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ARTIGOS DE OPINIÃO

Há DOIS (pasme-se!)
Moçambolas femininos!

Um manto de nebulosidade cobre o futebol feminino no país. A Federação, entidade que deveria reger toda a modalidade, pois até recebe uma verba da FIFA, realiza um nacional, enquanto uma Comissão, auto-enquadrada, busca patrocínios para corporizar a outra. Nesta, a maioria dos clubes de referência no país, não adere.

Resultado: no final de cada ano, entre viagens pelas vias esburacadas do país e no meio de dias sem refeições, vai-se cumprindo o improvisado calendário.

Mas, verdade seja dita: sem dinheiro nem organização, numa coisa os femininos levam vantagem: enquanto os masculinos debatem o modela para o figurino de UM Moçambola, os femininos realizam DOIS Moçambolas!

NÃO PRECISA SER
BASTA PARECER!

De mão estendida, usando “slogans” do empoderamento da mulher, a LDF dá corpo a uma prova para rivalizar com a da FMF. Clube de referência, só o Costa do Sol. Os outros, entre castigos por falta de comparência e improvisos, anualmente tirando da cartola designações várias, algumas das quais bizarras: Cocoricó(s) de Wampula e da Beira, Cosmos de Maputo, Nhunguè de Tete, Viveiros de Nampula, Cachela de Morrumbene, Muélè de Inhambane ou Fanta da Beira.

Por detrás da Cocoricó da Beira – garantem-nos – está o partido que tem o símbolo do galo, o MDM. Para rivalizar, a Frelimo criou o Fanta.
O calendário ajusta-se às circunstâncias, pois as verbas prometidas nem sempre são desembolsadas, até mesmo o apoio estatal. Campos, árbitros e outras condições, vão aparecendo graças à militância e à vontade de demonstrar que a mulher não é inferior ao homem!

Do outro lado, a prova federativa é realizada num piscar de olhos, sem brilho, misturada com os juniores masculinos, passando despercebida do grande público. Pouco se conhece quanto a estrelas e técnicos. Joga-se para cumprir calendário e um desiderato da FIFA. De provinciais e camadas de formação, quase não reza a história. Todos querem jogar “ao mais alto nível”, passear e pontapear. Participação em provas oficiais internacionais, ao que tudo indica, para as vermos teremos que aguardar… sentados!

PONTAPÉS-PARA-O-CHARUTO

E dentro do campo? Qualquer relação ou parecença entre aquele espectáculo e um jogo de futebol, é pura coincidência. Numa actividade em que ao longo do ano não há tempo nem espaço para treinos específicos, em que as bolas – que rareiam – não são a companheira de todos os dias, tentar praticar um desporto cada vez mais tecnicista, como o futebol a um nível alto, não passa de pura ilusão. Os desequilíbrios são gritantes.

Aos treinadores – vimos isso – pouco mais resta senão gritar, a plenos pulmões durante o jogo: “chuta essa mer…”. Impôr sistemas tácticos, a quem não consegue dar três toques seguidos numa bola, é pedir o impossível.

O espectáculo é pontapé para a frente, com choques a despropósito, sem nenhuma noção dos fundamentos que fazem do futebol o desporto-rei.

Esta análise poderá ser vista como derrotista ou escrita por um… ultrapassado.

Em consciência, acho que o que está na base desta anómala situação é algum oportunismo político. Pretende-se que em nome da igualdade do género, as mulheres façam “corta-matos”. Que de repente tenham DOIS campeonatos nacionais, quando a movimentação regular ao longo do ano é quase inexistente. Para lá da falta de tradição, que faz com que na mentalidade de grande parte dos pais e mães, tudo não passe de uma aberração.

O futebol feminino, não tem a tradição do basquetebol, que subiu a “escadaria do sucesso” ao longo de décadas, compreendido e aceite com naturalidade e sem oportunismos. Hoje, dá cartas no Continente e obtém resultados mensuráveis, porque produz um espectáculo continuado e que até faz inveja aos masculinos.

Se há vontade real de obter resultados numa modalidade que tem expressão noutras latitudes, importa dar uns passinhos atrás, para depois caminhar com segurança. Preterindo viagens e parangonas, em benefício da criação de um “edifício” com bases e em que a sua “alma-gémea” – a bola-ao-cesto – é um bom exemplo.

As palavras só nos podem ser úteis quando o diálogo é inteligível

Ascêncio de Freitas

 

No princípio de cada ano, é anunciado o vencedor do Prémio BCI de Literatura, o qual distingue com 200 mil meticais o melhor livro publicado em Moçambique. Na última cerimónia, o autor laureado foi João Paulo Borges Coelho, com a obra Ponta Gea, atribuição que valeu acesos debates no Facebook, pois muitos leitores discordaram da opinião do júri. Seja como for, a obra de Borges Coelho, um dos melhores escritores moçambicanos da actualidade, dos nossos favoritos, foi premiada, o que até surpreende-nos muito.

Lembramo-nos do Prémio BCI de Literatura há 10 dias porque recebemos o e-mail de um membro do júri a solicitar-nos a submissão de quatro exemplares de cada título ao concurso cujo vencedor será anunciado em breve. Aí perguntamo-nos quem seria o bem-aventurado para edição deste ano, que, na verdade, propõe-se a premiar o melhor livro publicado em 2018. Fizemos um exame de memória e surgiu-nos o título Matéria para um grito, da autoria de Álvaro Taruma, poeta muito amadurecido, que o publicou bem recentemente, a 12 de Dezembro de 2018, como se, confiante, caçasse a mola do BCI.

O título de Taruma não nos veio à cabeça por acaso. A enorme qualidade poética que o livro apresenta impôs-se num ápice. Por isso, a existir imparcialidade nesta corrida aos 200 paus, ah, sem dúvida, aquela obra há-de estar, no mínimo, como uma das favoritas ao grande prémio. Na nossa percepção, concorre para o efeito o facto de as palavras usadas na concepção de Matéria para um grito conseguirem manter um equilíbrio entre o estético e o inteligível, daí as inquietudes dos sujeitos de enunciação convocar-nos a um diálogo com períodos e versos, por ali existir, quiçá, requisitos que se adivinham essenciais para a libertação da imaginação.

Nesta proposta literária, na qual, como acontece pouco em Moçambique, Álvaro Taruma vai até ao limite das suas capacidades, esgotando-se porque se entrega por inteiro à poesia, o nosso autor poetiza a tristeza, a amizade e o amor, do tipo que vem e vai: “Eu perdi my love na paragem/ Perdi-a entre vozes e visões desconcertadas”. E mais adiante: “E eu perdi my love como quem não lhe sobra argumento/ Nesse jardim humano de ilusões e arrependimento.” (p. 37).

À primeira leitura, até pode parecer que é do nosso my love que se trata, o de quatro rodas. Mas não. O poema “Cordas para um suicídio e violinos”, dos mais bem conseguidos do livro, retrata com mestria a perda de um amor humano, mas sem as lamúrias ordinárias muitas vezes a sugerirem repetições cansativas. Taruma recria as trajectórias passionais a fim de revelar as circunstâncias em que as partidas amorosas acontecem. E não se fica por aí, obviamente, que este livro também é a síntese de uma versificação alicerçada às derrotas que conduzem os sujeitos textuais a um nível altíssimo de depressão/ frustração – Quando isso acontece, logo se vê, sublinha-se o melhor de um autor que, aos 31 anos de idade, parece ter bebido da fonte cinquentenária –: “Dizem que a depressão é uma coisa patológica/ considere-se Hipócrates (460 – 379 a. C.) ou Thimoty Bright no seu Treatise of Melancholy// um cão que se aloja por dentro da cabeça” (p. 86).

Ao incorporar no livro todo um quadro preenchido por perdas, estados de alma angustiantes, na verdade, Taruma atribui à sua escrita a energia que os seus sujeitos usam para vencer a morte, para qual apenas adiciona a desilusão.

Sem dúvidas, Matéria para um grito é um livro carregado de muita humanidade, daí tocar em questões universais. É um livro que celebra a vida, transformando emoções deprimentes em vitórias poéticas contagiantes. Mesmo assim, há quem jurou que o prémio, nesta edição, seria para A reinvenção do ser e a dor da pedra, de Armando Artur. É um bom livro, é verdade, mas não a altura destas 109 páginas de Álvaro Taruma, nas quais o poeta escreve sobre a condição humana, sobre os estados da alma, de um indivíduo e mesmo de uma colectividade, com leveza e originalidade. Por isso, esta é uma boa matéria para um BCI.

 

Título: Matéria para um grito

Autor: Álvaro Taruma

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 17

 

 

 

 

 

PGR escreveu anteontem, em comunicado, que tem 18 arguidos constituídos no âmbito do processo "Dívidas Ocultas". É a primeira vez que dá a informação da existência de arguidos no caso. A informação oficial, dada pela própria PGR, primeiro no Parlamento e depois em comunicado da mesma PGR, e sufragada no informe de Dezembro último pelo Chefe de Estado, era de que o caso estava entregue ao Tribunal Administrativo.

Bom, nada impede que corram, em paralelo, processos nas jurisdições administrativa e judicial. Mas nunca fora dito que estavam a correr. Só agora que as autoridades sul-africanas prenderam Chang e ameaçam extraditá-lo aos EUA.

Já agora, quem são os 18 arguidos constituídos pela PGR? Quando despoletou o caso Embraer, a PGR emitiu comunicado com nomes dos arguidos e dos tipos legais de crime que estavam na acusação contra os três, um dos quais de branqueamento de capitais. Isso foi a 6 de Dezembro de 2017. É perfeitamente verificável. E o valor da causa daquele processo eram 800 mil USD. E Zucula, Viegas e Zimba foram detidos e lhes arbitradas cauções no valor total de 14.5 milhões de meticais para aguardarem o curso do processo em liberdade, para além de outras medidas no âmbito do poder coactivo do Estado.

Nas dívidas ocultas, o valor da causa é de 2 biliões de USD. Há 18 arguidos, diz a PGR, mas nenhum deles está detido, que saibamos (por que não há comunicado igual ao que anunciou Zucula, Viegas e Zimba?). A nenhum foram arbitradas medidas especiais de coação, que se saiba publicamente – e o facto de Chang se movimentar à vontade até para o Dubai, epicentro de todo o escândalo das dívidas, parece ser disso evidência.

O comunicado da PGR foi tão tímido e defensivo ao ponto de não conseguir sequer confirmar se Chang era um dos seus 18 arguidos.

E nos crimes económicos, os riscos de dissipação do património, desarticulação das provas, comunicação entre os arguidos e até de fuga, são enormes.

Seguramente é esta falta consistência e coerência que não ajuda a angariar confiança dos cidadãos deste país e, já agora, das instituições dos outros países, na nossa Administração da Justiça.

O problema central neste caso näo é a falta de cooperação da América. Já é tempo de deixarmos de procurar no outro a razão do nosso insucesso. O problema é a ausência de coragem, perspicácia e arrojo das sucessivas lideranças do nosso Ministério Público, que se comportam como uma magistratura inerte, subserviente, burocratizada e burocratizante, que fogem ao confronto com as elites errantes deste país para garantirem uma reforma tranquila, quando abandonam os cargos.
 

O Partido Frelimo, herdeiro da Frente de Libertação de Moçambique, que proclamou a independência nacional, depois de dez anos de luta armada, está em fase de teste nacional, teste de capacidade de gestão de conflitos de interesse, entre o bem público e os seus membros, a prisão de Manuel Chang em Johannesburg e seu julgamento e provável extradição para os Estados Unidos da América, constitui um revés à narrativa sobre o interesse público e a segurança do Estado.

A cada dia que passa, parece tornar-se evidente que os altos dirigentes do Governo e seus funcionários colocaram sempre interesses pessoais no lugar do interesse nacional, levou, uma boa parte da sociedade a falar a sua língua, sobre o interesse nacional e defesa de soberania, quando, na verdade, estava em jogo, mais interesses pessoais do que os interesses do Estado e público, as prisões dos executivos da Credit Suisse e da PRINVIST, mostra a ramificação e o grau de associação para delapidar o bem público.

Os números apresentados pelos advogados, para efeitos de caução, são assustadores, no caso do executivo da PRINVIST em Nova Iorque, falava-se de 20 milhões USD, no caso do nosso concidadão Manuel Chang, caso fosse aceite a caução seria de nível 5, segundo alguma imprensa, devido ao risco associado, a tese de que os nossos Governantes trabalham para a satisfação das necessidades da população, cai por terra.

A onda de manifestação dos moçambicanos, sobretudo nas redes sociais, mostra o nível de desgaste da imagem do Governo do partido Frelimo, desengane-se quem pensa que aquilo é assunto de Manuel Chang. Nos primeiros dias, pensei que fosse algo que pudesse passar, mas, com o tempo, adensam-se as manifestações de raiva, sede de vingança por inoperância do sistema judicial e, para piorar as coisas, veio a PGR com um comunicado de imprensa vazio e inócuo!

Manuel Chang, entenda-se, é a ponta do iceberg da saturação da sociedade pela governação do nosso partido Frelimo, que sempre prometeu um futuro melhor, quando, na verdade, alguns dos moçambicanos viviam o presente melhor e, em nome de um povo empobrecido, de uma segurança nacional e do interesse superior do Estado, que até pode existir, no entanto, difícil de ser explicado face aos factos expostos.

A aparente indiferença do partido Frelimo, do Governo, da Assembleia da República, adensa a vontade de vingança popular, que pode manifestar-se de várias formas, desde a manifestação desordenada de rua, com consequências imprevisíveis, boicote aos próximos processos eleitorais, o que seria pior, até à caça ao homem, pouco provável, para já, se tivéssemos sindicatos focados no interesse e na defesa da população, este seria o líder desse processo, uma vez que os partidos políticos mostram-se desorganizados e sem norte.

A Frelimo precisa reinventar-se e dar a cara, não pode continuar a fazer de contas que nada está a acontecer, o Governo precisa de analisar, se calhar, ao nível mais alargado do Conselho de Ministros, com Governadores e outros quadros do Estado para analisar o fenómeno, porque de fenómeno se trata, a reacção nas redes sociais, mais, muitas outras plataformas de diálogo devem ser accionadas para que haja catalisação da presente ebulição social.

Quando cidadãos formados em diferentes especialidades, aparecem em público, através de Televisões e Rádios a exigir que Manuel Chang seja extraditado, não é a falta de consciência de cidadania, não é a falta de sentido patriótico, estas manifestações são contra a inoperância do sistema judicial, contra a impunidade de altos funcionários do Estado que vivem a grande e a francesa, como soi dizer-se, contra a pobreza absoluta da maioria da população, muitos desses funcionários, não têm histórico de acumulação alguma.

São pessoas que, depois de formação, deambulam pelas ruas das cidades e vilas a venderem credito e, cruzam-se com companheiros seus de escola, a viverem de forma ostensiva, com meios que dificilmente podem justificar a sua origem, baseado nos rendimentos que auferem, aliás, todos nós fazemos declaração de rendimento a cada final de ano, um instrumento de medição de acumulação pessoal, se calhar, não é devidamente usado.

Reitero que a prisão de Manuel Chang na África do Sul é a prisão de um Governo, de uma Assembleia e de um partido libertador que, paulatinamente, está a perder prestígio perante os seus congéneres partidos libertadores, o ANC tem-se reinventado de forma cíclica, o MPLA sabemos do que acontece, estejamos de acordo ou não, Zimbabwe colocou um basta ao nosso prestigiado Robert Mugabe, a Namíbia é o exemplo de uma Nação que luta pelo desenvolvimento. E nós?

A história serve para algo, mas não é ela que dita as regras do presente e do futuro. Devemos saber usar a nossa contribuição para a libertação desta zona de África e, não podemos fazê-lo, exigindo dos outros que sejam complacentes com a impunidade, quanto nos custou a libertação da África do Sul, do Zimbabwe, mas isso não tem relevância hoje, muitos críticos da Frelimo são filhos da própria Frelimo que não encontram espaço interno para contribuírem. Eu acredito na Frelimo, a Frelimo tem regras, tem estatutos e em nenhum lugar se pode ler que seja a favor de qualquer forma de corrupção, nepotismo, tráfego de influência, haja acção.

 

NB: Eu, Adelino Buque, tenho admiração por Manuel Chang e continuarei a admirá-lo, mas Manuel Chang é humano e, como humano, tem as suas virtudes e defeitos, seja feita a justiça e, preferencialmente, em território nacional. Sei que esta opinião não colhe consensos, é minha opinião.

Tudo tem limite. Até o medo. E quando o medo passa fica o homem inteiro.

Albino Magaia

 

A Poética de Carlos dos Santos gravita o espaço sideral, a problematização do futuro e um constante questionamento sobre o que move o presente. Quer nas histórias contadas nos seus romances quer nos infanto-juvenis aquela tríade é recorrente. Está lá, consciente ou inconscientemente. O mesmo acontece no novo livro do escritor, Na esteira das estrelas, recentemente publicado sob a chancela da Alcance Editores.

