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Pedro Langa, Zeca Alage e Roberto Chitsonzo

Pedro Langa, oriundo de uma família de músicos, onde avultavam os nomes dos seus irmãos Hortêncio e Milagre, ambos mais velhos, apresentou-se, aos 20 anos, em 1979, no Cinema Scala, em Maputo, com duas canções originais, perante um público que queria ouvir versões de músicas estrangeiras, como era o apanágio do Hokolókwe, conjunto que então o acompanhava. O público não entendeu a originalidade do jovem músico e exigiu impetuosamente que ele abandonasse o palco. Mesmo perante a vaia monumental que recebeu, o obstinado Pedro Langa cantou até ao fim as suas duas composições. Não seria a primeira nem a última vez que ele seguiria o seu instinto e o seu génio a despeito da adversidade. Os verdadeiros criadores, muitas vezes, não são entendidos pelos seus contemporâneos. Estão à frente do seu tempo.

Entre este episódio e a fundação do grupo Ghorwane, quatro anos depois, registam-se outras contrariedades na vida de Pedro Langa. Colocado, desde 1978, na EFEP, Escola de Formação de Professores, é expulso da mesma, o que está na origem da sua ida compulsiva para a tropa. Cumprido o serviço militar obrigatório, torna-se assíduo do Chai, o Clube da Juventude, onde se apresenta com o conjunto Mbila. É uma espécie de tempo de espera e de amadurecimento.

O ano de 1983 será, no entanto, um ano de prodigiosos acontecimentos: funda o grupo Ndzuti (significa sombra) para se apresentar a um concurso promovido pela EME, produtora dirigida por Eddy Mondlane, influente na área, na década de 80. Pedro Langa alia-se, para este propósito, a Simão Mazuze e ambos formam o Xigutsa Vuma, que teve fulgurante e efémera existência, mas que deixou marcas indeléveis. Os dois são rebeldes e cantam sem ocultar o desacordo, a crítica e a contestação. Mazuze, aliás, terá uma dura experiência que constitui uma das suas mais inspiradas músicas: “Bilibiza.”

A Operação Produção foi algo sinistro e recordo-me de vivermos em pânico: nunca sabíamos se, à saída de um cinema, pelo facto de não estarmos na posse de documentos, não poderíamos ser presos e levados para o Niassa. Mas, para além disso, alimentou perversões e enormidades. Está por estudar e esclarecer essa política e essa fase da nossa história. Está por esclarecer esse período da nossa história. Eu vi empolgado o Simeão Mazuze a cantar sobre Bilibiza, um campo de reeducação. Mas isso é matéria para outra conversa. O facto é que Pedro Langa e Simeão Mazuze conquistam o prémio de melhor composição naquela competição. Não obstante, a aventura comum terminou ali. Nesse mesmo ano, Pedro Langa funda o Ghorwane.

Os músicos fundadores: o baterista Hilário, o guitarrista Tchika, o trompetista Júlio Baza, o saxofonista e vocalista Zeca Alage, o percussionista Dingo e o baixista Lot. Em Novembro desse ano começam a ensaiar. O mito regista que o fazem nos bancos do jardim Tunduru e com uma viola emprestada de David Macuácua, que cumpria o serviço militar no Norte e para onde não regressou, ao que parece de uma licença, quando se encontra com estes companheiros de aventura. Submetem músicas para gravação à Rádio Moçambique, mas estas são rejeitadas. Embora não houvesse uma censura institucionalizada, o critério do que era adequado, do que era permitido, do que se podia dizer ou cantar era difuso e poderia ser o critério obtuso e ilegítimo de quem nem sequer perceberia o que é a arte. Ouvidas a esta distância, as músicas do Pedro Langa ou mesmo do Zeca Alage não deixam de ser assombrosas e percebem-se os pruridos que provocavam a espíritos incautos. A sua crítica é de uma grande virulência. Mas eles cantavam a realidade, não a inventavam. Interpretavam o quotidiano daqueles que estavam cobertos pelo anátema da desgraça: a fome, a seca, a miséria, a guerra, as vidas perdidas.

