado por roubar dinheiro que lhe garante o pão para matar a fome.

Como se pode notar, este é um livro altruísta, comprometido com a sensatez e em contribuir para uma boa cidadania, sem ódio e sem represália. Ainda assim, estamos convencidos de que este é essencialmente um livro de crónicas do que contos. O conto aqui manifesta-se de forma acidental e em raras circunstâncias. A crónica, sim, está lá e cumpre o seu papel, de forma concisa, oscilando, como se exige, entre o jornalístico e o literário. Este O barrigudo é mais isso que outra coisa. Aliás, se assumirmos que o Barrigudo é uma colectânea de crónicas, até é uma proposta literária apreciável. A ser colectânea de contos, há muito por que questionar.

Título: O barrigudo e outros contos

Autor: Hélder Muteia

Editora: Alcance

Classificação: 12

 

Toda a memória procura retirar ao esquecimento, ao óbvio, momentos, emoções, descobertas, ideias, é uma necessidade do ser humano que se manifesta de diversas formas, no fundo trata-se sempre de lutar contra a morte.

Eugénio Lisboa

Na literatura moçambicana, concretamente na prosa, existem quatro gerações operando no mesmo plano histórico (a memória e a utopia), a mais recente destas se tornou visível na década 2000, com aparição de escritores como Aurélio Furdela, Rogério Manjate, Lucílio Manjate e Clemente Bata. Esta geração mais recente a que pertence o Chakil Aboobakar cujo livro de estreia Uma Vida Qualquer, 2010, foi bem recebido pela crítica e considerado como uma das mais promissoras vozes no esteio da literatura moçambicana.

Em Uma Vida Qualquer, Chakil Aboobacar opera um milagre iminentemente estético de tornar o quotidiano num espaço de eleição dos conflitos sociais, circunscrevendo a acção dos contos entre a tradição e a modernidade, que por essas circunstâncias se perspectiva a reconstrução da fronteira cidade/subúrbio. Como seria de esperar, e com um afecto profundo que, enuncia a angústia da realidade que o rodeia. Tal como em Marcel Proust, em Chakil Aboobacar a linguagem não cria nenhuma angústia entre o que está escrito e o que é conhecido, domina o seu mundo, a sua linguagem esta acima do que é necessário conhecer.

Chakil sempre virtuoso no retrato narrativo dos dias que correm, com efeito, não se trata de um past copy da realidade moçambicana, fluindo nos 15 contos que compõem a obra, mas da magia sempre imprevisível da nossa condição humana ou da captação da alma das personagens oprimidas, de cenários sociais violentamente injustos, partindo da força do amor até tensões inter geracionais.

O universo em que se movem as personagens se parece muito com o das grandes cidade do nosso país, além disso, Uma Vida Qualquer, preenche as necessidades humanas sobre as quais se pode ignorar ou hipotecar. Porém, na página 13, assistimos sempre indiferentes a cada esquina gente da nossa cidade, que precisa do nosso afecto:

E o individuo que ali minguava esforçava-se em vão por pedir ajuda, mas a sua voz desaparecia com o tempo. A gesticulação, já flácida, tornava-se inexistente e o sol amaldiçoava ainda mais aquele momento.

E o puto quase inconsciente, lembrava-se apenas de dizer com a sua pouca voz:

– vou morrer

De conto em conto, assiste-se uma súmula perfeita da interpretação da vida, constata-se a inexistência de valores numa sociedade egoísta, retrata-se a decadência crua de uma nação sub desenvolvida, contaminada por querelas de ordem estomacal, tal como nos assevera o narrador do conto Extracto Duma Vida;

Uns alegavam que foi assalto a mão armada e outros, enfatizando, afirmavam que conheciam o corpo armado que assaltara a instável palhota do velho Moisés, mas ninguém apontou nomes ou características. O caso ficou pelo não dito e morreu na boca do povo. E dispersamo-nos cambaleantemente para os nossos refúgios. pag 50.

Neste sentido, se por um lado, Chakil traz-nos estas peripécias quotidianas, com um linguajar coloquial que só gente de/com Uma Vida Qualquer, podem nos propiciar esta dupla representação, personagens pobres (vozes predominantes nestes contos) e o espaço urbano (que pressupõe adaptações e conflitos), por consequência, incentivadora da efectivação da dignidade humana.

Uma Vida Qualquer é um livro de memórias, de escrita simples e envolvente, é um hino à nossa terra mas é também um formulário para preencher algumas lacunas que assolam o nosso dia-a-dia.

 

Desarmou da axila, o jornal. Inspirou o cheiro do papel recém impresso. Desabrochou as folhas e as páginas floriram. As notícias cheiravam a fresco. Deliciou-as.
– Sô Sansão, está a ler agora que o jogo vai começar?

Jogava Portugal. Passou a mão pela pera grisalha e fez aquele semblante de crítico de bar. Estalou os dedos para o servente, sem olhar. O servente, lento mas solícito, trouxe o copo a espumar. Os craques entraram em campo perfilados, como formigas adestradas. Sansão lembrou-se do tempo das bichas. não gostou:

– Aquilo é oprimir os jogadores. Deviam estar livres. Parece no tempo da repressão, em que tínhamos que nos sujeitar às bichas. Este futebol não é nada democrático.

Aproximou a boca e beijou o copo cheio, equilibrando a espuma. Sorveu com o lábio inferior o resto de espuma filtrado pelo bigode esparso. Os craques preparavam-se para o hino. Ajeitou o corpo magro na cadeira. Segurou o copo de cerveja com estilo de quem hasteia uma taça de vinho das castas mais cobiçadas, e acompanhou o “Heróis do mar” com ar nostálgico, antes de começar a referir-se à Eduardo Mondlane, a avenida, como Pinheiro Chagas, a chamar a Josina Machel, a Escola Secundária, de Liceu Salazar, e outras lembranças do tempo em que éramos portugueses.

O apito do árbitro salivou quando soprou com a força de toda a autoridade proclamando, determinando, consagrando, aclamando, decretando o início da partida.

– O futebol não é nada democrático.

O árbitro corria, de apito na boca, policiando se os jogadores não magoavam a bola, os fiscais de linha impunham as suas bandeirolas e o quarto árbitro parecia um agente secreto.

– Estes árbitros, parecem polícias do tempo repressão. Se os jogadores conhecessem a força da democracia, marchavam pelo campo…

Os jogadores atiravam as pernas com ginga de minhocas ansiosas. A bola bailava como as mulheres do bar entre homens, fingindo gostar de ser chutada. Sansão resmungava, crítico. De repente, um dos craques desenrolou o novelo das pernas numa finta inimitável. Soltou-se do emaranhado de jogadores. A bola foi com ele. Ultrapassou o vento e  todos e, quando sentiu que a bola corria mais do que ele, que já não a alcançava, entornou-se para o chão e dramatizou todas as dores do mundo.

– É falta, kenharam!

– Não foi nada. Está a fingir.

O árbitro hesitou, disse “calma” com gestos e foi consultar o vídeo-árbitro.

Mahupeiro! – gritou o Sansão.

As pessoas viraram-se para o Sansão com o sobrolho franzido e um ponto de interrogação pendurado no centro geométrico da testa. Foi como se naquele repente alguém baixasse o volume dos ruídos do bar e, como um controlo remoto, fizesse rodar a pesada maquinaria dos pescoços embriagados, descolando os olhares do écran e pousando-os onde parecia ter saído a voz.

Zé, um magwerre, virou-se para o Sansão:

– O que é um Mahupeiro?

– É um gajo sem vergonha, parasita – Sansão fez fussa de desdém–, que não recua para defender e fica a espera que lhe passem as bolas.

O barman suspendeu o gesto sobre a torneira e deixou os braços suspensos, com meio copo de espuma encostado à torneira.

Mahupeiro por quê, se ele defende e ataca?

– Nao estou a falar disso – apontou para o futebol – estou a falar disto – apontou para o jornal. Os olhos voltaram-se, fez-se um comício à volta do jornal – digam lá se não é mahupe isto. Era notícia sobre os debandados de um partido para outro.

– Andaram o tempo todo num partido, participaram na má gestão do partido, e agora, véspera das eleições, em vez de recuarem para defender, ficam a espera do primeiro partido que lhes passa a bola… não é mahupe político, isto? Não são mahupeiros políticos, estes?

Depois do vídeo-árbitro, o árbitro apontou para penálti. Todo o mundo virou-se para a TV, esfregando ansiedade nas mãos. Quando o craque posicionou-se, em estilo, para marcar, uma frase cortou o silêncio:

– E se na política houvesse vídeo-árbitro?

Sansão estalou os dedos e chamou mais um copo.

O episódio ocorreu no início do mês de Agosto do longínquo ano de 1987. Eu estava na esquina entre as avenidas Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane, a engraxar, distraidamente, os meus sapatos, quando, oriundo do nada, o meu bom amigo Manuel Maurício, lançando a sua mão esquerda sobre o meu ombro, proferiu de chofre:

– Morreu a filha do teu amigo!

Aquilo foi um golpe. Filha do meu amigo? Fiquei sobressaltado, aturdido. Estávamos todos na casa dos vinte anos – o Manuel é de Janeiro, eu sou de Fevereiro e o Luís Loforte fizera anos em Junho. Todos somos de 1967. Creio que o Abdul Ussene era mais velho. Foi o primeiro a emigrar para o Paraíso. O Ismael Gulli certamente o mais novo. A que amigo se referia o Manuel? Eu já tinha o pé fora do alcance do engraxador, que me olhava estupefacto. Então, o meu velho companheiro resolveu ser mais claro:

– A filha do Carlos Drummond de Andrade!

E eu exclamei:

– A Maria Julieta!

Eu acompanhara a doença da filha e o sofrimento do poeta. O próprio Drummond já não estava bem de saúde, tinha o coração frágil. Ligava-lhe à vida aquele amor soberano por Maria Julieta. Era filha única. Ela vivera uns anos na Argentina e recordava-me de que isso estivera na origem da viagem que o poeta fizera ao estrangeiro, das pouquíssimas viagens que acedera fazer, pois ele abominava andar de avião. Nem à Bahia fora – havia aquele aforismo famoso: “É preciso escrever um poema sobre a Bahia…/ Mas eu nunca fui lá.” Lembram-se?

Sabia, por conseguinte, que o poeta não resistiria àquela morte. Ao sobressalto da notícia, que era de algum modo esperada, imaginei que o meu amigo não suportaria a insuportável inversão da ordem natural das coisas: sepultar a filha, a sua única filha. É preciso dizer que, à época, não avultavam estes avatares tecnológicos que nos permitem hoje a instantaneidade das notícias. Mas, mesmo assim, eu acompanhava suficientemente aquele drama, à distância, de dias ou mesmo semanas, a despeito não soubera, até àquele choque anunciado pelo Manuel Maurício, do infortúnio de Drummond.

Maria Julieta morreu a 5 de Agosto; o pai, o grande poeta Carlos Drummond de Andrade, não resistiria para além de 12 dias. A 17 de Agosto (passaram 31 anos este mês), o seu coração deixava de bater e com ele o sentimento do mundo: mundo, mundo, vasto mundo.

Nunca me esqueci deste episódio. O Manuel a consolar-me como se tivesse morrido alguém da minha família: na verdade, aquele poeta era uma espécie de um parente muito próximo. Não me recordo de mais nada desse episódio. Leio esta noite o texto precário que redigi, na época, para a “Gazeta” da revista Tempo e fico estarrecido. Para além da prosa juvenil, que é desculpável, ali estava, de forme impressiva, uma paixão incomensurável pelo poeta: eu sabia quase tudo sobre ele. Ganhara, até, alcunha dos amigos: “Drummond”. O epíteto era honroso.

Nascido em Itabira do Mato Dentro a 31 de Outubro de 1902, seria em Minas onde o poeta passaria o importante tempo da infância. Aliás, a casa da infância, o ambiente à volta, não só constituem importantes lembranças, como estão na origem dos poemas que compõem os primeiros livros. O livro de estreia, Alguma Poesia, de 1930, é disso apanágio. Não só com o poema inaugural – “Poema das Sete Faces” – como também com o seguinte: “Infância”.

Carlos Drummond de Andrade: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. // As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres. / A tarde talvez fosse azul, / não houvesse tantos desejos. // O bonde passa cheio de pernas: / pernas brancas pretas amarelas. / Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. / Porém meus olhos/ não perguntam nada. // O homem atrás do bigode/ é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos/ o homem atrás dos óculos e do bigode. // Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco. // Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração. // Eu não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovido com o diabo.”

Citei na íntegra o “Poema das Sete Faces” que tem justamente sete estrofes, um número cabalístico, a forma pela qual inicia a vasta, vastíssima, multifacetada e riquíssima obra de Carlos Drummond de Andrade. Este livro inicial “traduz”, no dizer do poeta, “uma grande inexperiência do sofrimento e da deleitação ingénua com o próprio indivíduo”. No entanto, no seguinte, Brejo das Almas, editado quatro anos depois, então “alguma coisa se compôs, se organizou”, segundo Drummond. Aqui o poeta é tímido, ainda. Inteligente, sem dúvida, extremamente sensível. A tomada de consciência política virá com o livro de 1940, Sentimento do Mundo.

Carlos Drummond de Andrade: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos, / minhas lembranças escorrem/ e o corpo transige/ na confluência do amor.”

Pertence a Sentimento do Mundo o belíssimo e citadíssimo poema “Mãos dadas.” Apetecia-me citar o poema todo. Mas cito a segunda e última estrofes: “Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, / não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, / não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, / não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. / O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente.”

O livro seguinte, José, de 1942, traz aquele famosíssimo poema: “E agora José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José? / e agora, você? / você que é sem nome, / que zomba dos outros, / você que faz versos, / que ama, protesta? / e agora, José?”. Li, li, li este poema. Citei-o. Declamei-o. “E agora, José?”

Outro livro empolgado, talvez o mais empolgante de todos nesta fase, sairia em 1945: A Rosa do Povo. O poeta está perto das pessoas, a linguagem é mais objectiva. Drummond interessa-se não só pela política ou pelas questões sociais. Aqui está um poeta que fala de acontecimentos corriqueiros, coisas banais, ele pratica neste livro, com essas pequenas coisas, a transfiguração poética do quotidiano. Pertence a este livro o poema “Procura da Poesia” que todo o candidato a poeta devia ler. Há neste poema versos luminosos, lapidares: “Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos.” Isto é absolutamente extraordinário. Mas vale a pena citar os versos iniciais do poema. Este poema deve ser lido e estudado. Este e muitos outros. Do mesmo livro, estes versos lapidares do poema “O medo”: “Somos apenas uns homens/ e a natureza traiu-nos.” Retorno, no entanto, a “Procura da poesia”:

Carlos Drummond de Andrade: “Não faças versos sobre acontecimentos. / Não há criação nem morte perante a poesia. / Diante dela, a vida é um sol estático, / não aquece nem ilumina. / As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. / Não faças poesia com o corpo, / esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. (…) Chega mais perto e contempla as palavras. / Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível, que lhe deres: / Trouxeste a chave?”

Era isto que eu lia, ainda adolescente, exultava ao ler esta poesia e este poeta, de que fazia tanto alarde, junto dos meus amigos. São muitos os poemas que eu conhecia, versos que citava de cor, sabia os dados da sua biografia, a sua vida em Itabira, o colégio Arnaldo, o incidente no Colégio Anchieta de Friburgo que o levou à expulsão, as amizades do colégio Arnaldo com Gustavo Capanema e Afonso Arinos – importantes mais tarde -, o curso de farmácia que nunca exerceria, a vida de professor de português, o cronista Diário de Minas, o casamento com a D. Dolores, o nascimento de Maria Julieta em 1928, o Rio de Janeiro, a chefia do gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, ou a ida para a Directoria do Património Histórico e Artístico Nacional, onde ficará até 1962, quando se aposenta.

Sabia da história daquele poema publicado na “Revista de Antropofagia”, em 1928: “No meio do caminho”. Em “Autobiografia”, no seu livro Confissão de Minas, Drummond deixou dito: “Sou autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928, vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais.” O poema está no livro Alguma Poesia, de 1930.

Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meu do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ no meio do caminho tinha uma pedra.

A lista dos livros de poesia é extensíssima e não caberia aqui onde quero ainda referir-me ao prosador. Tinha lido e amava o cronista e o contista. Começara com Fala, Amendoeira, que reunia crónicas que publicava no Diário de Minas na coluna “Imagens”, que durou 15 anos. O livro saiu em 1957. O poeta tem outros títulos que reúnem crónicas, ensaios, artigos. Anotei então em 1987: “Carlos Drummond de Andrade desenvolveu também a actividade de ensaísta, desdobramento do poeta como acontece nos seus poemas metalinguísticos. Os seus ensaios foram publicados em conjunto com as crónicas em vários livros da sua vasta bibliografia. A crítica considerava-o já nessa altura como sendo um dos poetas mais importantes do Modernismo ao lado de Manuel Bandeira e Mário de Andrade”.

Na Escola de Jornalismo, cruzei-me com um professor brasileiro, que, ao descobrir a minha paixão impenitente pelo poeta itabirano, me deu a conhecer os livros mais recentes, que na altura eu desconhecia de todo: Corpo, de 1984; Amar se Aprende Amando, de 1985. Era um “novo” Drummond para mim. O corpo, o amor corporal, o impudor do corpo, a revelação do corpo. Redijo então na minha prosa juvenil:

“O amor é tema sempre presente nos seus livros. Porquê? Drummond justifica numa entrevista ao jornal brasileiro Leia: “Antes eu tinha uma espécie de medo, era encabulado, provinciano, coisa de pessoa muito tímida, muito secreta. Hoje, ao contrário, a salvação da vida é o amor. Se a gente não levar uma mensagem de amor, alertando para a necessidade de as pessoas cultivarem o sentimento amoroso, não só na escala individual, mas para a humanidade, eu acho realmente que o mundo vai piorar muito, vai acabar se destruindo.”

A “Gazeta”, no seu número 170 da edição de 6 de Setembro de 1987, abria, na sua página de rosto, com um desenho de Sérgio Tique, que representava o poeta. O editor, Gilberto Matusse, acolhera para título uma citação drummondiana: “A salvação da vida é o amor.” Esta noite, ao reler aquele antiquíssimo artigo, com o júbilo de quem não se envergonha nada dos seus vibrantes e ingénuos 20 anos, a esta distância, 30 anos depois, teria, seguramente, dado outro título, igualmente drummondiano: “A salvação do mundo é o amor.”

Quando em Junho de 1988 fui almoçar, pela primeira vez, com a Noémia de Sousa, ganhei de presente 60 Anos de Poesia, antologia organizada por Arnaldo Saraiva, que nos falara do poeta num convívio na AEMO, dois anos antes. Guardo, ciosamente, esse exemplar: “Ao Nelson Saúte. Recordação de uma feijoada de amigos jovens e “mais velhos” em Algés. Da tia Noémia de Sousa. 26/6/88.” Em Setembro de 1996, Conceição Osório, que fora minha professora na UEM, na minha rápida passagem pelo curso de História, nos anos 80, trouxe-me, anos depois, de uma viagem do Brasil, Farewell, do Drummond: “Para o Nelson poeta, a inspiração de Carlos Drummond de Andrade.” Isto é de uma grande generosidade. Comovo-me com a generosidade dos amigos. No caso, neste caso, das minhas amigas. Mais recentemente, ganhei, de Rita Chaves, a edição crítica Poesia 1930-62, com mais de 1000 páginas, e Os 25 Poemas da Triste Alegria, duas belíssimas edições da Cosacnaify, editora que, entretanto desapareceu. Para além disso, tenho em minhas estantes antologias e títulos repetidos. Provavelmente, é o poeta que mais bibliografia detenho.

Para além do longo artigo da Tempo, fui convidado, pela vetusta TVE (predecessora da TVM), a dissertar, naquela circunstância, sobre o poeta que desaparecia. Onde eu arranjava semelhante desenvoltura, aos 20 anos, para tal empreitada? Não sei. A esta distância, estou inclinado a pensar que os meus amigos deviam achar-me um chato com as minhas obsessões literárias, entre as quais figurava o nome ínclito de Carlos Drummond de Andrade.

Com os anos ou deixámo-nos de nos ver com frequência ou eu tornei menos explícita a minha impunida paixão pelo poeta brasileiro. Redijo hoje este texto de evocação – ao poeta itabirano, mas sobretudo à nossa juventude presidida pelo inarredável amor aos livros –  para dizer ao Manuel Maurício e a todos os meus companheiros de sempre, que continuo a ler, com espanto e júbilo, o meu velho, indefectível e dilecto amigo Carlos Drummond de Andrade. 

(Parte I)

                                        

O sorriso dói a tanta gente… vento e água não têm o mesmo peso.

Lica Sebastião, in O AVESSO DAS PALAVRAS

Ao DINO FOI,

O Agitador de Ideias!

Querido Dino Foi!

Assim que não consigo falar contigo decidi escrever. Não vou perder o meu rico tempo a dizer «bom dia», «boa tarde» ou talvez «boa noite» porque o meu desejo é saudar-te com um beijinho, à nossa maneira, de comadre para compadre. Bem sei que andas por aí pelo mundo. Nunca se sabe se estás em Moçambique ou se estás fora do país. Até as minhas fontes suspeitam que andas por aí, a fugir de mim. Pouco importa se onde estás faz frio ou calor. Se é madrugada ou se estás agora mesmo a curtir a sombra da uma tarde qualquer.

És uma pessoa muito tímida para enfrentares o espanto que sou, sei bem disso. E como não atendes aos meus bipes, arrisquei e aqui me tens neste papel. Quase ias tendo sorte. Por ironia do destino as minhas contas decidiram piscar o alerta vermelho e recorri a uma amiga que me safou com megas. Sou uma sobrevivente de um barco encalhado. Bebi a poeira do destino e mastiguei as ondas do mar. Sou uma mulher de armas, até o medo tem medo de mim, tal como a escuridão detesta o Sol. Ando a caçar-te no facebook, mas como andas armado em bom não me ligas nenhuma. Hoje encontrei uma saída. Esta carta vai resolver todos os meus problemas. Primeiro quero dizer-te que ando a ler tudo que escreves no teu mural sobre a única filha da minha mãe. Acompanho o que essa tua fila de gajas diz sobre mim. E até pensam que são as sortudas do teu quintal. Umas afivelam com «likes» e aqueles bonecos, dançando, fazendo caretas, rindo dos meus dentes e outras coisas que não é correcto aqui falar. Se eu dissesse tudo que penso delas poderia estragar a minha caligrafia e o meu latim soletrado.

Compadre Dino,

A minha preocupação não sou eu. O Viriato é que me faz escrever-te. Não sei se ainda te lembras dele. Viriato é aos olhos de muitos um maluco, um indigente avulso numa rua esquecida do mundo. Mas para mim é um irmão, um homem de Deus que foi traído pela sorte. Esta vida anda de um jeito que a gente já não sabe se está a acertar quando pratica o bem, ou se estamos a alugar uma desgraça paga com retroactivos. Maigode!

Encontrei o Viriato na rua dos segredos, onde ele construíu uma casa de pano e papel. Viriato estava bem-disposto, cantando «Drop The Pilot» de Joan Armatrading usando um pau no lugar da guitarra e abanando a cabeça ao sabor da música. Pano e papel eram os materiais que usávamos para construir as casas com que sonhávamos na infância. E o Viriato queria ser Piloto. E eu sempre sonhei ser professora. Mas a vida é uma tábua de xadrez como diz o músico Chico António.