Ao novo título, Carlos dos Santos leva uma história que acrescenta à realidade muita imaginação. Na esteira das estrelas é uma ficção que aproxima ao Homem o que parece ser algo distante, essa plenitude das constelações, as quais parecem emitir sempre mensagens quase nunca compreendidas. Na verdade, e no sentido lato, o escritor continua no seu 16º livro com a ideia de buscar no firmamento o que parece complementar a sã existência humana na terra. Nisso, ficciona uma história cuja protagonista chama-se Nhiedzi, uma menina com ares agrestes, quem se propõe a uma odisseia com experiências mirabolantes. A narrativa começa com um passeio sereno da miúda por uma floresta, sozinha. De repente, o que era para ser um bom deleite esfuma-se, ficando a nossa personagem meio desesperada quando se sente perdida. Sem saber por onde ir para regressar a casa, Nhiedzi é possuída por medo e ansiedade. É a essas alturas do enredo que uma pedra falante enuncia: “Nós temos sempre medo daquilo que não conhecemos. É a nossa ignorância que nos faz ter medo (…) procura antes conhecer as coisas e aprendê-las. Vais ver que assim já não sentes medo” (p. 10).

O excerto acima é o prenúncio do que, nas páginas seguintes, torna-se história. Quer dizer, para a protagonista, personificação de inocência e ignorância sem que isso tenha que ver com idade, o medo limita, encarcera e inibe a busca de soluções. À medida que a Nhiedzi vai lidando e vai vencendo os seus receios, vai abrindo-se para escutar, raciocinar e somar os cálculos da vida como quem depende do resultado para regressar a casa. A sua situação não fica mais fácil por isso, mas fica menos difícil, pois, com a tranquilidade interior surge o discernimento preciso para a alteração de um quadro tétrico.

Ao colocar a Nhiedzi em cavaqueira com uma pedra, uma árvore e o vento, Carlos dos Santos leva-nos a um diálogo com a natureza, como quem nos convida a regressarmos a uma certa origem das coisas, na qual o Homem era ele e as suas circunstâncias. É numa floresta que Nhiedzi aprende a enfrentar os seus medos; nela, a menina aprende a ler o perigo, a antever bons horizontes, com recurso à sistematização do conhecimento. Por isso, estando perdida, a menina aprende a interpretar o recado do sol, da sombra, das estrelas e dos pontos cardeais decisivos para o desfecho da história.

Portanto, neste Na esteira das estrelas, escrito com pormenor e rigor vocabular, demasiado exigente para as crianças, fizemos o teste, o medo, de facto, existe, mas tem limite. E, como nos revela o célebre Albino Magaia no seu Yô Mabalane – obra cuja narrativa faz-se com tentativas de se vencer o medo e a dor –, é quando o medo passa que fica o homem inteiro, no caso, a menina engrandecida, resoluta, dona dos seus caminhos. Afinal, se por um aldo o medo prende, a coragem de saber liberta.

Sendo esta uma história infanto-juvenil, é, igualmente, um texto que purifica os covardes, dando-lhes a receita de como agir diante das mais variadas circunstâncias do quotidiano. Partindo de uma narrativa inocente, Carlos dos Santos conduz-nos numa dupla viagem: pela natureza das nossas emoções e pela das nossas necessidades. É nisso que se dá o conflito, o mesmo que ultrapassado nos transcende. Há-de ser esta a proposta de um Santo(s) armado escritor. 

 

Título: Na esteira das estrelas

Autor: Carlos dos Santos

Editora: Alcance

Classificação: 15

 

QUANDO É PREMENTE FALAR
A extroversão não é o meu ponto premente quando pretendo que se saiba, de mim, algo, porém, se o assunto é algo comum, destranco o meu repositório verbal e me expresso. Senão não seria escritor na verdadeira acepção do termo, uma vez que ser escritor é já uma forma de aderir à extroversão. Saramago, numa das suas inúmeras reflexões diz: "A missão do escritor, se existe alguma, é não se calar", pois, pretendo seguir esse eloquente pensamento daquele insigne escritor luso, mesmo estando certo de que, talvez os meus pontos de vista, se situem aquém do real valor dos escritores que pretendo abordar, ou seja, ciente das minhas limitações quanto ao traquejo dos instrumentos da crítica literária.
 
NÃO SOU NINGUÉM
DE: Anísio da Conceição
Começo pela obra: "Não sou ninguém, do poeta ainda em fase iniciática, Anísio da Conceição. O seu caminho, na perseguição da essência literária, particularmente poética, já vai longo, através da militância em incentivos, morais escolares, passando pela participação intensa e interessada em movimentos de carácter cultural, como o Movimento Literário Juvenil (MOLIJU) onde ele ainda milita, em que a literatura é um dos pratos que se servem para qualquer pessoa que escolha esta área para se deleitar, refletir sobre as essências das nossas origens culturais. Naturalmente que menos literatas, mas profundas no sentido onirico, uma vez que abarcam sonhos que a todos embarcam em busca permanente do ser, sempre encrustados na força dialógica, sustentada pela oralidade que nos é, ainda, intrínseca e quotidiana. O sonho foi sempre o factor mais importante de entre os vários que se nos apresentam para o cumprimento das nossa aspirações. António Gedeão, outro vate luso, no seu celebrado poema: "A pedra filosofal", a dado passo: "o sonho é uma constante da vida" e como que colocando uma cereja no topo do bolo, diz: "Quando um homem sonha o mundo avança", ou seja, dá um salto para a frente!

Pois, imbuído desse espírito onírico, ao longo do seu ainda debutante percurso literário, envereda pela sua identificação com quem se propõe dialogar: "Não sou ninguém"! Uma forma sofisticada, quanto a mim, de dizer que ele é alguém a quem se deve prestar atenção na sua proposição. Ele quis dizer: "Eu sou alguém", que se posta no pedestal poético para cantar a alma da sociedade em que se insere. É diversa a temática aflorada neste livro, porém, o ponto fulcral ou essencial da abordagem de Anísio da Conceição, a sua base inspiradora é a afirmação de 2009, no Bairro Chinonanquila, no distrito de Boane, num comício dirigido pelo antigo estadista moçambicano Joaquim Alberto Chissano. Ao acabar de declamar dois poemas. Joaquim Chissano perguntou-lhe sobre o que fazia, ao que ele respondeu que era estudante. O insigne interlocutor prosseguiu: "Vá em frente, tens futuro…". Pois, foi esta interpelação que o fez compenetrar-se mais anda, naquilo que ele próprio já concluíra, mas até que alguém lhe despertasse, até certo ponto, subestimasse, e está expresso no verso tonificador de todas as estrofes do poema de 2005, constante neste livro: "Mistérios da palavra" – "Importa saber que a palavra tem poder".

De facto, o poema referido, de forma recorrente, torna presente que a palavra é detentora do "poder de gerar guerra/Como também de salvar memórias"; de criar e destruir/De destruir tudo e até muralhas"; De ferir e curar/De curar tudo até restaurar escombros/Verdadeiramente espalhadas/Sobre a epiderme das flores"; "De gerar guerra/Como também de combater os bichos/Devolvidos pelas balas inimigas/E libertar os oprimidos/Eternamente"; "De fazer tudo acontecer/Operar milagres como o arquétipo Jesus/…"; "De resgatar almas perdidas/pelo misterioso epíteto da Palavra!"

Nesta obra de estreia, Anísio canta as crianças do seu país, baseando-se na célebre frase de Samora Moisés Machel, primeiro presidente de Moçambique, "As crianças são flores que nunca murcham". Não é, exactamente, através da visão samoriana, mas pelo tratamento a que a criança está sujeita, no desfilar de incongruências que a abalam, no nosso dia-a-dia, senão, vejamos: no poema "Criança desamparada", de 2010: "Danças à luz do dia/Enquanto fomentas desamparo/Em inocentes acácias/Nestas ruelas quase profusas e belas/Deste ultrapassado Xilunguine. Cresces quase sem razão/Aos pontapés perpetuados sucumbes/ pela madrasta que te empresta lágrimas/Na casa da malograda." É, aqui, notória a referência negativa da acção de algumas madrastas, no trato aos seus enteados, precisamente onde a criança já vivera alegrias, no colo mátrio que, por circunstâncias adversas da vida, tal colo fora para a outra dimensão existencial, deixando, um lugar vazio preenchido por uma impostora. Neste capítulo, Anísio esparrama a sua indignação nos poemas: "Não Sou Ninguém", "Criança da rua", "Comércio informal", "Meu pai", "Nascer". Porém, de forma altruísta, estende a sua reflexão holística, universal, ao se referir à criança, sem ser, apenas, a que sofre, como, também, a bem aventurada, no seu país e fora dele, como se pode constatar nos poemas: "Os bem-aventurados", "A um amigo", "Amigo meu".

No capítulo II, o poeta canta os sonhos, partindo de um dito assinado por "O Vendedor de Sonhos", cujo teor é: "O ser humano não morre quando o coração pára de bater, morre quando, de alguma forma, deixa de se sentir importante".

No capítulo III, canta, em memória às vítimas de SIDA. Nos capítulos seguintes, canta o que a sua jovem observância lhe tem dado como ensejo de aperceber e reflectir, no seio da sociedade em que, ele próprio é, também, actor. Aliás, no seu suculento prefácio, Bee Yoni, O Dragão, aflora todos os aspectos desta obra, abrindo um sem número de hipóteses para a sua interpretação. O próprio Anísio da Conceição, na sua Nota de Autor, que aparece nos fundos do livro que ora nos apresenta, num gesto raro no nosso panorama literário, de deixar, primeiro, ler a obra, e depois das ilações daí advenientes, cruza-las com as notas do autor. Este exercício, sugerido por Anísio, apela à comunidade interpretativa das obras literárias, em que o leitor é desafiado a participar com a sua visão de intérprete, e poder completar a obra literária, com a sua complementativa visão. Reside neste exercício, o conceito Estética da Recepção, arma fundamental da comunidade interpretativa.É pois, quanto à minha modesta opinião, sem, de forma alguma, pretensões de preterir quem, de justos atributos, traria mais abalizados argumentos a esgrimir sobre a obra poética inaugural "Não Sou Ninguém" de Anísio da Conceição.
 

Em 1965, foi considerado o poeta mais charmoso e sensível da televisão. Construiu o seu físico na Academia do Príncipe Real, bairro ao lado do seu. Com os seus exclusivos 1,85 metros de altura, esguio, moreno de olhos verdes, nada mais precisava para receber oficialmente o troféu de conquistador de mulheres. Quando saísse por volta das 7 da manhã, estava uma fileira de raparigas solteiras a acenarem-lhe com a mão, a partir das suas janelas, naquela rua tão estreita. Mesmo sendo casado, rumores corriam que, a ele lhe encantavam mulheres jovens e intelectuais. Casado há 20 anos com uma lavadeira, que ora tinha bigode ora não tinha, dificilmente podia enamorar-se no seu próprio bairro pois a sua sra passava os tempos livres à porrada com as suas supostas amantes.
 
Ninguém lhes percebia a relação. Os seus estudos, o gosto ávido pela leitura e pesquisa transformaram-no num fidalgo. Percebia-se a distância que existia entre ele e a sua sra lavadeira, embora tivessem ambos vindo de lares sem berço.
 
Se as suas amantes e verdadeiras musas eram legítimas fidalgas, o que precisava ele da lavadeira que lhe reduzia em público? Não tinham filhos. Por que é que ele não se perdia numa ida à tabacaria para comprar cigarros, por exemplo?
 
Uma coisa é certa: com as ditas musas, tinha relacionamentos fugazes. Era como que para alimentar o seu ego. E esse ego parecia prescíndivel de acordo com a sua disposição ou servia apenas para alguns compartimentos do seu cérebro já que em casa, quem partia, insultava e batia era ela. Qual era então o segredo do sucesso da lavadeira?
 
As putas gritavam: “Fode bem!”
 
As psicólogas elaboravam: “Há algum trauma que ele tenha sofrido na infância e que ela sabe gerir bem. Pode ser que o ambiente de abuso lhe seja mais familiar. Não se tendo libertado dele, só assim se sente verdadeiramente amado. Os abusos que sofre podem ser por ele interpretados como reflectindo o que é real. Viver o tradicionalmente belo e prazeroso lhe é desconfortável a longo prazo”.
 
As poetisas devaneavam: “O contacto constante com o que é triste e lúgubre faz dele o poeta que é. Um poeta deve por natureza ser cismático, mesmo que produza textos gáudios. A essência das coisas é melhor esmiuçada na angústia”
 
As advogadas disparavam: “Não faz sentido nenhum! Ele não deve ser o espertalhão que pretende transmitir. ‘o coração tem razões que a própria razão desconhece’ apenas serve para quem não chegou ao grau mais elevado da razão!”
 
As feiticeiras acertavam: “Ela enfeitiçou-o. Deu-lhe chá de calcinha, com especiarias vindas do oriente. Aquele amor é eterno, por mais que ele tente desfazer-se dele.”
 
Qual é a verdade? Como é que se processa o amor? É relativo?
 
Ouvi de gente que sabe decidir amar e deixar de amar. Outros acrescentam que amar é um processo, que, tal como todo ele, tem os seus procedimentos. Ou seja, nesta linha de pensamento, começa-se por se decidir amar e existem depois passos que se lhe seguem para se chegar ao resultado final. Adiante, haverá um outro processo para se nutrir o amor.
 
Uma outra doutrina defende que o amor começa a partir do momento que se encanta por alguém. Ao que, na vida, vai-se amando. O amor não é monogâmico. Monogamia é uma decisão contrária ao amor. Monogamia é baseada em decisão e não no amor.
 
Como era do conhecimento geral que Pedro Fonseca da Cunha Pantano era casado com uma encrenqueira, toda a sociedade portuguesa estava grudada à televisão para ver a entrevista mais pessoal que ele iria conceder sobre o seu casamento.
 
– É casado há 20 anos com Maria – a lavadeira. Alcunha que lhe foi atribuída devido a sua profissão.
– Sim, senhor!
– É feliz?
– Sou, sim senhor!
– Mas e os abusos de que sofre e se vêem reflectidos em alguns dos seus poemas?
– Sou feliz porque toda a merda que a minha Maria faz, cheira-me a perfume!
– … desculpe mas não está a relativizar o abuso doméstico?
– Não! Estou é a pôr em perspectiva a relatividade do amor.
– Está a defender que se pode admitir abuso doméstico?
– Não! Estou a dizer que o meu amor assim se manifesta.
– Mas não estará desta forma a desencorajar quem seja vítima de abuso doméstico a denunciar o crime?
– Não. Já lhe disse que toda a merda que ela faz, cheira-me a perfume! Quem sofre de abuso doméstico deverá com certeza denunciar o crime!
– Mas os crimes são definidos de forma objectiva, oh Pantano …
– Errado! Os crimes são definidos pela ocorrência de vítimas. Deverá haver uma relação de causalidade entre ambos!
– No seu caso, quando passara a ser vítima?
– Não me cabe a mim responder.
– A quem é que caberá?
– Ao universo!
– Enquanto o amor durar?
– Enquanto o cheiro a perfume durar.
Fim

 

A meio do pequeno périplo pelo Brasil, entre alegrias e tristezas que o mundo nos ensina, dou-me conta de uma realidade até então suspeita, mas nunca constatável: o jogo da invisibilidade. Este jogo, mais do que o racismo, fenómeno abominável e implícito na teoria da invisibilidade, deixou-me atordoado. A palavra é, até, redutora à mistura sentimentos que se me abateram no momento, pois vaguei, por instantes, no mundo da incredulidade – esse espaço de entrelaçamento entre a dúvida e a repugnância; entre o asco e a inumanidade.

Estava eu num debate, com direito a gravação e posterior divulgação nas redes sociais, em plena cidade de São Paulo, quando a minha confrade, uma conceituada escritora brasileira, à mesa de um simpósio sobre a língua portuguesa,  questionou-me, dizendo, num tom algo perturbado:

´Perguntei, há anos, a  um(s) escritor(es) moçambicano(s) branco(s) o porquê da não publicação e/ou divulgação, no Brasil, de escritores pretos? A resposta, do(s) dito(s) escritor(es) foi de que os pretos ainda raciocinam em línguas bantu. Eles não têm o domínio da língua portuguesa! Precisam de anos e anos de aprendizagem da  língua de Camões. Confirmas essa asserção

 No momento em que ela reproduziu tal torpe afirmação do(s) confrade(s), fiquei momentaneamente tonto. Nunca imaginei que abominável conceito pudesse vir de um(s)  moçambicano(s),  um(s) compatriota(s) meu(s), um(s) cidadão(s) que está(ão) sob a mesma bandeira e a constituição que nos assegura os mesmos direitos,  independentemente da cor da pele.

Antes de responder, veio-me, nesses intermináveis segundos de silêncio, à mente o nome do nosso Luís Bernardo Honwana, o insigne escritor moçambicano, pai da nossa modernidade, que em 1964, época em que esse(s) escritor(es) ainda  aprendia(m) o abecedário da língua portuguesa, publicava o ”Nós Matámos o Cão Tinhoso”, obra de referência na literatura moçambicana e universal. É um escritor preto. Antes ainda, e na linha do Brado Africano, jornal que sucedeu ao Africano, fundado pelos irmãos Albazines, e de edição bilingue – Português e Ronga-, estavam o Estácio Dias, pai do precocemente falecido escritor João Dias, o Aníbal Aleluia, e outros que dominando o português e uma das línguas bantu, escreviam e arengavam abundantemente na língua portuguesa pelos espaços que iam alargando no reduzido perímetro de intervenção que o colonialismo lhes permitia. Eram pretos e tinham, em definitivo, no quadro da lei da assimilação aos valores lusitanos, a língua portuguesa como instrumento de trabalho. A acrescer à lista, vieram-me à mente nomes dos jornalistas Albino Magaia, também escritor, Benjamim Faduco, Abel Faife, Arlindo Lopes, Elias Cossa, Bernardo Mavanga, e outros que  labutaram na imprensa antes e depois da independência, alguns deles contemporâneos desse(s) malfadado(s) escritor(es) branco(s). E todos pretos.

