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Sob o Luar das Picoas

Viver é um verbo que reúne todas as palavras conhecidas e desconhecidas caracterizadoras da nossa existência. Envolto na beleza desta noite de Outubro, que se entrega voluptuosa ao Outono como uma virgem apaixonada, são muitas as palavras que me ocorrem. Contudo, neste momento, só uma me parece suficiente para dar vida aos viventes que habitam em mim: reconhecer.

Reconhecer o passado é vencer o futuro, assim reagiu um grande amigo à minha recente visita a Moçambique. Já passa mais de um mês que me enamorei vorazmente por essa frase simples e muito sábia. E como que me refugiando das indagações filosóficas que levantaria a sua interpretação, apenas olho para um passado muito recente e reconheço-o como pedaço da minha vida.

Há dois anos que chamo dez de Outubro dia de ano novo em referência ao início de um novo percurso que me obrigou a deixar familiares, amigos e minha terra e reinventar-me continuamente na esperança de construir um crescimento humano e académico sólido.

Há dois anos pisei pela primeira vez estas terras lusitanas que sonhei e vivi antes de ser real! Cheguei à Lisboa ao início de uma tarde em que o céu azul me parecia mais próximo da cabeça, o calor familiar e o ar picante. Era dez de Outubro de dois mil e dezasseis. No primeiro olhar, Lisboa cheirava-me a cigarro e café, mistura que criava um ar picante para os meus sentidos. Meus olhos torturados por essa mistura acérrima, escondidos debaixo de um par de lentes suspensas num aro de ferro, lacrimejavam continuamente. Por algum momento ainda me inclinei a associar aquelas lágrimas ao sentimento de mais um sonho realizado. Mentia-me descaradamente, aquilo era pura reacção à tortura que sem gritos sofriam. Disse Fernando Pessoa, primeiro estranha-se e depois entranha-se. E assim foi, passaram-se poucos dias e ganharam hábito.

Por razão das horas que cheguei e do cansaço causado por quase vinte e quatro horas de viagem, pouco fiz no primeiro dia para além de ir à sede do Instituto Camões, onde tinha uma reunião importante, e deitar-me na macia cama do Hotel VIP Executive Zurique que me tinha sido reservada. Era a primeira vez que passava a noite num hotel, em Lisboa, fora de Moçambique, e longe do que sou, contudo os sentimentos que caracterizariam o espírito de um rapaz de dezoito anos que se aventurava mundo fora pela primeira vez me passaram desapercebidos e foi tudo abafado por um cansaço que me consumia sem pena.

A estadia da primeira noite foi rápida. Com os pensamentos desorganizados acordei, na minha primeira manhã em Lisboa, num quarto que não era meu e cujas paredes brancas tinham velado sono de muitos viajantes e quiçá testemunhado acontecimentos frenéticos que afastam e chamam sonos.  Tudo me era estranho, desde as mordomias nas quais me via envolto até os meus pensamentos. E porque o tempo urgia e tinha muito por fazer naquele dia, guardei as reflexões e contemplações para outra altura e saí do hotel depois de um forte pequeno-almoço que levava croissant, café, salada de frutas e algumas iguarias da culinária portuguesa.

Com o estômago feliz saí para resolver burocracias de um recém-chegado a um país estrangeiro no qual faria a sua formação superior em Direito. Enquanto caminhava pelas ruas, sem não me deixar me apaixonar, ia conhecendo e reconhecendo a Lisboa que via pela televisão, uma cidade que nos seus edifícios e monumentos de betão, ferro, vidro e telha faz que vários estilos, épocas e gerações se cruzem e conversem em harmonia.

Ao fim da tarde, com uma parte das burocracias resolvidas, fui conhecer o lugar no qual moraria. Quando saí da estacão de metro, um bairro de luxo se deu a conhecer-me dentre prédios bonitos e de grande vulto. Chama-se Picoas. Logo naquele momento uma coisa pareceu-me clara, aquela zona era totalmente oposta ao bairro Ndlavela, de onde sou e cresci, que para além do parcelamento desordenado, alguns charcos de água e montanhas de lixo numa rua e noutra faltava-lhe também asfalto nas ruas. 

 

Suspenso num choro sem lágrimas, um turbilhão de pensamentos e sentimentos apossa-me o ser: êxtase, saudades, alegria, solidão, realização, sonhos. Esforço-me, mas sem sucesso não consigo mais narrar os acontecimentos daqueles primeiros dias, se adiam mais uma vez as reflexões e contemplações. E sob o luar deste bairro lisboeta que mutuamente, eu e ele, nos vivemos, reconheço silenciosamente um passado que sempre me será muito presente.   

 

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