 O comandante Viriato Xicomo disse-me que te conheceu no Zimbábwe nos teus tempos de estudante. Viriato estava numa formação militar. Ele falou-me das vossas noitadas em Harare. Fica tranquilo, compadre não vou revelar a ninguém a parte boa das vossas aventuras, assim de qualquer maneira. Mesmo que me prometam montões de dinheiro. Ainda sou amiga dos meus fãs. E tu és dos mais dedicados, Dino. É só te lembrares que não passas uma semana sem tocares no meu nome. No próximo post trata-me por Jô. Quero sentir-me nas nuvens, como a campeã dos 100 e 200 metros dos jogos Olímpicos de Seul 88.

Voltando ao mais importante, o Viriato vive na rua há cinco anos, desde que foi abandonado pela mulher e os filhos. Como diria o doutor Pescoço, o Viriato confiou nas pedras do caminho e no campim à volta que as esconde. Longe de pensar que o Trigo amigo e colega estava feito com a mulher do Viriato. Flagrou-lhes tarde, mas a tempo de pegar no casaco e meter-se na rua. Ainda bem que ele não pegou na arma. Imagino o que ele teria feito. Mas o filho evitou males maiores à família Xicomo. Como disse antes, o Viriato montou a sua casa na rua e junto da parede onde ele montou a casa de pano e papel escreveu a preto É PROIBIDO MIJAR AQUI. MULTA MIL METICAIS.

Naquela tarde aproveitei o bom humor do nosso amigo e levei-o ao cala a boca, num ambiente descontraído para ele ter espaço para revelar-me coisas da sua vida. O Viriato ainda alimenta o sonho de regressar aos bancos da escola para concluir o nível médio e depois candidatar-se ao curso de Direito. É uma promessa que ele fez à mãe que está em Mapai. Naquela tarde o Viriato estava tão animado, até os serventes do restaurante olharam para ele de queixo-caído. Eles não estavam a reconhecer o mendigo que desdenharam horas antes ao passar pela esburacada rua dos segredos.

Sei que és um homem de bem, Dino. E saberás ajudar a reabilitar o sonho de um amigo. É só ligares para mim.

                                                      Um beijinho, compadre!

Joaquina

Magoanine, 10 de Julho de 2018

 

Raffael Inguane ou simplesmente Piripiri Sakana lançou em Setembro do ano passado, um verdadeiro hino carnal de celebração a Afrodite. Trata-se dum hino que quando condensado e lido sem nenhuma respiração vira um livro; o hino em forma de livro, Raffa, chamou-o de “Sexo & Grafia”.

“Sexo & Grafia” constitui um refinamento a nível estético, sexual e de prazer de um poeta que se estreou em 2013 com “Cartas Para Uma Cabocla”. Depois de se ler o livro de Raffa pode-se ficar com a impressão de que ele tem um olhar prazerosamente sexual e esteticamente movido por uma tendência erótica elevada ao infinito. Ter-se essa impressão depois de se ler esse livro é um puro engano dos sentidos ou sentimentos. O erro de interpretação é mais insensato quando ocorre nos sentimentos. Aliás, os sentimentos nunca precisaram de interpretações; senti-los é tudo.

“Sexo & Grafia” é um inventário onde não há espaço para impressões e tendências. É um livro nu que caminha nas ruas das suas próprias páginas sem esconder a mínima parte íntima da escrita. É um livro que conjuga o prazer, o sexo, a poeticidade bem medida, o erotismo que incha de desejos cada página e tudo isso é consumado por um instinto profundo de amor que o autor possui pelas mulheres.

“A loucura é um empréstimo de liberdade” diz ele numa das estrofes desse hino. Talvez essa devia ser a citação de abertura do livro; a fechadura, da primeira página, onde o leitor meteria a chave do seu dedo indicador, bem molhado de saliva, e abrir o livro. A loucura. Voltemos a Erasmo de Rotterdam e recordemo-nos do que ele nos disse em “Moriae Encomium” (Elogio da Loucura); para Erasmo a loucura é um bem da sociedade. A sociedade vive em constantes enganos recíprocos porque pouco troca o calmante mel da loucura. E Raffa assim pensa, por isso vê a loucura como um empréstimo. E sendo um empréstimo prefere geri-lo através da economia do verso e cambiando-o constantemente pela moeda do prazer carnal e nocturno. Os loucos são os animais mais felizes.

Recordo-me que aquando do lançamento do livro fui convidado para apresentá-lo ao público, todavia tive uma loucura insuficiente para participar por conta de alguns desprazeres sociais e pessoais. Mas, confesso, neste instante, que a cada dia que leio o livro dá-me a impressão de estar a apresentá-lo a um público muito extenso: eu e eu.

“Sexo & Grafia” é um verdadeiro hino carnal de celebração a Afrodite. Afrodite! Aquela deusa que os romanos roubaram dos gregos e chamaram-na de Vénus. Afrodite era a deusa do amor, do sexo e uma das mais poderosas divindades do Olimpo. A deusa que amenizava os corações dos homens e, também, enlouquecia-os sempre. Versos como “hoje eu quero aumentar lenha no teu fogo” ou “adubar-te com beijos e amassar-te toda” mostram-nos que Raffa tece em cada página do seu livro um hino carnal e conciso a Afrodite. Raffa na primeira parte do livro (Sexo) mostra-nos que não é amigo da sensatez sexual e na segunda (Grafia) não esconde que é padroeiro dos amantes. Eis um outro traço que nos mostra que Raffa se inspirou, como aqueles poetas, pintores e escultores antigos, na Afrodite. Afrodite era conhecida por ser amiga dos amantes, mas inimiga da sensatez.

As pinturas que acompanham o hino servem de bandeiras gemidos. São pinturas que se içam e levantam em cada poema. “Sexo & Grafia” é um hino a Afrodite porque procura em cada página mergulhar na doçura dos apaixonados, destapar a languidez dos desejos e despir o idílio da entrega dos copros. Para entoar esse hino, a Afrodite, é preciso estar com a alma possuída por “moria”, a loucura extrema dos gregos antigos porque esse cântico constitui um com comércio triangular dos “S”: sexo – sociedade – simplicidade.

 

Em condições normais, a inauguração do segundo maior estádio desportivo do país, pós-Independência, mesmo que num distrito, deveria merecer a presença do Chefe de Estado. Porém, compreender-se-ia que caso a sua agenda não o permitisse, o Primeiro-Ministro faria as honras da casa. Mas tal não aconteceu. A representação passou para o Governador da Província.

Como é que os desportistas deverão ler a mensagem? Será por ser de fora da capital e da iniciativa de um município que não o do Partido no poder?

Mas as coisas não só ficaram por aqui. É que o Ministério da Juventude e Desportos, de tão atarefado(?), também não se fez representar, nem pela Ministra, Vice-Ministra ou mesmo Director-Nacional.

A estrutura central do Desporto, delegou a presença através do Director Provincial.

A pergunta pertinente é: “a dôr de cotovelo” que resultou num cartão vermelho, do partidão vermelho, terá pesado mais do que a maravilhosa iniciativa do Município da Beira?

ATÉ PORQUE…

“Consta do Plano Quinquenal do Governo, orgulha os desportistas beirenses e de todo o país” – referiu Alberto Mondlane, o governador da Província de Sofala, na inauguração.

Em que ficamos então, pois estamos a falar de um Estádio, concebido sob todas as normas e exigências internacionais, transportando consigo a virtude de estar inserido numa zona que garante a utilização pelos citadinos, mas também de jogos internacionais?

O novo “caldeirão do Chiveve”, aparece como um esforço para servir TODOS os desportistas do país, tentando ressarci-los do desaparecimento de inúmeros campos, sucessivamente “bisnados” a favor de bolsos sabe-se-lá de quem. A iniciativa do CMCB é uma obra que deve servir de exemplo para outros municípios.

Mas a mensagem que ficou da cerimónia em referência é a de que estamos em presença de um chivevezito de Daviz Simango, para satisfazer o seu ego e angariar votos. Aliás, o cartão amarelo já havia sido dado pela bancada da Frelimo na Beira, que referiu que se dependesse dela, nunca o país se iria beneficiar daquela obra!

 

O Comunicado de Imprensa da CNE, tornado público no dia 21 do corrente, contém deliberações relativas a passos cruciais do processo eleitoral em curso que se prendem com os direitos dos candidatos, partidos e grupos de cidadãos, que mereceram reacções imediatas dos vários quadrantes políticos, e sobretudo jurídicos. É nesta última perspectiva que pretendo situar o meu breve comentário sobre alguns aspectos em que considero necessário todo o rigor de interpretação das normas pertinentes, sob pena de se ver prejudicada, à partida, a liberdade, justiça e transparência, que devem caracterizar os processos eleitorais.

A controvérsia que se está levantando sobre alguns desses aspectos evidencia o sentido crítico e de vigilância com que se acompanha o processo. Esse sentido crítico e de vigilância faz parte da fiscalização do processo eleitoral, a qual não é restrita ou exclusiva dos candidatos, dos partidos ou dos grupos de cidadãos, pois é interesse de toda a sociedade, podendo constituir uma inestimável contribuição para que se corrijam ou se evitem erros e violações.

Assim,
No n°1 do Comunicado notifica-se um certo número de cidadãos subscritores da lista da AJUDEM para corrigir algumas irregularidades, atinentes aos requerimentos de desistência que submeteram à CNE, em conformidade com o n°2 do artigo 30, da Lei n°7/2018, de 3 de Agosto, que permite «…a desistência de qualquer candidato constante da lista, através de declaração…assinada e reconhecida por notário…», declaração esta que deve ser feita «…até dez dias depois da publicação das listas definitivas…», conforme o n°1 do mesmo artigo. Depois disso a CNE, nos termos do n°3 desse dispositivo, «…manda imediatamente afixar a deliberação respectiva sobre a matéria…», «sobre a matéria» entende-se sobre a desistência do candidato.

O n°3 do artigo 30, ao tratar desta matéria, pára na publicação da deliberação da CNE sobre a desistência, sem que complete, pelo menos de forma explícita, o regime que regula a situação criada. Porque se atentarmos nos números seguintes, o n°4 e o n°5, que tratam da desistência do candidato a cabeça de lista, aí já se prevê expressamente o regime da sua substituição. A qual se faz pelo segundo da lista ou então reorganizando a lista.

Ora, assim como os partidos, coligações de partidos ou grupos de cidadãos, têm a prerrogativa de substituir os cabeças de lista por virtude da sua desistência, também lhes assiste o mesmo direito em relação aos demais membros da lista. Dando lugar à publicação de nova lista em relação aos candidatos desistentes, nos termos do n°2 do artigo 29 desta lei.

Esta é uma prerrogativa inquestionável dos partidos, coligações de partidos ou grupos de cidadãos. Porque a não ser assim estar-se-ia a introduzir um elemento de extrema insegurança, eventualmente de manipulação e de má-fé, que a lei eleitoral não pode propiciar ou caucionar.

Admitir isso seria o mesmo que legitimar todo o tipo de chicana eleitoral, antes mesmo dos próprios pleitos, com o presumível fim de se eliminar concorrentes, fora e à margem das urnas.

Os partidos, coligações ou grupos de cidadãos, não podem ficar à mercê de factores dessa natureza. Uma vez que eles cumpram com as exigências da lei, dentro dos prazos por ela estabelecidos, não podem ser colocados como inadimplentes pela deficiente interpretação da lei, instrumentalizada para dar cobertura a permissividade, caprichos e má-fé, de alguns componentes das suas listas. Senão mesmo á prática, tornada corrente, de «compra de consciências».

Portanto, no caso vertente, a CNE, ao mesmo tempo que torna pública a deliberação sobre as desistências, nos termos do n°3 do artigo 30, terá que dar um prazo não inferior ao previsto no n°5 do mesmo dispositivo, para que o grupo de cidadãos em causa proceda á substituição dos desistentes da respectiva lista.

E, naturalmente tem que haver um limite a partir do qual nem os partidos, coligações ou grupos de cidadãos, nem os integrantes das listas, podem provocar alterações nestas. Para a moral, segurança e estabilidade do processo eleitoral.

Quanto ao artigo 13 da Lei n°7/2018, de 3 de Agosto
A controvérsia sobre a interpretação do artigo 13 tem girado à volta da questão da retroactividade ou irretroactividade da nova lei que veio expressamente revogar a Lei n°7/2013, de 22 de Fevereiro. Não é essa a questão sobre a qual me vou debruçar, mas sobre o n°2 do artigo 155 (Incompatibilidades) da Lei n°7/2007, de 26 de Fevereiro, sobre a eleição do Presidente da República e a eleição dos deputados da Assembleia da República.

Esta norma estabelece, entre outros, o seguinte:
«O Mandato de deputado é incompatível com a função de:
1.………
f) titular de órgãos autárquicos
2. As entidades referidas no número anterior que sejam eleitos deputados e pretendam manter-se naquela função, devem ceder o mandato de deputado nos termos previstos pelo artigo 182 da presente Lei.»

Portanto temos que, por um lado, a Lei n° 7/2018, de 3 de Agosto, Lei da eleição dos membros dos órgãos autárquicos, não impede os titulares de órgãos autárquicos de se candidatarem para a Assembleia da República, e, por outro, temos que é a citada Lei n°7/2007, de 26 de Fevereiro, que vem estabelecer a incompatibilidade entre o mandato da AR e o mandato nos órgãos autárquicos. E estabelece-a de uma forma que não podia ser mais clara, no sentido de que, os titulares de órgãos autárquicos, que forem eleitos deputados da AR, terão que renunciar ao mandato da AR se porventura quiserem permanecer titulares daqueles órgãos. O que significa que se tomarem assento na AR não precisam de fazer mais nada porque perdem automaticamente o mandato nos órgãos autárquicos por efeito dessa tomada de assentos na AR.

Se acaso estes titulares, por via de algum equívoco de interpretação da Lei, submeteram renúncias de mandato nos órgãos autárquicos, sem que isso seja necessário ou exigido por lei, tais renúncias são irrelevantes, porque eles perdem os mandatos por força da lei e não por força das suas renúncias juridicamente irrelevantes.

Por isso não pode a CNE vir agora retirar efeitos jurídicos inexistentes de irrelevantes renúncias.

Na verdade essas renúncias só poderiam relevar se eles não tivessem sido eleitos para a AR. Só e apenas nessa hipótese.

É preciso entender que não se está perante normas isoladas e que possam ser consideradas sem qualquer relação uma com a outra. Estas normas integram o sistema eleitoral, desde as autarquias, às Províncias e aos Órgãos de Soberania. Nesta perspectiva sistémica as normas não se atropelam nem se sobrepõem, mas articulam-se harmoniosamente e em coerência com os objectivos e com o funcionamento integrado do sistema.

Assim, cada norma tem o seu objecto, e tem o seu âmbito de aplicação. A norma que comina as renúncias com a penalização de inelegibilidade, aplica-se àquelas situações em que os membros dos órgãos autárquicos abandonam os respectivos mandatos sem qualquer justificação legal, e «vão à sua vida». Já a norma sobre incompatibilidades aplica-se a outras situações, quais sejam, as daqueles que prosseguem a sua carreira política em Assembleias de nível superior sem interrupção de actividade política. O tratamento que é dado a essas situações nunca poderia ter um carácter sancionatório mas apenas de proibição de acumulação de funções ou de cargos, como a lei justamente fez. Portanto, numa interpretação rigorosa das leis em causa, cabe ao intérprete fazer esta separação de águas, para não criar ele, o intérprete, a confusão que não existe.

No que estou em concordância com a linha de interpretação expendida pelo DR. Teodoro Waty, e sobretudo também com o seu veemente chamamento à ética e moralidade, que se presumem nas leis e que devem prevalecer na interpretação e aplicação das mesmas.
 A posição da CNE quanto à candidatura de Silvério Ronguane

A candidatura de Silvério Ronguane, pelo que sei, encontra-se na mesma situação da candidatura de Venâncio Mondlane. Mas a CNE não teria tomado nenhuma posição em relação à mesma alegadamente porque não recebeu nenhuma reclamação a respeito.
Ora isto me parece de um absurdo inadmissível pelas razões que passo a aduzir.

A Constituição da República estabelece, no n°3 do artigo 135, que «A supervisão do recenseamento e dos actos eleitorais cabe à Comissão Nacional de Eleições, órgão independente e imparcial…»

Por seu lado,a Lei n°8/2007, de 26 de Fevereiro, Lei da CNE, e que regulamenta a definição constitucional, vem determinar, no n°2 do seu artigo 2, que «entende-se por supervisão a função de, orientar, dirigir, superintender e fiscalizar os actos do processo eleitoral».

No artigo 7 (Competências), desta lei, de entre as competências atribuídas à CNE, estabelece no n°1, alínea b), a de «assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos em todos os actos do processo eleitoral», na alínea c), a de «assegurar a igualdade de oportunidade e de tratamento dos partidos políticos e coligações de partidos ou grupos de cidadãos eleitores proponentes em todos os actos do processo eleitoral», e na alínea f) a de «receber e apreciar a regularidade das candidaturas às eleições legislativas e autárquicas».

Os dispositivos aqui transcritos não requerem nenhum particular esforço de interpretação para se constatar que a CNE, ao abster-se de conhecer da candidatura de Silvério Ronguane, com fundamento em não ter recebido nenhuma reclamação, violou a Constituição e a lei.

Violou a Constituição porque não assumiu o seu múnus de supervisão, tal como estabelecido no n°3 do artigo 135.

Absteve-se de dirigir e de fiscalizar a conformação com a lei da candidatura de Silvério Ronguane, no que era seu dever de ofício.

Ao proceder desse modo tratou de forma discriminatória e prejudicial a candidatura de Venâncio Mondlane e tratou com favoritismo a de Silvério Ronguane.

Em duas situações rigorosamente idênticas tratou de forma desigual o Partido RENAMO e o MDM, acabando por, na prática, utilizar «dois pesos e duas medidas».
Recusou-se a apreciar a regularidade da candidatura de Silvério Ronguane, no que era seu dever de ofício como já referi.

Salta á evidência a insustentabilidade da actuação da CNE num caso, e da sua omissão no outro.

Em conclusão, é minha convicção que estes problemas, que desde já perigam a liberdade, justeza e transparência do corrente processo eleitoral, poderão encontrar o devido remédio e correcção no Conselho Constitucional como instância última de recurso.

 

“Eu rebelo-me, nós existimos”
Albert Camus

Eis o voo arriscado da coruja da Minerva sobre os factos políticos antes de o sol se pôr. É mais provável que seja cedo para se lançar uma luz filosófica sobre a natureza imediata dos fenómenos políticos, mas ante o acto de rebeldia de Samora Machel Júnior (Samito) em querer conduzir o destino de Maputo fora das rédeas da Frelimo, a coruja da Minerva sente-se também atentada a rebelar-se do seu horário normal do voo e escalar o céu para avistar a marcha do Espírito absoluto. Na verdade, todo o acto rebelde é, por excelência, espontâneo e indisciplinado no sentido de desconsiderar a circunstância em que se revela e preocupar-se simplesmente com o desejo de impor-se.

Poderá ter havido alguma preparação para saída de Samora Machel Jr. da FRELIMO, embora não deixe de se destacar o espírito de rebeldia no facto de Samito ter deixado a grande máquina política que é FRELIMO para afiliar-se a um minúsculo organismo que é AJUDEM com uma fama de anonimato na esfera pública. O acto inopinado de Samito revela-nos um indivíduo que, agastado com a infâmia do partido tradicional, decide saltar do barco sem muito considerar onde vai cair. O importante para Samito parece-nos que foi salvar a sua consciência e o nome da família Machel, ao discordar explicitamente do comportamento do partido. Após uma FRELIMO colonial e libertadora que, sob a liderança de Mondlane e Machel, se apresentava à maioria do povo moçambicano, disciplinada, austera e focada no bem comum da população, é deveras consternador que a FRELIMO dos dias de hoje esteja implicado em graves escândalos de corrupção. Que as magnas dívidas ocultas, o tráfico de madeira e a devastação económica evitável que ligam elites deste partido não me permitam o engano.

Certamente que nem todos os membros deste partido libertador compactuam com esta má imagem da FRELIMO. Mas se não compactuam, o que é que fazem para distanciar-se? A passividade e a indiferença são filhas da conivência. Dos homens que não quiseram que a sua imagem fosse envolvida a um ignóbil fado tiveram coragem suficiente de dar-se à história como mártires, rebeldes, reacionários, revolucionários ou reformistas. Aqueles que conscientes do problema não tomaram nenhum acto de insurreição são tão coniventes quanto o povo alemão perante o holocausto de Hitler, não importando a forma da sua culpa se é pelo medo ou lealdade ao partido. Embora de maneira tímida, Samito acaba de demarcar um distanciamento moral da FRELIMO. A infâmia que pesa sobre o partido no poder já não é mais da carga de Samito. Ele já está em plena paz política consigo mesmo. Ou melhor, ele devia estar em plena paz espiritual consigo mesmo, pois, como disse Severino Ngoenha, não existe uma moral política separada duma moral pessoal.

Entretanto, ainda que seja louvável desertar o partido, este acto não é única forma de manifestar a discordância activa. É possível continuar dentro de uma instituição sem compactuar com a sua conduta, por meio da crítica e reforma. Um dos melhores exemplos sobre esse modus vivendi num habitat hostil é o próprio Samora Moisés Machel dentro do partido FRELIMO. Quando a FRELIMO da independência começou a mostrar sinais de degeneração política, Machel mostrou-se único de todos os líderes comunistas a criticar publicamente e veementemente o seu próprio partido. Criticou e prometeu sérias reformas sem precisar desvincular-se da FRELIMO. E o povo do então soube que dentro da FRELIMO havia sabotadores e corruptos, mas o presidente não era um deles.

De modo geral, avaliando os últimos eventos de dissensão que têm sucedido aos partidos libertadores em África pode-se vislumbrar que o Espírito absoluto cogitado por Hegel como ideia de autoconsciência está interessado em proceder a sua marcha dialética no continente negro. As peças do grande desígnio já começam a mover-se sob a magna razão. Os fenômenos políticos que, amiúde, se nos afiguram corriqueiros dentro dos partidos de libertação, quando olhados de maneira holística começam a revelar-nos a silhueta do futuro dos partidos políticos em África – que é a democracia interna. Se o fim último da história dos homens visto por Francis Fukuyama é a democracia, há uma obrigação que a organização interna dos partidos políticos termine democrática. Porque o movimento do Espírito absoluto não permite contramãos, todo o partido que resistir ao vento da mudança arrisca-se a ser esmagado, preterido e olvidado.

Vejamos o que está acontecer com o MPLA, após longos anos de ditadura de José Eduardo dos Santos, foi preciso que o Espírito absoluto introduzisse a peça de João Lourenço para operar reformas necessárias rumo à democracia. O trabalho de João Lourenço poderá não ser exaustivo mais já é um grande passo para a democratização do MPLA. O partido no poder da Nigéria, APC, sofre em 2018 deserções profundas motivadas por altos níveis de corrupção e incompetência que enferma a governação de Muhammadu Buhari. É chegada altura deste partido reorganizar-se de maneira mais democrática possível sob o risco de perder o poder. O ANC da África do Sul é relativamente um dos partidos mais democráticos de África desde a deserção de Malema e escândalos de corrupção de Zuma que obrigou o partido a expulsa-lo do poder. Soube gerir a crise e democratizou-se. O ZANU-PF, partido no poder do Zimbabwe, já começou a dar passos significativos rumo à democracia, quando em novembro de 2017, Mugabe foi forçado a renunciar ao poder por ter tentado transformar o partido num órgão familiar cujo chefe era ele. O mesmo espírito de mudança assombra a FRELIMO, no bom sentido, quando Samito decide romper com o partido do seu pai, alegando falta de democracia.