 Mais velhos que esse(s) distraído(s) ou estulto(s) escritor(es), emergem nomes de intelectuais como o pastor Penicela, o Mário Machungo, o Eneas  Comiche, o  Teodato Hunguana, o Mateus Khatupa, o Bento Sitói, para citar alguns pretos que tiveram um papel directo e indirecto na reivindicação dos valores da liberdade e independência. E tudo em português! E o que dizer dos nossos filósofos Brazão Mazula, Severino Nguenha,  José Castiano, para citar alguns, que têm a língua portuguesa como sua língua materna e outras línguas, como o alemão, francês, inglês, italiano, nyanja, Changana, ronga e sena, como línguas de trabalho? Todos esses ainda se situam  no paradigma do “Bon Sauvage’’ da linha  do Rousseau?

A resposta foi óbvia e bem militante, pois partiu de Eduardo Mondlane e Uria Simango, proeminentes individualidades da gesta nacionalista,  sem esquecer o protonacionalista Kamba Simango. Disse à minha confrade brasileira, e à selecta assembleia brasileira (maioritariamente branca), que o(s) meu(s) confrade(s) estava(m) equivocado(s) e sofria(m) do síndrome do racismo, próprio de um colonialismo que se quis assumir benfeitor dos pretos. E esse racismo leva, quando extremado, ao jogo da invisibilidade. Quer-se a todo custo negar a existência do outro, o preto. E, de certo modo, essa tese ganhou certo protagonismo na época samoriana (não vem ao caso analisar essa conturbada época da nossa História), quando, por decreto se tentou apagar tudo o que nos diferencia: a cor, a etnia, os valores diferenciados da nossa cultura. Não debatemos as nossas diferenças. Ocultámo-las. E o resultado, caro leitor, são afirmações desta natureza em latitudes que o(s) nosso(s) compatriota(s) branco(s) imagina(m) inacessíveis ao preto compatriota.  

Quando me perguntaram sobre escritores pretos que, em minha opinião,  estão ao nível dos badalados escritores de África anglo-saxónica e francófona, citei os meus contemporâneos Aldino Muianga, Juvenal Bucuane, Marcelo Panguana, Armando Artur, Filimone Meigos, Hélder Muteia, Suleimane Cassamo, Paulina Chiziane, Tomás Viera Mário, Carlos Paradona, Nelson Saúte, Bassany Adamogy, e outros. E não deixei de lado as gerações procedentes que se afirmam pelo seu talento, pese o jogo da invisibilidade que a todos nos toca: Daniel da Costa, Adelino Timóteo, Tokwene, Sangari Okapi, Álvaro Taruma, Hélder Faife, Isabel Ferrão, Mbate Pedro, Andes Chivangue, Lucílio Manjate, Rogério Manjate, Clemente Bata, Jorge Oliveira, Aurélio Furdela, Pereira Lopes, Alex Dau, Léo Cote, Chagas Levene, Amosse Mucavele,  Lica Sebastião, Rinkel, Emmy X, etecetera.

Como remeter ao limbo estes escritores? É possível  fazer passar, pelo exterior hegemónico, um país com cores e sabores diferenciados, como um território sem a luminosidade do arco-íris? Só indivíduos com transtorno dissociativo de identidade é que podem construir esses cenários. E caso não sofra(m) dessa patologia, só me leva a crer que para muitos (minoria, é claro) dos meus concidadãos, este país é só fonte (intelectual) de matéria prima para exposição universal.

Com repulsa!

 

Dezembro de 2018

 

P.S.: Omiti o(s) nome(s)

 

 

 

 

Vera Duarte A Reinvenção do Mar                                                                                                                Lisboa, Rosa de Porcelana, 2018

Uma voz feminina

   “Para lá da ilha /só existe a poesia….Vou tecer meu sonho na vertigem da minha própria poesia”.  A Reinvenção do Mar é uma antologia poética que comemora os 25 anos da publicação do primeiro livro de Vera Duarte (Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina), e reúne textos de cinco obras poéticas, a saber: Amanhã Amadrugada (1993) que foi a obra de estreia da poetisa, seguida de O Arquipélago da Paixão (2001), distinguida com o importante prémio “Tchicaya U Tam’si de Poésie Africaine”, a que se seguiu o livro Preces e Súplicas ou os Cânticos da Desesperança (2005), Exercícios Poéticos (2010) e  De Risos & Lágrimas (2018) consolidando um percurso de prática poética, iniciado na década de 90. Com outras vertentes de escrita, como o ensaio e a prosa, Vera Duarte publicou também A Candidata (2003), recebendo com este livro o Prémio Sonangol de Literatura. Publicou mais tarde A Palavra e os Dias: Crónicas (2013) e mais recentemente A Matriarca: uma estória de mestiçagem (2018).              

   Teve formação académica na Universidade Clássica de Lisboa, onde cursou Direito e  foi a primeira magistrada e desembargadora em Cabo Verde. Em 1995 foi distinguida com o prémio Norte-Sul de direitos humanos do Conselho de Europa, sendo também a primeira mulher a ser eleita para a comissão africana dos direitos do homem e dos povos (1993). A carreira da poetisa é ainda marcada por integrar organizações nacionais e internacionais ligadas ao Direito, aos Direitos Humanos e à emancipação feminina, que lhe valeram diversas premiações e distinções no quadro da cultura e direitos humanos. Podemos dizer que a escrita poética de Vera Duarte é também um exercício de experiência de vida, filtrando a poesia, de forma muito evidente, a sua prática na área da justiça, o conhecimento dos aspectos mais escabrosos e carenciados da sociedade, e fazendo dela uma lutadora por um mundo onde os direitos humanos, especialmente  de género, sejam mais equilibrados.

   Esta dimensão humana e humanitária de Vera Duarte convoca uma dimensão do amor e da paixão mais amplos, que ganha foro de utopia, no clamar de um mundo amorável, justo e sensível, um mundo revolucionado, em permanente revolução. Leia-se nesta perspectiva o poema Ortodoxias em Desagregação Poema Manifesto: “Em Outubro fizeram-se revoluções/ Outubro é uma revolução/ Sou uma mulher de outubros/ Num outubro que se perdeu/ E uma revolução que não acabou//Nas minhas veias corre um sangue missionário/ No meu sangue/ Corre uma revolução/ Que não perdeu sentido do ser”. Este poema estabelece um programa de escrita que, de forma directa ou indirecta, vai irradiar na escrita poética de Vera Duarte:”O fascínio vem-me/ dos momentos iniciáticos/ que incendiaram o coração dos homens”.

   A revolução engendra-se a partir de dualidades, sentidas pela poetisa como lágrimas/encantamento, sonho/realidade, desejo/desencanto, utopia/ distopia, tópicos que os poemas de Vera cantam, e procuram uma resposta: a Liberdade. A Liberdade (pessoal, amorosa, de género, social, literária) encena-se quase operaticamente na escrita poética de Vera Duarte entre dois eixos fundamentais, o riso e as lágrimas, à maneira da figuração de Janus, o deus de dois rostos. “Simplesmente sou! Busco um outro começo/ Construo um outro final/ Nem Maria a imaculada/ Nem Madalena a pecadora/ Simplesmente/ sou!// De corpos e abraços/ De amores e lutas/ De risos e lágrimas// Simplesmente/ sou!”. 

   Observamos que no seu primeiro livro Amanhã Amadrugada a escrita, muitas vezes em prosa poética se intitula, Discursos, Momentos, Exercícios poéticos, procurando a voz o lugar de enunciação, entre o registo filosófico, reflexivo. Nestes textos a voz enunciadora oscila entre a meditação, o registo diarístico, o sonho, a visão alucinada, surreal por vezes, a memória da infância. Exercícios sobre o mar e a morte, sobre a beleza e a morte, sobre o sortilégio: “Venham todos os homens/ de todas as florestas/acolher-se em meu leito//Contornem mil vezes/ as formas perfeitas/do meu corpo são (…) Beijem-me/ e que os vossos beijos puros/ arranquem de mim/ o sortilégio que me mata// Mas não me amem/ que eu só posso amar a um/ e a morte anda à espreita/ dos que se deram e não foram recebidos”(…); “Quis amar, amar perdidamente com angústia, sofrimento e solidão, mas constatei afinal que a intensidade fatiga e desprendimento atrai”.

   É um prazer ler os poemas de Vera Duarte em antologia, o estilo mantém-se desde o primeiro livro, assim como a ânsia de liberdade, a procura do amor e da paixão, uma palavra que Canta/Conta, e se procura, à maneira de uma ode de variações múltiplas. Esta oscilação cantar/contar encontra no uso do poema tipo “ode” a dimensão teatral, musical, que surge com múltiplas variantes na escrita da poetisa A ode como se sabe é um género poético que permanece actual desde a antiguidade clássica, e a exemplaridade da ode do poeta chileno Pablo Neruda gratificou a vitalidade desta prática. As odes originais eram cantadas com o acompanhamento de um instrumento musical como a lira. As odes podiam ser monódias (cantadas por uma única voz) ou corais (interpretadas por um grupo de pessoas). Apesar da sua variedade temática, a ode costuma expressar a admiração por algo ou alguém, um poema criado com o objectivo de homenagear ou exaltar. Vários poetas gregos dedicaram odes aos deuses, a atletas, guerreiros e heróis.

   No caso da odes de Vera reconhecemos a dimensão da exaltação vocal, canto/conto de alegria, tristeza e de homenagem em muitos dos seus poemas, em que aparecem dedicatórias aos escritores e homens da cultura de África e da sua terra, Cabo Verde, com poemas que os cantam, como Corsino Fortes, Jorge Alfama, Arnaldo França, Amílcar Cabral, Nelson Mandela, a Mãe. A dimensão elegíaca de alguns poemas combina a ode ao registo da dor em poemas com dedicatórias, que revelam uma importante função de resgate da memória pessoal e histórica; de resgate da cultura local em Cabo Verde, com os poemas para Ildo Lobo, Gabriel Mariano, Guilherme Rochteau; ou, por outro lado, de resgate de situações históricas como a travessia atlântica que rememora uma mesma história dos africanos, a do tráfico escravo, a da luta pela libertação colonial,  e a relação histórico-cultural com o Brasil.

   Cito aqui um fragmento de uma das suas odes, denominada Prece Primeira Rosa entre cadáveres: “  Em África nasce uma rosa/ Uma rosa entre cadáveres/ E dela brota um sol de sangue// Em África cresce uma rosa/ Rosa única de dor e de revolta/ e dela queda um sol de sangue// Não é rosa depois da neve/ Nem rosa flor d’amor/ Não é rosa multicolor/ Nem tem perfume embriagador// É rosa d’Eugénio/ Flor de doer/ Rosa de arder/ Metamorfose de cadáveres(…) Em África cresce uma rosa/ É a rosa mirabílica/ Flor da poesia/ Uma rosa entre Cadáveres”.

    Mas também o Amor é cantado em ode como no longo poema “A Canção do CorpoAmor”  um dos muitos textos que o exemplificam, aqui em  mais de cinco páginas: “Ter-te-ei alguma vez dito/ homem de cabelos fartos/ e lábios de incenso e mel/ como o ar se aquece/ quando a tua presença/ magicamente me envolve/ e teu hálito fresco/ de tambarinas maduras/ acremente me inebria (…)”.

   A geografia enunciadora e o fazer poético cantante/contante da poetisa mostra como ela se auto-renova enquanto corpo/território, como se transforma para re-construir seu próprio espaço, enquanto ser de escrita, que não se pode transferir para nenhum mapa do mundo conheci­do. No poema Acrobata da palavra Vera Duarte mostra como “a fome/ Do mundo que em mim habita” é alimentada pela “condição mutante” da acrobacia das palavras em poema:” No vértice vertiginoso da vida/ Violenta, violentada e violada/ Inscreve-se minha mutante condição/ De acrobata da palavra”.

   Enquanto voz crítica e de resistência à subalterna histórica condição de ser mulher evoca vários nomes paradigmáticos de mulheres como Antígona, Joana d’Arc, Mariama, Ginga, mostrando diferentes percursos femininos, nos quais a voz de Vera se enquadra, sintoniza e questiona, juntando-se ao exemplo daquelas figuras emblemáticas, quando procura resgatar o lugar da mulher na sociedade. Essa conquista de espaço geo-histórico-cultural da poetisa é também conquista de um espaço tipográfico, que os poemas encenam, e parece  inseparável de uma aber­tura ao espaço planetário, global: nela é evidente no trabalho de disposição na página das «palavras em liberdade», como em certos caligramas de Apollinaire.

    A poesia é uma voz, mas que voz? Croce diz que a poesia é uma voz interior à qual nenhuma voz humana se aparenta; no entanto a recitação, que a disposição tipográfica, dos poemas de Vera Duarte, na página suscita, bem como, por outro lado, o dispositivo retórico refrânico, as repetições, o aparato dialogal e narrativo dos poemas, faz com que esta voz ganhe presença no leitor, ou dele se apodere.  Ao mesmo tempo que lemos os poemas de Vera Duarte, eles se nos impõem como recitação, presença da voz, por isso também ouvimos os poemas.  São as vozes/cantos/contos/canções que na voz da poeta se entretecem, implicando a escuta de Jorge Barbosa ou Manuel Bandeira, de Eugénio Tavares e da poesia da morna de Cesária, dos ritmos de Ildo Lobo; fragmentariamente narrativa, biográfica enquanto sujeito próprio, sujeito feminino e sujeito histórico, as vozes da voz de Vera Duarte se reiventam em poesia.

    A reinvenção do Mar, que titula a antologia, encontra o na dicção de Vera Duarte a conjunção entre um mar interior, um mar ilhéu, um mar do mundo, uma palavra/ilha/canto de todas as ilhas/poemas: “juntei então todo a água do oceano / E cerquei o meu palácio / do mar mais profundo que algum dia existiu (…)” Mas, se é com a língua que o ser/poesia/sonho de Vera Duarte se constrói, é na fala que ela se encarna, quando a escrita, no “Tumulto” dos antagonismos e dualidades da criação, a pronuncia recitativamente até nós:” Vou tecer meu sonho/ na vertigem da minha própria poesia”.

Por: Pedro Pereira Lopes

Julio Cortázar explica, no seu distinto livro de análise literária, Valise de Cronópio, que “o que chamamos poesia implica a mais profunda penetração no ser de que é capaz o homem”, ou seja, a poesia, enquanto arte, só será fecunda em possível afirmação de sobrevivência. Poesia comprometida, verso decorativo, feição épica ou meditativa, etc., quase tudo se pode dizer da poesia, mas, em momentos como este, de esvaziar os olhos e montar novos sonhos debaixo do sol, a poesia é, acima de tudo, ESPERANÇA.

Pedi aos poetas Jaime Munguambe, Nelson Lineu, Hirondina Joshua, Mauro Brito, M. P. Bonde e Sérgio Raimundo (Poeta Militar) que escolhessem seis poemas e que justificassem suas escolhas. Regras quase que não existiam, tinham apenas de ser textos que os marcam. São, afinal, poemas que podem ser lidos hoje mas também amanhã. Vamos lá?

A ESCOLHA DE JAIME MUNGUAMBE

“Os seres”, de Antonin Autard

Não caiem

para o dia exterior

Só tem a força

de resplandecer

na noite subterrânea

onde se fazem

Mas desde eternidades

passam

o seu tempo

e o tempo

a fazer-se

e nem um só chegou

assim

a manifestar-se […]

Fazer o corpo humano sair

para a luz da natureza

mergulhá-lo vivo

no clarão da natureza

onde o sol acabara enfim

por desposá-lo.

A EXPLICAÇÃO DE JAIME MUMGUAMBE PARA A SUA ESCOLHA

Escolho este poema pelo facto de, talvez, facilmente penetrar-me corpo adentro e, por conseguinte, criar uma tempestade indescritível e aprazível à carne. Todos os edifícios textuais, poéticos, têm esse domínio, puxam-nos aos espaços (in) concretos, lugares abstractos ou exactos, onde resplandece o êxtase, o centro da efervescência total da liberdade espiritual: onde a palavra vive e seduz o silêncio murcho, o palco de uma reflexão irreflectida, onde respiramos abraçados pelas linhas do destino indecifrável, Antonin Autard fala dos seres, simplesmente dos nós que fazem a Humanidade, ou seja, de nós como sujeitos orgânicos com o lado interno e o externo.

A ESCOLHA DE NELSON LINEU

“Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objecto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda húmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

A EXPLICAÇÃO DE NELSON LINEU PARA A SUA ESCOLHA

Por que escolhi este poema? Responder seria convocar a razão, e para quê o poema precisaria da razão? Se um texto que se quer poético precisa da razão, “ainda não é poesia”, como escreveu o poeta. Drummond brinca com o entendimento, sempre que me lembro do poema, três versos enchem-me a poesia: “A poesia (não tires poesia das coisas) ”; “Convive com teus poemas, antes de escrevê-los”; “Não forces o poema a desprender-se do limbo”. O último é como vejo um meu texto em cima da árvore, e não posso fazer nada, além de esperar que amadureça e caia, e só depois da autorização do chão que canto, escutá-lo.