No início de 1984, Roberto Chitsonzo procura uma banda para gravar as suas músicas. Ele vivia em Inhambane onde era professor de Educação Física. A doença da filha obriga-o a pedir transferência para Maputo. Eu ouvia o seu nome e a sua voz sobretudo num mítico programa da Rádio, “No coração da noite”, da Luísa Menezes e do Izidine Faquirá. Pessoalmente, sou grato a esse programa. Não só pela sua extraordinária qualidade, mas porque permitiu a revelação de muitos talentos. Antes de fazer 20 anos ganhei um concurso de poesia no programa e isso foi muito importante para mim. O poema não devia ser grande coisa. Recordo-me apenas do título – “Tiko”, que significava terra – e lembro-me de que era longo. Ouvi-lo na rádio e naquelas circunstâncias deu-me a ilusão de que, provavelmente, teria futuro na literatura. Estou grato a ambos: à Luísa e ao Izidine, meus amigos.

Uma das músicas que eu ouvia na época era “Xizambiza”, do Roberto Chitsonzo. Essa música é o prólogo de uma brilhante carreira. Nela se inscreve o sonho do tocador. Ele tem uma belíssima voz e canta sem a mesma exuberância dos seus futuros companheiros. Mas é absolutamente corrosivo e, provavelmente, o mais corrosivo e violento de todos. A grande crítica social do Ghorwane deve-se, em muito, à sua verve, à sua inventiva, ao seu génio criativo. O Roberto é um extraordinário compositor e um cantor inimitável. Um tocador.

Roberto Chitsonzo faz um acordo inédito com Pedro Langa. O Ghorwane acompanha-os e este permite, nessa permuta, a gravação dos temas rejeitados de Pedro Langa. Assim haveriam de ludibriar a Rádio. A gravação ocorre em Fevereiro. Entretanto, Lot abandona o grupo e entra para o seu lugar o baixista Carlos Gove. A verdade é que Roberto Chitsonzo entraria, deste modo, para o grupo. No dia 23 de Junho de 1984, Pedro Langa, Zeca Alage, Roberto Chitsonzo e os seus companheiros fazem o primeiro espectáculo no Cine África. Roberto tem 22 anos, está à beira de fazer 23 em Agosto; Pedro tem 24 anos; Zeca Alage a mesma idade. A partir daí começa a saga dos Ghorwane, o mais emblemático dos grupos moçambicanos.

A guerra, a miséria, a fome, a pobreza são os temas que estão na origem do seu sucesso. Transformam o sofrimento e a dor em alegria. Não lamentam apenas, como se ouve em muito do cancioneiro moçambicano. Interpelam a realidade, mas fazem uma profissão de fé. Uma das músicas de Pedro Langa (“Vhôry”) sobre a chuva comove-me por essa obstinada esperança que evoca, convoca e interpõe. A seca foi um drama terrível para nós. Essa saudação da chuva de Langa, nesta música e tudo o que a ela associa, constitui um momento emocionante. Comove-me a esperança nela contida. A guerra é tema incontornável. Eles cantam-na, mas querem a paz. É de paz que falam. Eles fazem crítica dos desvios sociais.

Na época, os prosélitos do regime ficam assustados. As suas apresentações contam com agentes de informação, disfarçados entre o público, para captar as mensagens desses jovens insurrectos e reportar. Pobre o país que se assusta com a música de uns miúdos de vinte e poucos anos. Samora Machel sentirá uma empatia por eles e lança-lhes o epíteto: “Bons rapazes.” A lenda, pelo menos, assim reza. Mas quem conhece os factos regista que antes o jornalista Augusto de Jesus foi quem se lhes referiu naqueles termos no jornal “Domingo.” Mas nada como a força que tal epíteto irá adquirir depois de pronunciado por Samora. Foi o bastante para se livrarem da perseguição velada que sofriam. Pedro Langa, entretanto, abandona o grupo. Prossegue uma carreira a solo. O Ghorwane faz o seu caminho.

Zeca Alage e Roberto Chitsonzo afirmam-se como os grandes compositores do grupo. Cantam o desencanto daqueles anos. Interpretam a dor dos moçambicanos. Vivem-se anos duríssimos: a extrema pobreza, o tempo das calamidades, a seca, a fome, a guerra. A guerra inexplicável e impenitente. Uma das músicas – “Massotcha”, de Zeca Alage –  é o retrato cabal da época. A esta distância, ter-se-ia sempre uma perspectiva enviesada do seu impacto. Esta crítica acerba e acutilante.