Por isso, o acto de Samito não devia ser visto simplesmente como uma decisão pessoal, mas como um dedo do Espírito absoluto na sua marcha pela democratização dos partidos políticos em África. A crise deu entrada no partido FRELIMO, não só pela dissensão marcante de Samito, mas por existir membros que estão indignados com a imagem ignóbil deste partido tradicional. Mas a crise pode ser motivacional bem como fatal, dependendo da forma como ela é gerida. Cabe, portanto, à FRELIMO, considerar a situação crítica actual em que se encontra como chamada de atenção para sua democratização ou como mais um acontecimento trivial que não coloca em perigo a sua pujante existência. Samito foi mais um dado bem jogado pelo Espírito absoluto. A FRELIMO, assim como MDM, RENAMO e outros partidos da África deviam cooperar o mais rápido possível com a grande marcha de democratização partidária de modo a poupar-se o esforço de despertar tardiamente com grandes perdas, pois, de qualquer forma a democratização dos partidos é certa. Somente os partidos democráticos são capazes de sobreviver num futuro em que Estados do mundo estão condenados a respirar a democracia. Quanto mais cedo os partidos políticos ganhar a consciência que a liberdade de expressão e transparência no seu funcionamento interno é única via de manter-se em “forma”, mais crises desnecessárias poderão evitar.

 

O Apóstolo da Desgraça

Nelson Saúte

Escritor

A guerra e a paz de Kofi Annan

Numa entrevista de celebração, para o programa HARDtalk, da BBC, realizada pela jornalista Zeinab Badawi, aquando dos seus 80 anos, em Abril, em Genebra, Kofi Annan voltou a impressionar-me pela sua figura impassível, indubitavelmente fleumática, quase pachorrenta, mesmo quando a jornalista britânica, de origem sudanesa, agitou os fantasmas que assombram a sua longa e admirável biografia. Quando abordou o genocídio dos tutsis no Ruanda, em 1994, e as responsabilidades de Annan – era ele na altura Subsecretário Geral para as Operações de Paz, Badawi foi intrépida ou até mesmo inclemente. Ela não tem a pesporrência de Stephen Sackur, fá-lo com candura, mas isso pareceu-me até muito mais verrinoso. Tive, porém, dois sentimentos contraditórios: se por um lado, me parecia quase uma traição, num momento festivo, insistir com aquele tema, e daquele modo, reduzindo uma carreira exemplar, a esse facto incontornável, que tem sido recorrente e foi amplamente esclarecido pelo próprio, tanto nas suas memórias, como nas entrevistas que tem dado; por outro, empolgou-me o facto de o interlocutor ter dado uma resposta serena e coerente com aquilo que tem sido a sua posição. Kofi Annan não se exasperou, foi até compassivo. Ali também escrutinei, naquele momento, as razões de uma longa e bem-sucedida trajectória.

Poucas semanas depois estive com o meu bom amigo Carlos Lopes, na Cidade do Cabo, onde nos encontramos amiúde, prolongando um convívio que praticámos há mais de 25 anos. Carlos Lopes é oriundo da Guiné-Bissau e serviu longamente as Nações Unidas. Trabalhou junto de Kofi Annan – tendo sido seu director político e pertence hoje ao grupo de conselheiros da Fundação que leva o nome de Annan. Ele estava na ocasião da entrevista, em Genebra e interveio, como intervieram Mo Ibrahim (sudanês), Martti Ahtissari (foi Presidente da Finlândia e é Nobel da Paz em 2008), Mary Robinson (foi Presidente da Irlanda e foi Alta Comissária para os Direitos Humanos, entre 1997-2002, no tempo de Annan), entre outros. Falei-lhe da minha perplexidade perante a resoluta interpelação de Zeinab Badawi e a sua impolida insistência no tema ruandês. E sobre a impressão que aquela sólida personalidade que o velho diplomata africano voltara a provocar em mim, sobretudo a sua serenidade. Em toda a entrevista Kofi Annan demonstrou a sua fortíssima e corajosa notabilidade e autoridade, o seu bom humor e os valores altruístas: o homem do diálogo, da convergência, da paz, dos direitos humanos, da defesa intransigente das sociedades civis – tudo aquilo hoje vejo sublinhado nos telejornais que dão conta da sua morte. A sua esperança inabalável sempre me causou impressão.

Samantha Power, que foi embaixadora de Barack Obama nas Nações Unidas, proferiu uma das mais impenitentes diatribes contra Annan: “O seu nome vai aparecer nos livros de história ao lado de dois crimes de genocídio definidores do século XX”. Outro que apontou violentamente o seu dedo a Annan foi Romeo Dallaire, que era o comandante da ONU no Ruanda. Dellaire enviara, em Janeiro de 1994, para a sede das Nações Unidas, um fax pedindo autorização de Annan para uma acção militar preventiva visando deter o movimento dos que seriam responsáveis pelo genocídio que ensombraria a história daquele país. Os americanos tinham acabado de ser expulsos da Somália – dois helicópteros dos EUA tinham sido atingidos por milícias somalis e este facto esteve na origem da morte de 18 elementos da força de elite americana. Annan viu na proposta de Dellaire um risco semelhante. “No pedido transmitido por Dellaire para um raide, vimos os ingredientes para um desastre semelhante ao raide falhado a Aidid, em Mogadíscio, três meses antes – mas com uma força que era mil vezes mais fraca em termos de capacidades militares e totalmente isolada de uma possibilidade de reforço”. Annan escreve isto nas suas memórias – Interventions (Intervenções). Ele era, à época, o responsável pelas operações de paz da ONU. Outro episódio tem a ver com a Bósnia e à protecção dos abrigos de civis em Srebrenica. “Para um homem, ou para uma criança, para quem a presença de um capacete azul é tudo o que separa a segurança da morte certa, a conversa sobre mandatos limitados, meios inadequados, e missões com poucos recursos – por mais certas que seja – é no mínimo, e na melhor das possibilidades, uma traição”, admitiria ele nas suas memórias. Não teve o apoio do Conselho de Segurança no caso da Bósnia e não tornou isso público. O seu silêncio justificava-se pela crença de que não caberia a um funcionário público internacional enxovalhar os governos que integram as Nações Unidas. Os EUA decidem, no entanto, intervir na Bósnia, em Agosto de 1995, e Annan apoia a intervenção e é aliado dos americanos para ultrapassar a resistência da ONU ao bombardeamento de alvos sérvios. Esta acção americana com a ajuda dos croatas conduziria às negociações de Dayton.

Paradoxalmente, quando é escolhido para suceder a Boutros Galli, no cargo de Secretário Geral, pelos americanos justamente, Annan emprestou à instituição o seu enorme prestígio moral, que é o seu grande legado, a despeito destes episódios que o perseguiriam desde então. A sua audácia tranquila foi importante para apaziguar os republicanos anti-ONU e permitir que os americanos descongelassem as suas contribuições para a ONU. Hoje, grande parte do trabalho de António Guterres passa-se nesses labirintos sinuosos de Washington. Annan foi um mestre nessa arte. A sua grande habilidade negocial é lendária. Circunspecto mas afável, tinha carisma e charme, e municiava-se de uma capacidade intelectual invulgar. A sua serenidade dava-lhe autoridade. Mas também a humildade. Annan era um grande conciliador. Não recusava falar com ninguém: fosse tirano, criminoso, déspota ou estadista impoluto. Era o homem perfeito para aquele lugar.

A sua reiterada esperança, o seu inabalável idealismo, e a sua enorme e pachorrenta capacidade de diálogo não tem paralelo na história da diplomacia africana e mundial. Michael Ignatieff, que foi líder do partido liberal no Canadá, da oposição, redigiu uma recensão crítica ao seu livro de memórias e descrevê-lo-ia assim: “Como se explica a longevidade do prestígio moral de Kofi Annan? O quebra-cabeças é ter sobrevivido a falhanços, tanto seus como da instituição que serviu durante 50 anos. O carisma é apenas uma parte da história. Para além do seu charme, que é muito, há também a autoridade que vem da experiência. Poucas pessoas passaram tanto tempo em mesas de negociações com bandidos, senhores de guerra e ditadores. Ele tornou-se no emissário mundial para as trevas.”

Outro grande paradoxo da vida de Annan prende-se com o facto de não ter tido lugar para se afirmar na sua terra natal, o Gana. O mesmo paradoxo cobre a brilhante trajectória de Carlos Lopes. Foi nas Nações Unidas, entre Genebra e Nova Iorque, que este africano se tornou num político global. Actuou em áreas complexas da organização como orçamento e recursos humanos. Fez uma impiedosa ascensão. Com um árduo trabalho de paciência e perseverança contornou problemas, manteve intacta a sua reputação. Foi o primeiro funcionário das Nações Unidas a chegar a Secretário-geral. Um outro que fazia o mesmo tirocínio é o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, dez anos mais novo, amigo de Annan, que o representaria fatalmente em Bagdade. São dilacerantes as imagens deste diante do féretro do outro. Annan morre um dia antes dos 15 anos da morte de Mello, que ocorreu a 19 de Agosto de 2003, num ataque terrorista. Samantha Power escreveu uma comovente e belíssima biografia de Sérgio Viera de Mello – One Man´s Fight to Save the World (O Homem que Queria Salvar o Mundo, na versão portuguesa). Não gosto particularmente do que ela disse de Annan, que me parece profundamente injusto, mas reconheço o seu notável trabalho aqui.

O percurso de Annan tem mais acertos de que falhanços. A sua posição sobre o Iraque é uma delas. Ele foi contra a intervenção americana e queria que houvesse mais tempo para que Hans Blix (inspector da ONU) e a Agência Internacional de Energia Atómica confirmassem as suas conclusões que Saddam Hussein suspendera, em 1991, os programas de fabrico de armas de destruição maciça. Annan considerou “ilegal” a invasão americana. A administração Bush não o haveria de perdoar. A sua reputação e a sua autoridade moral permitiam fazer isso. E fê-lo com coragem. Quiseram pôr em causa a sua honorabilidade. Mas a sua rectidão e a sua probidade seriam sempre inquestionáveis. Mesmo quando foi confrontado com o escândalo do programa petróleo por alimentos, no Iraque, que envolvia o seu filho Kojo, que teria acordos sob suspeição, foi provada a inocência de Annan e a sua reputação saiu, de novo, incólume.

Quando fez o seu discurso de despedida, Annan estava crente de que deixava melhor a organização. O seu impulso reformista seria responsável por muitas medidas que visavam transformar aquela máquina pesada e burocrática (a ONU) numa instituição com prestígio moral e capacidade de intervenção humanitária assertiva. A sua chegada ao topo da diplomacia internacional, é preciso dizer, ocorreu num tempo em que o mundo sofria abalos que o redefiniam: quase uma década depois da queda do Muro de Berlim e 5 anos depois da implosão da União Soviética; o 11 de Setembro ocorre em 2001; as invasões ao Iraque e Afeganistão. O mundo estava em rápida transformação e ele entendeu isso. Não seria o mesmo. Sobretudo pelo terrorismo. As suas reformas de uma organização pesada e burocrática, ou as suas iniciativas que tinha esse lastro da comunidade global, quer ao nível da intervenção humanitária – data de 2005 a adopção da “responsabilidade de proteger” da ONU, ou o Fundo Global para SIDA, malária e tuberculose. África esteve no topo de agenda. A fome, a miséria, as guerras. O Prémio Nobel veio coroar-lhe esse esforço.

Kofi Annan escreveu nas suas memórias: “Comecei a perceber que a ideia de comunidade, para mim, iria significar algo diferente do que tinha significado para a geração do meu pai”. Esta outra ideia de comunidade terá permeado o seu notável percurso. O compromisso com os outros levou-o a escalar todos os degraus de uma organização global e fez dele o primeiro negro africano a chefiá-la. Foram 50 anos ao serviço de uma comunidade global, pela qual empregou todo o seu altruísmo. África deve-lhe muito. Provavelmente, não teria sido tão útil se tivesse persistido no Gana, no lamaçal doméstico onde não conseguiu fazer carreira. Este é também um paradoxo. Como é que uma mente tão brilhante é descartada com displicência e descaso? Admirava-o também pelo facto de lhe não conhecer acrimónia alguma em relação a isso. Hoje vejo que é lembrado no Gana como um dos filhos prestigiados. Mas Gana enjeitou-o. África tem disto – desfaz-se dos seus melhores. A pátria, nisso, não está desacompanhada. Grande parte dos recursos, no entanto, que chegaram e chegam aos países africanos para o combate à pobreza, às pandemias como HIV, SIDA, malária ou tuberculose devem-se à luta implacável e à compaixão imprescritível de Kofi Annan. Como Secretário-Geral das Nações Unidas, a sua figura está entre as referências estelares da organização. Ele é comparado a Dag Hammarskjold, que morreu aos 56 anos, num acidente de aviação, em Ndola, na Zâmbia, ao serviço da ONU. Poeta, humanista, altruísta, membro da Academia Sueca, Dag Hammarskjold foi o terceiro SG da ONU e ser-lhe-ia, postumamente, atribuído o Nobel da Paz, justamente no ano da sua morte, em 1961.

Kofi Annan, que hoje morreu, em Genebra, era das últimas personalidades africanas vivas que eu admirava verdadeiramente. Desmond Tutu talvez seja a última. Já não temos referências morais em África de nível planetário. É o que hoje sinto quando oiço dizer que ele partiu e vejo, dilacerado, o que passam as televisões. Revejo também aquela entrevista intrépida de Zeinab Badawi e comovo-me com a compaixão e a honorabilidade deste homem que foi o mais prestigiado emissário africano da paz mundial e que sonhou, tenazmente, com um mundo melhor para todos. Redijo este texto tendo a pungente cumplicidade de Aretha Franklin que me acompanha. A Soul Queen canta: I Never Loved a Man, Save Me, Never Let Me Go, I Can´t See Myself Leaving You, (You Make Me Feel Like) A Natural Women, Respect. No intervalo de dois dias desaparecem dois nomes imperecíveis do nosso Planeta. Curvo-me a ambos. Respect.

 

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Prefiro enfrentar a realidade mais dura a viver na ilusão enganadora

José Rodrigues dos Santos

Serpentear nas esteiras do tempo é um romance cheio de várias histórias, as quais, em geral, desenrolam-se em Gaza. Embora a diegese projecte um contexto colonial, os principais momentos do livro não se concentram nas injustiças sofridas pelos pretos – ainda que tal aconteça – e nem avança pela temática nacionalista típica dos anos 40 do século XIX. Nada disso. Aqui, Lúcia Baptista regressa ao passado para mostrar que até em circunstâncias conturbadas há narrativas boas a serem construídas. Assim, ao invés de balas, tiros e sangue esta autora percorre os labirintos do amor, escolhendo unir em detrimento de separar. São exemplos dessa união o casal Jonas e Joana, que se ama sem receio, nas adversidades, vencendo querelas familiares e toda tradição opressora. Estas duas personagens aparecem como representações contra preconceitos, desses que privam e impedem as pessoas de darem os seus próprios passos, livres dos antepassados e do que se julgam ser seus desejos.

Simultaneamente, este Serpentear nas esteiras do tempo é uma história de três gerações. Aliás, quando a narração começa, pode-se ficar com sensação de que o protagonista é Samuel, pai de Joana, pois, no primeiro capítulo, todas as focalizações incidem nele. Esta é uma maneira de Lúcia Baptista contar as suas narrativas a partir de um princípio, no qual não falta tensão. Dando a imagem de quem é Samuel, um sipaio com ideias próprias, mas que se entrega às mordomias coloniais oferecidas pela administração, o narrador faculta informação relevante para a percepção da sua personalidade e, mais tarde, da filha. Desta maneira, ficam evidentes a existência de pelo menos três classes no romance: dos brancos, dos pretos alienados e dos pretos firmes à ideia de pertença a uma matriz africana.

O livro de Lúcia Baptista consegue juntar cenários moçambicanos de um período nebuloso sem repetir muito do que já se sabe. Na verdade, neste exercício, a preocupação parece ser a de colocar as personagens principais entre a ordem e o desejo. Por isso, constantemente, emana um confronto a envolver os sujeitos em momentos particulares. Por exemplo, entre a espada e a parede, Samuel trai um propósito nacionalista quando se deixa corromper pela administração colonial; Joana torna-se uma personagem além do que deveria ser, demasiado independente para uma mulher do seu contexto; e André – único filho de Jonas e Joana – é a personificação de uma juventude que já não acredita que os pais é que sabem o que é melhor para os filhos.      

Ao nível do projecto, este é um romance com tudo para dar certo. Afinal, nota-se que a autora tem capacidade de contar, descrever, alongar a trama com pormenores necessários, preservando uma atmosfera específica, bem oportuna. Entretanto, o livro peca e muito por apresentar graves problemas em termos de correcção. A pontuação é uma desgraça. À partida, fica-se com a impressão que faltou um revisor e um editor digno da função. Paralelamente a isso, a história pouco surpreende, sendo, a partir de certa altura, muito previsível.

Se, por um lado, Lúcia Baptista consegue recorrer a boas anacronias e a uma descrição bem apropriada, como no capítulo 12, quando Jonas procura pelo filho na cidade, que desaparecera da Missão por recusar ser padre, por outro vê-se nela uma urgência em querer chegar ao fim. Logo, o que deveria ser contado em duas páginas é resumido em períodos.

Este não é um livro para leitores exigentes. Definitivamente não é. Ainda assim, quem for a ler perceberá que as personagens, se calhar com a excepção de Samuel, geram incentivo para o leitor aprender a enfrentar a realidade mais dura ao invés de viver na ilusão enganadora.

 

Título: Serpentear nas esteiras do tempo

Autor: Lúcia Baptista

Editora: Texto Editores

Classificação: 10,5

A Comissão Nacional de Eleições decidiu, na sequência da reclamação do MDM, considerar inelegível o Cabeça de Lista Venâncio Mondlane. Das várias posições que têm sido avançadas, há uma, que me parece a mais acertada, que defende a inconstitucionalidade das normas que ditaram o afastamento daquele candidato. É que, diz-se, não pode uma norma ordinária (a Lei Eleitoral), impedir o exercício de um direito fundamental, até porque a referida norma ordinária limita o direito de participação política sem qualquer fundamento constitucional.

Com efeito, não faria sentido que a Constituição da República permitisse que os cidadãos pudessem participar no processo político, como eleitores ou candidatos, e viesse uma lei limitando esse mesmo direito.

É verdade que a CRM admite a limitação de direitos fundamentais (artigo 56, n.º 2), mas em “razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição”. Não parece razoável admitir que a participação de um cidadão como (candidato a) membro de um órgão autárquico possa ser limitado porque este mesmo cidadão renunciou – ou o que se quiser chamar a esse acto – a um órgão autárquico (menor) para participar activa e politicamente num órgão do Estado (Assembleia da República).

É uma de entre tantas interpretações possíveis. Seja como for, compreendo que a CNE tenha decidido daquela forma. É que a CNE é um “órgão independente e imparcial”, ou seja, um tribunal, sendo constituído por pessoas que têm o direito de interpretar a lei como entenderem mais adequado.

Num órgão colegial, quando não se impõe que as decisões devam ser unânimes, vigora o quórum deliberativo que, neste caso, é o de que a maioria é que vence. Importa, aliás, sublinhar que, sendo estas as únicas normas aplicáveis – confesso a minha limitação, mas também hesitação -, a CNE só poderia ter tomado aquela decisão, uma vez que, apesar de as normas aplicadas para reprovar a candidatura serem inconstitucionais, a CNE não tem legitimidade para recusar a aplicação das normas postas em crise, por considerá-las inconstitucionais.

É que, tal como tem reiteradamente decidido o Conselho Constitucional (v. por exemplo o Acórdão n.º 8/CC/2017, de 6 de Novembro, publicado em http://www.cconstitucional.org.mz/Jurisprudencia/08-CC-2017, pp. 5 e 6), “o nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade não é difuso, em que é permitido ao juiz ou tribunal, no julgamento de um caso concreto, decidir se uma norma é ou não inconstitucional, pois essa competência pertence exclusivamente ao Conselho Constitucional, tanto em sede de fiscalização concreta bem como sucessiva abstracta da constitucionalidade.”

Na verdade, se a CNE “(…) tivesse afastado e, consequentemente, desaplicado a norma cuja inconstitucionalidade se suscita, o facto equivaleria a auto investir-se em juiz constitucional, violando o disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 244 da CRM [actual artigo 243, n.º1, alínea a)], pois o Conselho Constitucional é o único órgão de soberania ao qual compete especialmente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucionais, nos termos do n.º1, do artigo 241 da CRM [actual artigo 240, n.º 1]”.

É uma pena que haja pouco tempo para as eleições, porque isso não permitirá decisões serenas e ponderadas, tendo em conta os apertadíssimos prazos da legislação eleitoral.

Em finais de Abril de 1989, um aluno da Universidade Eduardo Mondlane, que estava na organização de uma greve de estudantes, que iria eclodir no mês seguinte, contactou-me, através de um amigo comum, para que eu me informasse sobre aquele movimento reivindicativo, que aglutinava, sobretudo, os que viviam no “Self”, e desse, através da minha tribuna na revista Tempo, conta do mesmo: reclamavam melhores condições de alimentação, transporte, reajustamento de bolsas de estudo, apetrechamento de bibliotecas, comparticipação na definição dos currículos e nos processos de avaliação. Fui levado ao grupo e dos contactos iniciais que tive com os estudantes que estavam na organização da greve percebi que estávamos perante um movimento sério. Informei, de imediato, o meu chefe de redacção e, dados os contactos que eu já tinha, escalou-me para fazer a reportagem dos acontecimentos. Eu não pertencia à editoria da actualidade nem da sociedade. Escrevia sobre escritores e sobre cultura. O tema era delicado e as circunstâncias muito difíceis. O Kok Nam, o grande e mítico fotográfo da revista, que viera do grupo que a fundaram, foi escalado para fazer, comigo, esta reportagem. Foi um grande momento para mim.

Um dia a história fará o devido resgate desta greve. Guardo desses momentos o sentimento de que estávamos a viver algo único – as greves dos estudantes universitários abalam, inequivocamente, os poderes e eu tinha, pelo menos, consciência disso. Era comum haver notícia de repressões violentas contra estudantes em muitos países africanos e não só. Eu estava excitado e ao mesmo tempo receoso. Tudo poderia descambar e poderia haver derramamento de sangue. Até porque, como veremos, houve uma inequívoca ameaça das próprias Forças Armadas, o que poderia ter redundado num violento castigo. Mas galhardamente os estudantes não se amedrontaram.