A ESCOLHA DE HIRONDINA JOSHUA

“O Palácio da Ventura”, Antero de Quental

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!

A EXPLICAÇÃO DE HIRONDINA JOSHUA PARA A SUA ESCOLHA

“Sonetos” de Antero de Quental, um dos primeiros livros que li na adolescência, e o favorito do meu pai: capa preta e uma flor vermelha no centro, um anúncio de desassossegos. O que esta escrita me trouxe de especial foi o facto de ela ser voltada à experiência do “para além do físico” – metafísica. Ouvi dizer que triste não é o texto, mas a mão que o lê, eu hoje devo concordar plenamente, quando o texto espelha-nos, espalha-nos para novas conquistas. É o que acontece com “O Palácio da Ventura”, diria até que textos como este despertam em nós o lado animal e espiritual que teimamos ignorar. Somos apressados por natureza, não temos tempo para olhar o que está ao redor enquanto mais dentro. As palavras têm o poder de segredar quando nos mente quem as vincula. Por mais belas e estruturadas que sejam. Um texto que trai esta lei não toca. E lirismo é não mentir. Com Antero percebi que as palavras têm energia, assim como as pessoas. E tal energia está em constante movimento. Como falam os brasileiros, tudo está “se construindo”. O que mais me impressiona na sua escrita é o acto de transformar a vida em arte – os instrumentos estão em nós e não fora. Antero sabia disso. O que mais é a poesia senão uma procura-interrogativa?

 

A ESCOLHA DE MAURO BRITO

“Poema do futuro cidadão”, de José Craveirinha

Vim de qualquer parte

de uma Nação que ainda não

existe.

Vim e estou aqui!

Não nasci apenas eu

nem tu nem outro…

mas irmão.

Mas

tenho amor para dar às mãos-

cheias.

Amor do que sou

e nada mais.

E

tenho no coração

gritos que não são meus

somente

porque venho dum país que

ainda não existe.

Ah! Tenho meu amor à rodos

para dar

do que sou.

Eu!

Homem qualquer

cidadão de uma nação que

ainda não existe.

A EXPLICAÇÃO DE MAURO BRITO PARA A SUA ESCOLHA

José Craveirinha não morreu, ao contrário do que se diz e pensa. E com ele não morreram os seus pensamentos e anseios como poeta e cidadão tão ligado a terra que o viu nascer. Muito antes de ter consciência da existência e o valor da poesia, tive o primeiro encontro  com a poesia do Craveirinha nas aulas de Português, em Fábula, quando então era um dedicado e comportado aluno. A partida um texto breve, simplista, e por outra sem conotação algum, mas tão acutilante e sério, algo que vim a descobrir mais tarde, com muito lamento pelo facto de nenhuma das minhas professoras o ter clarificado. A escolha deste texto não é de hoje, logo que o descobri entre as suas camadas o sentido metafórico. Encontrei nele o motivo da não conformação, da rebeldia, da vontade de ir além, de se reinventar; quem sabe continuar a encontrar outras formas de ser, de pensar, ou, dizendo de outro modo, sacudir a poeira. O poema chega a ser mais do que uma nota de um poeta-cidadão, mais do que um apelo. É um soprar de ouvidos na busca da imagem e da essência do novo homem que vai elevar a bandeira mais alto, que irá conquistar a coesão social  e sobretudo harmonia que falta no menu. Se calhar o sentido da palavra é mesmo esse: a continuidade, a abertura de caminhos e não um mote para chegar ao destino, por isso a metáfora está sempre ali. Neste caso muito subtilmente, algo que Zé muito bem dominava. E hoje, mais uma vez, há necessidade de dar amor a todos e de continuar a edificar uma nação inexistente.

A ESCOLHA DE M. P. BONDE

“IV”, de Álvaro Fausto Taruma

Aqui reina a palavra, o poema, o amanhecer de todos os fonemas sobre as casas, sobre a vida, sobre os cursos de água, sobre as padarias vigiando a fome, sobre o sol aludindo o fogo, a alquimia, sobre um rio correndo na mão em premonitória quiromancia. Mas fala-se também do puro instante da aparição, da vida regendo os sonhos, a língua, do manejo do verbo, da caligráfica ave, do oráculo da fala ou da poética gramática da escrita.

Diz-se ainda de uma janela contemplativa, do alfabeto entregue em oferenda e do alumbro mágico de quem cria.

Diz-se dessa palavra temperada: o sol, esse imenso latifúndio de luz, vindima da esperança. Diz-se da sua ramagem incendiária; a lavrada substância do fogo; favo do mel da claridade; o sol rasgando o hímen resoluto das manhãs. Por isso:

Por nada, por tudo

Por um instante de luz

Abro o cárcere de palavras, o mudo

Silêncio onde me pus.

Desato o poema, meu escudo

Contra a escuridão que me seduz

Mas a liberdade que aludo

Nenhuma poesia traduz.

A EXPLICAÇÃO DE M. P. BONDE PARA A SUA ESCOLHA

Escolhi este texto porque me identifico com o processo criativo: a metapoesia. Aqui o autor apresenta as suas ferramentas para compor os textos. A capacidade de reflexão demonstra que o autor está a fazer o seu caminho, procurando a sua voz interior. Há uma consciência, por parte do autor sobre o seu valor, apontando os signos, as imagens, as ferramentas para chegar ao âmago do texto. Eis então, o mundo do Taruma por se desvendar.

 

A ESCOLHA DE SÉRGIO RAIMUNDO (POETA MILITAR)

“O escritor”, de Gonçalo M. Tavares

É um escritor ou então a mulher partiu com outro,

e o corpo não recuperou a vontade

de se preocupar com a roupa.

Espontâneo, vê-se; tudo o que traz vestido

apareceu-lhe à frente como numa colisão.

No entanto é discreto.

Tem a idade em que já não se desejam os olhares dos outros.

Branco, o cabelo transmite paz e

uma pequena desistência.

Tem cachimbo, óculos,

na mesa revistas francesas sobre a alma e os laboratórios que a

estudam;

pega numa folha e começa a escrever.

Tem ar sóbrio, o corpo não dança,

vê-se que há muito venceu o medo de não ser igual aos outros.

Escreve; passa a mão sobre a orelha.

É um escritor, em definitivo.

A luta não é com a solidão, vê-se que sabe usa-la,

percebe a sua natureza.

A EXPLICAÇÃO DE SÉRGIO RAIMUNDO (POETA MILITAR) PARA A SUA ESCOLHA

Este poema faz parte do fantástico livro “1”, assinado pela mão do escritor que até Saramago prometeu-lhe bater de tanto escrever bem; Gonçalo M. Tavares. É um poema que, em parte, condensa a figura de um escritor que solda a sua escrita com a irresistente matéria da solidão. Gonçalo, com a sua técnica de busca de palavras com um sentido material, mostra-nos como o escritor manipula pelos garfos dos dedos o tédio e assim alimentar a sua escrita. Faz isso porque “vê-se que há muito venceu o medo de não ser igual aos outros”. Obras clássicas, de Gonçalo, nasceram, com certeza, desde constante choque com o tédio. Gonçalo é um escritor que percebe a natureza da solidão e do tédio. Basta ver Bloom em “Uma viagem à Índia”, Marius em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai” e Mylia em Jerusalém. Este poema entra no interior do escritor e sai com as medidas certas das suas convulsões; entra como um tabuleiro que é empurrado para o forno e assim sair com o pão.

Há vícios que desde que comecei a viver nesta condição tratei de os evitar, porque me fazem mais vivo do que preciso. Um mendigo sempre vive às metades. Nesta noite, cedo a um desses vícios, escrevo, porque vejo este rio enviesado, que é a minha vida, desaguar num oceano que sempre me foi muito vizinho. Prometo não escrever muito.

Eu sempre soube, perdi-me naqueles acontecimentos.

Nasci João Carlos Esteves Cabral, "nome de médico reputadíssimo " dizia minha mãe com o espírito sobrelevado tentando convencer a si própria que um dia eu seria um médico de renome. O que sucedeu é que o menino que um dia sua mãe augurou médico reputadíssimo passou a vida carente de tratamento de outros senhores que se tornaram médicos de verdade.

Tudo começou com o assassinato de Maria Flor Esteves Cabral por seu marido naquele longínquo ano do início do século presente. O lar daquele casal de Bombarral que até ali se tinha destacado entre as demais casas pela bonomia e pacifismo ganhara com aquele homicídio uma mancha indelével na sua história. A mancha fez-se tempo infinito até que minha mendicidade fosse um dos seus reflexos.

Sempre me custou crer, mas a verdade não mudou ao longo destes anos. Meu pai assassinara a minha mãe depois de descobrir que aquela o traíra e não querendo se deixar colorir com a mancha daquele sangue suicidou-se em seguida.

Nunca me ocorreu reviver o que se passara, e agora me vejo no meio de tudo. Perdi-me naqueles acontecimentos. Tinha quinze anos quando tudo acontecera. E sem dúvida, perdi-me naqueles acontecimentos.

Nos tempos que se seguiram a tudo, fui visitado por uma depressão tão profunda que cabia toda a tristeza do mundo. Perdi o sentido da vida, fiquei parado naquele longínquo ano do início do século. Há realidades que parecem ter sido antes ensaiadas noutras vidas. O início do século marcava o chegar de sinuosidades que marcariam perpetuamente a geografia deste rio.  

Tentando-me curar daquele estado que dentro de mim clamava dia e noite vaguear por onde era desconhecido, reconhecer em mim uma estrela sem noite, um sol sem dia, um beijo sem boca, um ser ninguém, fugi de tudo à primeira oportunidade que me espreitou. Corri e aos intervalos ensaiei passos apressados que só cessaram quando me vi nas ruas desta cidade, onde o ser ninguém se casou a mim, e tudo o que um dia eu tinha sido se perdeu no vácuo que sempre temeu a solidão.

Quinze anos se passaram e tudo o que me lembro é viver este estado, que os mais cultos chamam mendicidade. Lisboa tornou-se minha casa. Nestes anos conheci cada canto da cidade, cada segredo, cada cheiro. Inúmeras vezes me confundo e ao olhá-la vejo meu corpo.

Dia e noite passam por este lugar, onde não querendo ser reconhecido me reconheci ninguém, muitas pessoas. Confesso, algumas delas fazem-me perguntar para além do asseio o que as distingue de mim. Ter lar, ter quem os dê carinho? Muitas delas não vivem, sinto. Algumas olham-me com desdém, outras com pena, outras reconhecem em mim tudo que são. A palavra comum pela qual todos me qualificam é mendigo, um ninguém que tem as ruas da cidade por casa.

Disse que não escrevia muito e já concluo, não se apoquentem. As dores que aos poucos me fazem perscrutar o lado de lá já não me permitem muito. As lágrimas que molham este papel confundem-se com a chuva que cai nesta noite fria. Temendo tudo isto, vivi evitando este vício. Escrever é para quem vive, e a única coisa que mendigo sabe fazer é ser ninguém.

Algo entra no meu corpo, desenhando movimentos rectilíneos, e sai, criando em mim fraquezas. Não sei se aguento mais isto, sinto tudo se esvair de mim. Esta cidade, o papelão onde as minhas lágrimas ganham eterno descanso, o meu corpo frágil, a minha barba branca e a minha história é tudo que consigo vos deixar em testamento. Dava mais se pudesse, mas que mais pode dar um mendigo senão a si mesmo?

“Querer ser livre é também querer livres os outros.”

Simone de Beauvoir

 

Afigura-se-me que o homem de bom senso seja aquele que não teme compreender as coisas, independentemente do fardo que resulte disso. Mais do que uma faculdade, a compreensão é uma disposição mental para aceitar o sentido menos subjectivo dos factos. E não é, deveras, fácil configurar essa disposição de compreender o sentido dos fenômenos numa circunstância em que somos arguidos, ou seja, é difícil estar disposto a compreender quando é a sua tese que está em debate. Quanto mais interesse manifestar sobre um determinado objeto, mais intolerante te tornas a novas alternativas. É como um amante que, uma vez enamorado por uma amada cruel, se arrisca a sofrer todo tipo de repúdio a ser dissuadido a livrar-se do encanto. Por isso, para compreender é mister perder interesses particulares sobre o objeto. Isto é, torna-se imperioso marcar um distanciamento emocional e livrar-se de quaisquer segundas intenções se quiseres uma compreensão menos subjectiva em que é o intelecto que se adequa às propriedades do objeto, e não objeto forçado a adaptar-se às condições do intelecto. 

 

A filósofa Hannah Arendt é um dos exemplos mais elucidativos sobre o fardo que o acto de compreender comporta, quando esta mulher judia que foi vítima de repreensões anti-semitas foi capaz de inferir que não há matéria jurídica para condenar-se os oficiais nazistas que empurraram milhões de judeus a câmaras de gás. Isto porque na Alemanha hitlerista não constituía crime exterminar judeus. Eles haviam criado o seu próprio o mundo e definido o que era crime e o que era justo, cabendo, deste modo, a todos alemães cumprir a lei. É assombroso ver as coisas desta maneira, sobretudo, quando dentro do enredo em análise ocupas a posição de vítima. Mas é a assim que o processo de compreender devia ser conduzido, livre de manipulações e sensacionalismo dos factos.

 

Deste modo, quando nos pomos a compreender, declaramos ao mesmo tempo guerra contra o preconceito. Ou seja, o acto de compreender em si já é uma desconstrução de todo o tipo de preconceito que havia ganhado um espaço na mente, atravancando-lhe a progressão a novos horizontes. Todo e qualquer preconceito é, de certo, o efeito de uma ferrugem na nossa mente. Uma mente que labora não abre espaço para a consolidação de um juízo concebido de modo acrítico. Pensar é, por conseguinte, desconstruir velhos hábitos mentais em busca de novos sentidos.

É tão prejudicial à mente quanto é perigoso para o mundo que a humanidade continue a guiar-se de ideias velhas com isenção a dúvidas. O perigo final de uma humanidade acrítica estaria em proferir sentenças antes do julgamento.

 

Urge sempre julgar antes de condenar, pensar antes de agir, escutar antes de falar. É mediante estas precauções que julgo ser importante compreender o ser gay no mundo. Em quase todos os cantos do mundo, indivíduos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) sofrem perseguições e descriminações devido à sua estranha orientação sexual. Mas será que já pensamos com afinco a condição dos LGBT no mundo ao ponto de adoptarmos uma dada forma de tratamento para com eles? Os nossos juízos sobre os LGBT serão uma herança sócio-cultural com interesses implícitos de proteger o mundo contra a complexidade de que é feita a realidade? Se assim o for, então como humanos procedemos mal, pois não podemos fundamentar a nossa relação com gays a partir de um preconceito sócio-cultural ou histórico desprovido da crítica do nosso próprio pensamento. A forma justa de julgar a condição dos homossexuais no mundo não se deve basear em princípios sócio-culturais incluindo a religião, pois estes elementos variam de espaço a espaço geográficos. No mundo, há sociedades, culturas e religiões tanto mais homogêneas como mais heterogêneas. Sendo assim, se tivéssemos que julgar a causa dos gays, teríamos sentenças dispares em diferentes locais sócio-culturais. Seriamos forçados a compreender a comunidade LGBT em função de como nós fomos criados pela família, sociedade e religião. Julgando deste modo, seriamos de seguida forçados a condenar toda a humanidade homossexual em geral, por meio de instrumentos particulares que são a família, a sociedade, a cultura, a religião, o Estado, etc. Precisamos basear o nosso julgamento em um denominador universal. Algo comum a todos os homens que é a razão. Somente a partir do exercício da faculdade racional, somos capazes de julgar os gays em si, não como eles são sob o ponto de vista da nossa cultura, sociedade e religião que nos são elementos relativos.

