Segunda-feira:
A lua, desenhada a compasso, era um ponto branco pingado na noite, entre respingos de astros. Calada, pequena, pequenina, contudo ocupava o céu todo e fazia esquecer a imensidão do escuro. Na falta de sol era um xiphefo para o universo. Entornava a luz prateada sobre a cobertura das casas, sobre o tejadilho dos carros, sobre a pele do chão, sobre a copa despenteada das árvores, sobre as cabeças das pessoas empilhadas na paragem dos chapas, sobre as mechas postiças da Hamina. João respirou fundo.
Terça-feira:
– Hamina, já viste a lua? – João tinha o luar todo no tom da voz, mas ela não parecia derreter-se com coisas lunares. Num olhar breve para o céu, a lua prateou-lhe o rosto, respondeu “sim”, mas voltou rapidamente para o chão, para a realidade, e olhou para a estrada: não era a luz da lua que a preocupava, eram as luzes dos carros, ansiosa pela demora do chapa.
– Hiii! – Suspirou.
– É o quê? – Perguntou o homem, ainda com o luar no tom de voz.
– Não deviam ter adiado as eleições – desabafou, sem olhar para ele.
– Por quê? Gostas de votar?
– Não é isso. Para votarmos em alguém que nos dê transporte – fez um gesto largo apontando para a enchente na paragem.
Quarta-feira:
A lua continuava a entornar o brilho prateado sobre as coisas, sobre os lugares, sobre a multidão, sobre a noite. Parecia incidir mais sobre Hamina. Prateava-lhe os diâmetros, de um lado, e a luz amarela do candeeiro de rua, o outro. Ela esperava, especada no lancil do passeio, pelo transporte possível. A multidão à volta corria, como insectos atabalhoados, por um lugar nos chapas lotados. João achegou-se:
– Olá, Hamina.
Hamina não olhou para ele. Tinha os olhos na estrada, nos carros, a procura de um brilho mais intenso do que a lua: os faróis dos chapas. João inspirou toda a coragem do mundo e balbuciou:
– Hamina, eu…
Um chapa miraculosamente vazio surgiu. A multidão movia-se como o mar em dia de correntes descontroladas. Hamina deixou-se arrastar por essa corrente:
– Tenho de ir, O meu chapa…
João sentiu o coração a desacelerar, como se a cada pulsar um interruptor desligasse o luar.
Quinta-feira:
Na paragem não se via Hamina. A lua continuava a entornar-se sobre tudo mas parecia não ter brilho nenhum. João suspirou. Parecia que a lua o tinha abandonado. Sentiu o peso duma capa escura e fria quando a noite o abraçou. Sentou-se no lancil e ficou a ver as canelas das pessoas a entrecortar as luzes dos carros. Nenhuma parecia Hamina.
– Hamina! – Suspirou.
Sexta-feira:
João, com a coragem aflita de um apaixonado, segurou a mão da Hamina. Ela, meio rosto prateado pelo luar, meio rosto amarelado pelo candeeiro de rua, olhou para o homem e falaram com o hálito muito próximo da respiração um do outro:
– Queria ser a lua, acender-me para ti – confessou o João.
– Não – Hamina lampejou, com pena, um riso sem brilho –, não serias capaz de me iluminar. A lua não tem luz própria, o luar é só um reflexo do sol.
– Mas posso ser o teu sol. Eu amo-te.
Com a seriedade do “eu amo-te” Hamina recompôs-se. Moveu a cabeça inclinada até ao ombro e inclinou-a para o ombro contrário. Mudou a perna de apoio e o tronco dobrou-se para o lado contrário. Perfurou o homem com o olhar mas os olhos, tal como o sorriso de há pouco, não brilharam.
– João, não se ama alguém que não sobe o mesmo chapa, que não desce na mesma paragem.
– Já viste a lua, Hamina? – João segurava agora a mão dela com as duas suas – Hoje vai haver eclipse. Podíamos ver juntos.
A multidão passava por eles, atabalhoada. Hamina afinou as pálpebras encandeada pelas luzes de um carro que se aproximava. Ela olhou para o veículo:
– Tenho de ir. A minha boleia chegou.
João esforçou-se para não deixar a mão da Hamina escorregar entre as suas. O rosto iluminado dela moveu-se. Passou pela sombra do João como um eclipse apressado. A boleia desapareceu, com Hamina, entre o tráfego noturno. João sentiu a lua a perder sentido. A apagar-se.
– Hamina!
Se houvesse transporte Hamina não teria ido, pensou, enquanto lhe ocorriam as palavras dela: "Por quê que adiaram as eleições? "