No dia 6 de Maio os estudantes deixaram de comer no “Self” e deixaram de comparecer às aulas. Estávamos perante um grande embaraço para o governo. Os estudantes estavam decididos a ir até às últimas consequências. Muitos dos vizinhos do “Self” ofereciam-se para acolhê-los nas horas das refeições. Eu via naquele grupo um poder reivindicativo incomum para a altura. Não punham em causa o governo mas estavam firmes nas suas reivindicações, cujo caderno parecia muito claro e objectivo. O partido e o governo (era mesmo assim na época) receberam os estudantes no dia 9 e consideraram que os problemas colocados eram genuínos e reais. A despeito, no dia seguinte, o partido do poder criticava a forma seguida pelos estudantes na busca das soluções, ao mesmo tempo que impunha uma condição para haver diálogo com os estudantes: que estes regressassem às aulas. Numa assembleia de estudantes, bastante concorrida, no pavilhão da universidade, estes decidem retomar as aulas e as refeições no “Self”, mas não desistem das suas reclamações. Nesse mesmo dia, 10 de Maio, as Forças de Defesa e Segurança (FDS) emitem um comunicado ameaçador em relação aos estudantes e de solidariedade com o partido e governo. A moção dizia: “Prontos estamos para enfrentar qualquer que seja a tentativa de pôr em causa esta República, fruto dos sacrifícios e sangue dos melhores filhos da Pátria, muito menos manifestações que minem a unidade nacional”. Os estudantes não se amedrontaram e responderam esclarecendo as suas posições, ao mesmo tempo que declararam – inteligentemente – o seu apreço ao partido e ao governo pela disponibilidade para o diálogo construtivo com eles, sem ameaças, sem intimidação ou qualquer forma de repressão. Numa das frases do comunicado diziam: “Antipatriotismo é enriquecer à custa da miséria dos outros. Antipatriotismo é suportar uma vida de luxo quando milhares morrem de fome. Antipatriotismo é trair o sangue dos que tombaram para que o país fosse livre, independente e respeitado em todo o mundo”. E acrescentavam: “rejeitamos a ideia de que a massa estudantil seja particularmente vulnerável à acção inimiga. Provaremos que, ao contrário, os inimigos do nosso povo é que são particularmente vulneráveis à nossa acção”. Eu vivia empolgado com esta greve, com os seus bastidores, com a inequívoca firmeza dos estudantes, com a tenacidade daqueles jovens, muitos deles sem família em Maputo, sem rede, mas destemidos e genuínos, profundamente solidários. Acompanhei-os aos encontros, com membros do partido e do governo, houve encontros com a reitoria, entre outros.  No dia 20 de Maio, numa ampla assembleia geral, os estudantes decidiram criar um Conselho para a defesa dos seus deveres e direitos. Terminava assim aquela dramática greve que agitou aquele mês de Maio de 1989.

Cobri a greve na companhia de Kok Nam. Ele está, então, à beira dos 50 anos, é um dos mitos do nosso jornalismo. Traz um longo excurso. Eu sou um fedelho de 22 anos, li algumas reportagens famosas do García Márquez ou do John Reed e sonho com os dias que abalaram o mundo. Vejo naquela reportagem esses dias. Vivemos um ano de 1989 de grandes expectativas de mudanças, de transformações no mundo, a Leste da Europa, na África Austral, em Moçambique, onde uma guerra infame esventra o país.  O ano começara com a retirada das tropas cubanas em Angola. No mesmo mês de Janeiro, a polícia dispersa brutalmente manifestantes que assinalavam 20 anos sobre a morte de um estudante que se imolara em protesto contra a ocupação soviética na conhecida Primavera de Praga. Ronald Reagan saía de cena e passava o testemunho a George Bush nos Estados Unidos. As tropas soviéticas retiram-se de Cabul, na sequência disso é decretada a lei marcial em Fevereiro. Em Junho, o Exército Vermelho é implacável na sua reação à greve dos estudantes na Praça Tiananmen. Em Outubro, cai o Muro de Berlim. Em Dezembro, Mikhail Gorbatchev e George Bush encontram-se em Malta, o que foi decisivo para o fim da Guerra Fria. O mês de Dezembro é fértil em acontecimentos: a 20, os americanos capturam o General Noriega, do Panamá, acusado de tráfico de drogas; no dia do Natal, na Roménia, Ceausescu e sua mulher são condenados à morte; e a 29, Vaclav Havel chega a presidente da então Checoslováquia.

Assim como acontecia na redacção, o Kok actua como meu companheiro. Aceita-me como seu par e dialoga comigo de igual para igual. Somos os dois jornalistas. Eu sou um foca. Um principiante.  São dias de aprendizagem na companhia de um grande repórter. Até então eu trabalhara com Naíta Ussene, Jaime Macamo, Alberto Muianga ou Jorge Tomé. Jorge Tomé tinha sido o primeiro foto-jornalista a chegar a Homoine e deu-nos, com a sua corajosa reportagem, a dimensão daquela tragédia que ensombra páginas da nossa História recente. Foi um acontecimento hediondo aquele. O Kok, no entanto, era a grande alma da revista, o nosso líder. Uma espécie de guru. A sua voz soava na redacção. As suas críticas, sobretudo, ao mau jornalismo. Mas também as suas gargalhadas e a sua boa disposição. Emocionava-se a olhar para uma boa fotografia: “Alta foto!” – proclamava.

Uma das coisas que mais me marcou era o seu sonho de cobrir a libertação de Nelson Mandela. Naqueles anos longínquos, nenhum de nós auguraria que Mandela fosse liberto tão proximamente, o que aconteceria a 11 de Fevereiro de 1990. Não creio que o Kok Nam tenha realizado esse seu sonho de repórter. Mas estou certo de que nós, tal como muitos de nós, realizámos, naquele dia em que vimos Nelson Mandela de punho erguido e cerrado, o mais belo sonho das nossas vidas: o sonho da liberdade. O Kok ensinou-me também, com o relato do seu sonho, que o jornalismo era a mais bela profissão do mundo. O jornalismo era uma profissão de causas. O jornalismo era uma profissão dos que cultivavam a liberdade. A liberdade tinha, naqueles anos, um alto sentido semântico e cívico, humano e histórico, cultural e filosófico. Era um vocábulo engrandecedor. O sonho da libertação de Mandela era a grande metáfora de uma África Austral livre. Vivíamos aqueles anos, empenhados, imbuídos pela luta dos povos da África Austral. O Kok tinha esse sentido. Ouvi-o, na festa dos 60 anos do Calane da Silva, em 2005, a elogiar uma belíssima mulher que então se juntava à nossa mesa: “a mais bela da África Austral!”

O Kok tinha também uma paixão incomensurável pela figura de Samora e contava inúmeras histórias que vivera com o presidente, nas inúmeras vezes que o fotografou, desde a Nachingwea aos palcos da revolução, nas viagens em que o acompanhou pelo mundo. Ouvir o Kok, na redacção ou em reportagem ou em convívio, fazia com que um jovem jornalista, como eu, sonhasse ainda mais alto com o alto sentido – sei que estou a ser prolixo – da missão de ser jornalista. Ali estava um homem de grande gabarito. Um verdadeiro Mestre. Um grande e inesquecível Mestre.

Ele fez inúmeras reportagens na sua longuíssima trajectória de repórter fotográfico. A que mais me impressionou, foi uma realizada na Zambézia, no Ile: são fotografias pungentes, imagens lancinantes, que denunciam a miséria humana, a indigência material, a sordidez que fomos capazes de experimentar. Aquela denúncia era também uma grande lição para mim. Nos dias de hoje, faltam fotógrafos como o Kok Nam, capazes de nos interpelar com imagens que possam indagar o sentido das coisas, capazes de nos desassossegar, capazes de pôr tudo em causa. Capazes de serem uma referência moral. O Kok  Nam foi-o até ao fim. Um profissional probo – o que hoje não avulta por aí. Aliás, parece que o jornalismo dispensou um dos seus melhores domínios: a fotografia. A fotografia do repórter audaz. Parece-me tudo complacente. Parece-me que tudo afina pela mediania. Há jovens fotógrafos de grande talento, mas não vejo nos jornais fotografias inescusáveis.

O Kok Nam (1939-2012) começara na profissão num estúdio, a Focus, uma extinta casa de fotografia na baixa da capital, no mesmo prédio onde funcionava, afortunadamente, a delegação do Diário de Moçambique. O diário convidou-o para ser repórter e ele abandonou o estúdio. Foi, posteriormente, fundador da revista Tempo, nos primórdios dos anos 70, onde o iria encontrar nos finais dos anos 80. Ele tinha reportado tudo quando lá cheguei: guerras, fome, misérias, humilhações, o tempo transitivo da revolução, a abertura política, a paisagem da liberdade que se afigurava. Quando, no final de 1990, abandonei a Tempo, viviam-se na revista tempos de incerteza, vivia-se o ocaso, o prenúncio do fim, chegara ao fim uma época, muitas vezes empolgante, quase sempre fascinante, que tínhamos vivido, que eu vivera ali, mesmo sendo no fim. O Kok, de algum modo, também estava de saída. Falava-se num jornal privado. O Carlos Cardoso – outra grande figura –  chegou a falar-me disso e a convidar-me para o projecto. Mas eu já estava de partida para outros hemisférios. Não acompanhei essa aventura do Kok e de outros companheiros – muitos dos seus fundadores tinham sido meus colegas na Tempo. Ele seria o director do Savana. Antes o Cardoso fizera o inovador Mediafax. Não era a primeira vez que um fotojornalista chegava a director, havia o caso do Ricardo Rangel, que o fora no semanário Domingo. Creio que, como na Tempo, no tempo em que eu lá permaneci, o Kok Nam seria a alma do semanário Savana. Estou convencido disso. Não é por acaso que o nome dele figura ainda hoje no jornal como diretor emérito.

Recordo-o aqui hoje, recordo a sua gargalhada estridente, recordo a sua camaradagem afectuosa, o seu profissionalismo e rigor, a sua exigência sem soberba, o seu espírito crítico, a sua capacidade de ensinar e de aceitar os mais novos, a sua coragem de repórter, o seu olhar fulminante, a forma como capturou instantes importantes da nossa história recente, a sua fleuma – dir-se-ia asiática, mas isso é uma redundância -, a sua generosidade, a sua liberdade, o seu amor pela liberdade. Fica como uma das lições mais gratas que tive como jornalista. Não me lembro de ter saído mais vezes em reportagem com o Kok Nam, além daquela greve, mas tive o privilégio de conviver com ele na redacção da Tempo. Tenho uma forte lembrança da sua magistral figura – a de um homem atento e crítico, sábio e generoso, fraternal. Insubmisso. A imagem de um homem livre, apenas comprometido com as causas em que acreditava e pelas quais exerceu a mais bela profissão do mundo – a de ser repórter -, como me haveriam de ensinar os meus mestres, entre os quais ele figura, indubitavelmente.

Introdução

A recente revisão constitucional, ao introduzir a designação dos candidatos a presidentes dos municípios por via da modalidade de cabeça de lista, veio suscitar, no processo da sua implementação pelos partidos políticos, problemas cuja relevância não se confina aos partidos envolvidos.

O facto de que esses problemas evidenciam essencialmente a mesma natureza, obriga a uma reflexão séria, já que nos termos da própria Constituição, no n°1 do artigo 74, «Os partidos expressam o pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país». Por conseguinte, a qualidade da nossa democracia há-de necessariamente resultar, ou há-de estar à medida, da assunção pelos partidos desses desiderata inscritos na Constituição.

Na fase de designação dos candidatos a cabeças-de-lista ocorreram situações em que estes resultaram, ou podem ter resultado estatutariamente, da indicação do Presidente do partido (tal terá sido o caso do MDM), outras em que trânsfugas de um partido caíram de pára-quedas noutro, para logo ficarem cabeças-de-lista, ao arrepio dos militantes naturalmente candidatáveis (tal terá sido o caso da RENAMO), e ainda aquelas situações em que procedimentos de afastamento de candidatos foram questionados publicamente pelas presumíveis «vítimas» (caso da Frelimo).

Considero importante empreender-se um esforço de análise objectiva dessas situações, formalmente diversas, mas em princípio apenas formalmente diversas, para se identificar a natureza desses fenómenos. Essa análise só pode ser relevante se assumir uma perspectiva supra-partidária, porque, como disse, essas situações prendem-se com a qualidade da nossa democracia, o que consubstancia um interesse que é de toda a sociedade.

A perspectiva da Constituição é justamente aquela que nos coloca na linha dessa objectividade, já que ela, a Constituição, é, por definição, apartidária, e assenta em valores que são, inquestionavelmente, do consenso de toda a sociedade e de todos os partidos.

Será, pois nessa perspectiva, e apenas nela, que me vou situar.

Da Constituição

Na prática as vicissitudes do processo de designação de candidatos a cabeça-de-lista são encaradas como questões internas de cada partido, e, mesmo nas situações mais gritantes de inobservância dos princípios mais elementares de democracia, assume-se uma atitude de tolerância, de complacência ou de mansidão crítica. Próprias de um ambiente em que, havendo tantos telhados de vidro, ninguém quer atirar pedras.

Sendo que no funcionamento da nossa democracia, e, diga-se, no de tantas outras, as escolhas do eleitorado são limitadas ou condicionadas pelas escolhas dos partidos, se estas não obedecerem a princípios estritamente democráticos, a sociedade corre um sério risco de ser levada a fazer escolhas não democráticas e até mesmo antidemocráticas.

Eis porque a Constituição não poderia ser omissa a este respeito.

Com efeito o n°2 do artigo 74, que contém o princípio que transcrevi mais acima, estabelece de forma clara que «A estrutura interna e o funcionamento dos partidos políticos devem ser democráticos».

Isto é, não só a «estrutura» fixada nos estatutos deve ser democrática, como o próprio «funcionamento». Por outra palavra, a vida dos partidos, deve ser democrática.

Este é um comando constitucional e, como qualquer outro comando, não é de observância opcional mas imperativa. Nem é de carácter programático mas vinculativo.

Da operacionalização do comando constitucional

Assumida a clareza do comando constitucional e a vinculação dos partidos à sua observância, a questão que se coloca a seguir é a de como se operacionaliza a sua obrigatoriedade. Em princípio devemos encontrar a resposta na lei ordinária, a qual pode ser omissa, esparsa ou lacunosa, sobre a matéria.

Vejamos então o que a Lei N°14/92, de 14 de Outubro, estabelece sobre este assunto:

O Artigo 3° (Regras básicas) desta Lei, em consonância com a Constituição, preconiza no n°1, alínea h), «não ter natureza antidemocrática», no n°2, alínea a), «definir os seus objectivos políticos, sua estruturação interna e seu modo de funcionamento».

Na alínea c) do n°2 do Artigo 6°, estabelece-se que os estatutos devem conter, entre outras indicações, «os objectivos e princípios por que se rege o partido, designadamente o princípio da eleição democrática e de responsabilidade dos titulares dos seus órgãos»

Estes e outros requisitos são submetidos ao crivo do Ministério da Justiça no requerimento para a constituição dos partidos, e de cuja decisão cabe recurso para o Tribunal Administrativo.

Ora, uma vez aprovados os Estatutos contendo aqueles requisitos, que consubstanciam os princípios fixados no artigo 74 da Constituição, a questão que se coloca, e que é da maior relevância, é a seguinte: o que acontece se, na prática, esses princípios constitucionais e legais não são observados?

Das competências do Conselho Constitucional

Como disse atrás, em matéria de democraticidade, as questões que se suscitam na vida dos partidos têm sido encaradas como estritamente internas, e relegadas ao seu foro privado. Mas tal não passa de mero equívoco, porque se assim fosse delas não cuidaria a Constituição e ainda menos a lei ordinária.

Por isso a Constituição previu, entre as competências do Conselho Constitucional, na alínea f) do n°2 do artigo 244, a de «julgar as acções de impugnação de eleições e de deliberações dos órgãos dos partidos políticos».

Significa que quando ocorrem situações litigiosas na vida dos partidos, elas podem encontrar solução satisfatória e pacífica dentro dos próprios partidos. Mas pode dar-se o caso de não haver resposta consensual. Quando estão em causa ou em litígio prerrogativas de membros, individualmente, é normal invocar-se a disciplina partidária para se pôr fim ao litígio. E normalmente os membros, de boa ou de má vontade, acabam por se submeter, convencidos da justeza das soluções ou convencidos de que não existe outra via, de que não há nada a fazer. Sobretudo convencidos de nada poderem fazer contra o peso esmagador dos aparelhos partidários.

Ora a disciplina partidária não é algo que se sobreponha aos direitos dos membros, a tal ponto que, em nome dela a eles se deva renunciar. Sobretudo não pode a disciplina partidária servir para encobrir violações dos estatutos e para calar quem seja prejudicado por tais violações.

Por outro lado, a dimensão partidária não se pode sobrepor nem à Constituição nem á lei, e a filiação partidária não significa nem implica renúncia de cidadania. Antes de se ser membro de um partido é-se cidadão, e permanece-se cidadão sempre. De tal forma que se um membro de partido se vê prejudicado, de forma injusta e anti estatutária, e não consegue fazer valer o seu direito no quadro do partido, como cidadão, ele tem a prerrogativa de requerer ao Conselho Constitucional a reposição da legalidade estatutária se esta tiver sido violada.

Certamente muitos acharão estranha a ideia de um membro pleitear contra o seu partido. Mas na realidade não está rigorosamente a pleitear contra o partido, mas contra decisões ou deliberações de órgãos ou de dirigentes do seu partido.

E isso só será estranho num clima ou numa cultura dominada pelo endeusamento, pelo culto da personalidade ou pela usurpação dos direitos dos membros pelos aparelhos partidários. Já num Estado de Direito Democrático efectivo tem de ser considerado absolutamente normal.

Assim, nos desenvolvimentos que nos é dado observar, tanto os casos de evidente pára-quedismo, como naqueles chamados de «democracia a dedo», como naqueles em que candidaturas foram afastadas «de forma menos clara» ou de forma «não explicada», todos eles podiam dar lugar a impugnações junto ao Conselho Constitucional.

Sem dúvida que teria sido do interesse da sociedade e do Estado de Direito Democrático ver tais situações esclarecidas ou decididas com toda a objectividade e transparência.

Ao fazer estas análises e considerações não estou dizendo algo de estranho ou de inaudito. O Partido Frelimo, que na verdade, quer se goste quer não, tem sido a matriz de onde os demais partidos replicam normas e práticas, à medida das suas conveniências, passou por fases diferentes daquela em que estão agora a ocorrer as situações a que aludi. Apenas para fazer um breve relance que reavive a memória dos contemporâneos e dê a conhecer aos que vieram depois, relevemos o seguinte:

Quando o Dr. Eneias Comiche, actual cabeça-de-lista da Frelimo para cidade de Maputo, foi candidato a Presidente do Município, foi-o numa ampla e concorrida Conferência Eleitoral em que disputou a designação com um oponente de grande peso, o Dr. Teodoro Waty. Foi uma disputa renhida que se prolongou quase até à boca das urnas. A inquestionável democraticidade do processo conferiu grande legitimidade ao vencedor, primeiro dentro do Partido e, depois, como Presidente eleito do Município.

Mas já na tentativa legítima de renovação do mandato o processo obedeceu a outra norma, entretanto introduzida no Partido Frelimo: a de que a eleição dos candidatos deixava de ser em Conferências Eleitorais para passar a ser competência dos Comités ao nível de cada autarquia. Esta alteração, certamente ditada pela necessidade de maior dirigismo dos processos, evidenciou uma drástica redução da democraticidade que tinha caracterizado os processos anteriores. Daí resultou que, apesar do grande prestígio e popularidade granjeados, no seio do Partido e na sociedade, graças ao seu desempenho, o Dr. Eneias Comiche, na eleição restrita ao Comité da Cidade, perdeu para David Simango.

A evolução das regras ou dos procedimentos eleitorais no seio do Partido Frelimo manteve-se nessa lógica até hoje. Mas é importante referir que essa evolução não tem ocorrido sempre de forma tão pacífica e unânime. Recordemos que, aquando do processo que culminou com a designação de Filipe Nyussi como candidato da Frelimo para as últimas eleições presidenciais, a lista fechada de três candidatos que tinha sido decidida pela Comissão Política, teve que ser aberta por pressão de franjas significativas do Partido, e por força, finalmente, da posição da ACCLN, expressamente inconformada com o carácter fechado dessa lista. Com a abertura conferiu-se, de algum modo e naquelas circunstâncias, maior democraticidade ao processo.

Para dizer simplesmente que a contestação ou «rebeldia», a que assistimos hoje, prende-se fundamentalmente com esta problemática da democraticidade dos processos, e vai levar forçosamente ao repensar de normas e procedimentos. Porque, na minha opinião, e na de muitos, no contexto de uma democracia efectiva e mais ampla, certamente que não fariam sentido algum essas contestações ou «rebeldias».

Em conclusão

É imperioso que os partidos observem a Constituição da República nos seus estatutos, na sua estrutura e no seu funcionamento. Mas para que isso se efective é imperioso que os militantes dos partidos não percam nunca de vista que são cidadãos cujas prerrogativas não são diminuídas nem subalternizadas pela condição de militantes. Que a sua condição de cidadãos não é apropriada pelos partidos.

A democraticidade do funcionamento dos partidos, não é interesse privado dos partidos, antes constitui condição indispensável da democracia e interesse fundamental do Estado. Por conseguinte, não deve ser ignorada, prejudicada ou negligenciada.

Teodato Hunguana

 

 

A sul

Implantado uma cartografia sem limites

Traço e compasso

Depois da madrugada

Luís Carlos Patraquim –  MONÇÃO

Ao Lulú

Naquela manhã o sol era ainda um passarinho tímido. O frio acariciava com vigor o rosto de quem o enfrentava as primeiras horas do dia. O sono de Amadeu Bassopa foi visitado por mensagens e imagens provocantes de Saugineta. Amadeu não percebia, por vezes se estava a sonhar ou se eram caprichos do seu telemóvel. A nova namorada despertava uma inquietação que enfeitiçava o juízo de Bassopa. Gita exigia-lhe, para além do bilhete VIP para um espectáculo musical, um jantar romântico num hotel junto à marginal. Bassopa estava desesperado. Há dias que esgotara as suas últimas economias. Depois do banho pegou no telefone e ligou ao colega Carlos Panguene, seu cúmplice, mas sem sucesso.

Já no centro social do serviço Bassopa não sabia como resolver o problema colocado pela namorada. Pela sétima vez telefonou ao Panguene, amigo e colega no departamento de planeamento territorial. Desta vez o telefone do Carlos estava desligado. Bassopa, pelos sinais que horas revelavam percebeu que os programas daquela sexta-feira corriam sérios riscos.

Amadeu, que não era estúpido nenhum recorreu ao seu baú de estratégias sobressalentes. Tratou de abraçar a primeira ideia que lhe ocorreu. Pegou na sua mota, depois de verificar o nível de combustível, usou o capacete e, pôs-se a galope.

Duas horas percorridas, qual piloto-aviador descendo da sua aeronave em plena zona de expansão. Amadeu esfregava as mãos, o seu sorriso maroto denunciava uma ansiedade crescente para conseguir o jackpot que se anunciava no ar. Bassopa, vestindo o seu inseparável uniforme de fiscal municipal não precisou de contactar nenhuma estrutura local, antes de fazer a vistoria ao talhão. Ele que é funcionário com provas consagradas pelos seus dez anos de serviço foi directo ao local onde havia irregularidades. Amadeu deu umas voltas pelo quintal e verificou que havia por ali muitas árvores por podar e muitas outras por retirar. Para além da obra visada reparou para mais duas casas num raio de quase trinta metros. Depois do ritual, Bassopa redigiu a penalização na parte frontal da obra. Amadeu usou um spray preto indelével que contrastava com a parte rebocada da parede, apesar da mão tremida do fiscal era possível ler o registo a uma distância de vinte metros.