 

Para objetivarmos o debate sobre o ser gay no mundo, proponho de seguida três questões que julgo ser justas para um livre raciocínio. Primeiro: uma pessoa é nascida gay ou se torna gay? Esta questão afigura-se difícil de responder, pois a ciência ainda não chegou ao nível de decifrar códigos genéticos ao ponto de nos informar sobre uma provável configuração de orientação sexual. Se nos desse esse conhecimento, estaríamos certo que pelo menos se nasce gay ou não. Entretanto, o facto de não podermos ainda averiguar a orientação sexual a partir da estrutura biológica não nos é razão suficiente para inferirmos que os homens não são nascidos gays, mas tornam-se gays com tempo. Tal conclusão careceria de evidências, visto que a refutação da hipótese X não é suficiente para validar-se a hipótese Y.  É certamente preciso que se traga provas existencialistas que demonstrem que homens são movidos a tornar-se gays pelo tipo de ambiente em que vivem. Mas já se ouviu algures que há homens que escolhem ser gays como forma de ganhar dinheiro ou sobreviver. Para este tipo de caso, é importante notarmos que este homem que se submete a actos de homossexualismo para conseguir dividendos não pode ser identificado como gay, pois a sua entrega ao mundo de homossexuais não é livre e voluntária, mas forçada pela falta de condições financeiras. Isto quer dizer que uma vez suprida a necessidade de dinheiro, o indivíduo poderia abandonar a vida de gay e retornar à condição primária de um heterossexual. Mas ser gay não pode compreender ser impostor. Indivíduos que praticam actos homossexuais não por livre vontade não passam de falsos gays. Não basta que um homem faça sexo com outro homem ou uma mulher com outra mulher para que possam ser considerados gays, é necessário que o acto sexual tenha resultado de um desejo erótico entre ambos os indivíduos. Caso contrário, então seria legítimo que um indivíduo que fosse estuprado por outros homens fosse considerado gay só porque fez sexo anal. O desejo erótico por um indivíduo do mesmo sexo é o pressuposto imprescindível para que alguém seja considerado um homossexual. Sem desejo erótico não há determinação de orientação sexual. E donde nasce o desejo erótico? Do inconsciente ou consciente? Ou seja, o leitor é capaz de dizer se, em alguma parte da sua vida, precisou escolher a sua orientação sexual ou isso sempre esteve a cargo do instinto. Eu julgo que os homens não tiveram nenhuma fase da vida em que tivesse de deliberar a sua orientação sexual, antes de ter o desejo erótico. Parece-me que a orientação sexual não é determinada pelo consciente ou reflexão, mas pelo instinto sexual, pelo acontecer. Um bastou olhar ou tocar para apaixonar-se. E não que “um bastou pensar na Bíblia que diz que o homem e mulher foram feitos um para outro” para, depois, ter desejo sexual por uma mulher. O desejo erótico acomete o homem independentemente do que a sociedade, o Estado, a religião diz sobre relações sexuais. O homem só refreia o desejo sexual quando se encontra num ambiente hostil em que a tolerância seja zero, mas nunca precisou consultar a razão ou a sociedade sobre que gênero ele devia sentir atração sexual – o desejo foi sempre espontâneo como o de um gato que não precisou esperar que a mãe lhe dissesse que era tempo de perseguir o rato. Viu, logo, correu atrás. Esta ordem de ideias nos leva a inferir que o homem já nasce com instinto sexual por um determinado gênero. Se não somos nós quem define a nossa própria orientação sexual, então não nos tornamos homossexuais ou heterossexuais, nascemos já definidos. Ficamos somente à espera de uma ocasião para despertar o desejo erótico, sem nos surpreender com isso, de tanto natural que nos é. O argumento de que o tipo de infância que vivemos quando pequenos pode configurar ou adulterar a nossa orientação sexual é dúbio, pois as experiências infantis não são lineares ou coerentes no sentido de que uma criança que tiver sido tratada desta maneira vai infalível ou provavelmente adquirir um comportamento sexual desta natureza. Isto é, há adultos que, não obstante tenham, durante a infância, sofrido algum tipo de abuso sexual ou brincado de coisas de meninas, são heterossexuais, bem como há adultos homossexuais, mas que, quando crianças, os pais tiveram todo o cuidado de educa-los como rapazes e não como raparigas, de tal forma que a família chega a surpreender-se quando descobre a inesperada orientação sexual do filho. Para alguns filhos, a orientação sexual como um dado nato, chega a transparecer durante a infância sem ter tido sofrido nenhuma influência dos pais. Às vezes, numa família de três meninos, um deles mostra-se mais entusiasmado em brincar com bonecas e não com futebol ou outros jogos mais apreciados pelos homens. Nestes casos, há razões suficientes para se dizer que é a natureza por excelência a expressar-se e concluir-se que o homem não se torna gay ou heterossexual, mas já é nascido assim.

 

A segunda questão: pode mudar-se a orientação sexual de um ser humano? Julgo imprescindível a resposta para esta questão antes de ditar-se a sentença de uma pessoa LGBT. Se admitirmos que há mecanismos pelos quais se pode transformar um homossexual em um homem heterossexual, então deve-se também aceitar que o caminho inverso é possível: um heterossexual tornar-se homossexual, pois em ambos os casos estamos a lidar com orientação sexual. Caso haja tais mecanismos capazes de mudar as vontades eróticas dos homens, torna-se, portanto, sensato converter-se os gays em heterossexuais e considerar-se o homossexualismo uma anomalia. Deste modo, pelo menos, ter-se-ia como base de argumentação a reprodução da espécie humana e a combinação perfeita dos órgãos genitais entre homem e mulher para justificar-se que todos os homens sejam heterossexuais. Entretanto, observando-se a história dos homens, ainda não se encontrou essa fórmula mágica de curar os indivíduos de homossexualismo. Do que se sabe são histórias de homens que passaram uma parte da vida ocultando a sua verdadeira orientação sexual, por temer a descriminação social e, ou, familiar. Em certos casos, estes homens camuflados chegaram a construir família com mulheres de quem não sentiam nenhuma atração libidinosa. Se chegaram a sentir tal desejo sexual por mulheres e, mesmo assim, posteriormente sentiram uma atração pelos homens, é mais provável que se trate de um caso bissexual. Porém, julgo inconcebível que um homem que tenha sido domado pela vontade de possuir uma mulher, perca de vez essa volúpia e seja domado pela vontade de possuir outro homem. Esta metamorfose do desejo sexual afigura-se-me improvável de acontecer, excepto na condição de um ser bissexual que deseja simultaneamente dois sexos. Normalmente, o homem ou mulher homossexuais experimentam, em algum momento da vida, uma confusão de orientação sexual, não porque sejam domados por uma vontade bissexual, mas devido ao meio fortemente sócio-heterossexual em que se encontram. Eles sentem-se obrigados a forçar o gosto pelo sexo oposto e reprimir o gosto pelo mesmo sexo. Mas porque a natureza é inalterável, porém camuflável, chega uma fase em que o indivíduo não mais consegue conter os seus instintos sexuais e decide desafiar o mundo, saindo do “armário”. Sobre este fenómeno, estaríamos enganados se pensássemos que o mesmo indivíduo teve duas fases da vida em que alternadamente sentiu desejo sexual tanto pelo homem como pela mulher. A mudança de orientação sexual é, por enquanto, impossível, salvo em condições futuras em que o conhecimento genético poderá estar avançado para adulterar os instintos sexuais.

 

Terceira questão: qual fim último do homem na vida? Ou seja, o que há de comum que os homens buscam em todas as suas actividades?  Uma reflexão profunda já feita por Aristóteles deu como resposta “a felicidade”. Embora plausível, esta resposta é ainda discutível, pois por mais exótico que seja nem todos os homens colocam a felicidade como uma prioridade na vida. Há gente que prefere ser um génio preocupado a ser um simplório feliz. São excepções raras, porém reais. Mas, em geral, os homens sentem-se mais cômodos em fazer coisas que lhes causa prazer e não dor. E, por conseguinte, se entende que a vida só faz sentido quando há cumprimento da vontade e não a sua constante repreensão. Desde modo, urge perguntarmo-nos se, de facto, vale a pena impedir os gays de viverem felizes devido à sua orientação sexual que fere com nosso padrão social? Seria o mundo um lugar pior se permitíssemos que os indivíduos buscassem a felicidade à sua maneira, desde momento que respeitassem a nossa? Todo o esforço que exerceremos no combate contra LGBT afigura-se-me vil e mesquinho perante a felicidade – um direito natural de todos os homens. Julgo um crime contra humanidade condenar indivíduos LGBT à soledade, quando com ou sem eles, a vida dos indivíduos heterossexuais continua normalmente. Julgo injusto o apelo à extinção dos LGBT, por meio de discursos de ódio, quando a vida é já tão complicada quanto breve. O mundo é feito de pessoas diferentes. Os LGBT não ameaçam a condição dos heterossexuais no mundo de modo algum. Tudo quanto pedem é o direito de amar em função da sua orientação sexual. É ainda por esta razão que os transexuais se submetem a cirurgias para conseguir adequar o seu corpo à sua orientação sexual. O que, deveras, se nos afigura monstruoso: uma mulher no corpo de um homem ou uma mulher num corpo feminizado? Nós somos pensamentos e sentimentos. Se temos desejos e imaginações de machos é porque somos essencialmente homens. E, se assim, preferirmos, devíamos mudar o nosso corpo em função dos nossos desejos e pensamentos. A alma facilmente experimenta a felicidade quanto mais cumprir com a vontade da sua natureza.

 

Conclusão: se o homem nasce já com orientação sexual predefinida, e não a pode alterar e, em geral, a coisa mais importante na vida é a felicidade, então as pessoas LGBT merecem viver livres. E mesmo que as pessoas LGBT pudessem escolher a sua orientação sexual, se isso lhes causa satisfação e de modo algum ameaça a condição dos heterossexuais no mundo, que sejam permitidos ser livres. O mundo é feito de pessoas diferentes.

 

Eu sou a pedra no meio do meu caminho.

gostaria de esquecer que vivo tropeçando em mim

Carlos Drummond de Andrade

 

29 poemas intrinsecamente ligados fazem o novo livro de Adelino Timóteo, o qual, conforme observa Carmen Lucia Tindó Secco, a pedra expressa uma metáfora carnal, sensível, material, e, dizemos nós, sempre a partir de uma associação ao eu feminino, observa-se, enquanto um ser ideal, platónico se quisermos. Na verdade, A volúpia da pedra é uma selecção de textos na qual o poeta concebe a mulher como um ser duro e cintilante, resistente e com peculiaridades inabaláveis, mesmo quando expostas ao tempo ou às metamorfoses da vida.

Numa poesia construída à base do bom gosto e obsessão, cruzando com algumas especificidades típicas do erotismo whiteano, Adelino Timóteo desencadeia, a partir da pedra, um processo de transporte de significados que diminuem a tão profanada fragilidade feminina. Ao mesmo tempo que o poeta pinta aquele entidade com as cores da sedução, artimanhas que a permite prender e vencer a pujança do mais astuto galanteador, enaltece a mulher, como lhe é particular, como musa, força motriz: “Amo na pedra a tangível loucura do amor, o perfume que não fosse por ela, por essa mulher, jamais vos escreveria esses alegres versos” (p. 11).

A pedra timotiana, chamemos-ma assim, convictos de que quem diz pedra aqui também invoca mulher no mesmo substantivo, é afável, explosiva, letal e vertiginosa, veículo no qual o desejo, a vaidade e as fantasias transportam-se na personificação masculina.

Neste sumptuoso percurso pelas ancestrais emoções, com A volúpia da pedra Timóteo cria fascínio e alucinação num universo sublime, talvez porque, como nos sugeriu Martins Mapera, na apresentação da obra, “na tradição, a pedra ocupa um lugar de eleição. Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Segundo a lenda de Prometeu, procriador do género humano, as pedras conservam um odor humano”.

Seja como for, nem sempre a pedra aparece como personificação da mulher, como defendem Secco e Mapera. No poema 24 e 25, por exemplo, a pedra aparece e funciona como tudo aquilo que, sendo exterior ao sujeito de enunciação, surge-lhe na velocidade de um engenho acutilante para o magoar: “Por vezes a pedra dói, dói febril, não no impulso com que a arremessamos, mas no impacto que nos causa antes de a propulsarmos” (p. 35). E mais adiante, no mesmo texto: “Sorride vós génios da literatura. Pois se algum de vós detesta o brilho estelar dessa pedra, que me levita ardorosamente, atirem-ma (…). Às vezes a pedra não só fere o olhar como nos dói antes de se nos beliscarem o osso, a pele” (p. 35)

Nos poemas 24 e 25, até pelo tom carregado de resignação interior, percebe-se que a pedra, sendo objecto singular, liberta sentimentos múltiplos, já que pode ferir e encantar. Provavelmente, é um recurso para lembrar como a doçura e o azedum são essencialmente duas faces da mesma moeda; como a mulher pode ser realização e/ou perdição, a chave de cadeia dita pelos brasileiros. Ela é potência e energia. Por isso pode construir castelos e gerar ruinas.

Este livrinho de Adelino Timóteo merecia mais páginas – são apenas 27 –, mesmo porque o jogo sobre a transferência de significados entre os objectos é frutífero para enriquecer o tema tratado. Ainda assim, a profundidade dos enunciados dos textos tornam o livrinho considerável, apto para uma boa aventura pelos planetas de que a mulher é feita.

 

Título: A volúpia da pedra

Autor: Adelino Timóteo

Editora: Alcance Editores

Classificação: 15

 

 

A poesia transforma a pedra, a cor, a palavra e o som das imagens. E essa segunda característica, ser imagens, e o estranho poder, que elas têm de suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de imagens, fazem todas as obras de arte poemas.

(PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 30-31)

 

Para Octavio Paz, a criação artística transfigura as matérias da realidade em imagens, por intermédio de um labor estético com diferentes linguagens. O escultor, por exemplo, transforma a pedra em escultura. O pintor recria a pedra em cores e formas. O poeta faz da pedra a lousa de sua escrita, convertendo-a em palavra e metáfora.

Começo este prefácio com a epígrafe de Paz, pois, poeticamente, ela sintetiza o trabalho de Adelino Timóteo como poeta, em seu novo livro A volúpia da pedra. Neste, a pedra assume uma multiplicidade de significados e variadas formas: a superfície lisa e/ou circular; a superfície de poros, relevos, porosidades; a superfície escaldante pelo sol que lhe cai e a enche de calor e sensualidade. São, portanto, inúmeras as materialidades e afetividades presentes nessas imagens da pedra. Às páginas 2 e 3, o sujeito poético declara amar, na pedra, a mulher que pode sentir: a sua carnalidade, o seu fluir líquido, em meio ao suor, ao tato, ao olhar, a “todos os sentidos”.

Seguindo essa ideia de materialidade afetiva, a pedra é plasmada, no livro, como corpo fluido, arredondada matriz, cuja fina sensibilidade e o torpor febril se transformam em imaginação criadora. Ela é também descrita e caracterizada como um elixir da volúpia, como mistério, halo místico que adentra o coração da poesia, a geografia do corpo, a polissemia dos desejos, tornando-se tempo filosofal, templo, casa. A pedra, como casa, terra, estrutura habitável também do amor, converte-se em local de afeto e poeticidade para o eu lírico que, à p.11, confessa: “afundar-me-ia como uma arca encalhada  em terra,  ou  na  redonda  e  transbordante  pedra  do  teu ombro em delícia e êxtase”.

A relação com a mão que escreve e destila poesia energiza e circunda a figura da mulher amada. “Agarro a pedra, a substância com a qual navego e me sustém ao chão” (p. 15). A pedra seduz, explode em mil alucinações poéticas: “Entre um tacto meu e o da pedra, degrau a degrau, corpo a corpo, a poesia singra. Está  calada,  poesia.  Passa  por  ti  um sulco,  os  olhos  esbugalhados  quando  há  fome,  a  guerra  e  a miséria” (p.18). A feitura de um poema exige muitas maneiras de construção, sensibilidades, clarividências e maldições; volúpias, argúcias e percepções: “Precisaria aqui da claridade e da lucidez de Bukowski para me explicar como se faz um poema” (p.22).

Bukowski foi considerado um dos poetas malditos, cujas poesias trabalhavam os subterrâneos da vida. Adelino Timóteo, convocando-o, coloca-se, neste livro, sob sua linhagem e, nesse aspecto, segue a vertente aberta na poesia moçambicana por Rui Knopfli e Luis Carlos Patraquim, assumindo, também, forte hermetismo de linguagem e elaborado labor estético.

Em A volúpia da pedra, Adelino relaciona, de muitos modos, a poesia à mulher amada. A pedra expressa esta metáfora carnal, sensível, material, que percorre sua escrita. Poesia e pedra se articulam num mar de palavras. Por isso, às páginas 27 e 28, o sujeito poético sente “a garganta seca, as costas ardentes, o doce vulcão do fogo (…), a saliva esgotada depois dos versos (…), mar de palavras e vazio de palavras, (…) contradição (…), fogo, calor, água. A pedra ovula”.

Ovular quer dizer o que tem condições de nascer: semente de nova vida. “Olho a belíssima e fulminante pedra na sua arquitectura, na sua abstracta perfeição e repito: tu eras aquilo que eu iria sugerir aos editores que publicassem em forma de livro” (p.20). Pedra e poesia se irmanam. No final do livro de poemas imaginado e criado, o eu lírico faz sua própria hermenêutica poética: “Sou todo a natureza de um ser sem nenhuma ambição (…). Sinto muito por aqueles que se despenderam  em  elogios  públicos  ao  que  nunca  quis nem esperei (…). Aos que me elegeram poeta, abençoo-os, porque no fundo amaram-me em conformidade com  aquilo  que  acreditaram” (p.25). O poeta faz sua autocrítica, ou seja, efetua, metapoeticamente, em seu livro A volúpia da pedra, uma arquitetura poética da desconstrução.

A segunda metade do século XX trouxe à tona questionamentos interessantes sobre a representação nas artes e na arquitetura. A pedra é um material importante para a construção, mas também, para a desconstrução. Ela pode relacionar-se com a metáfora da construção e ser um elemento fundamental para uma representação literária. Uma rede de entrelaçamentos materiais e poéticos estão presentes neste último livro de Adelino Timóteo.

Pensar o outro, pensar a partir do outro é pensar o acolhimento das diferenças. Jacques Derrida foi um filósofo importante para a teoria da desconstrução. Desconstrução que, paradoxalmente, também constrói. O pensamento de Derrida desencadeou discursos sobre a representação e permitiu ir além das especificadas pela arquitetura tradicional. Ele fundou uma nova arquitetura, a do descentramento. Uma arquitetura da pedra, uma arquitetura descentrada da linguagem poética.

No livro A volúpia da pedra, de Adelino Timóteo, o poeta se exercita nesse tipo de arquitetura da desconstrução-construção do discurso literário. Vai além da simples representação convencional e faz “a pedra ovular”. “E, na sua presteza para gerar, uma cria singra dentro dela. Está quieta, poesia. Está quieta, língua” (p.28).