“Armas caras, mais caras que sacos de arroz”, canta Alage. Esta denúncia não poupava nenhum dos lados do conflito. A sordidez da guerra, o absurdo da guerra.
Este é um dos esteios do Ghorwane: Zeca Alage. Uma grande voz e um grande saxofonista. Um compositor genial. Oiçam-no em “Majurugenta” e depois falamos. É um dos mais belos temas da história da música moçambicana. O longo solo de saxofone de Zeca Alage, nesta música, é dolorosamente belo, impressivamente pungente, para não falar no balanço da música e na letra ou na interpretação. Quando este morre, brutalmente assassinado, em 1993, sem viver a paz que tanto ansiara, David Macuácua canta soberbamente em seu lugar. A revelação de Macuácua é um dos grandes momentos do grupo. Para além do seu papel esquivo de grande conciliador e pacificador do grupo, que tinha alguns espíritos assombrados. Os génios são assim: podem ser difíceis de conciliar. Ghorwane tinha na sua fundação três músicos geniais.

Majurugenta é o disco de estreia dos Ghorwane.  Zeca Alage assina: “Muthimba”  (dança do sul de Moçambique), “Majurugenta” (que dá o título ao álbum), “Xai-Xai” e “Mavabwyi”. Roberto Chitsonzo: “Matarlatanta”, “Buluku”, “Terehumba” e “Akuhanha”. O disco é de uma rara e intraduzível beleza. Gravam-no para a Real World, de Peter Gabriel, em Agosto de 1991. Iriam, assim, participar da explosão da World Music. Antes deles, os Eyuphuro tinham sido pioneiros nos palcos do mundo. O disco só seria lançado dois anos depois. Alage não participa desse momento. “Massotcha”, a música que o tornara incontornável, não está no alinhamento. Será cantada, ulteriormente, por Pedro Langa, no disco Kudumba, lançado pela Piranha em 1997.

Ironicamente, Pedro Langa, que fundou o grupo, não tem o seu nome no primeiro disco e, tragicamente, Zeca Alage, que divide, quase a meias, as composições deste disco de estreia, com Roberto Chitsonzo, não participa do seu lançamento, em 1993. Este disco traz, emblematicamente, como última faixa, a música “Akuhanha”, que é o paradigma daquilo que o Ghorwane haveria de ser e de fazer ao longo destes trinta e cinco anos: cantar a nossa forma de viver dos moçambicanos. Esta música acompanha-me há três décadas. O desencanto sem resignação, a crítica assertiva e obstinada, o pleno exercício de cidadania. Aquilo para o qual as condições de possibilidade hoje não só se tornaram precárias. É espantoso ver como foi possível fazer crítica social e política naquela época. A Pátria sempre divergiu dos críticos e lançou sobre eles diatribes e intolerância. Durante uma década, um título meu serviu, perante a minha estupefacção, para combater aqueles que tinham opinião diversa: os apóstolos da desgraça. Num país onde a autoria tem cidadania teria como reclamar direitos.  

O nome de um lago de Chibuto que nunca seca – Ghorwane – é uma boa metáfora para o sonho que estes músicos prosseguem. Um sonho de esperança, por conseguinte. Trinta e cinco anos depois, a despeito de todas as vicissitudes, parece que eles acertam: não secam. Conseguem reinventar-se. Foi assim quando foi brutalmente assassinado Zeca Alage aos 34 anos. Seria assim quando o mesmo infausto destino acompanhou Pedro Langa, aos 42 anos, em 2001. Ou quando, em 1999, mergulharam numa aguda crise que está na origem do afastamento de Carlitos Gove, do baterista Paíto, do teclista Jojó Moisés, e do percussionista, compositor e vocalista Jorge César. Saem depois Riquito Mafambane e Tchika Fernando. A despeito, o Ghorwane reinventa-se. Alguns deles, no entanto, retornam.