Meia hora depois surgiram no local, entre mirones e outros curiosos que abandonaram o cultivo das suas machambas, levantando poeira, acompanhados pela estrutura local. O proprietário do imóvel acabava de chegar, todo ele fumegando horrores nos olhos vidrados, as orelhas carregadas de poeira, tal foi o impacto da velocidade que Mulomba conduzira a sua bicicleta.

O chefe de quarteirão tomou o lugar cimeiro na sombra da mafurreira. Todos os presentes estavam curiosos de saber a razão da presença do homem do município naquele lugar:

–           Hoje a nossa reunião vai ser breve, amigos. – O chefe de quarteirão abria a sessão.

–           O senhor Mulomba chamou-me com urgência. Ele precisa de saber que escritas são estas, senhor Amadeu?

Perante o silêncio arrogante do fiscal viraram-se todos os presentes para ele. Bassopa estava já no sétimo céu sonhando com pássaros que debitavam o seu cântico agreste pela povoação de Zilinga. Bassopa até roncava junto de um tronco, o seu corpo repousando sobre dois blocos que ele retirara da obra. Duas garrafas de cerveja de uma marca importada, animavam os olhos de quem os via preenchendo os buracos dos blocos de tamanho quinze.

Foi necessário que a voluntariosa dona Felismina requisitasse os seus prestativos dotes para descalçar o fiscal. Felismina teve sorte, foi agraciada por valentes notas de quinhentos meticais escondidos num dos sapatos de Amadeu. A senhora afagou-lhe continuamente a cabeça, deu umas generosas chapadinhas ao que, ele finalmente despertou.

Entre espanto e susto ele levantou-se, esticando-se continuamente. Amadeu abriu a boca num bocejo descomunal para espantar o sono teimoso que lhe perseguia. Bassopa havia passado a noite em branco preparando-se para a quarta licenciatura, desta feita no curso de direito.

O dono da obra estava furioso e pressionado por telefonemas dos colegas. Mulomba precisava de encerrar aquele assunto com maior brevidade.

–           O senhor pode explicar-nos o que pretende dizer com isto aqui nesta parede? – Voltou à carga o chefe de quarteirão.

–           Bem, o meu serviço como fiscal está terminado, meus senhores. Para já não convoquei tanta gente assim! Aproveitem a minha presença, eu até posso ajudar a arrefecer a multa. – Interveio o Amadeu.

–           Senhor fiscal, antes que isto acabe mal precisa de saber de um ponto muito importante. Estamos fora da área de jurisdição do seu município, bem distante da terra sem ninguém. – Advertiu o chefe de quarteirão.

Não se sabe bem como tudo aconteceu. De repente um grupo de homens e mulheres da povoação levantou-se num ápice decidido a desferir golpes no fiscal. E quando Amadeu sentiu as gotas de combustível, pingando sobre o seu corpo fugiu clamando por socorro, numa gritaria desesperada. Para além da motorizada Bassopa abandonou o telemóvel que, por sinal estava a tocar recebendo uma chamada da namorada, o visor do aparelho anunciava o nome LADY G.

 Mais tarde, quando a poeira assentou o senhor Mulomba ficou diante da sua obra e, do alto do seu portentoso perfil, de um metro e oitenta e nove centímetros, pôs-se a ler, para todos ouvirem, o que o fiscal Amadeu registou na parede em letras garrafais:

–           OBRA EMBRIAGADA!

Celso Muianga

 

A medida governamental de “fechar as fronteiras' à saída das estrelas nacionais no pós-Independência, não só prejudicou os visados, como impediu o país de continuar a fazer parte do mapa mundial de estrelas, via Portugal, dando continuidade a um ciclo de centenas de astros, com Eusébio, Coluna e Hilário à cabeça.
Mas como “águas passadas não movem moinhos”, há que repensar estratégias, tendo em conta que Moçambique não é uma ilha e, como tal, o que tem a fazer – no desporto e noutras áreas – é, discutindo internamente o que nos interessa, acertar o passo com o mundo.

As janelinhas que se abrem
Duas janelinhas estão entre-abertas nesta altura. A linguagem e a linhagem do realismo devem imperar, impondo-se o pragmatismo. São elas: a oportunidade que a CAF nos concede de sermos representados por quatro equipas na próxima temporada africana e a porta que se abriu através do projecto Black Bulls/FC do Porto, que a ser apoiado e replicado, pode ser a base de uma nova forma de estar e que, aos poucos, permitirá retomarmos um estatuto que já tivemos no desporto-rei.

O “casamento” entre a alta competição, de um lado e o estímulo à iniciação, do outro, pode significar isso mesmo: construção de um “edifício” a partir da base e do tecto, conjugados de tal forma, que a obra se venha a encontrar no meio, para felicidade de todo um país que apesar do seu inegável potencial, se encontra adormecido. Que o digam os “rankings” que nos colocam praticamente no lixo, obrigando-nos a tomar parte nas pré-eliminatórias das grandes competições.

Interesse comum em primeiro lugar
Há imensos erros de percurso a corrigir, há um aprendizado que já vai longo, sobretudo no dirigismo e que se reflecte, pela negativa, no lugar em que o atleta deveria ocupar no centro de tudo, ao invés de ser sistematicamente subalternizado. Isso é o que sucede nos países que apostam no desporto a sério, que conhecem os reais benefícios para a saúde dos seus cidadãos, para as finanças públicas e para a unidade nacional.

A alta competição não é para quem quer, mas para quem aglutina o querer e o poder. No desporto de massas, o interesse colectivo deve sobrepor-se ao individual. Já na iniciação, cada um deve procurar “fazer a sua parte”, na aldeia, no bairro, no distrito e por aí fora, sabendo que essa acção terá peso na descoberta e motivação de novas estrelas.

Nunca é tarde para se dar à volta e acertar o passo com o que se faz lá fora. A velocidade no mundo é alta, compete-nos acompanhá-la, não só a partir do sofá. As oportunidades estão aí. Há que buscar novas parcerias e acertar o passo com o mundo.
A juventude merece. O país agradece!

 

Viera de Cuba, a ilha de Fidel e da revolução mítica das Caraíbas, quando o conheci. É preciso dizer que, naquela época, o vocábulo “revolução” não se dissolvera ainda no alvoroço, no tumulto, no turbilhão, na voragem, no remoinho, no vórtice de uma sociedade que transitou da utopia do comunismo para a quimera do capitalismo ou do seu simulacro. Ele era um homem de uma energia contagiante, um conversador empolgado, arrebatado, empolgante, culto e sensível. Punha paixão no que fazia e no que dizia. Nascera em Nampula, a 29 Julho de 1954, no interior da burguesia colonial, por assim dizer, mas declinara os privilégios do passado e renegara a herança portuguesa. Ficara moçambicano. Fora professor, activista cultural, encenador de teatro, poeta e contista. Praticava o ofício da escrita com denodo, com desenvoltura, e usava pseudónimos como Si Silva ou Broeiro Duarte São Pedro. Não o fazia para dissimular o que quer que fosse. Pareceu-me, antes, que recusava qualquer tentação de exibicionismo. Ou talvez até fosse mesmo por timidez. Apesar de ser um homem com um discurso e com gestos marcados por um expressivo ímpeto, queria resguarda-se. Sempre o fez. Mas exultava quando lhe reconheciam o dom, a mestria, a vocação.  Por vezes, também assinava Duarte Silva. De seu nome de registo, José António Pastor Duarte Silva, publicou em vida pouquíssimos contos e um punhado de poemas, que assinou como José Pastor, e que denunciam um escritor admirável. Hoje ninguém fala dele. A pátria revê-se no ominoso esquecimento dos seus, sobretudo os melhores. Este ano passam 25 anos sobre a sua morte, que ocorreu a 26 de Agosto de 1993. Queria aqui lembrá-lo, sabendo que não o salvarei do olvido nem da desmemória que fazem parte da ufana e moçambicana desatenção.

Foi o Guilherme Mussane, que estudara em Cuba e andava, à época, como eu, no meio do teatro, que me falou dele. Iniciei a minha plumitiva vida como actor de teatro, de teatro radiofónico, sublinho. Foi na Escola da Rádio, onde fui acolhido, com entusiasmo, pelo saudosíssimo Né Afonso, onde pratiquei os rituais de iniciação na arte de comunicar. Ali, cruzei-me com muito boa gente. O tempo dispersou alguns, matou outros tantos. A vida parece ser mais a arte da disjunção do que o seu oposto. O Mussane falou-me com entusiasmado ardor do seu professor José Pastor e exarou a sentença: tinha de o conhecer! O nosso primeiro diálogo praticámo-lo no Guicalango, ali na provecta Mao Tsé Tung. Acontece que eu senti que estava diante de um amigo longevo. Não parecia que estávamos a encetar a nossa conversa preambular. Já nos conhecíamos sendo que nos encontrávamo-nos pela primeira vez. Isto parece um paradoxo? A empatia é capaz desses prodígios. O assombro tomou conta de ambos e discreteámos sem ocultar a fascinação das palavras. Mais tarde, outro amigo-irmão, de saudosa e grata memória, o António Pinto de Abreu, que se apartou de nós faz um ano, também acrescentou ao depoimento do Mussane a afeição empolgada que tinha pelo José Pastor.

Naquela conversa fizemos os prolegómenos de uma viva tertúlia literária. Há décadas nós cultivávamos amizades literárias. Encontrávamo-nos, amiúde, para falar de livros, de escritores, exultávamos, discordávamos, partilhávamos. As nossas zaragatas eram, por conseguinte, afectivas e não aflitivas. A sua matéria era o júbilo que nos animava, o amor imperecível pelos livros. Há dias, remexendo em antigos álbuns de fotografia – hoje desapareceu também essa prática, as fotografias abandonaram as velhas liturgias e habitavam facilmente as pantalhas dos nossos telefones móveis – encontrei fotografias de uma tarde em que passámos na casa do José Pastor na Matola. Estamos: Eduardo White e Olga Pires, Marcelo Panguana, Sérgio Tique, Ana Juliana e eu próprio. De costas parece-me ser o Ungulani Ba Ka Khosa, mas não tenho a certeza. Esta fotografia data de 25.09.88. Para mim foi um dia inescurecível.

Eu coordenava, nessa época, a “Gazeta de Artes e Letras” e discutia, por vezes, muitas vezes, com o José Pastor, ideias e trabalhos para a secção literária da revista Tempo. Também publiquei poemas e um conto dele. Ele foi sempre foi um autor escasso, avaro. Mas um conversador tenaz.  Ele falava-me da excelente literatura cubana que eu, na altura, desconhecia. Um dos autores, de que era indefectível: Alejo Carpentier (1904-1980), sobre quem escreveria uma belíssima nota sobre Concerto Barroco. Escreve então sobre Carpentier o meu amigo Duarte Silva (foi assim que assinou) na “Gazeta” de 31.07.88: “Sua maestria técnica se demonstra não somente na perícia estrutural das suas obras como num estilo muito próprio cheio de riqueza, complexidade e beleza singulares. Seus temas centram-se no enfrentamento do homem com a sua realidade circundante, especificamente no âmbito do “real maravilhoso” das Caraíbas, do qual é notável mestre e exemplo”.  Quando me entregou as laudas sobre Concerto Barroco para a “Gazeta”, ofereceu-me, na ocasião, um exemplar da obra. Tenho esse livro ainda comigo. Ele falava-me com entusiasmo quase infantil deste escritor e de outros que admirara em Cuba.

Nos finais dos anos 80, vivíamos uma experiência penosa da guerra e José Pastor um dia publicou um poema laborioso sobre aqueles tempos funestos. É um dos poemas mais consternados sobre a guerra. Agora que fizemos desse passado inclemente exéquias pressurosas, ler o poema do José Pastor é um tónico para a memória. Quem me lê, sabe da minha quezília em relação à memória. Esta altercação que temos com o tempo pretérito não augura nenhum bom porvir. Como podemos habitar despreocupadamente, o território da amnésia? Ler o José Pastor ajuda-nos, em parte, no arbítrio contra a desmemória. Comecemos pelo extenso título: “A pessoa de Josefane ficou no massacre de Maluane, mas seu corpo veio a Maputo para pôr velas”. Sempre que passo por Maluane penso neste poema virulento e na realidade violenta que ele testemunha. Nunca compreendi por que razão intentamos nós, hoje, postergar ou procrastinar a História.

José Pastor: “Uma rajada de metralhadora/e ele caiu do camião. / Rachou-se o cóccix. /Coaxaram as rãs do rio vizinho. /Cócegas no sangue dele. /O primeiro grito foi/ o canto plangente do cisne. // As árvores deliravam/ ruídos de harpa. A morte, / com a sua foice aguerrida, / saqueou-lhe todo o sangue baboso/ e levou-lhe a cruz ao calvário/ doloroso da fossa comum. // O rio de lágrimas secou / na roda dentada da vid. / A moagem do coração parou. / Os açudes que represam o sangue/ das veias desmoronaram-se. // No seu organismo/ só ficaram gemidos de grilo, / primeiro; / pilares de coruja, / depois; / e o silêncio sepulcral dos vermes, / por último. // A morte encafuou-se no seu ninho. / E lá, dentro do Josefane madrugador/ ficou quentinha e satisfeita/ a pôr seus ovos de cotovia. // E um louva-a-deus/ foi o primeiro ser vivo/ a pousar seu corpo morto. // Eu vi!, com o coração aos pirilampos…”

Coligi este e outros poemas na antologia que co-organizei com a Fátima Mendonça, Antologia da Nova Poesia Moçambique, que seria publicada em 1993, pela AEMO. Quando organizei a antologia Nunca Mais é Sábado, anos mais tarde, para a D. Quixote, em Portugal, voltei a sufragar parte significativa dos poemas que editara naquela colectânea. Para além disso, José Pastor era um belíssimo contista. O conto que incluí na antologia As Mãos dos Pretos, inicialmente publicado na “Gazeta”, “A Abastança de Fundos de Zefania”, disso faz prova cabal. Dedicado ao autor destas linhas, a Ana Juliana, ao João António, a Marina e ao Genas, é dos poucos registos que ficaram da sua obra ficcional. A sua morte, em 26 de Agosto de 1993, está na origem do desconhecimento que encobre a sua parca e notável obra. Nunca percebi por que razão a obra do José Pastor não chegou a conhecer a luz do dia em forma de livro. Entre 1990 e 1995, vivi fora do país, mas sempre que retornasse a Maputo encontrava-me com ele e sabia do desejo que ele tinha de publicar. Não tendo deixado descendência, na época tive conhecimento de que os inéditos estavam confiados a um amigo. Até hoje perdura um ensurdecedor silêncio deste escritor cujo nome foi também marcado pelo decesso.

Na nossa última conversa, semana antes da sua morte inesperada, percebi que estivera com um homem angustiado, consumido pela inquietude, pela amargura, provavelmente atormentado, mas nada faria prever aquele desfecho trágico.  Quando li, anos mais tarde, o livro Antes que Anoiteça, do cubano Reinaldo Arenas (1943-1990), pensei muito no José Pastor. Aquele pungente livro que releva da experiência duríssima de Arenas teria dado, entre nós dois, um debate longo e perseverante. Pastor, um implacável defensor de Fidel Castro, que opinião teria desta obra e do dissenso deste autor? Gostava de ter falado com ele de Lezama Lima (1910-1976) ou de Virgilio Piñera (1912-1979). Gostava de ter falado com o Pastor sobre o suplício de alguns destes escritores – uns por serem homossexuais, outros por divergirem do regime. Gostava de ter discutido com ele sobre Cabrera Infante (1929-2005) e os seus livros sobre Cuba e do seu exílio – redijo este texto em Londres onde ele morreu proscrito da sua Cuba impenitente -, ou sobre Pedro Juan Gutiérrez (1950), que vive e escreve em Cuba. Falámos dos óbvios: de Nicolás Guillén (1902-1989), de José Marti (1853-1895), que ele admirava de forma inabalável. Não falámos de Herberto Padilla (1932-2000), não falámos de tantos outros. Conheci, anos mais tarde, a belíssima escritora cubana Karla Suárez  (1969), conheci o grande Leonardo Padura Fuentes (1955). Ouvi Zoe Valdés (1959).

Um dia, à mesa, na Póvoa de Varzim, Leonardo Padura, que eu conhecera na primeira edição das Correntes d´Escritas, há duas décadas, um escritor incrível, mas incrivelmente modesto, contou o seu quotidiano em Cuba e de Cuba e nós ficámos siderados, perplexos, atordoados. Foi há dois anos esta conversa. No entanto, estava ele mais esperançado do que nós: Cuba abria-se ao mundo, Barack Obama distendera e ajudara a fazer o degelo na complexa relação entre os Estados Unidos e Cuba. Contei-lhe que assistira, em Joanesburgo, na homenagem a Nelson Mandela, em Dezembro de 2013, ao célebre aperto de mão entre Raúl Castro e Barack Obama, que foi o primeiro sinal de mudança. Como seria conversar sobre tudo isto com o meu amigo José Pastor?

Por vezes, ao longo destes anos, falei dele com o António Pinto de Abreu e, muito pouco, com o Guilherme Mussane. Lamento que o nome dele esteja esquecido e que a sua literatura seja amplamente desconhecida. Quando fundei a Marimbique foi dos nomes que me ocorreu editar, mas nunca consegui chegar aos seus manuscritos. Gostaria de poder fazê-lo em homenagem à sua curta, mas ingente existência e com isso intentar um tributo à nossa amizade e à admiração que sempre nutri por ele. Talvez não tenha feito todos os esforços para tal. Neste mês, Agosto, assinalam-se 25 anos sobre a sua morte. Talvez seja uma boa altura de promover a publicação da obra deste notável escritor desaparecido prematuramente aos 39 anos. Pessoalmente, guardo dele a grata recordação de um amigo atento e sensível, culto e inteligente, afável e solidário. Vejo-o a afagar a sua barba enquanto falava, os seus olhos piscando, ele entregue à graça e ironia, à inteligência e à cultura. Precisamos de fazer algo para o retirar do sepulcro, do olvido, da negligência, da omissão, do descaso e do alheamento. A desonra e o opróbrio da desmemória não podem continuar a vexar o nosso destino individual e colectivo, nem a conspurcar o nome deste escritor e de tantos outros que sofrem o agravo, a ignomínia e a indignidade do desconhecimento e da pátria.

 

 

 

 

                               Uma palavra não diz nada, mas, ao mesmo tempo, esconde tudo

       in Man on fire, Tony Scott      

 

A palavra, em Lica Sebastião, é azagaia, e, como se impõe, potente. Cortante, algumas vezes, e confortante, quase sempre, aquele elemento linguístico é a concretização subtil de uma maneira humilde vs competente de se viver a poesia. O avesso das palavras, colectânea constituída por 47 poemas, é uma constante reafirmação do que esta artista vai-se tornando a cada livro lançado.

Como nos sugere um personagem inventado pelo realizador inglês, Tony Scott, no filme Man on fire, uma palavra não diz nada, mas, ao mesmo tempo, esconde tudo. E, ao esconder, nesse processo de transferências de significados indispensáveis à versificação, O avesso das palavras torna-se terra por desbravar, plenitude por alcançar e alguma coisa por compreender. Temos estas situações misturadas no novo livro de Lica Sebastião, no qual os sujeitos de enunciação fragmentam-se para exprimir sentimentos, logo nota-se, gerados em momentos diferentes. O verso é, em Lica, um desabafo, subterfúgio para aniquilar inquietudes particulares e propor caminhos que levam à percepção, contestação. Por isso, no primeiro poema, há uma comparação entre a palavra e a roupa num jogo formado com o intuito de se separar o essencial da vaidade fortuita. É compromisso da poetisa, logo à partida, destacar a força da palavra – em detrimento dos excessos tangíveis, representações da vaidade –, afinal basta apenas uma para curar, esquartejar e destruir: “Uma palavra do tamanho de uma gotícula/ pode envenenar o oceano do entendimento” (p. 28).

N’O avesso das palavras há diversas finalidades que cabem aos textos, como o de exprimirem desejos (poema 5), repulsa à barbárie dos homens (poema 10) e o protesto ao efeito tristonho de uma espera (poema 14) eternamente adiada: “Quantos dias contei/ pelos dedos das minhas mãos/ o tempo que faltava ainda/ para te ver chegar” (p. 14). Com versos como estes, Lica mantém inabalável uma convicção: de facto a “A poesia é a aventura das emoções” (p. 22), neste livro, com impossibilidades ou incapacidades (poema 21), alertas (poema 31) e resistência, sem essa de acertar o passo (poema 37) para estar ao nível da maioria. Talvez, como Knopfli, Lica prefira as minorias, com o seu grito negro antes de tudo.

Este parece um livro de escrita espontânea, ora sugerindo as emoções da autora existencial, ora desprendendo-se de qualquer associação a esse respeito. Além disso, sente-se que este avesso é produto de estados de espírito assimétricos. Logo, é natural notar-se que os poemas não estão acentuadamente conectados entre si de modo que valham tanto em conjunto sólido.

Sem estar ao nível do seu livro anterior, de terra, vento e fogo – belíssima colectânea de poesia lançada pela editora Kapulana do Brasil, em 2015 –, O avesso das palavras não deixa de mostrar que Lica Sebastião é uma autora com enorme potencial poético. Em autores como Lica a poesia não precisa de grandes circunstâncias para acontecer, pelo contrário, emerge de qualquer nada. Deve ser essa uma razão aceitável para que neste quarto livro seu a simplicidade do enunciado e das consequências daí derivadas estejam preservadas.

Portanto, nesta pequena obra, de leitura breve, Lica Sebastião não apresenta o melhor de si nos poucos poemas que a constituem – poderia ter escrito mais –, mas deixa-nos com o que importa: a poesia como um fim que nos leva a muitos princípios.

Título: O avesso das palavras

Autor: Lica Sebastião

Classificação: 13

 

A Física da Traição é a parte da Física do Amor que trata dos componentes da Traição, os desejos que movem a traição e os resultados destas mesmas forças. Deixar a Física da Traição de lado pode ser considerado uma pura estupidez, tendo em conta os diversos avanços e recuos sociais que este campo tem trazido a todos. Por exemplo, graças a Física da Traição há avanços na compreensão de electromagnetismo da fidelidade; há avanços no entendimento da termodinâmica das mulheres solteiras, avanços esses que possibilitam o aperfeiçoamento mecânico das mulheres solteiras. Todavia, há também recuos; depois da descoberta da Física da Traição muitos casais se deixaram tomar pela impenetrabilidade, ou seja, já não ocupam o mesmo lugar, cama, ao mesmo tempo e passaram a sentir elementos fundidos pela divisibilidade, ou seja, já não se quebram em dois, dividem-se em partes cada vez menores até ao infinito.