As mãos, então, arquitetam-se “a arranhar o céu da pedra, a boca sôfrega. Sufragam a respirar a brisa do ulmeiro, percorrem tão funda, como um rio de seixos. Em liberdade. Para sempre. O que é um acto sublime de amor. Agradecer-te e à pedra esses genes e fenos da poesia.” (p. 28).

Com certeza, a pedra, a poesia e o amor se encontram e irão voar em múltiplos sentidos, não só na poesia de Adelino, mas também na poesia moçambicana como um todo e na mundial.

Octavio Paz, em O arco e a lira, diz que os homens transmudam pedras, cores, palavras ou metais em objetos. Os artesãos constroem utensílios; os escultores, pintores e poetas convertem esses materiais em obras de arte. O destino da linguagem nas mãos de poetas e artistas nos leva a entender os significados dessa diferença. É o que ocorre, também, em relação à poesia de Adelino Timóteo, na qual a pedra triunfa na volúpia da linguagem, realizando o esplendor próprio da arte.

Corre o mundo a polémica pontuação de Luca Modrick como melhor futebolista do Mundo, deixando para trás os sonantes nomes de Messi e Ronaldo. Os métodos e bases usados foram muito questionados, aventando-se hipóteses de corrupção com compras a jornalistas de premeio.

O assunto da premiação, nem sempre é levado tão a sério como merece. É preciso equacionar com mais rigor os efeitos e o poder que os prémios podem exercer, muitas vezes contrários aos pretendidos.

E se lá fora existem fragilidades como a que referimos, imagine-se internamente.

Cada um dá o que pode mas…

Uma empresa ou um empresário em nome pessoal, decide oferecer um prémio à Liga de Futebol, destinado ao melhor jogador. Foi o que aconteceu no caso da viatura oferecida a Telinho, como estrela do ano do Moçambola. A partir daí, vem a azáfama para definir critérios de atribuição, nem sempre muito claros, neste caso com base nos votos dos jornalistas desportivos (quais?) e na votação popular em percentagens muito discutíveis.

A partir desses pressupostos, o espaço de manipulação é imenso. E quando se vai atribuir um automóvel apetecível ao líder, não se prevendo nem uma mota ou bicicleta para o segundo e terceiro posicionados, que efeitos globais se podem atingir?

O prémio “top” vale 4 milhões de meticais e os acompanhantes ficam a “chuchar no dedo”. Desta forma, está-se a tentar criar um factor motivador, que poderá ter efeitos contrários.

Indivíduo acima do colectivo?

O futebol é um desporto em que os grandes triunfos pertencem ao colectivo. No caso em apreço, pode-se estabelecer uma comparação que reforça a necessidade de uma ponderação mais global.

Como entender que numa mesma modalidade e temporada, um jogador ganhe um prémio individual de 4 milhões e uma turma – neste caso o Costa do Sol, vencedor da Taça – após eliminar vários adversários na segunda mais prestigiada competição, tenha recebido na final a módica quantia de 500 contos! Se é que os “canarinhos” decidiram dividir o valor, digamos por 16 jogadores, mais treinador e dirigentes, num total de 20 pessoas, o prémio ficou em… 25 mil meticais, cerca de 160 vezes menos!

Pesos e medidas totalmente diferentes e divergentes, sob a alçada, da mesma entidade: a Federação de Futebol.

A falar é que nos entendemos

Que fique claro que não defendemos a recusa, ou a extinção dos prémios, algo que até deve ser estimulado. Porém, o rigôr, a seriedade e a transparência, são de importância vital. Este não é um assunto que, a cada temporada, pode ou deve estar apenas à mercê do que vier, como se de um Totobola se tratasse. O que está em causa é o aumento da motivação dos artistas e o seu empenho. Falando, ponderando e equacionando com os patrocinadores que de boa vontade querem colaborar, facilmente se chegarão a pontos de equilíbrio, de forma a não alegrar uns, frustrado os outros.

Há, portanto, que reduzir a margem de erro ao máximo, de tal sorte que vencidos e vencedores se sintam felizes, de forma a partirem para novas batalhas com a motivação em alta.

 

Quando o chefe do quarteirão a notificou para um encontro a dois, Celeste desconfiou logo do Sr. Raimundo. Afinal, a notificação chegara em suas mãos, no dia após ela lhe ter “dado corrida”. Ela não lhe podia coser o zíper das calças encardidas, sem que ele as lavasse e lhe fosse entregar para que Celeste, a seu tempo, procedesse ao seu ofício, ao contrário do imposto por Sr. Raimundo:

– Mas dona Celeste, não tenho outras calças! O que lhe custa coser o zíper enquanto eu as tiver vestido?
– “Enquanto eu AS tiver vestido”? Sr. Raimundo, onde é que aprendeu a falar assim?! Heheeeee, é para eu me render? Já te disse que eu não coso roupa de ninguém, quando alguém vestir essa roupa! Você quer ser cosido? Não me arranja problemas, eu. Por que não amarra capulana da tua namorada?
– … me empresta você sua capulana, quando eu tirar minhas calças no teu quarto…

Dona Celeste era modista de roupa masculina, por essa razão é que apenas homens entravam em sua casa. Sr. Raimundo costumava contar os homens que entravam em casa de dona Celeste por dia e cronometrava o tempo de estadia. De lá, os homens não saiam em menos de uma hora e todos eles beijavam a mão de dona Celeste, em jeito de despedida.

Moçambicanos beijarem mão? Wha, isso só pode ser coisa da cabeça dela! – analisou Raimundo.

– Dona Celeste, dona Celeste, dona…
– O que foi Sr. Raimundo?!! – gritou dona Celeste, quando sentiu a mão de Sr. Raimundo no seu pulso. 
– Não sei se… — foi interrompido por dona Celeste, quando erguia sua mão em direcção à boca. 
– O que é isso, Sr. Raimundo! – repeliu-lhe a mão.
– Afinal não é assim que se cumprimenta a Sra?
– Por favor! – atirou o antebraço para trás, enquanto se distanciava do Sr. Raimundo, que ficou para trás, desfrutando daquele abanar de ancas, que na alternância, ajudavam a formar uma concavidade que fazia daquela loxodromia propensa a acidentes. Raimundo queria merecer beijar aquela mão.

Depois dos seus “biscates” habituais, Raimundo passou a frequentar aulas de português, na igreja presbiteriana do bairro. Queria fazer de tudo para cativar aquela à quem ele deveria ser amante… também.

O padre ofereceu-lhe roupas novas. Para que dona Celeste lhe visse nelas, passou a sentar-se no seu banquinho lá fora, a espera de ver dona Celeste à porta, a ser beijada a mão, pelos seus clientes. Raimundo passou a gritar “Dona Celeste”, acenando-lhe a mão, cada vez que um cliente saísse. Depois de um tempo, dona Celeste já não saía. Os clientes fechavam a porta sozinhos, olhavam em direcção ao Sr. Raimundo, como se já soubessem o motivo da sua quase inércia. Um dia, um deles ia caminhando em sua direcção. Sr. Raimundo levantou-se, como quem estivesse a recolher-se. Quando alcançava a fechadura da sua casa, o cliente de dona Celeste disse:

– Não fuja, sr. Raimundo!
– Diga?
– Não fuja, venho só dar-lhe um recado…
– Estou muito atrasado, não vai dar para ouvir recado de ninguém! – exaltou-se defensivamente. 
– … a dona Celeste quer vê-lo!
– O quê? Passa-se alguma coisa com ela? – puxou as calças à cintura enquanto arrastava os seus chinelos de borracha preta, de fabrico artesanal. 
– Não! Ela disse que está livre para lhe coser as calças … – disse o Sr., sorridente, como se soubesse que Raimundo há muito que esperava por tal serviço!
Envergonhado, Raimundo olha para o Sr. e sorri, acompanhando sua trajectória, sem que se mexesse. 
De seguida entra à correr para a sua palhota, veste a primeira camisa que encontra e vai à correr para a casa da vizinha. 
– Raimundo! – grita Celeste, numa voz altamente debilitada. 
Raimundo corre para o fundo do corredor da rica casa de cimento, de onde calculou ter ouvido a voz desgastada. Quando entra para o quarto, não acredita no que vê …

Dona Celeste estatelada no chão, nua, trémula, a sangrar da vagina.

– Mas o que é isto, caramba, pah? Só me chamas para isto?
– Por favor, Raimundo, chama a polícia! – chorava a dona Celeste. 
– Tens certeza que isso não é menstruação? – pergunta Raimundo, enquanto anda de um lado para o outro pelo quarto, cogitando sobre o que fazer. Segundos depois pega nos braços da senhora choramingona e grita:
– E se eu continuasse o serviço daquele alí, hein? Porque só me chamas para porcarias? Não sou elegante para ti? Não sou elegante, né? Já não tenho aquelas calças podres! Já não preciso ti para me coseres nada! O que vais fazer comigo se não te foder agora, hein?

Raimundo sai à correr, na promessa de ir chamar um táxi. Ninguém do bairro deveria saber do sucedido. Seria um segredo deles. 
Dois dias depois, dona Celeste teve alta. Pela janela, Raimundo a viu chegar. A Sra. olha para a palhota de Raimundo, hesitante se para lá se dirigia ou entrava primeiro em sua casa. Seguiu em frente, na segunda hipótese.

Decepcionado por notar que homens continuavam a entrar em casa da dona Celeste, Raimundo voltou a sua resguardada posição, dentro de casa, de joelhos no seu banquinho, a acompanhar dona Celeste por aquele tímido ângulo da sua cortina.

Raimundo tirou alguns dias de “folga” pois perdera ânimo. Já não se pendurava tanto no banquinho. Passava mais o tempo no seu colchão, a olhar para o tecto, escutando música de Roberto Carlos, com o volume muito alto. Ouviu a voz de dona Celeste chamar por si. Coisa da sua imaginação. Virou para o lado. Depois ouviu baterem à porta violentamente.

– Entra! – gritou. 
Raimundo levantou-se apressuradamente do colchão, quando viu dona Celeste a estender-lhe um prato de comida. Dirigiu-se à sala e desligou o aparelho.

– O que estás a fazer aqui? – perguntou ele, cabisbaixo, coçando a barriga. 
– Vim ver como está o meu amigo, dar-lhe um pouco de comida porque nunca mais lhe vi, nem na baixa, nem sentado la fora e… trouxe-te umas calças, feitas por mim!
– … afinal coses? – perguntou Raimundo admirado!
– Sou modista e não prostituta, Raimundo… vamos comer?
– E aqueles homens todos?
– Nunca dormi com clientes, eu… da minha livre e espontânea vontade!

Fim
 

A capacidade de raparigas e mulheres controlarem seus próprios corpos é fundamental para o seu empoderamento. Proteger e promover os direitos reprodutivos – incluindo o direito de decidir o número, o tempo e o espaçamento entre crianças – é essencial para garantir a liberdade das mulheres de participar plenamente da sociedade. No entanto, as raparigas e mulheres nos países em desenvolvimento continuam a enfrentar desvantagens sistémicas, muitas vezes enraizadas em normas sociais que promovem a desigualdade generalizada de género e a violência baseada no género em todas as suas formas.

Numa visita recente à província da Zambézia, conheci a Joaquina, de 16 anos, que foi obrigada por familiares a se casar com um homem mais velho porque “ela era a mais bonita”. Joaquina engravidou rapidamente e depois de um longo parto contraiu fístula obstétrica, uma das mais trágicas complicações do parto. Um buraco entre o canal do parto e a bexiga ou reto causado por trabalho de parto prolongado e obstruído sem cuidados médicos, deixa as meninas e as mulheres com vazamento descontrolada de urina, fezes ou ambos, e muitas vezes leva a problemas saúde crónicos, abandono da família, depressão, isolamento social e pobreza extrema.

Em todo o mundo, estima-se que 16 milhões de raparigas entre os 15 e os 19 anos de idade dão à luz todos os anos, com 90% destes nascimentos de adolescentes ocorrendo dentro do casamento (Girlhood, Not Motherhood, UNFPA 2015). O casamento prematuro é uma violação dos direitos humanos e uma forma de violência que nega às raparigas a sua infância e as coloca em risco de gravidez precoce. O parto em idade precoce está associado ao aumento dos riscos para a saúde materna.

Durante anos, Joaquina não sabia que sua condição tinha cura, nem seu marido, que acabou por deixá-la. Ela acabou por partilhar que, apesar de seu sofrimento, ela ainda participou no parlamento local onde, depois de contar a sua história, alguém a incentivou a procurar tratamento.
Agora, Joaquina sente-se novamente como mulher e luta para que as meninas da sua comunidade se protejam do casamento infantil e evitem engravidar precocemente. Joaquina, como mentora do programa de empoderamento, Rapariga Biz, está usando sua voz para influenciar a mudança. Seu sonho é tornar-se uma professora para continuar a influenciar a próxima geração de meninas a fazer escolhas saudáveis ??e informadas.

Como mãe de duas filhas que estão sendo criadas para exigir e expressar seus direitos humanos, sinto orgulho de Joaquina como se ela fosse uma das minhas. Ela está usando uma experiência pessoal terrível para informar os outros sobre os perigos da gravidez precoce. Tenho o prazer de ser uma líder no Fundo das Nações Unidas para a População, UNFPA, que trabalha incansavelmente para garantir a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos dos jovens em todo o mundo.

Rapariga Biz é um programa conjunto das Nações Unidas, financiado pelo Reino da Suécia e pelo Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido, que visa capacitar 1 milhão de raparigas e mulheres jovens em 2 províncias moçambicanas, 70% desse grupo etário, até 2020. O programa reúne múltiplos parceiros, desde o Governo de Moçambique, sociedade civil, agências da ONU até aos meios de comunicação para garantir que as raparigas adolescentes tenham acesso a educação, informação e serviços de saúde, justiça e competências para a vida sobretudo através de mentoria de pares. Os resultados iniciais estão a demonstrar elevada diminuição no casamento precoce e gravidez entre os participantes.
A Rapariga Biz também beneficia do Programa Global das Nações Unidas para Acelerar a Ação para Acabar com o Casamento Prematuro, que tem como alvo jovens de 10 a 19 anos em risco de casamento prematuro ou já em união, em 12 países. O UNFPA em Moçambique apoia a implementação de outros projectos semelhantes como o programa, Minha Escolha, financiado pelo Reino dos Países Baixos numa terceira província, bem como a Iniciativa Spotlight, financiada pela União Europeia, para eliminar a violência contra mulheres e raparigas, que visa acelerar a prevenção e resposta a violência sexual baseada no género e o casamento prematuro em mais três províncias.

Com estes e outros programas, estamos influenciando positivamente vidas de jovens, no esforço para reduzir a gravidez precoce e indesejada. Ao trabalhar em conjunto na busca de soluções locais, assegurar proteção legal, desenvolver a capacidade do governo e da sociedade civil para prevenir e responder à violência contra mulheres e raparigas, Joaquina e seus pares estarão a contribuir significativamente no desenvolvimento de Moçambique.

Nasci num domingo. Sem descorar de todos os acontecimentos importantes que foram ganhando existência ao domingo, este foi sempre, para mim, o melhor dia da semana. Desde que me desloquei do ambiente familiar, a importância deste dia da semana avolumou-se. Tenho as tardes de domingo reservadas para tornar irrisória a distância que se alojou entre Maputo e Lisboa. Falo, mas nada digo, nem? Explico-me: Nas tardes de domingo, a minha família em Maputo se junta ao redor do telemóvel. A euforia lhes faz companhia. E conversando ridicularizamos a distância que nos separa.

O tempo é um fio suspenso no qual vidas acontecem e ao se negarem cadentes tecem memórias.

Neste domingo tive uma conversa muito alegre com a minha avó materna, a vovó Lina. Minha avó materna e eu sempre nos tratamos por nkata, que significa esposa ou esposo. Por isso, como uma mulher ciumenta que vive longe do esposo passou toda a chamada a me cobrar satisfações sobre as supostas raparigas brancas com as quais a traio. Foi uma conversa deveras alegre, ponho-me a rir só de lembrar. O tema da conversa tornou-nos demasiado ocupados para evocar o passado, cabendo a mim agora fazê-lo sozinho.

Quando comecei a frequentar o meu ensino primário fui viver para casa da minha avó, tinha ainda quatro anos de idade, quase cinco, e saía de uma casa onde morava com cinco pessoas para outra onde moraria com mais de oito pessoas. Viviam na casa da minha avó alguns dos meus tios e primos, o meu irmão mais velho, Feliz, e com tempo se juntaram a nós mais tios, primos e o meu irmão mais novo, Filmão. Era sem dúvida um ambiente de uma família alargada. No início tivera muita dificuldade para me enquadrar. Era tanta timidez num só menino. Todos me dedicavam atenção especial, sobretudo a minha avó. Tornei-me bebé de vovó naquele período e com imensa gratidão reconheço que os meus tios e a minha avó se tornaram naqueles anos muitos dos pais que esta vida me tem dado.

Quando a sexta-feira trazia o fim das aulas voltava à casa dos meus pais para junto deles passar o fim-de-semana. Passava tudo tão rápido e nas tardes de domingo fazia o caminho de volta para casa da minha avó, onde passava vibrantes semanas. Ao início da noite daqueles domingos, minha avó punha-se muito atenta a escutar um programa da Rádio Moçambique. Ao longo do tempo foi convidando aos seus netos e à sua filha mais nova, a tia Melita, a lhe fazerem companhia naquela escuta que mesclava lazer e aprendizagens.