Pedro Langa regressara e participara no belíssimo álbum Kudumba: “U Yo Mussiya Kwini”, “Vhôry”, “Mamba Ya Malepfu”. Este soberbo ritmo do fundador do Ghorwane. A força portentosa desta personagem. Ele canta, no disco, “Massotcha”, de Zeca Alage. Este disco, aliás, tem a força dos fundadores: Pedro Langa, Zeca Alage, do Roberto Chtsondzo e do Jorge César. Ainda hoje oiço, com o mesmo espanto, “Salabudê”, “Pim-pam-pum” e “Progresso”, três músicas assinadas por Jorge César (assina a terceira com Carlos Gove), que era oriundo da Companhia Nacional de Canto e Dança, cuja entrada no Ghorwane é distintiva e inovadora. Pessoalmente, gosto muito do Jorge César, da sua voz, do seu canto, da sua criatividade, da sua percussão, do seu estilo no palco.  Chitsonzo assina “Txongola”, recupera “Xizambiza” e tem uma espécie de epifania com “Sathani”, uma das suas mais violentas criações. “Massotcha”, de Zeca Alage perfaz as 10 músicas deste notável álbum. Não me esqueço quando eles actuavam no Centro Social do Desportivo e cantavam estas músicas.

Vana Va Ndota (2005) é também um belíssimo álbum e traz 11 composições: nove das quais são do Roberto Chitzondzo, uma do Pedro Langa (“Ndzava”) e outra de Zeca Alage (“Livengo”). O disco é dedicado aos seus mitos fundadores – Langa e Alage – e inscreve-se no DNA do grupo: parodiam o quotidiano, não se furtam à crítica e professam a imperecível esperança. Este talvez seja o mais robertiano dos discos do Ghorwane. Tenho ouvido com regularidade estes três discos, pese embora gostar muito da música que dá o título ao último álbum – “Mussakaze”, com participação do DJ Ardiles. Mas, confesso, ainda não cheguei a um nível de empatia que tenho com Majurugenta, Kudumba ou Vana Va Ndota. Furto-me de referir aquele disco que fizeram para as eleições de 1994.

Creio não estar longe da verdade se eu aqui e agora asseverar que os três álbuns (Majurugenta, Kudumba ou Vana Va Ndota ) são uma impressiva e notável imagem do nosso tempo – aqui estão decantados o nosso quotidiano, as suas misérias, as suas desgraças, pessoais e colectivas, mas também aqui se encontra o apelo inequívoco aos valores, à dignidade, à honradez, à probidade. Eles atravessam estas nossas décadas – desde os anos 80 -, eles falam do quotidiano, das assintonias sociais, das contradições do quotidiano, eles são os intérpretes da sociedade, eles escalpelizam a sociedade, eles são críticos. De Vana-Va-Ndota gosto sobretudo de “Ubiwitolo”, “Tlhanga”, “Ndzava”, “Nudez”, de Roberto Chitsonzo. Sempre fiel à sua matriz. A poesia, o ritmo, o balanço. A crítica. Outro belíssimo disco.

Creio, finalmente, que o que faz este percurso notável de 35 anos, para além da extraordinária inventiva, que se vê nos sucessivos temas e sucessos que criam, tem muito a ver com o facto de estes extraordinários artistas, que têm uma lucidez implacável, em relação ao devir moçambicano, cantando-lhe as suas mais profundas contradições, nunca terem desistido de ter esperança – nem quando cantaram a guerra inexplicável, a fome e a miséria, a desgraça social, nunca cederam ao desespero. Eles são o testemunho e o testamento de um tempo indeclinável da nossa história. Mas também percutiram nas suas notáveis músicas o amor por este país. O maior acervo do Ghorwane é essa declaração de amor reiterada a Moçambique. Quando estou deprimido e procuro reconciliar-me com a Pátria, recorro a estes ritmos – inventados a partir de muthimba ou xitchukete ou outros. Oiço um destes três discos, canto estas músicas, danço estes temas, não importa se falam da guerra, do desvio social ou se são apenas uma declaração de amor, como “Beijinhos”, ou a evocação  recorrente da figura central da mamana.

Empolgo-me sempre com a música do Ghorwane. Espanto-me com o génio criativo de Pedro Langa, Zeca Alage, Roberto Chitsonzo ou mesmo Jorge César. Exulto ouvindo a voz de David Macuácua. Eles fazem uma surpreendente alquimia entre a corajosa crítica social e um som espantosamente belo e luminoso. Têm uma gramática, uma sintaxe e uma dicção únicas. Há quase 40 anos, quando Pedro Langa subiu ao palco para dar notícia do seu génio, foi incompreendido e vaiado. Mas ele, sempre obstinado, não resignou. Ainda bem que perseverou. Dessa profissão de fé na sua criatividade, e no futuro, nasceu, em Moçambique, este grupo que integrou e integra um movimento inovador das músicas do mundo.

 

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