A Física da Traição ocupa-se, também, pelo estudo da estrutura da traição e seus estados físicos. Uma traição como qualquer objecto pode estar no estado sólido, líquido ou gasoso. O estado da traição está fisicamente relacionado com a velocidade do movimento das partículas de desejo perante o objecto humano pretendido. Uma traição considera-se como estando no estado sólido quando possui forma e volume constantes; quando as partículas, feminina e masculina, estão a nível do juízo, ocupando posições fixas que não permitem a sua visibilidade por outros. No estado líquido, a traição possui um volume constante e forma variável, dependendo do recipiente onde está contido, ou seja, se a mulher envolve-se com um rico tende a ficar rica, se o homem envolve-se com uma mulher que bebe muito toma essa mesma propriedade, isto é, eles têm volume constante, mas sua forma é variável. E no estado gasoso a traição possui forma e volume variáveis. É o estagio mais elevado porque o homem e a mulher tendem a deslocarem-se de maneira desordenada em alta velocidade.

A traição pode ser mensurada pelas suas consequências por isso podemos chamá-la de grandeza física. Ora, o comprimento da traição pode ser medido pelo tempo de traição ou pelo número de beijos dados; a área pela unidade principal que é a cama-quadrado (c²) e o volume da traição é tomado por sinceridade cúbica, quanto maior for a sua vida em Cristo, maior é o volume.

As traições apresentam um determinado tipo de movimento; isso dependente, essencialmente, da idade das pessoas envolvidas ou por tipo de afinidades que antes de tudo lhes unem. Há primos que se relacionam com as esposas dos primos, tios que se envolvem com sobrinhas, sobrinhas que se envolvem com seus afilhados e vizinhos que rompem as fronteiras dos seus quintais e instalam-se em quartos de vizinhas, viúvas, como autênticos refugiados de guerra. As traições que envolvem pessoas ocupadas ou pessoas da mesmíssima idade tendem a ter uma velocidade uniforme, não mudam a sua dinâmica com o passar do tempo; traições onde os corpos envolvidos apresentam uma ligeira distância existencial de idade e motivações, tendem a apresentar uma velocidade acelerada, quero dizer, a velocidade aumenta com o passar do tempo, a traição ferve e ganha peso e quando a traição é acordada por pessoas sem muita experiência, sem muito juízo no lugar, aqueles que a fazem por puro divertimento, a sua velocidade diminui com o passar do tempo.

A Física da Traição tem-se ocupado, também, por um termo muito importante: a força gravitacional da traição. Quando a traição é mal gerida, abandonada ao improviso da sorte, muitas das vezes os envolvidos caem à realidade dos seus lares por conta da força gravitacional da traição e os seus parceiros e parceiras negam-lhes o perdão porque a força do atrito do arrependimento manifesta-se em excesso sem nenhum elemento de aceleração.

 

Segunda-feira:

A lua, desenhada a compasso, era um ponto branco pingado na noite, entre respingos de astros. Calada, pequena, pequenina, contudo ocupava o céu todo e fazia esquecer a imensidão do escuro. Na falta de sol era um xiphefo para o universo. Entornava a luz prateada sobre a cobertura das casas, sobre o tejadilho dos carros, sobre a pele do chão, sobre a copa despenteada das árvores, sobre as cabeças das pessoas empilhadas na paragem dos chapas, sobre as mechas postiças da Hamina. João respirou fundo.

Terça-feira:

– Hamina, já viste a lua? – João tinha o luar todo no tom da voz, mas ela não parecia derreter-se com coisas lunares. Num olhar breve para o céu, a lua prateou-lhe o rosto, respondeu “sim”, mas voltou rapidamente para o chão, para a realidade, e olhou para a estrada: não era a luz da lua que a preocupava, eram as luzes dos carros, ansiosa pela demora do chapa.

– Hiii! – Suspirou.

– É o quê? – Perguntou o homem, ainda com o luar no tom de voz.

– Não deviam ter adiado as eleições – desabafou, sem olhar para ele.

– Por quê? Gostas de votar?

– Não é isso. Para votarmos em alguém que nos dê transporte – fez um gesto largo apontando para a enchente na paragem.

Quarta-feira:

A lua continuava a entornar o brilho prateado sobre as coisas, sobre os lugares, sobre a multidão, sobre a noite. Parecia incidir mais sobre Hamina. Prateava-lhe os diâmetros, de um lado, e a luz amarela do candeeiro de rua, o outro. Ela esperava, especada no lancil do passeio, pelo transporte possível. A multidão à volta corria, como insectos atabalhoados, por um lugar nos chapas lotados. João achegou-se:

– Olá, Hamina.

Hamina não olhou para ele. Tinha os olhos na estrada, nos carros, a procura de um brilho mais intenso do que a lua: os faróis dos chapas. João inspirou toda a coragem do mundo e balbuciou:

– Hamina, eu…

Um chapa miraculosamente vazio surgiu. A multidão movia-se como o mar em dia de correntes descontroladas. Hamina deixou-se arrastar por essa corrente:

– Tenho de ir, O meu chapa…

João sentiu o coração a desacelerar, como se a cada pulsar um interruptor desligasse o luar.

Quinta-feira:

Na paragem não se via Hamina. A lua continuava a entornar-se sobre tudo mas parecia não ter brilho nenhum. João suspirou. Parecia que a lua o tinha abandonado. Sentiu o peso duma capa escura e fria quando a noite o abraçou. Sentou-se no lancil e ficou a ver as canelas das pessoas a entrecortar as luzes dos carros. Nenhuma parecia Hamina.

– Hamina! – Suspirou.

Sexta-feira:

João, com a coragem aflita de um apaixonado, segurou a mão da Hamina. Ela, meio rosto prateado pelo luar, meio rosto amarelado pelo candeeiro de rua, olhou para o homem e falaram com o hálito muito próximo da respiração um do outro:

– Queria ser a lua, acender-me para ti – confessou o João.

– Não – Hamina lampejou, com pena, um riso sem brilho –, não serias capaz de me iluminar. A lua não tem luz própria, o luar é só um reflexo do sol.

– Mas posso ser o teu sol. Eu amo-te.

 Com a seriedade do “eu amo-te” Hamina recompôs-se. Moveu a cabeça inclinada até ao ombro e inclinou-a para o ombro contrário. Mudou a perna de apoio e o tronco dobrou-se para o lado contrário. Perfurou o homem com o olhar mas os olhos, tal como o sorriso de há pouco, não brilharam.

– João, não se ama alguém que não sobe o mesmo chapa, que não desce na mesma paragem.

– Já viste a lua, Hamina? – João segurava agora a mão dela com as duas suas – Hoje vai haver eclipse. Podíamos ver juntos.

A multidão passava por eles, atabalhoada. Hamina afinou as pálpebras  encandeada pelas luzes de um carro que se aproximava. Ela olhou para o veículo:

– Tenho de ir. A minha boleia chegou.

João esforçou-se para não deixar a mão da Hamina escorregar entre as suas. O rosto iluminado dela moveu-se. Passou pela sombra do João como um eclipse apressado. A boleia desapareceu, com Hamina, entre o tráfego noturno. João sentiu a lua a perder sentido. A apagar-se.

– Hamina!

Se houvesse transporte Hamina não teria ido, pensou, enquanto lhe ocorriam as palavras dela: "Por quê que adiaram as eleições? "

 

Começo por uma célebre e remotíssima “boutade”, do Ungulani Ba Ka Khosa, proferida numa entrevista à brasileira Cremilde de Araújo Medina: “A Charrua é a melhor revista literária do mundo!”. Esta frase denuncia a personagem Ungulani, um verdadeiro iclonoclasta, um  destemido provocador, um desarrumador de ideias. Um homem que gostava de pôr questões – dizia-o à época -, que não tinha respostas, mas fazia perguntas e, de permeio – digo-o eu -, lançava frases como estas. Estas e outras. Recorro ao Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, que tenho à ilharga, para acudir os incautos: “Boutade”: “tirada espirituosa ou engraçada”, “pensamento ou dito subtil, original e imprevisto que freq. contraria propositadamente a verdade” (actualizei um dos vocábulos para ortografia anterior ao acordo de 1990.)

A memória mais remota que tenho do Ungulani é essa mesmo. A de um provocador. É preciso dizer que estamos a falar de meados dos anos 80, em plena I República, com Samora Machel no palco da História, antes da sua tragédia e do fim de um tempo provavelmente único, que foram os primeiros anos da independência. (Éramos jovens e destemidos, gostávamos de polemizar, de discordar, de pôr em causa. Era um tempo em que manifestar uma discordância era muito complicado, mas nós atalhávamos por esse caminho. Era difícil não se seguir o receituário da revolução, havia a reeducação, havia o aparelho ideológico do partido, repressor de ideias que não coubessem no escopo e no ideário “colectivo”, havia um inegável absolutismo. Mesmo assim surgiu uma geração de iconoclastas e a Charrua significou isso mesmo: desalinhamento, sedição, sublevação, desaparelho, desamigo, desajeito ou desafeição em relação aos ditames da época. Khosa, como os seus companheiros, desacfetos do regime, enjeitados até de certo modo, faziam o caminho da contestação. Recusando, inclusive, glorificar o tempo da luta armada que não aparece nos escritos desta geração, pese embora fosse uma prescrição impostergável à época.

Lourenço do Rosário, numa entrevista que me deu para a “Gazeta” da revista Tempo, em 1989, dizia-me, confirmando o que asseverei acima, que a revista funcionara como um instrumento de contestação e de procura de afirmação de um grupo pertencente a uma geração “marginalizada”, que não beneficiava – nas palavras dele -, “da protecção da máquina”. Lembrou-me, a propósito, um termo usado pela jornalista brasileira Cremilda Medina, que classificou a Charrua, naquele contexto, como um “projecto maldito” e ele justificava aquela asserção: “O grupo esteve em contradição com o establishment”. Indubitavelmente.

Ungulani Ba Ka Khosa: “Com toda a sinceridade, digo-te que a Charrua foi um encontro de indivíduos frustrados, que não tinham abertura, digamos, em termos de imprensa, de publicação dos seus textos. Cada um possuía a sua trajectória. Uns à partida já tinham publicação dispersa, outros não. Encontrámo-nos e fizemos a Charrua. Mas não houve filosofia. A publicação era aberta, totalmente ampla, sem preocupações estéticas para cada género. E cada um com a sua filosofia.” Estas palavras são de Setembro de 1990, numa entrevista que lhe fiz, para o livro Os Habitantes da Memória.

Conhecera-o em 1984, justamente à volta da Charrua, que fora lançada em Junho daquele ano. Conheci-o na altura em que conheci os outros charrueiros. Há uma fotografia, da Cremilde de Araújo Medina, no seu livro Sonha Mamana África (título cunhado pelo Calane da Silva) onde estamos (quase) todos. Parece uma equipa de futebol: uns de pé, e outros sentados num banco de jardim: o Ungulani Ba Ka Khosa, o Marcelo Panguana, o Hélder Muteia, o Juvenal Bucuane, o Eduardo White, o Pedro Chissano. Eu e a Olga Pires estamos na fotografia por acaso. Eu não era da equipa dos fundadores da Charrua. Participei da Charrua, mas não a fundei. Ali estavam os fundadores. (À data daquela fotografia o Tomás Vimaró estava já em Lisboa, como correspondente da AIM). Eles eram todos mais velhos. O Ungulani tem, na altura da fotografia e da “boutade” que ilustrava a entrevista, 29 anos, eu tenho 19 – um miúdo.

Havia a tertúlia na cave da Cindoca. Eu bebia coca-cola, participava passivamente das jornadas etílicas que ali se praticavam, por vezes ou quase sempre, de forma intrépida e desassombrada. Eu não bebia nem fumava. Só mais tarde viria a dar-me conta dos avatares de Baco, ou Dionísio, o deus grego do vinho. Mas gostava de ali estar. A malta da Charrua era tudo jovem rebelde, a ela se juntavam, por vezes, o Aníbal Aleluia, ou o Cyprian Kwilimbe, para lembrar duas personagens que abandonaram este reino (White, um dos mais desabridos do grupo, também abandonou este reino). Aleluia escrevia para a revista; Kwilimbe, divulgador obsessivo de Godido, e de João Dias, participava da tertúlia. Havia outras personagens. O Luís Carlos Patraquim antes de zarpar para Lisboa era um assíduo da AEMO e animava a “Gazeta de Artes e Letras” na vetusta revista Tempo. O Calane da Silva ou o Gulamo Khan, que morreu em 1986, em Mbuzini. O Rui Nogar era o secretário-geral e praticava a sua irrepreensível bonomia. Como explicar a Charrua sem a complacência do Rui Nogar? O Albino Magaia que o sucederia. Ou a Fátima Mendonça. Ou o Júlio Navarro. Eu sei lá! Há tantas figuras, que não cabem todas nesta breve homenagem. Nem todos eram dados à espuma da cerveja. Mas à conversa, sim, estávamos todos implicados. Naquele tempo havia tertúlia literária e disso tenho saudades:

Por ali desembarcavam escritores ou ensaístas, oriundos de outras geografias. Recordo-me do chileno Francisco Coloane, referi acima a brasileira Cremilde de Araújo Medina, lembro-me do ensaísta português Arnaldo Saraiva, que nos falou, numa noite memorável, de Carlos Drummond de Andrade, que ele antologiara e estudara e que conhecia pessoalmente. O Mário Pinto de Andrade frequentava a AEMO quando cá estava. Eu sentei-me com ele no mesmo banco da fotografia que aludi e o ouvi tantas vezes. O Manuel Ferreira trouxe o seu Reino de Caliban. A Noémia de Sousa. O próprio Rui Knopfli e o Eugénio Lisboa. O José Saramago. Recordo-me que, anos antes de eu lá aterrar, o Pepetela visitara a AEMO. Só o conheceria em Londres, em 1992, e travámos a nossa primeira conversa lado a lado num mictório, num dos intervalos de um encontro organizado pelo King´s College, onde pontificava o Hélder Macedo, que me convidara por indicação do Eugénio Lisboa.

O Khosa era um dos mais ingentes participantes daquelas memoráveis tertúlias. Tinha lido, tinha bagagem literária. Falava de Jean Paul-Sartre, animavam-lhe os existencialistas franceses. Citava Roland Barthes, um dos emblemáticos da “French Theory”. Falava dos latino-americanos, do Gabriel García Márquez (parece-me incontornável O Outono do Patriarca) ou do Mario Vargas Llosa, o seu predilecto, entre outros. Tinha lido A Conversa na Catedral e citava aquele início fabuloso com aquela frase que o pudor que a revolução impunha a tornara irreproduzível. Mas ele haveria de usar o mesmo vocabulário truculento num conto em que alguns viram o que lá não estava: o vitupério da pátria. Quando li A Festa do Chibo pensei nele. Ele falava do grande Ernest Hemingway, que lhe ensinara a arte do diálogo. O Ungulani é dos poucos prosadores moçambicanos que sabe fazer diálogos. Muitos ínclitos escritores nossos vacilam, oscilam, cambaleiam quando tem de pôr as suas personagens a dialogar. Outro grande mestre americano que concitava o entusiasmo do Ungulani: William Faulkner, o autor de O Som e a Fúria. Por conseguinte, o Ungulani Ba Ka Khosa era e é um interlocutor culto. Um escritor com referências. Um homem que lera. Um escritor tem que ler para saber escrever. Não é possível ser-se escritor sem se ler. Um escritor é, antes de tudo, um grande leitor. Por muito que se acredite que a inspiração é uma coisa insofismável – algo que me põe nos antípodas e pronto para o reproche. Há aí uma malta dissoluta que acredita nisso.

O Ungulani escrevia contos, tinha e tem uma imaginação esquizofrénica, um poder efabulatório e encantatório, uma grande capacidade narrativa. Tinha e tem vocabulário. Tinha e tem a História como bagagem. Citava a Agustina Bessa-Luís: “A História é uma ficção controlada”. Tenho isto na memória. Tinha a experiência da Sibéria moçambicana, como ele chamaria ao Niassa. Fora lá onde começara a escrever. Ali residia um grande universo: as grandes contradições da época jogavam-se no frio distante do Niassa. Mas também escrevia contos urbanos, de uma cidade de Maputo sitiada. Escrevia sobre o tempo do Imperador. Discutíamos aquilo que vinha no JL, as entrevistas do Lobo Antunes, a escrita do Cardoso Pires ou do José Saramago para falar de autores portugueses. Ou do Dinis Machado. Ele citava O que diz Molero. Falávamos de escritores brasileiros. Do Jorge Amado que abraçámos em Lisboa nos intervalos de um congresso, ao qual fôramos com entusiasmo irrepreensível e alento quase juvenil.

O tempo esfumou-se numa voracidade incrível. Mais de três décadas. Entretanto, dispersamo-nos. Eu fui estudar lá fora, retornei cinco anos depois, mas deixei de frequentar a associação, que se havia transformado num santuário de bebedores. Lancei, aliás, uma diatribe contra isso, num trocadilho que os meus velhos companheiros se viram ofendidos. Com razão. Excessos de juventude e abundante uso de ironia. Tudo isso trouxe-me alguns amargos de boca, mas não me queixo. Tenho uma admiração sem hesitações, aliás faço aqui testemunho disso, pela geração da Charrua e uma incólume lembrança, à qual pago aqui o meu tributo.

Ungulani Ba Ka Khosa tinha 30 anos quando, em 1987, se estreou com uma obra seminal Ualalapi, numa colecção igualmente iniciática da Associação dos Escritores. O tempo demonstrou que, tanto este livro, como o que inaugura a mesma – Amar sobre o Índico, do Eduardo White -, estavam, indubitavelmente, na secção errada. Sobretudo este livro, obra que lança, com o livro de Mia Couto, Vozes Anoitecidas, editado no ano imediatamente anterior, a nova vaga de ficcionistas moçambicanos. Moçambique era, até então, uma nação de poetas. Dizia-se que em Angola estavam os ficcionistas e em Moçambique os poetas. Eles derrubam essa espécie de anátema. Antes disso, que tínhamos? Godido de João Dias (1952), Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana (1964), Portagem de Orlando Mendes (1966) ou Contos e Lendas de Carneiro Gonçalves (1975). Não avulta, até então, prosa de ficção narrativa, na literatura moçambicana. Todos os títulos supra-citados prescreviam obras únicas.  Não havia, entre nós, um escritor que tivesse publicado na sequência de uma primeira obra de ficção um título ulterior. Isso acontecerá justamente com Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto, em 1990, quando Khosa publica Orgia dos Loucos e Couto dá à estampa Cada Homem é uma Raça.

Quando eu editava a revista Índico pedia-lhe colaboração. Ele recolheria, no entanto, muitos desses textos no livro Cartas de Inhaminga (2017), o que me regozija.  Acaba de publicar Gungunhana (2018), onde Ualalapi é acompanhado do inédito As Mulheres do Imperador, com o qual encerra o temário ligado ao Império de Gaza e a Ngungunhane. (A grafia no título desta edição foi imposta pelas circunstâncias editorias.) É ainda autor de Histórias de Amor e Espanto (1993), Os Sobreviventes da Noite (2005), Choriro (2009), O Rei Mocho (infanto-juvenil, 2012) e Entre Memórias Silenciadas (2013). Premiado aqui e no estrangeiro, publicado lá fora, não goza da reputação que merece, a despeito de Ualalapi figurar entre os melhores títulos do século XX africano. O nome e a escrita de Ungulani Ba Ka Khosa mereciam outra fortuna em termos de projecção internacional. A sua verve é indubitável, a sua imaginação telúrica, a sua escrita por vezes vertiginosa, ou mesmo voluptuosa. Disse-lhe uma vez que o seu talento não tem tido o marketing que o devia ter transposto para um patamar muito mais elevado do lugar em que está. Tem obra, tem nome literário muito forte – Ungulani Ba Ka Khosa -, tinha e tem um discurso dos mais originais, indagadores e perturbadores, no seio dos que escrevem. Chama-se Francisco Esaú Cossa, nasceu em Inhaminga, a 1 de agosto de 1957.

Heróis não há mais

Nem depois nem antes

Há é marechais

Vendendo purgantes

Tenentes tementes

Bons comerciantes

 De pasta de dentes

 João Pedro Grabato Dias

Ao Léo Cote!

Arão Cipriano Matenje decidiu criar a sua própria empresa como quem está a vingar-se do desemprego três dias depois do patrão entregar-lhe a chave da rua. Matenje pegou naquela chave, novinha em folha e abriu a sua start-up, com a missão de difundir informação sobre a actualidade dos bairros em expansão e alguns devaneios amorosos. Arão Cipriano criou aplicações para os seus clientes desenvolverem aptidões para falar com Deus e terem sorte no emprego. A empresa de Matenje tem como parte da responsabilidade social, aplicações que difundem informação gratuita sobre exames de admissão, a cursos médio e superior. Um dos ramos concorridos é dos aplicativos electrónicos para o povo aceder a títulos de direito de uso e aproveitamento da terra, os famosos DUATS. Matenje está a liderar uma iniciativa de criação de aplicativos de apoio à campanha de testes para diagnósticos da malária, tuberculose, HIV-Sida e outras doenças. Arão Cipriano Matenje inaugurou uma agenda do xitique electrónico semanal dos mercados da zona suburbana da capital. O nosso empreendedor criou aplicativos sobre notícias da bola, funerais, venda de casas, carros e artigos diversos para os caprichos da ala feminina. A start-up de Matenje cresce a olhos vistos no bairro Zé-galinha.

O segmento com mais visitas nestes dias é o misterioso desaparecimento da Gita, a mãe de todas as virtudes. E para além da divulgação de Matenje, há um ruidoso reforço informativo nas conversas matinais de esquina, sobretudo nos mercados informais, reportando que, afinal Gita foi gwevar para os lados da China. Uma outra ala das comadres, actualizadíssima, diz que ela está em Magude numa consulta a um curandeiro de reconhecido mérito nos místeres da cura…

Arão Cipriano Matenje foi ao meu consultório confirmar que a Gita cometera, como tantos outros, um inexplicável suicídio. Desde esse dia deixei de seguir a esfera pública criada por Matenje, nem sequer dar ouvidos à rádio que de boca em boca dá notícias, investindo até em antenas modernas de batons berrantes e tons que tais.

Numa tarde incerta a curiosidade convocou-me para o bastião de tupilas, a relva de um verde-alface sem fim. Tal é a beleza do imenso jardim que circunda a casa de Saugineta Antónia Fróis Mambasso. E assim de repente uma ruidosa gargalhada apossou-se dos meus ouvidos. Naquele instante Gita surgiu diante dos meus olhos com uma luminosidade sufocante, o sorriso aflorando-lhe o rosto. O perfil da Gita era de cortar a respiração. Saugineta trajava um vestido branco. Ela convidava-me a entrar no seu palacete, sem dizer palavra. Justo eu que não acredito neste mundo onde a vida transforma-se, dia-após-dia num festival incessante de surpresas que sufocam as minhas emoções. Permaneci ali especado fazendo concorrência às estátuas em memória dos artistas moçambicanos, que ainda carecem de aprovação por quem de direito.

Depois da visita ao bastião da Gita consultei a página electrónica de Matenje. Para o meu espanto a notícia da morte está disponível, 24 horas por dia. As criações deste cidadão conciliaram famílias, harmonizaram funerais de gente desavinda e fizeram com muita gente tivesse muitos números à direita nas suas contas bancárias.

 Conheci Arão Cipriano Matenje na noite que Cachela marcou, num disparo notável, um golaço no FNB Stadium, qual mamba solta na galáxia futebolística! Matenje chegou-se junto de mim, todo gabarolas dizendo que aquele puto da selecção moçambicana tinha já um contrato feito para as europas, logo que terminasse o amigável com os Bafana-Bafana. Acreditei, tal era a convicção do fulano.

Hoje nos cruzamos pela manhã e, pelas minhas contas passam já vinte e três anos que conheço o Arão. Cumpri a missão de saudar e escutar Matenje. Este não perdeu tempo pôs-se a divagar, recordando os faustosos momentos da sua vida, do seu voo recente na indústria da comunicação. O meu herói transformou-se num novelo de fumo já dissipado. A start-up de Arão Cipriano Matenje faliu, sem antes publicar na causa de tal destino.

– Estou tão tchonado, irmão. Só tenho mil paus. Isto nem dá para comprar um ovo… – E depois rematou.

– Não pagas uma, senhor embaixador?

Encontros fortuítos com Arão Matenje sucederam-se a uma velocidade incontrolável para o meu desgosto. Avistei-o descendo de uma viatura de alta cilindrada numa bomba de combustível. Saudamo-nos num aceno breve. Outro dia Arão estava na varanda no restaurante Matháta com companhias de alto calibre financeiro, algures na avenida Pássaro da Madrugada. E, mais recentemente, encontrei-o no Cala-a-boca. E depois na sala de jogos do já decadente restaurante militar A Luta-continua. A última vez foi no Espinafre, uma tasca recém-aberta.

– Aquela gaja morreu, meu irmão. – Fuzilou Matenje.

– O quê? – Reagi aturdido, respirando à rasca para poder conter as emoções.

– A Guida, perdão a Gita suicidou-se esta manhã, compadre.

– Vai lá ver se chove lá fora, Matenje. Então a Gita de todas vezes que nos encontramos morre na tua boca, de todas formas e feitios? Tenha o mínimo de controlo nas palavras, irmão. Fazes isto só para cravares dinheiro, Matenje?

Arão Cipriano Matenje meteu-se na primeira boleia que surgiu à frente. Não mais tive notícias dele. Quem estiver interessado pode consultar o google, desde que escreva o nome do artista no motor de busca cibernético.

Fossemos observadores das nossas tendências naturais a coisas da vida, desde crianças, menos dúvidas restar-nos-iam que nós não somos nascidos como uma “tábua rasa”. Chegamos ao mundo com determinadas predisposições que nos permitem exercer com excelência algumas funções capazes de imortalizar-nos. O principal fim último das qualidades inatas dos seres humanos é a glória.  E tal glória que chega a ser guardiã da nossa existência póstuma só nos é possível conquistar, quando as nossas obras ou acções comportam excelência. Daí que é mister a pergunta “quem sou eu?” quando se deseja viver uma vida sublime. A resposta para “quem sou eu?” é das mais difíceis de acesso na vida, requerendo continuamente a introspecção e consistência. Sendo assim, todas as suspeitas daquilo que pensamos que somos devem basear-se nas inclinações naturais que, ao longo da vida, vamos manifestando.

O que se deve tomar como postulado para compreendermos melhor a nossa existência é que tudo na vida tem um propósito, incluindo a própria vida – nada ocorre por acaso. E o segundo postulado deve consistir na crença de que o propósito de todas as coisas na vida é sempre benigno. Todos os fenómenos do mundo convergem para um propósito feliz e, mesmo quando ocorrem falhas, o positivismo mantem-se por meio das lições que se aprendem das experiências negativas. Deste modo, se gozamos da vida, e acreditamos que ela tem um propósito, então, sejamos consequentes em apostar que o propósito das nossas vidas é sempre ditoso. Deste modo, estejamos preparados para ultrapassar as peripécias da vida, provando cada vez mais o que nós pensamos que somos por meio da consistência.

O destino é grandioso e existe, mas pode ser rejeitado para nossa própria desgraça. Ou seja, todos os homens são destinados a ser excelsos na vida, mas quando não atendem ao chamamento missionário com consistência, acabam medíocres e desventurados. E o mais vivo sinal que nos permite identificar o chamamento existencial são as nossas tendências naturais que começamos a manifestar desde criança. Alguém que lida facilmente com instrumentos musicais desde a tenra idade, sem ainda ter passado por longos treinos, o seu maior triunfo onto-existencial é a música. Para quem, quando criança, destacou-se mais em competições físicas, o seu melhor lugar no mundo é a ginástica. E aquele, que sempre se entreteve em compreender a funcionalidade das coisas, devia entregar-se a investigações científicas. Mantendo-se firme sobre tarefas que mais sente comodidade em executar, mas executando cada vez mais com qualidade e ciência, mais alinhado com seu fausto destino o indivíduo estará.

Porém, se o indivíduo se deixar guiar pelas paixões – que, são por excelência, causadoras da cegueira existencial – ou resignar-se diante das peripécias da vida, o seu destino acaba desfalecendo. Nisto, o homem torna-se um arredio, vítima de abandono de um plano metafísico. E, no mundo, há mais pessoas que desistiram do seu próprio destino por razões mesquinhas ou graves de diversas ordens. Dessas pessoas, tenha-se a certeza que a sua morte escamoteará rapidamente a memória da sua existência na terra, pois não haverão deixado obras que excedam o que é usual dos humanos. Somente o extraordinário faz a história. Portanto, se quisermos ser proeminentes na vida, temos de optar por uma educação de excelência que consiste em aprimorar as nossas qualidades inatas.

As qualidades inatas ou o talento, em si, não nos é suficiente para perfazermos obras inéditas capazes de nos granjear a glória. São precisos o treino e a ciência. Porém, quando se treina algo não inato, o esforço é mais penoso e o resultado é acima do medíocre, mas não ao ponto de ser sublime. Por esta razão, torna-se recomendável que o indivíduo procure na vida exercer a actividade em que sua natureza está em vantagem que o desejo. É mister para cada indivíduo o estudo sobre as suas potencialidades inatas de tal modo a desenvolve-las e atingir o sucesso inigualável entre homens ordinários. Quando não se faz tal estudo introspectivo, e faz-se o que o desejo desvinculado da habilidade inata manda, a probabilidade do sucesso é de mediocridade ou moda, mas não de glória que só se alcança com excelência.

É-nos agradável fazer coisas das quais a gente gosta, porém muitas vezes a felicidade assenta no conformismo e não é definitivamente distintivo da grandeza. Assim sendo, dever-se-ia adequar o sonho às qualidades inatas do homem, quando se quer alcançar o que está fora do comum entre os homens simplórios. Dando alma ao talento, o homem torna-se um fenómeno invejável no mundo pelo nível de competência e graciosidade com que faz as coisas acontecer. Quando reparamos nos homens históricos como Sócrates que manifestou a sua excelência na filosofia, Jesus de Nazaré na moral, Alexandre o Magno na arte da guerra, Da Vinci na pintura, Camões na poesia, Mozart na música, Einstein na ciência, Pelé no futebol, é-nos tão difícil conceber que sua excelência não tem a ver com nenhum desenvolvimento da qualidade inata, mas que tudo foi obra do desejo, ensino e esforço. Mas se o sucesso gigantesco destes homens deveu-se tão somente ao desejo, ensino e esforço, porque todos aqueles que desejaram, talvez, tiveram melhor ensino e mais dedicaram-se não se tornaram tão proeminentes quanto eles? Certamente que houve homens que mais estudaram na vida que Sócrates, porém ninguém o superou na reflexão profunda sobre a condição humana, assim como houve jogadores que até passaram pelas grandes universidades, mas o seu brilho chega a apagar-se com a sombra de Pelé.

Outra imaginação de difícil projeção é tentar visualizar estes homens gloriosos fora das áreas onde garantiram a sua brilhante existência histórica. Se Da Vinci ou Michelangelo tivessem preterido a pintura pelo futebol ou culinária, teria sido possível que eles conquistassem o mundo da mesma forma como o fizeram com os seus pincéis? Ou eles definitivamente souberam interpretar os sinais do seu destino glorioso, compreendendo suas tendências naturais e desenvolve-las com afinco rumo à perfeição?! Não basta o talento nem o esforço em si separados. É preciso um casamento entre os dois elementos para o homem atingir o auge da sua existência. Assim como a semente num solo fértil precisa de água para germinar, a dádiva no homem também requer treino para produzir obras de grande dimensão.

Procuremos o que há de bom em nós, tornemo-lo melhor e acreditemos que assim estaremos a cumprir o mais esplêndido desígnio da nossa existência.

 

Fonseca Amaral: “Lembras-te, Lina, / do beijo roubado entre girassóis/ ou de quando íamos/ de mãos dadas, meninos/ ouvir as barcarolas/ do marinheiro negro na praia?// Mamana Celina/ não voltou mais à esquina da rua/ com suas badgias picantes e castanhas de caju/ e o negro coxo que jogava futebol/ morreu numa noite de bebedeira// Lembras-te, Lina,/ do moleque Fabião que nos trazia do mato/ maçalas e amendoim?/ É agora um velho alquebrado/ à porta da palhota/ embrulhado numa réstea de sol.// Os nossos companheiros doutrora/ se dispersaram, também: / os meninos brancos trabalham nos escritórios,/ Zé Mulato sonha Brasis e ritmos de samba/ e o Gungunhana/ vende frutas numa banca do bazar.” (Excerto do poema “Evocação”).

A primeira vez que ouvi falar do Fonseca Amaral foi num texto empolgado e evocativo do Rui Knopfli, no caderno de poesia Caliban, número 2, de novembro de 1971, que ele fazia editar, na companhia do poeta Grabato Dias. Escrevera o autor das Mangas Verdes com Sal: “Fonseca Amaral é, por direito e mérito próprios, um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique e, simultaneamente, por desleixo ou abulia, um dos menos conhecidos e apregoados, espécie de grande ausente nos vários certames em que vamos acrescentando pátina às nossas acanhadas glórias caseiras.” Assim começavam as “Notas para a recordação do meu mestre Fonseca Amaral”, nas quais se acrescentava: “Tímido, reservado, inseguro de si próprio, que não da sua poesia, membro daquela família de criadores que, cumprindo-se embora, se apagam e auto-anulam não se sabe bem porque estranhos caprichos da vontade, é o poeta em larga medida responsável pela pouca, ou nenhuma, divulgação de uma obra merecedora da mais vasta audiência.” A geração que desponta para a literatura nos anos ulteriores à II Grande Guerra muito lhe deve. Esta geração (à falta de melhor termo, di-lo-ia Knopfli) incluía José Craveirinha, Noémia de Sousa, Ruy Guerra (o cineasta) e Rui Guedes da Silva, Rui Nogar e o pintor António Bronze e o próprio autor daquela pungente homenagem.

Rui Knopfli: “Frágil, mefistofélico, com um rosto elusivo de pássaro, João da Costa Fonseca Amaral – de seu completo nome – estimava dizer que nascera no Cairo, para não confessar que vira a luz, prosaicamente, em Viseu, no final da década de 20. Desde a mais tenra idade, porém, estro e coração ficaram-lhe para sempre ancorados no Largo Albasini, bem na fronteira nevrálgica da “outra” cidade, onde – ao observador mais arguto – não escaparão, ainda hoje, os modelos vivos que tão sugestivamente lhe animam a poesia. Poesia que, alicerçada nos moldes esquiçados pelas correntes modernistas portuguesas da primeira metade do século, é das primeiras a integrar harmoniosa e originalmente, nesse modo de dizer, todo um bem tipificado e colorido microcosmos local erigido – pela escorreita finura de uma límpida e vigilante inspiração lírica – à condição de linguagem e mitologia de sabor iniludivelmente moçambicana. A tal título são acabados exemplos como “Evocação”, “Para um barco…”, “S’Agapo”, ou “Passagem de nível”, coordenadas maiores para a rigorosa consciencialização e delimitação de um espaço literário até aí fluído e incaracterístico.”

Fui visitá-lo à sua casa, em Janeiro de 1990, a pretexto de uma entrevista, tendo como linha de cota o artigo do Rui Knopfli e os depoimentos afectuosos da Noémia de Sousa e do José Craveirinha, que me falavam dele com abundante e transbordante emoção e indisfarçável amizade e bonomia. Era um homem de certo modo sibilino, esquivo, tímido. Mas adorável. A conversa que mantive com ele foi inesquecível e emotiva. Sincera. Profundamente sincera. Nascido em Viseu, em 1928, Fonseca Amaral fora para Moçambique com apenas três anos de idade. A sua infância – e por aí iniciamos a nossa conversa – passara no Xipamanine, nas terras do “Ka Amaral” (seu avô) –, com amigos negros com quem falava Ronga. Também tinha amigos de outras origens e que se misturavam naquelas periferias: muçulmanos, indianos, chineses. Passará pelo Chamanculo e, depois, a ascensão social levá-lo-á ao Alto-Maé, ao Bairro Central e, ulteriormente, à Polana.

Na adolescência foi vizinho do Eugénio Lisboa, que irá, muitos anos mais tarde, prefaciar, com o seu conhecido e festejado tom sulfuroso, o livro Poemas, editado postumamente em 1999, em Portugal. Mas lá iremos. Pus-lhe, depois da romaria à infância, uma questão sobre a juventude, questão similar que eu pusera à Noémia: por que razão é que eles (incluindo, pois, a Noémia de Sousa) haviam colaborado na revista da Mocidade Portuguesa? “Por ingenuidade, por sacanice”, disse-me ele. “Era uma sacanice ingénua.” Julgavam que poderiam tomar de assalto a publicação. Tinham o ideário oposto ao defendido pela Mocidade, tanto mais que alinham com o MUD-Juvenil e, mais tarde, são presos: ele, Rui Knopfli, Ruy Guerra, os mais jovens; ou aqueles que ele chamaria de “os trutas”: Henrique Beirão, Sofia Pomba Guerra, Sobral Campos ou João Mendes, todos eles deportados para Portugal, presos em Caxias. Sem provas, seriam libertados após o julgamento, mas o João Mendes segue degredado para Cabo Verde. João Mendes, é preciso lembrá-lo, irmão de sangue de Orlando Mendes, irmão de coração da Noémia de Sousa, que lhe dedicará Sangue Negro.

Influenciados pelos neo-realistas, irão lançar estes jovens os tentames de uma literatura de raiz marcadamente moçambicana. Não é alheia, no entanto, a figura de Augusto dos Santos Abranches, que traz a Moçambique a experiência do Novo Cancioneiro de Coimbra e que divulga, com Fonseca Amaral, autores neo-realistas, da Presença e do Orpheu. Uma verdadeira agitação cultural. Contou-me o Fonseca Amaral que foi o Augusto dos Santos Abranches que levou muitos dos jovens a desenhar, entre eles, o Rui Knopfli. Em 1955, Fonseca Amaral vai para Portugal onde permanece 20 anos. Escreve para a Voz de Moçambique. Traduz. A sua produção própria é, a despeito, avara.

Regressado, nos alvores da independência, trabalha entre o Ministério da Informação ou o Instituto Nacional do Livro e do Disco, em tarefas sempre urgentes e agitadas, num tempo que avulta a falta de quadros, onde é preciso fazer tudo, Amaral também não escreve. No entanto, aquela poesia que fora, para muitos da sua geração ou anterior, inspiradora do que viria a ser a nova poesia produzida em Moçambique, parece-lhe, a esta altura – aquando da nossa entrevista -, datada, não lhe apetece reuni-la, nem editá-la. Insisto com ele: “Fonseca Amaral, eu quero lembrar-lhe isto que você sabe melhor do que eu: os seus textos, mesmo datados, revestem-se de importância histórica e documental. As gerações presentes não têm à disposição a sua poesia em livro.” Ao que ele irá retorquir-me: “Nelson, eu sempre fui um homem de produção muito escassa. Os poemas, alguns, são dolorosos; doem muito. Para já não quero sofrer. Os poemas custam-me muito. Não é o acto, a caneta, o papel e a máquina. Doem muito. E agora devo fugir à dor. Sofri muito.”

Vi, nesta confissão, um homem sincero e honesto. E não quis escavar mais a sua dor. Porém, ainda quis saber se ele escrevia. Disse-me que sim, às vezes, por catarse: “Para me equilibrar. Não tem interesse. São coisas muito pessoais. Tem que ver com a vida afectiva.” Divergimos, então, do tema que lhe doía, falamos dos extenuantes 5 anos que vivera em Moçambique no pós-independência, das suas frustrações, do seu esgotamento, do regresso a Portugal, onde a mulher tinha uma carreira que lhe garantiria a reforma. Foi muito amável e senti que tinha sido muito franco ao lembrar as suas memórias da sua já longa trajectória. Recordo com saudade aquele encontro e há dias descobri as fotografias que o documentam. Vimo-nos mais tarde, em finais de 1992, na casa do Rui Knopfli, na companhia da Noémia de Sousa, do Eugénio Lisboa e do Eduardo Pitta. Foi pouco tempo antes de ele falecer, em Janeiro de 1993.

A Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em Portugal, fez editar a reunião da sua escassa produção poética. Rui Knopfli, a quem incumbia a tarefa de organizar o magro espólio, morreria no Natal de 1997, tendo deixado a cargo da INCM os papeis por organizar e antes de redigir o prefácio combinado. Coube tal tarefa a Eugénio Lisboa. Diz o ensaísta com algum vinagre: “Que Fonseca Amaral teve, sobre um grupo de jovens moçambicanos (Noémia de Sousa, Rui Guerra, Rui Guedes da Silva, Rui Nogar, José Craveirinha, António Bronze – pintor – e o próprio Knopfli), uma fecunda e duradoura influência, não é matéria de dúvida. Nenhum deles, suponho eu, o negaria e vários de entre eles o têm repetidamente confirmado. Que tal influência não está à proporção nem da quantidade nem da qualidade da obra produzida (a qual existe, mas, a nosso ver, não o torna, como pretendia Knopfli, “um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique”) fica também, quanto a nós, fora de qualquer dúvida.” Numa passagem mais adiante, onde também narra os tempos em que foram vizinhos, “no extremo limite da cidade branca”, Lisboa afirma: “Gostava de falar com o Fonseca Amaral, mas devo confessar que, embora reconhecendo-lhe competências na área literária, me sentia singularmente imune às suas seduções. Em primeiro lugar, desconfiava (sem razão, digo-o agora…) de uma personagem que tão frontalmente rejeitava (com desprezo mais afectado do que real?) a magia das ciências exactas. Como se podia não ser sensível à beleza pura da álgebra e da geometria euclideana? Que estranha “falha” existiria naquela organização humana, que assim a tornava impenetrável a uma exigente e pura área de conquistas e promessas que a mim me fascinava? Se quisesse ser sincero – mesmo sem pretender ferir – haveria de confessar que uma tal assintonia com as matemáticas me tornava suspeita a qualidade mesma dos seus juízos literários…”

Não concordo de todo com o Eugénio Lisboa. Creio que neste depoimento se percebe que aquela desconfiança não fazia sentido, de que o próprio Lisboa faz contrição. Não me parece que um bom poeta, um grande poeta até, tenha que ter uma sintonia com as ciências exactas. Creio aliás que a poesia, a grande poesia, vem de outras ordens, de outras sintonias. Provavelmente, o Fonseca Amaral não é um poeta soberbo, não o foi porque a isso não se quis dedicar ou não teve estro para tal, mas não foi a sua assintonia com as matemáticas que o impediu de o ser. Contudo, o poeta de “Passagem de nível” (ou de “Exílio” ou de “Karamchand” ou ainda de “L`Après-midi d´un gala-gala”) escreveu, a seu modo, o seu nome nos armoriais da literatura moçambicana. “Ali a nossa Pátria mal nascia”, queria ele e fê-lo bem. Transcrevo, a terminar, um dos seus mais belos poemas, evocativo, quase elegíaco, como foi toda a sua poesia, desta voz, quase sempre ensimesmada, aludindo a uma memória ulcerada, acenando ao mundo e à emoção que nunca o haveriam de o abandonar no seu longo e dolorido “Exílio”:

Fonseca Amaral: “Longe embora cidade paráclica/ a língua se nos cola ao céu da boca/ se vier o olvido. // Banhas-te connosco em águas de desterro/ flutuas sempre por nossa boca/ nas praias da memória. // Nos dias mais soalheiros da diáspora/ és tu quem materna vem dizer “aqui estou” / à emoção que nos habita//. Marulham outras águas aqui/ mas quando as invocamos é Baía do Espírito Santo/ o nome que nos corre à boca. // São lembranças que viajam para ti/ mãe estuante que nos deste o leite e o mel/ hoje por tão longe dissipados.”

Talvez num futuro longínquo se saberá que a literatura não é um simples jogo de palavras cabeceadas pelo peito das ideias. A literatura, e em concreto o romance, não é uma partida de ideias onde os sonhos e a realidade são enrolados num pano de ficção para servirem de bola de trapos. Uma partida cujo principal objectivo é divertir os homens que sonecam na bancada central sombra da vida. Quando se lê “Ilusão à Primeira Vista” de Almeida Cumbane percebe-se isso. Almeida põe-nos olhos de ver o romance como um espaço de apresentação e representação da condição humana. Ele usa o romance para nos auto-revelar a realidade que escondemos e nos deixamos esconder nela. O romance afirma-se em Almeida como um palco de redenção do homem.

Giovanni Papini dizia que o romancista não é apenas o mineiro ou pescador do seu inconsciente. Mas é também um escravo de seres que se servem da sua arte para regressar ao palco do mundo. E este regresso ao palco do mundo dá-se por aquilo que Papini chama de “rápida ilusão de intimidade”. Eis a redenção que encontramos em Almeida. A redenção que a “Primeira Vista é uma Ilusão”, mas acontece de seguida pela rápida ilusão de intimidade com todo o enredo do livro.

Os molhos de parágrafos que Almeida serve-nos em tabuleiros de palavras têm um sabor da paisagem imparcial e concisa da sociedade moçambicana. Através do professor André Fernando Matuassa percorremos os vários países que existem no nosso país, descobrimos o que a Unidade Nacional separa, escorregamos nas calçadas da política e caímos em campos de corrupção e injustiça social.

Os limites culturais e geográfico jogam um papel muito importante neste enredo. Quando li, pela primeira vez o romance esperava encontrar um baralho incompressível dos vários entes-culturais que fazem o nosso país. Estou acostumado a gente que se predispõe a tratar dum assunto nacional e que no meio da narração puxa tudo para sua cosmovisão cultural. Mas, Almeida soube medir e aferir os grandes países culturais que existem no nosso pequeno país.

A revelação da condição humana, neste romance, faz-se por meios de dois caminhos: o amor fracassado e o questionamento quase existencialista do professor André. “Ilusão à Primeira Vista” narra as peripécias de um professor. Aqui podemos abrir um parêntesis para dizer que Almeida Cumbane é professor. E estamos, talvez, perante um romance de auto-ficção. Subgénero cultivado por um dos meus favoritos romancistas, Lobo Antunes.

Almeida teve o cuidado de tornar esta narrativa um conjunto de narrativas. Ou seja, usando a sua técnica construiu outras narrativas que nos aguçam o apetite pela independência e dependência do enredo principal. A escrita de Almeida surpreende, outrossim, por uma espécie de desconstrução e provocação.

Papini dizia que os que escrevem romances só por lucro e vaidade são os servidores dos gostos do tempo e dos leitores previstos. Mas, os que escrevem romances por impulso do seu génio criador são escravos das suas próprias criações. O romance de Almeida Cumbane mesmo contado a história despedaçada amorosa e socialmente de André, homem de coração desfeito por amor pela Nweti, não se desfaz da sua unidade narrativa. Consegue comunicar-se com cada parte dos seus elementos porque tem como fio de união um génio criador natural.