O programa em causa era uma novela radiofónica que se chama "Mabulo hiku yakana". Em cada episódio uma estória em changana, inspirada em temas sociais do quotidiano, se desenrolava. Ficar ali sentado com a família a ouvir aquelas estórias causava-me cócegas à alma, eu ria tanto. Era um dos momentos mais alegres da semana, e agora lembrando, digo, tornaram-se da vida. Não me lembro de haver televisão na casa da minha avó naquele período, muito menos energia eléctrica, por isso o rádio que funcionava a pilhas e jogos como txotxotxo (esconde-esconde), neca, zoto, papa e mamã e tantas outras brincadeiras que nos punham sujos era tudo o que tínhamos para passar o tempo. Desprovidos dessas modernices da actualidade eramos mais felizes, mais disponíveis a viver uns para os outros.

Vovó Lina, uma mulher de pouca escola (como tantas da idade dela em Moçambique), mas muito sábia, humilde e grande guerreira, nunca foi de contar muitas estórias. Sentar-se com os seus netos para ouvir as estórias que nos chegavam pela rádio foi, talvez, o jeitinho que ela encontrou para colmatar aquela lacuna. Sem dúvida, uma solução salomónica.

Quando criança declamava poesia na escolinha e agora iluminado pela luz desse halo que gira em torno de uma memória, como se completasse um puzzle que há muito me vencia, reconheço um gosto pela arte de narrar e ser narrado que me nasceu naquelas noites de domingo.

"Mabulo hiku yakana", para além de ser um clássico das novelas radiofónicas Moçambicanas, é um dos mais expressivos exemplos de como a literatura e a tradição oral sempre andaram de mãos dadas. Inspirado no meu exemplo, num tempo em que se fala de dar livros aos mais novos como forma de incentivar o gosto pela leitura, concordo com quem defende que o incentivo à leitura passa também por contar estórias aos mais novos, e, mais importante ainda, ler com eles os livros que lhes damos.

No presente fica a família ao redor do telemóvel para ridicularizarmos a distância, outrora ficávamos todos ao redor do rádio para escutar a radionovela e construir esta memória da qual sobejam amor, carinho, saudade e tantos outros sentimentos nobres. Ao viver de forma pública esta memória, expresso, desprovido de qualquer pudor, o meu agradecimento e orgulho por te ter por avó, nkata.

Martins Mapera

Universidade Zambeze

Nesta longa viagem, agarra-te à pedra como uma ogiva até à vertigem, capta-lhe as ondas como uma sonda, a compulsão pelo vácuo, dá-lhe a salivática substância do amor pelos beijos, aprofunda-lhe a carícia a diapasão com que a seguras e a vida que aflui nela. Acaricia-lhe até à medula.  Não a abandones. Dispa-lhe ao vento livre. Entra-lhe a cavidade funda das coxas, espreita-lhe as vibrantes cores. Delicadamente.

(Timóteo, VP, p. 12)

Na tradição, a pedra ocupa um lugar de eleição. Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Segundo a lenda de Prometeu1, procriador do género humano, as pedras conservam um odor humano. A pedra e o homem apresentam um duplo movimento de subida e de descida. O homem nasce de Deus e regressa a Deus. A pedra bruta desce do céu; transmutada, eleva-se em direcção a Ele. O templo tem de ser construído com pedra bruta, e não com pedra talhada: “porque tocando as pedras com o ferro profaná-las-ás” (Êxodo, 20, 25: Deuteronómio, 27, 5; I Reis, 6, 7). A pedra trabalhada não é senão obra humana; ela dessacraliza a obra de Deus, ela simboliza a acção humana substituindo a energia criadora. A pedra talhada era símbolo de servidão e de trevas.

Convoco os conceitos veterotestamentários a propósito do texto de Adelino Timóteo: A volúpia da pedra, que hoje vem a público, pelas mãos de Alcance Editores. Quando o Paulo Serra me convidou a apresentar o livro, antes de saber o título, fiquei hesitante, por duas razões: a primeira é que mal conhecia o Adelino Timóteo. Sabia que escrevia romances. Mas nunca o tinha lido. Conheci-o em 2017, através de Alex Dau, um amigo escritor moçambicano. A segunda, a principal, tem que ver com a minha agenda. Estou a escrever um ensaio inédito sobre Xiphefo, uma revista cultural produzida em Inhambane, por um grupo de jovens professores da escola secundária e da escola técnico-profissional, nos anos oitenta do século passado. Mas, ao me ser anunciado o título do livro, despi-me da sisudez que me é característica, traindo-a contra todos os riscos da depravação de não poder cumprir a meta e o prazo estabelecidos.

Para além de ser uma construção fecunda, o título do livro mexe com as sensibilidades; atiça o fogo2 das emoções e atrai o sexo erecto da mente do leitor. Pois, o substantivo “volúpia" significa sensualidade, erotismo, prazer, charme, luxúria, lascívia, lubricidade, libertinagem, ou, se quisermos, “sex appeal”. A feminidade do substantivo “volúpia” personifica a pedra, atribuindo-lhe um carácter humano e sobretudo um pulcro espirituoso de mulher fermosa e esbelta, masturbando, de forma belicosa, o olho masculino de gente incauta.

Adelino Timóteo é um escritor de civilização alta. Basta referenciar o facto de ter feito uma formação em Ensino de Língua Portuguesa e outra em Direito. As duas especializações formam, ainda, uma simbiose perfeita com a arte plástica, uma actividade consubstancial ao seu filão crítico. A sua obra poética e ficcional é bastante vasta para um menino de 48 anos, nascido num país com ausência grave de civilização canónica da escrita (Moçambique é essencialmente um país oral). E, na verdade, de acordo com os seus parâmetros estéticos e existenciais, não podia pensar e sentir a realidade de outro modo. A sua relação com a arte não tem que ver apenas com a sua formação intelectual, nem com a sua reguilice político-ideológica; tudo isso é espuma crítica obviamente perecível cujo fim chegará um dia. Mas a sua estrutura sentimental, o seu humanismo, as suas ambições puristas vão pulverizar a cultura, perpetuamente.

Sabe-se muito pouco de prémios atribuídos no campo político-ideológico: posso citar alguns: o “Nobel da Paz”, a “Boa governação” (criado pelo sudanês-britânico Mo Ibrahim), “prémio personalidade do ano”, e fica-se por aí. Isso vinga, enquanto político. Não cria história nem estrutura de uma personalidade atemporal. Mas há um contraponto claro no campo da literatura e das artes no geral, onde se cria um leque de seguidores e admiradores, como acontece em futebol, cinema, novela e teatro: arrasta-se multidões e fãs. Adelino Timóteo não está distante disso. O seu reconhecimento em prémios e galardões é indiscutivelmente testemunhal.

O livro que nos apresenta é a continuação de um projecto que começa oficialmente em 1999, com a publicação de Os segredos da arte de amar. E aqui, em Volúpia da pedra, está uma imagem perfeita de amor inscrito na matriz de dualismo platónico (corpo e alma); ou, matéria e memória, ensaiadas por Henri Bergson. Será esta obra a decifração do enigma criado em Corpo de Cleópatra (2016)?, porque, como se sabe, constitui um mito absolutamente enigmático o desaparecimento do corpo de uma mulher que governou Egipto em 305 a. C. e cuja descoberta configura um mistério para os historiadores, arqueólogos e para a humanidade.

Em A Volúpia da pedra está inscrita a imagem de Cleópatra, a última rainha da dinastia Ptolemeu, poderosa e sensual, pintada de jóias de ouro e pedras preciosas, diamantes, esmeraldas, safiras e rubis. Vejamos este trecho semanticamente significativo, extractado da obra de Adelino Timóteo: “Como posso amar uma pedra e senti-la assim vertiginosa, achá-la tão íntima ao que lhe corre interiormente, a sua feminilidade, quando lhe desço até a origem. Imaculadamente” (Timóteo, VP, p. 16). É difícil, incrível, indecifrável e misterioso. É-o, ainda mais, porque, apesar de tudo, o poeta dialoga com a pedra para encontrar as respostas adequadas: “Tão indubitável que de coração para coração a pedra fala-me, a pedra questiona-me, de tão incrível que me ama e o repete na sua constância, no fundo, porque me toca, a sinto um elixir de ouro. Um surto de maravilha pelos sentidos. A pedra doce. Com o teu rosto. A alma humana que a tripula, a língua no que parece indiferente quando me pode beijar, governar-me os sentidos. O rosto belo e filosofal” (ibid.).

Para o autor de Corpo de Cleópatra, a pedra é um objecto humano porque tem sangue que é bombeado por um coração de sentimentos, como nos sugere a passagem seguinte:

Na telúrica dimensão do canto, as pedras são essas flores carnívoras entre as coxas, unidas pelos fundilhos aos quais nos damos e juntos sonhamos, à devoção febril do amor, ao que se perscruta do fio a pavio a rebentação do fogo, a volúpia que as une e as distanciam no curto-circuito onde ele queima o tecido pélvico e o deixa a arder ao prepúcio descarnado e ao chapéu da glande (Timóteo, VP, p. 26).

Daqui se conclui que Adelino Timóteo é um enamorado alienado, mas jamais alheia os seus sentimentos, não alheia a razão nem a lógica de dualismo platónico, pois instiga perfeitamente o matrimónio entre a alma e o corpo. Mais do que isso, não é literatura, nem é cultura. É, sim, o mais negro-feitiço da arrogância!

Obrigado, Adelino Timótea, por nos sugerir esta cosmovisão erótica a sangue frio!

 

Beira, Centro Cultural do Instituto Camões,

10 de Dezembro de 2018

 

1- Na mitologia grega, é um titã da segunda geração. Segundo essa tradição, Prometeu é defensor da humanidade, conhecida pela sua astuta inteligência, responsável por roubar o fogo de Héstia (a deusa virgem grega do lar, lareira, arquitectura, vida doméstica, família e estado) e o dar aos mortais.

2- Luís de Camões define o amor nos termos seguintes: Amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói, e não se sente / é um contentamento descontente, / é dor que desatina sem doer.

“As grandes qualidades do homem vêem-se quando está sozinho. Mas também os grandes perigos. O isolamento, no entanto, é essencial.”

Gonçalo M. Tavares

 

É hora de te escrever, meu amor. Dobro as mãos, sujas de solidão e alongadas de frieza, sobre o peito deste laptop esquartelado e ajeito palavras para te escrever. Os teclados parecem que escondem as letras aos meus dedos e os números são os únicos que saltitam e recordam-me que faz muito tempo que não estás aqui. Escrevo e paro para vasculhar uma letra que não vejo. Do nada o “a” escondeu-se. Parece que sumiu neste conjunto de letras solteiras e presas em pequenos quadrados pretos; levanto-me, estico a coluna, deslizo a cortina e todos objectos molham-se pelo sol que se adentra pela janela. Uma rede com teias de aranha, filtra a gordura do sol antes de entrar. É um sol tenso e preso num formato circular que só cabe no seu brilho. Volto ao teclado e o “a” continua fugitivo. Faço um corta-mato e escrevo “mor”. Sim, escrevo “mor” porque o “a” parece que se afundou no estômago desse computador.

Escrevo-te neste dia que a cidade acordou com o rosto amarotado de nuvens cinzentas e com cicatrizes de chuva nos pés. Escrevo-te com as mesmas mãos que conhecem a gramática vital do teu corpo; as mesmas mãos que te carregavam nas escadas, que te colavam o corpo de cócegas, as mesmas que trocavam a lâmpada enquanto tu enchias-te de medo do escuro nos lençóis, as mesmas que te trancavam os atacadores das sandálias quando tinhas receio de esgotar a beleza inclinando, as mesmas que se uniam, formando uma pá escavadora, e carregavam-te do sofá até ao quarto; e tu toda diluída no sono.

Escrevo-te apressado pelo desejo de querer escrever-te sem nenhuma pressa. Pressiono as letras, no teclado, e do nada elas surgem uma a uma ordenadas por um sentido que não percebo. As letras surgem neste pequeno ecrã com muita rapidez; parecem erva daninha em tempo de chuva. Mas, estas palavras, estas letras não cheiram o suor da chuva e nem a cor do sol que derrete todos objectos aqui na sala. Estas palavras cheiram as pegadas de distância que hoje nos separam. Escrevo como um atleta, porque controlo o tempo no canto do ecrã e vejo a energia que me ainda resta para escrever e pensar em ti.

Esta sala, sem ti, virou um espaço amontoado de vazio e com pilares de silêncio nos cantos. A única coisa que se ouve, neste momento, é o ruído que o teclado provoca e a respiração asmática do meu peito nu. Não há sinal de vida sem ti nesta sala que deixou de ser um local de estar. O calendário pendurado pelo pescoço dum ano qualquer no prego da parede conta os poucos dias que me restam. E porque tenho poucos dias escrevo-te, “mor”. Continuo escrevendo “mor” porque o “a” ainda se esconde dos meus dedos. Maldito “a” que me obriga a diminuir o nome completo da paixão amadurecida. A nossa fotografia colada nas costas da porta do nosso quarto parece que acompanha o ritmo do relógio sem pilha: parou. O relógio precisa de pilha para continuar a sua marcha circular e eu? Eu preciso, tal qual a nossa fotografia, de uma mínima presença tua para voltar a vida e habitar o meu lugar em mim.

O Atlas, o nosso gato de pelos brancos, decidiu desaparecer. Também já não aguentava viver com os pelos sujos de solidão nesta casa. Lavava-se os pelos com a língua, mas a solidão corria atrás dele e por isso decidiu, pela janela, tomar novos caminhos. Era a única companhia que fazia sentido nesta casa. Era a única criatura que cruzava o corredor comigo, que sabia vir acordar-me com mios sempre que passasse a hora de despertar. Agora que decidiu arrumar os mios na sua barba e desaparecer fiquei a sós. Pela manhã a única coisa que me desperta são os meus próprios roncos e vezes infinitas esqueci-me dormindo. Cruzo o corredor com a minha própria sombra colada a parede, vestida de um casaco preto e sem rosto fácil de identificar.

Escrevo-te porque ainda tenho a sensação de sentir o que penso e o puro engano de que ainda posso ordenar alguma coisa. Se nem a minha própria vida não consigo ordenar, como posso organizar os meus pensamentos? O azulejo da cozinha só tem as minhas pegadas, a torneira, que deixou de se fechar, fala-me gotas no escuro, pinga e compete com as minhas lágrimas. Eu também pingo lágrimas como a torneira da cozinha, porque já não sei fechar os olhos sem sentir o peso da sua imagem.

E amo-te como quem entorna palavras com sílabas de beijos numa outra boca. É isso que me faz escrever-te agora. Neste instante. Amo-te aqui neste poço de solidão onde me encontro; onde a única coisa que me tira, como água, é o vento que sopra da janela. Paro de escrever. Deito as mãos sobre o teclado e as letras murcham, desordenam-se e começam a correr na pista branca do ecrã. Vou continuar a escrever. Suo o corpo inteiro. Levanto-me e descasco o suor na pele com a toalha que ainda conserva gotas do teu cheiro. Recordo-me do último banho que aqui fizeste. O último banho que te limpou o corpo e ensaboou, a mim, de solidão. Saíste descalça da casa de banho, picando o chão com as pontas dos pés e dedilhando gotículas sobre o chão todo com os teus cabelos. Cantavas uma música misturada com a escova de dentes na boca. A toalha circulando a sua cabeça era turbante daqueles árabes comerciantes dos filmes da Hollywood. Saltitavas como um coelho e molhavas o frio que se tinha deitado ao chão. Eu, entulhado no sofá, metia os olhos no ecrã da televisão e tu vieste despertar-me a atenção tocando-me o pescoço com a mão dentro duma luva de água. Saltei do sofá. E os teus abraços abertos foram o meu lugar de sossego.

Amo-te neste pedaço de dizer alguma coisa que ainda tenho. Amo-te com toda a força que a tua presença roubou-me; amo-te na esperança de não poder mais te amar. “Mor” ainda não vejo o “a” no teclado e ainda não vejo local certo para tê-lo. Talvez tenha de pegar numa lâmina, recortar todos os “as” das revistas e colá-los em todas frases onde eles fazem falta.

Sou capaz de te escrever sete anos sem parar para poder ter-te de volta. Jacó conseguiu a Raquel trabalhando durante sete anos, mais sete para Labão. E eu sou capaz de te escrever sete anos sem parar. Vou terminar por aqui, minha querida. Devorei todas as palavras possíveis que ainda tinha. Fosse eu Davi armava-me de todas as pedras que tenho debaixo desta solidão e matava o Golias do tédio que me espreita a cada gesto. E nem sou Noé para arrumar todas as trouxas de vazio numa arca e partir com elas para onde valem ouro ou muito dinheiro.

Em criança sentava-me na cadeira mais grande de casa e gotejava os pés para tocar o chão. Hoje, sento-me na cadeira mais grande, encolho os pés na caixa do peito, e os enrolo com a camisa para não tocar a falta e solidão que vigiam o soalho.

Amo-te na tua presença disfarçada de falta; amo-te nesta carta que não te chegará porque não sei onde estás, mas sei que metade da tua carne apanha sol nesta missiva. E tu sabes que esta sala virou-me as costas desde que partiste. Vivo na sombra que as costas destas paredes fazem-me. Vou juntar as mãos e terminar este texto. Acorrentar os dedos, unir as unhas e colar as caras das mãos para ter a certeza que as mãos cuspiram todas as palavras que tinham. Vou sentar-me nas escadas farejando nos degraus a cor do último passo que deste quando saíste. E os objectos todos desta sala, molhados pelo sol, sangrando sombras no chão, ouvirão o concerto da solidão guiado.

(Em Resposta às dúvidas de um poeta)
 
É você que vai apresentar o livro do poeta Armando Artur? (sublinhe-se “do poeta”). Perguntou-me de repente um poeta da praça. Na verdade ele interrogava o facto de eu não ser um poeta. Donde teria eu retirado as energias para a ousadia de apresentar o livro numa área que não conheço?
 
Isto está ligado ao facto de muita gente associar os filósofos às pessoas frugais e em geral incapazes para desfrutar dos prazeres da vida, entre os quais da literatura. A propósito disso conta-se que, um dia, o Conde de Lambron deparou-se com Descartes, o mais famoso dos filósofos do século XVII, com gestos de satisfação a dar conta de uma requintada refeição[2]. Ao vê-lo, o Conde dirigiu-se a Descartes com as seguintes palavras: – Não sabia que os filósofos desfrutam de coisas tão materiais como esta! Contrariado com a impertinência e a intromissão deste Conde, Descartes respondeu-lhe de seguinte modo: – Pensáveis então que Deus fez estas delícias só para serem comidas pelos idiotas? Pois caros poetas presentes, os filósofos se deliciam muito, até mesmo nutrem uma grande admiração, por esta musa – a literatura moçambicana.
 
Armando Artur, com este livro, faz dois exercícios simultâneos: o primeiro, ele quer reinventar o Ser por via da linguagem; o segundo, ele quer propor uma forma e arte, talvez nova, de escrever à qual me atrevo a chamar por proesia, ou seja, uma junção da prosa com a poesia. Já deparei-me com alguns que a chamam por prosa poética.
 
No exercício de reinventar o ser neste livro, Armando Artur fá-lo a partir de três dimensões: o Ser enquanto o Mundo, o Ser enquanto Moçambique e moçambicanos e o Ser enquanto Homem ou Eu. E, neste exercício, ele aproxima-se ao Heidegger da Carta sobre o “Humanismo”, a partir do qual oriento este diálogo sobre as semelhanças e paralelos com a obra A Reinvenção do Ser e a Dor da Pedra de Armando Artur.
 
Vou iniciar com a última dimensão, isto é, a do Ser enquanto Homem, este Eu chamado Artur. A dado passo, lemos um Artur que escreve: Reinvento-me aqui neste papel branco, que pode ser o contrapeso da gravitação universal em mim singularizado (…). Quando, em preparação para a apresentação deste livro, perguntei-lhe como pensava reinventar-se, ele riu-se primeiro, para responder que seria através da linguagem, ou seja, da escrita. A linguagem, para o Armando Artur, é um meio de se reinventar a si mesmo como um ser humano. Quase que dizendo, cada vez que estivermos perante uma folha em branco, a escrita deve conduzir-nos para uma humanidade maior. Uma escrita é uma carta interminável à humanidade do Homem.
 
Na sua Carta sobre o “Humanismo”, Heidegger sustenta que a linguagem é a “casa do Ser” e o homem, que habita nesta casa, é o seu guardião, em particular aqueles que são pensadores e poetas. Portanto, segundo Heidegger, a linguagem é qualquer coisa como “advento” enviado para o (e na posse do) Homem a fim de, simultaneamente, iluminar e velar a totalidade e a singularidade do Ser. A linguagem é este meio revelador do Ser enquanto Ser. Podemos dizer, com Armando Artur, que é por via da linguagem que o homem genérico, incluindo o próprio Eu, se reinventa e vai-se revelando consoante as circunstâncias.
 
À medida que se penetra na leitura deste livro adentro, nota-se que o mês de Novembro foi dramático e, ao mesmo tempo, “do beijo inicial”. É o mês, portanto, da reinvenção do autor. Ele trabalha o momento trágico (morte da sua filha de cinco anos no hospital por malária) e celebra-o como o mês do amor com muita doçura o beijo inicial; tudo isto por via da linguagem. O autor sabe que, enquanto puder encontrar-se defronte de um papel em branco, está também perante a possibilidade de voltar a autodefinir-se e autocompreender-se, enquanto Eu e sobretudo enquanto ser humano.
 
Passemos para a segunda dimensão, a do Ser enquanto Moçambique e moçambicano: Armando Artur nasceu na Zambézia em 1962, num tempo em que a longa marcha armada pela libertação de Moçambique iniciou. Por isso, ele pertence a uma geração que viveu em guerras e conflitos armados, gozando apenas algumas “tréguas”. E esta Província foi particularmente o palco crucial das guerras. Esta condição faz do nosso poeta um sofredor por carregar consigo demasiadas angústias.
 
Sobre este assunto ele escreve: Foi quando surgiram as grandes e pequenas guerras. (…) E as aldeias inteiras ficaram inundadas de suor e lágrimas dos espíritos ancestrais da pátria magoada. Apesar disso, Armando Artur escreve, mais adiante que Estou grato por pertencer a esta pátria de homens e mulheres que renascem das suas próprias cinzas….
 
Aqui vemos o nosso proesista a não desperdiçar a linguagem com mentiras sobre o Ser Moçambique e moçambicano. Mais do que outro Ser qualquer, Moçambique e o moçambicano precisam de usar a linguagem para dizer e cantar verdades sobre o seu ser. Pois, as narrativas sobre a nossa história, e sobre nós mesmos, estão repletas de mentiras. As piores mentiras são sobre as guerras que este país teve que viver. Só nos vamos reconciliar, enquanto Moçambique e moçambicanos, dizendo-nos, face à face, as verdades sobre as guerras e conflitos pelos quais esta geração de Armando Artur perpassou. Doutro modo, os nossos e os outros espíritos moçambicanos continuarão a perturbar qualquer marcha para o futuro.
 
A propósito da verdade, Heidegger escreve na mesma obra que venho aludindo: A linguagem é um advento disponibilizado ao homem para que este diga a verdade sobre o Ser. Ou seja, ser humano é comprometer-se em dizer a verdade e nada mais do que isso. Não é reinventando-se por mentiras. Mas a verdade corroeu-se quando começou a ser usada no espaço público para atender aos conflitos humanos, nos casos de guerra por exemplo. Aqui o homem perde a essência da linguagem (dizer a verdade sobre o Ser) e esta mesma começa a ser ameaça para a existência e essência do próprio homem.
 
Os poetas devem ser os guardiãs da verdade sobre Moçambique e ser moçambicano, como Armando Artur nos quer reinventar.
 
Como se reinventa o Mundo? Armando Artur fá-lo apelando-nos para a criação, ou seja, a invenção, de novas metáforas sobre a origem deste mesmo Mundo – o Nada. Não sei – escreve ele – o que havia antes do nada. Só sei que tudo começou quando o nada se amontoou contra o seu próprio nada. E então surgiu o Homem como uma das possibilidades universais. O Homem é só um dos entes deste universo, trata de nos recordar Armando Artur.
 
Heidegger faz questão de dizer que o Homem nasceu na clareira do Ser. Ou seja, ele não está amarrado a um mesmo lugar ou habitat deste Mundo, como os outros seres – pedras, plantas, animais – de certa forma estão. Esta fixação na “clareira” do Mundo permite ao Homem poder ser o protector e guarda deste Mundo todo, um protector deste ser-aí. O que ameaça a existência do Mundo, do ser enquanto Ser, não é assim tanto a acção do homem, mas sim o (mau) uso que o homem faz da linguagem. Os poetas devem guardar este mundo comprometendo-se com a verdade sobre o Ser enquanto ser. Estes devem proteger a existência humana, e a do Ser em geral, por via do bom uso da linguagem.
 
Em conclusão, eu penso que é isto o que Armando Artur, com este livro, pretende rechamar às nossas consciências sonâmbulas nos tempos de hoje: que o acto do uso da linguagem, e o da escrita em particular, é própria reinvenção em acto.
 
Proesia é o termo que criei (com a ajuda do próprio autor, quando lhe pedi explicações na AEMO, nas vésperas do lançamento), para anunciar e celebrar a melhor forma de classificar a proposta de método de escrita que livro faz por via da junção entre a prosa e a poesia. Pareceu-me, na altura, que este termo fosse a melhor forma de expressar esta aventura ambígua que o autor faz com a linguagem. Penso tratar-se de uma proposta literária através da qual o espírito ambíguo que se apossa dos autores quando estão na contingência de buscar equilíbrios, próprio estágio de quem está permanentemente a ter que se reinventar. Enfim, este género de escrita manifesta um espírito que se confronta com ambiguidades sobre a verdade do Ser na sua totalidade (Mundo), de um ser martirizado chamado Moçambique e do ser enquanto o próprio autor, um poeta que busca os equilíbrios de reinvenção por via da linguagem.
 
A proesia dá-se formidavelmente, que nem uma luva, com um autor angustiado por saber a verdade sobre si mesmo, por amar o seu país Moçambique e por celebrar a vida de estar no Mundo por via do amor, apesar de se encontrar num Mundo-em-guerras. Ela expressa e quer dar conta desta permanente angústia de ser humano.
 
Para terminar, eu gosto muito de um filósofo grego chamado Diógenes. Este vivia num barril e satisfazia na praça pública todas as suas necessidades. Dizia ele que um verdadeiro homem é aquele que, sendo livre e em caso de necessidade, poderia levar consigo todos os seus haveres (aliás como ele próprio o fazia com a sua “casa”, o barril). Os outros estão presos aos seus haveres, portanto, não livres. Por exemplo, em caso de termos que fugir, nenhum de nós estará em condições de levar às costas todos os seus haveres. Sendo assim, não somos todos seres livres. Esse Diógenes!
 
Pois sobre ele contam-se muitas histórias interessantes. Uma delas é esta: A alguém que se lamentava por ter perdido as tabuinhas onde tinha anotado e escritas as suas memórias, Diógenes censurou: – Se as tivesses escrito como deverias, na alma, jamais as terias perdido. E eu digo: os poetas são dos poucos, senão os únicos, que se servem da alma para expressarem verdades sobre o Ser enquanto tal. Escrevam na e com alma!
 
E, para terminar, uma segunda anedota que envolve o mesmo filósofo: Um dia, Diógenes estava a lavar, com muito cuidado, umas ervas, antes de as comer. Aristipo, cujo hábito era vaguear pela corte do Rei Dionísio para poder comer ou pedir algo, disse-lhe: Aí, Diógenes, se aprendesses a ser um pouco mais submisso, não terias de lavar ervas para comer. Ao que Diógenes replicou: – Vê as coisas assim: se tu aprendesses a lavar as ervas, não terias que servir Dionísio! Moral desta história é que, reinventar-se a si mesmo é procurar sempre em busca de novas possibilidades de Ser Livre.
 
No fundo, este livro é sobre a possibilidade de nos reinventarmo-nos como seres moçambicanos livres, que devem usar a linguagem dizendo-se verdades, escrito e manifestando a ambiguidade deste in acto (reinvenção) por via duma prosa poética (proesia).

[1] Autor: José P. Castiano. Texto pronunciado por ocasião do lançamento do livro de Armando Artur, intitulado A Reinvenção do Ser e a Dor da Pedra (Cavalo do Mar. 2018).

[2] Esta e as duas histórias no final deste texto foram retiradas do livro A Filosofia com Humor da autoria de Pedro G. Calero (Lisboa, Planeta. 2009).

 

 

Só nos conseguimos ver completamente através do

reflexo de nós próprios nas pessoas que nos rodeiam

Guilherme de Melo

 

Quatro anos depois de publicar As falas do poeta, Armando Artur regressa aos lançamentos. Desta vez, o título do livro é A reinvenção do ser e a dor da pedra, uma proposta equilibrada, na qual a palavra vai carregada de uma visão ulterior sobre os aspectos sugeridos.

Muitas vezes, nas 72 páginas, Artur dá voz aos sujeitos de enunciação que se preocupam com a essência embrionária dos fenómenos, os quais dão azo à expressão decorrente da relação “eu” e a “atmosfera”. Nisso, o poeta vai buscar ao vazio a matéria-prima de que se revestem as pequenas-grandes coisas.  

Por apostar numa escrita sobre aspectos que dizem respeito à humanidade além das fronteiras nacionais, A reinvenção do ser é um ensaio a roçar o altruísmo, daí a atenção cuidada aos fragmentos que fazem o planeta terra enquanto espaço a habitar de outras formas. Há neste livro uma poesia sábia, fortificada pela sensibilidade que o autor tem no manejo do conhecimento, afinal através da delicadeza metafórica o poeta consegue recuar milénios e circunstâncias para escrever sobre um presente a evoluir à laia de uma espiral. No fundo, há nos textos um tempo quase onírico a preservar, pois: “nada seria mais doloroso e pungente do que não ter a memória do futuro” (p. 20).

Essa memória do futuro aludido apega-se a um passado distante, complexo e universal. Por isso mesmo, Armando Artur investe numa poesia de regresso ao encanto perdido no simbolismo das coisas tangíveis e intangíveis, lá onde mora o poder da levitação feita de singularidades plurais: “Seguiu-se a história colectiva, a dos filhos da terra e do mar, entretanto, difícil e penosa, com estórias e calendários pendurados na parede das contrariedades” (p. 31).

Essencialmente, constata-se em A reinvenção do ser e a dor da pedra uma abordagem entre o poético e o filosófico, determinando-se na presunção de os sujeitos de enunciação conduzir-nos à reinvenção do nosso ser, não obstante a dor latente nesse movimento.

O “Retorno então ao interior das coisas” (p. 33) sugere que o que move o poeta no trajecto de regresso é qualquer coisa sacramentada, legitimada pela beleza das flores, das borboletas, da água, enfim, do vigor da vida, ancorada, lá para o fim do livro, no amor. Todavia, trabalhando sobre aquele sentimento, Armando Artur deslumbra-se um bocado. Nos poemas entre as páginas 45 – 53, por exemplo, o nível de arrojo poético decresce combalido, isto é, o nosso poeta, em A reinvenção do ser e a dor da pedra, é bem melhor a escrever sobre a viagem feita pela sua e pela interioridade do Homem, com apego à inquietante história da vida/ da existência, do que a colorir as pétalas de um amor pouco contagiante. 

Ora, no romance As raízes do ódio, de Guilherme de Melo, escritor que a crítica moçambicana precisa reivindicar, uma entidade diz-nos a certa altura: “Só nos conseguimos ver completamente através do reflexo de nós próprios nas pessoas que nos rodeiam”. Estas belíssimas palavras são ditas numa narrativa colonial que tem João Tembe no centro da história, protagonista que desde tenra idade aprende a conviver com as diferenças impostas pelo racismo. Aquela frase de Melo dialoga com os textos de Armando Artur no seu novo livro, sobretudo nos primeiros, na medida em que o reflexo da nossa interioridade encontra-se ao redor das entidades que nos falam no momento da leitura.

Portanto, o que mais vale em a reinvenção do ser e a dor da pedra, de Armando Artur, e o que nos interessa sublinhar nestes 3977caracteres sobre o livro é a qualidade com que o poeta trabalha a subjectividade, a semântica e a polissemia da palavra, conduzindo-nos, como se segurando num fio de Ariadne, à origem do que a poesia merece ser, comparada à plenitude do universo.

 

Título: a reinvenção do ser e a dor da pedra

Autor: Armando Artur

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 15

 

Ao som das turbinas desta ave e suspenso na infinidade deste momento passageiro, ocorre-me colorir esta página ao mesmo tempo que eu e minhas memórias trocamos carícias. Não sei ao certo o que daí derivará. Confesso, sem pestanejar, isto me dá um certo regozijo.

Estou a bordo do voo TP284, de Maputo com destino à Lisboa. Uma altitude de quarenta mil pés me separa da superfície terrestre. No interior desta ave mecânica, longe de todos que me são queridos e na companhia de mais de uma centena de desconhecidos, revisito com incontida euforia e sem formalidades a visita às minhas origens.

Aquando do check-in pedi um lugar à janela e o meu pedido foi atendido. Ao espreitar por esta pequena janela vejo uma espuma branca que levita sob um fundo azul celeste. Não é a primeira vez que estas imagens me enchem a vista, contudo a sensação assemelha-se sempre à que tive na minha primeira viagem de avião. Um misto de estupefacção, realização e paz interior.

Não tarda e me sinto familiarizado a este habitat efémero, sou possuído por imagens dos últimos cinquenta e dois dias. Um misto de nostalgia e alegria é tudo que me enche a alma e a existência. Vejo minha mãe com um sorriso de fazer Deus se apaixonar e no mesmo momento o meu pai, os meus irmãos, toda família e amigos se juntam à fotografia. As imagens aparecem sem nenhuma organização, mas tudo me parece bastante familiar e harmónico. Minha mãe beija-me a face e de vez em quando faz intervalos para avaliar meu corpo. E enquanto meu pai conduz o carro, aos gritos com o meu irmão cantamos todos "Chegaste" de Roberto Carlos e Jennifer Lopez. Partilho refrigerantes e sonhos com um amigo, falo das raparigas e lembro acontecimentos cómicos com os outros. Todos fazem-me temer pelos meus ossos e meu coração, os abraços são fortes e profundos.

É incontível a minha alegria, beijo e abraço a todos. