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O que importa na escrita de Lúcia Baptista

Prefiro enfrentar a realidade mais dura a viver na ilusão enganadora

José Rodrigues dos Santos

Serpentear nas esteiras do tempo é um romance cheio de várias histórias, as quais, em geral, desenrolam-se em Gaza. Embora a diegese projecte um contexto colonial, os principais momentos do livro não se concentram nas injustiças sofridas pelos pretos – ainda que tal aconteça – e nem avança pela temática nacionalista típica dos anos 40 do século XIX. Nada disso. Aqui, Lúcia Baptista regressa ao passado para mostrar que até em circunstâncias conturbadas há narrativas boas a serem construídas. Assim, ao invés de balas, tiros e sangue esta autora percorre os labirintos do amor, escolhendo unir em detrimento de separar. São exemplos dessa união o casal Jonas e Joana, que se ama sem receio, nas adversidades, vencendo querelas familiares e toda tradição opressora. Estas duas personagens aparecem como representações contra preconceitos, desses que privam e impedem as pessoas de darem os seus próprios passos, livres dos antepassados e do que se julgam ser seus desejos.

Simultaneamente, este Serpentear nas esteiras do tempo é uma história de três gerações. Aliás, quando a narração começa, pode-se ficar com sensação de que o protagonista é Samuel, pai de Joana, pois, no primeiro capítulo, todas as focalizações incidem nele. Esta é uma maneira de Lúcia Baptista contar as suas narrativas a partir de um princípio, no qual não falta tensão. Dando a imagem de quem é Samuel, um sipaio com ideias próprias, mas que se entrega às mordomias coloniais oferecidas pela administração, o narrador faculta informação relevante para a percepção da sua personalidade e, mais tarde, da filha. Desta maneira, ficam evidentes a existência de pelo menos três classes no romance: dos brancos, dos pretos alienados e dos pretos firmes à ideia de pertença a uma matriz africana.

O livro de Lúcia Baptista consegue juntar cenários moçambicanos de um período nebuloso sem repetir muito do que já se sabe. Na verdade, neste exercício, a preocupação parece ser a de colocar as personagens principais entre a ordem e o desejo. Por isso, constantemente, emana um confronto a envolver os sujeitos em momentos particulares. Por exemplo, entre a espada e a parede, Samuel trai um propósito nacionalista quando se deixa corromper pela administração colonial; Joana torna-se uma personagem além do que deveria ser, demasiado independente para uma mulher do seu contexto; e André – único filho de Jonas e Joana – é a personificação de uma juventude que já não acredita que os pais é que sabem o que é melhor para os filhos.      

Ao nível do projecto, este é um romance com tudo para dar certo. Afinal, nota-se que a autora tem capacidade de contar, descrever, alongar a trama com pormenores necessários, preservando uma atmosfera específica, bem oportuna. Entretanto, o livro peca e muito por apresentar graves problemas em termos de correcção. A pontuação é uma desgraça. À partida, fica-se com a impressão que faltou um revisor e um editor digno da função. Paralelamente a isso, a história pouco surpreende, sendo, a partir de certa altura, muito previsível.

Se, por um lado, Lúcia Baptista consegue recorrer a boas anacronias e a uma descrição bem apropriada, como no capítulo 12, quando Jonas procura pelo filho na cidade, que desaparecera da Missão por recusar ser padre, por outro vê-se nela uma urgência em querer chegar ao fim. Logo, o que deveria ser contado em duas páginas é resumido em períodos.

Este não é um livro para leitores exigentes. Definitivamente não é. Ainda assim, quem for a ler perceberá que as personagens, se calhar com a excepção de Samuel, geram incentivo para o leitor aprender a enfrentar a realidade mais dura ao invés de viver na ilusão enganadora.

 

Título: Serpentear nas esteiras do tempo

Autor: Lúcia Baptista

Editora: Texto Editores

Classificação: 10,5

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