“Ilusão à Primeira Vista” é o livro que devemos escolher para compreender a vida e as escolhas que o coração faz dela. É verdade que não é um romance que procura arquitectar passados como tantos outros. Mas é um romance que vende o passado pela senha do perdão. E estando no presente procura cheirar as pegadas dum futuro que ainda não passou: “diga apenas que me ama. Que vai sair da cadeia na próxima semana para recomeçarmos uma vida honesta” diz Inocência no fim. E mostra que ela não era uma ilusão.

 

Lília Momplé é um nome desconhecido para a maioria dos amantes de literatura. É, entretanto, uma das maiores referências da moderna literatura moçambicana. Contista e romancista nasceu em 1935 na Ilha de Moçambique. Depois  de ter vivido em Portugal,  na Inglaterra e  no Brasil, Regressou definitivamente a Moçambique em 1971. Foi Diretora de Relações Internacionais do Ministério moçambicano da Cultura e tem representado o seu país em vários eventos internacionais. Integrou o conselho executivo da UNESCO em París e, é membro de honra da Associação dos Escritores Moçambicanos onde já exerceu os cargos de Presidente e de Secretária Geral.

É esta atenta “mamana”   octogenária que aqui apresentamos aos nossos leitores transcrevendo esta, mais que condimentada, conversa mantida no Centro Cultural Brasil/Moçambique, em Maputo, num dia em que aconteceu mais uma das várias homenagens que lhe têm  prestado um pouco por toda a parte.  O seu passado. O presente e o futuro. Os livros, os escritores e as nossas literaturas são o mote do que se segue:    

L.F.-Como foi que tudo começou? O que é que a levou para a literatura?

L.M.-Vários motivos me levaram à literatura e um deles foi o facto de ter nascido na Ilha de Moçambique. Tive lá uma infância muito feliz na medida em que fui muito livre. A minha casa ficava a dez metros da praia. Era uma Ilha muito mítica e eu me lembro de olhar para aquela beleza toda e dizer  ou pensar em um dia escrever aquilo que via e isso  foi o que me levou a querer abraçar uma arte qualquer. Podia ser pintura ou escultura. Algo que me ajudasse a preservar e divulgar aquela beleza da Ilha. Mas o mais importante ainda foi o facto da minha avó macua  ter tido o hábito de me adormecer a contar estórias tradicionais dos macuas.  Ela contava com muita vida, com muita alma e eu adormecia ouvindo aqueles contos maravilhosos e fantásticos dos coelhos, dos leopardos, das princesas e etc. Tudo aquilo foi enchendo o meu imaginário de maneira que eu pensava sempre na possibilidade de poder escrever o que ela contava.  Escrever foi uma maneira de render uma homenagem a essa minha avó pelo facto de ela me ter aberto o imaginário para a vida.

Outra influência grande foi, sobretudo, de dois professores de português. Está a ver qual é a influência que um professor tem na vida futura dos alunos…. –um professor pode marcar um aluno para toda a vida. Eles elogiavam sempre as minhas redações nas outras turmas. Mas apesar de eu sempre ter sido muito pouco atenta às minhas qualidades, era tal o apreço que esses professores tinham por aquilo que eu escrevia, que eu me sentia muito bem quando o fazia.

Depois verifiquei que o que eu mais gostava de fazer era mesmo escrever. Escrever é como se fosse um parto. É um exercício penoso que depois nos dá uma certa alegria. É um exercício gratificante. Gosto de criar personagens com personalidade própria. Que não aceitam morrer ou que são mulheres que não aceitam ser parvas. A escrita é um jogo e eu sempre gostei de jogar.

L.F.- E quando é que começou a publicar as primeiras coisas?

L.M.-Quando comecei a publicar eu já tinha cinquenta e quatro anos. Eu tirei o curso de assistente social em Lisboa , no Instituto Superior do Serviço Social e a minha profissão requeria muito de mim. Ou eu era uma boa assistente social ou então não trabalhava nisso. Trabalhei no Brasil, em S. Paulo, e quando regressei a Moçambique -já casada- não haviam assistentes  sociais profissionais e como sabia inglês, pois estive também um tempo na Inglaterra, fui trabalhar como professora  para a única escola secundária da Ilha de Moçambique  e mais tarde quando se deu a independência nomearam-me diretora da escola. Eu era ainda miúda. Ainda tinha quase quarenta ou quarenta e poucos anos: Era Diretora, professora e trabalhava de manhã, de tarde e de noite para fazer um trabalho pelo menos razoável e, então escrevia muito mas nunca com a intenção de publicar… até quando vim para Maputo, já para o Ministério da Cultura.

L.F.-Agora gostaria que me fizesse uma pequena abordagem das suas relações com os escritores e com a literatura angolana.

L.M.-Infelizmente não são aquelas que eu gostaria que fossem porque eu admiro muito a vossa literatura.

Infelizmente os vossos livros não vêm cá e os poucos que vêm, as vezes, são muito caros e não há nenhum intercâmbio. Mas também eu tenho viajado muito e é possível que eu não tenha estado cá quando vêm os escritores angolanos porque eu viajo muito e a minha vida foi sempre uma vida de viagens e de bons hotéis

Eu fui amiga da Gabriela Antunes. Fomos colegas da universidade e encontramo-nos aqui várias vezes e até lembro-me que quando ela vinha cá ela dizia-me «ó Lília, leva-me ao cinema porque em Luanda não temos cinema!»

Conheci também numa dessas viagens que fiz a Angola pelo Ministério, a Ana Paula Tavares  que depois tornei a vê-la em Lisboa em várias ocasiões.

Os meus escritores de referencia, porque não me foram dados a conhecer outros, são aqueles… os normais, quero dizer, o Pepetela o Manuel Rui e poucos mais.

O relacionamento cultural e literário entre Moçambique e Angola tem muitas lacunas   que devem ser vistas por quem de direito para sabermos o que é que se está a passar porque realmente Moçambique e Angola são  tão próximos, têm raízes tão próximas que não se pode aceitar esse esfriamento.

Por exemplo os macuas e vocês têm tanto em comum. A mulher macua por exemplo é tão asseiadíssima tal como a mulher angolana daquela zona mais próxima. Os hábitos, os costumes,  a culinária … são  tão próximos que eu não entendo por que razão havemos de estar de costas viradas. Os nossos embaixadores são muito amorfos.  Vão para Angola e vêm para cá e tratam de ter a sua vidinha, os seus parques, as suas coisas e não querem nada saber. Então, há qualquer coisa que tem que ser vista porque só viria a  beneficiar os dois povos. Infelizmente isso não depende dos povos mas de outras estruturas que estão lá tão alto e não querem nada saber. Estão cada vez mais distantes dos povos mas isso não é característica, nem dos moçambicanos nem dos angolanos. 

L.F.-Quero que nos fale um pouco do actual panorama feminino da literatura moçambicana…

L.M.-Essa batalha não consegui ganhar. Acontece que a literatura moçambicana contava com Noêmia de Sousa, que era um ícone da nossa literatura, e agora temos a Paulina Chiziane mas  isso não chega  pois não é com essa quantidade que se vai descobrir qualidade.

Quando fui Secretária Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos uma das minhas grandes batalhas era pôr as mulheres a escrever. Uma das coisas que eu me lembro de ter feito foi um concurso literário aberto e nem uma mulher concorreu. Resolvi então fazer com o apoio da UNESCO um outro concurso  só para mulheres de norte a sul de Moçambique e concorreram doze. Então eu perguntei porquê que não haviam concorrido no concurso anterior ao que me responderam dizendo que os homens sempre ganham tudo, portanto, não valia a pena. Vejam lá as mentalidades…

Houve até alguns trabalhos muito interessantes. Eu até tenho estórias para contar sobre os trabalhos destas mulheres e penso que valia a pena apostar mas, foi uma batalha perdida porque depois houve umas que apareceram mas só com aquele espírito de aparecer, fazendo «show off». Isso nunca leva a nada porque não têm qualidade nenhuma.

Olha, eu com um conto chamado “Caniço” participei de um concurso alusivo as festas da comemoração dos cem anos  da cidade de Maputo e dentre sessenta concorrentes fui a única mulher e eu ganhei. Por isso eu digo-lhes sempre, experimentem!.. mas, provavelmente, por motivos ancestrais nada fazem pois na verdade aqui, se tu tens três filhos onde duas são raparigas e um é rapaz, aquele rapaz pode ser burríssimo mas é ele quem vai para a escola e não elas que são mais inteligentes. Isso acontece até mesmo agora. Até nos dias de hoje. Infelizmente. Estamos a perder grandes cabeças só por terem «a pouca sorte» de terem nascido mulheres.

L.F.-Tem ido a Angola?

L.M.-Já lá fui oito vezes, sobretudo em serviço, quando era Diretora do Departamento de Relações Internacionais do Ministério da Cultura.

De Angola só conheço Luanda, mas como já tinha tido muitas colegas angolanas, o contacto lá era muito fácil e sempre gostei muito do convívio com os angolanos. Um povo alegre e solidário.

L.F.-A Lília é uma escritora muito telúrica…

L.M.-Isso quer dizer que desde a minha infância que convivo com gente muito humilde, gente muito pobre. Gente da terra. O meu pai era operário. Era mecânico. A minha mãe era costureira e essa minha avó que teve uma influência «danada» em mim era macua de panos  com aquele veneno que encantou o meu avó  que era cônsul da França.

Estou a dizer que eu sempre convivi com gente dos mais diversos extratos sociais  e depois eu falava perfeitamente macua. Tinha um domínio total e até aos sete anos era a única língua que eu falava. Lembro-me de uma vez o meu lavadeiro perguntar-me em português o que estava eu fazendo, ao que lhe respondi em macua deixando toda admirada a minha mãe pois tinha eu apenas sete anitos. A língua macua é uma língua muito saborosa e aqueles contos que a minha avó contava se fossem em português não teriam metade da graça, da ironia e do impacto que tiveram em mim. Eu conheço muito bem a culinária, os ritos e todas as tradições que depois se acabaram transferindo para os meus textos literários.

L.F.- Quais são as mais visíveis características da mulher macua?

L.M.-A mulher macua sofreu influências e uma evolução profunda nos últimos tempos. Mas houve uma guerra e lá no norte havia uma tal base da RENAMO onde as pessoas eram sujeitas a várias sevícias e as mulheres dessa base, quando a guerra acabou,  fugiram todas para a Ilha de Moçambique. Portanto houve uma aculturação negativa. Elas trouxeram hábitos de desleixo, como exemplo: andarem despenteadas ou andarem a achinelar e então isso tudo hoje nota-se mas aquela que eu conheci antes da guerra era uma mulher que se distinguia pelo seu porte físico e pelo andar. A mulher macua anda parece que está a dançar, haviam aquelas correntes de prata que se punham nos tornozelos e elas andavam muito ao som das correntes. Era verdadeiramente uma dança. Vestiam-se muito bem sempre com panos e nunca punham vestidos. Punham as capulanas e tinham uma maneira muito própria de amarrar o lenço que era mesmo de admirar. Eram todas muito cultas. A minha avó era analfabeta mas era muito culta. Sabia muita coisa!

L.F.-Podemos falar agora da relação entre o livro e a leitura?

                                                         

L.M.-É claro que sim! Sobre os livros há muita coisa para dizer. Para um estudante o livro é a única coisa que dá ginástica mental. O livro e mesmo a literatura oral proporcionam ginástica mental.

Os livros , por exemplo, vacinaram-me contra a sedução do poder. Eu não sou nada apegada ao poder e uma das coisas que aprendi nas estórias que a minha avó contava era que os animais mais fracos sempre conseguiam vencer os animais mais fortes por causa da sua inteligência. É que naquela «fortaleza» dos fortes estava sempre mesclada um pouco de estupidez e isso sempre foi assim e continua sendo assim até hoje.

Veja que os nossos Ministros hoje são quase imortais ou pelo menos assim se sentem. E são as estórias e os livros que me fizeram estar sempre longe do poder, e sem apetência para a ostentação porque  os animais das estórias da minha avó eram sempre fracos mas acabavam por vencer os mais fortes pela sua inteligência.

A importância do livro é única. O livro é que nos dá a cultura geral que nos faz compreender seja lá o que for e, o nosso grande Ricardo Rangel dizia que «quem não lê não sabe o  que é a vida».

O livro é muito mais importante que a televisão. A televisão é uma torneira de qualquer coisa que a gente está ali a consumir assim passivamente ao contrário do livro. O livro não. Com o livro temos que ser ativos somos obrigados a ser ativos. O livro obriga-nos a ir mais além e conseguir compreender o mundo e por isso muitos cientistas são leitores compulsivos porque foram ajudados através da leitura a querer saber muita coisa.

L.F.-…E a internet?

L.M.-A internet é outra torneira que só despeja. Na verdade um aluno que não lê -livros!-, é um aluno medíocre. Em matemática um aluno tem de saber ler as equações. Pode até saber solucioná-las mas não o faz porque não entende o que se lhe pede e isto acaba por acontecer em todas as disciplinas.

Para aqueles jovens que querem escrever, a condição fundamental para escreverem é ler. A pessoa que não lê não pode escrever. Não pode. É impossível. É necessário que tenhamos diariamente contacto com os livros ou com algo que preenche o nosso imaginário como por exemplo a literatura oral.

Tenho imensa pena que este país dê pouca importância a literatura oral pois está a deixar fugir tesouros que quando der por isso… já eles não estão cá.

L.F.-Ganhou um “Grande Prêmio” e vai sendo homenageada aqui e ali  quase oito décadas depois de ter nascido. O que diz?

L.M.-É muito gratificante mas não sou escritora de «prêmios» apesar de já ter ganho muitos até mesmo no estrangeiro. O único prêmio que eu prezo  é o do 1º centenário da cidade de Maputo porque só daqui há cem anos é que outra pessoa vai ganhar. É preciso esclarecer que há muito escritor formidável que nunca ganhou prêmio nenhum e há muito escritor medíocre que já se fartou de ganhar prêmios. Por isso os prêmios não me impressionam mas ajudam sempre, sobretudo quando são monetários, porque os escritores nunca enriquecem com a literatura. Prefiro os prêmios que privilegiam a carreira pessoal dos escritores.

Tenho apenas três livros e com estes três livros já conheci mais de vinte países falando, fazendo palestras e participando em congressos ou conferências, portanto quando sou premiada ou homenageada julgo que acontece não tanto pelo aspecto literário mas mais pela minha carreira pessoal.

L.F.-Sente-se realizada e feliz?

L.M.-Em primeiro lugar não me sinto feliz num país onde o escritor não é respeitado, não é valorizado nem reconhecido. Infelizmente neste país o escritor vale menos que uma artista que mostra as pernas e só canta coisas idiotas. Infelizmente essa gente ganha muito mais e é mais valorizada do que uma pessoa que está ali dias e dias a escrever.

Não me posso sentir feliz por mim e pelos meus colegas. Tenho colegas que têm muito valor e uns até estão a enveredar por um caminho de desespero   porque não vêem a sua obra valorizada. As pessoas não compram os livros porque com esse dinheiro têm que comprar o pão para os filhos. Muita miséria e todos estes problemas. Eu não me sinto feliz vivendo num ambiente destes .

Outra coisa é esta “business society” que se está a gerar. Ela faz com que o associativismo se vai perdendo e, infelizmente é isso que está a acontecer. As pessoas querem é arranjar o seu dinheirinho e não querem saber dos outros.

Agora as pessoas querem é saber mais do “ter” e não do “ser”. Ninguém está preocupado com o SER. Ser Homem ou “ser” gente. Esta preocupação de “ser” hoje não existe. O Mais importante agora é “ter”… Ter cinco carros, ter quatro casas, ter seis mulheres e etc.

L.F.-Está a escrever?… Tem projetos para breve?

L.M.-Sim. Estou a escrever um livro que já está no meio, com mais de duzentas páginas, e que é justamente sobre esta sociedade que se está a gerar. Esta nossa “business society” em que nos vemos envolvidos .O titulo é «Os Fantoches de Aço». «Os Fantoches» porque são mesmo fantoches. Sem nada lá dentro e ao mesmo tempo «De Aço» porque quando se lhes toca ferem pior que o aço!   

 

Manuscrito encontrado nas margens do Rio Save depois das cheias. Despojos de um comerciante. O expediente é conhecido, desde o Dom Quixote ao Manuscrito Encontrado em Saragoça, de Jan Potocki e aos cadernos de que um certo degredado aproveita para nos falar das prisões siberianas no tempo do Czar, Dostoievski, de seu nome, O Quixote e o texto do sábio árabe que Cervantes lê é o monumento que sabemos e funda a narrativa moderna. Potocki escreve um romance picaresco de mistura com elementos do fantástico, embrenha-se pela novela erótica, gozosa sempre e, de mistura com altas fragas filosóficas e goyescas peripécias, oferece-nos um dos grandes livros da literatura em qualquer língua.

Com Recordações da Casa Amarela sofrem-se as solidões do desterro siberiano, uma angústia e um sofrimento aparentemente com causa, anterior à mordacidade judaica da culpa sem causa de o Processo, de Kafka.
Textos dentro de textos, inserts, como se diz para o cinema, impregnam as estratégias narrativas de inúmeros autores e tradições literárias. Mesmo as que não se socorrem do citado expediente.

Os Recados da Alma, romance de estreia de Bento Baloi, recorre aos manuscritos que se salvam de um desastre natural no rio Save, fronteira entre as províncias de Inhambane e Sofala, no sul a centro do país. A possibilidade e razão da sua descoberta definem, logo à partida, a condição do narrador, jornalista de profissão, a quem o desditoso comerciante confia as suas memórias. É como se lhe dissesse: ficam melhor guardadas contigo porque pressago é o tempo e cíclica a catástrofe. E de alguma transfiguração serás capaz.

Passe a propositada repetição, digamos que o manuscrito se autonomiza. E torrencial é o tempo e o enquadramento político- social, cultural, em que as estórias acontecem.

Não me compete substituir-me à estória aqui narrada, melhor, à multiplicidade de situações, remetendo para o convulsivo período da transição entre colonialismo e independência, que Recados da Alma aborda. Que de algum modo pretende transfigurar, descrevendo-os, uma vezes em jeito de quase crónica, outras em registo de reportagem jornalística, outras ainda socorrendo-se explicitamente de uma factualidade que o texto da História refere e confirma, entre as personagens do romance e os protagonistas político-militares ou simples cidadãos que a viveram.

Ao título, algo confessional, de estro lírico redundante, acresce uma espécie de contraponto que lhe anula aquilo que em português quase soa a vulgar. Refiro-me ao título comum a cada um dos seus capítulos, todos sob a referencialidade genérica de Xingombela, seguidos de diferentes sub-títulos consoante o desenvolvimento da narrativa. Como se a alusão à conhecida dança fosse um esforço de tradução para Xi-ronga e Xi-Shangana do nome em língua portuguesa. Escreve Bento Baloi, em nota de autor, onde apõe em epígrafe um provérbio popular tsonga, na língua original: “ Os provérbios não se traduzem. A sua profundidade extravasa os limites das línguas. Os provérbios fundam-se no âmago das culturas das quais emergem e recuam sempre ao infinito dos tempos”. E acrescenta: “Xingombela até pode parecer apenas mais uma dança popular moçambicana. Mas não é só. É muito mais. É uma maneira de ser e de estar das nossas gentes. Reveste-se da mística do amor, da concórdia e da cumplicidade com o próximo.” E conclui Bento Baloi: “ Proponho então que dancemos xingombela numa roda em torno das páginas que se seguem e que nos transmitamos um ao outro testemunhos da nossa essência interior como povo”.

Trata-se de uma proposta legítima. De um desafio também. Nos limites entre um ufanismo, que a narrativa em caleidoscópio se encarrega de complexificar a seu modo, outras vezes em fragmento que o ritmo de uma situação, o crescendo dos muitos conflitos e da dança de encontros e desencontros no palco da História impõe, esta espécie de andamentos em Xingombela acabam por ser, no plano textual, um desafio ao que pode restar de uma oralidade invocada, mudada para um género outro, com recursos diversos – os da língua portuguesa, da prosódia, das marcas de literariedade que o romance implica, como queriam os formalistas russos. Neste conflito e nesta grelha, se assim me posso exprimir, vem mergulhando, debatendo-se, emergindo, muita da novel narrativa moçambicana.

Do subúrbio local, como escreve o ensaísta e professor Francisco Noa, para um subúrbio, se não global, pelo menos ciente da diversidade de gentes, imaginações, referencialidades, esta prosa dança num a contrário da sensibilidade apocalíptica a que se refere Frank Kermode, porque intensa no mostrar, quase em gingação e canto de identidade, o que foi essa espécie de princípio que queria ser verbo e, ao sê-lo, nome, e nessa pulsão, utopia. Como se o narrador se tivesse deslocado à cratera de um começo percebendo, na matéria ígnea irrompendo, o que precisava de ser contado. Repartido como melhor percebeu o fogo e a cinza. Não que se trate aqui da pretensão de abarcar uma totalidade, embora se saiba que esse início é sempre um momento que se sucede a um outro início anterior, para nos enquadrar, propor, situações, plots narrativos, delineamentos de caminhos que tanto podem concorrer para a harmonia como para a disrupção. Embora a dimensão utópica se imponha, mais do que uma retórica onde o ngoma das identidade empeçonhasse o movimento livre da liberdade, essa redundância que funda, como disse Rimbaud, a poesia, ou melhor, uma poética do ente e do existente, plasma-se aqui numa produção plural de sentido. Contraditório, por vezes. Outras, resvalando para uma jubilação ao modo da quase loa e gesta, não obstante ciente da complexidade, pressentindo-a, da sombra, embora se não pressintam ainda os sinais da distopia a rondar.

Digo isto porque o autor não se exime nem ao Amor e à sua inevitabilidade conjuntiva ou disjuntiva, tantas vezes trágica. Bento Baloi socorre-se dos mais diversos recursos estilísticos para nos cronicar sobre a jubilação e a melancolia (esta ao de leve), ou escarificar a traços incisivos as máscaras ensanguentadas da morte e a violência.

Nesta coreografia da alma, de canto inventado e inaugural, porque eufórico, está paradoxalmente também o finco de uma certa finitude. Como primeiro livro de Bento Baloi, percebe-se esse compromisso e entusiasmo com aquilo que também vem sendo, quase obsessivamente para alguns, uma permanente viagem às raízes, nelas fazendo caber conjuntos mais alargados de linhagem, com suas regras e sistemas. Bento Baloi, suburbano na cidade grande, que a conquista, ensaia o seu génesis, sempre comunitário mas também cosmopolita, sempre clamando por todas as vozes, de Maputo a Lisboa, do bairro suburbano de Vieira para o mundo, às vezes convocando mitos urbanos – alguns de controverso, pasmo, veracidade transmutada -, outras arriscando uma osmose que talvez carecesse de maior distanciação.
Outras obras se seguirão, espero. Não peço, nem me cabe, que Bento Baloi tropece na distopia que nos assola, no país e no mundo. Nem que se especialize na arte do naufrágio que atormentou Melville. Esse, do Moby Dick, e que é a barca dos poetas, mas que, como Guimarães Rosa, pressinta a terceira margem, a do rio do tempo, do nosso des (sentido), do amor urgente, da mais lúcida crítica e exigente inquietação, da luta com o demónio, da invocação dos espíritos todos. Os que nos presidem e que somos com eles.
 

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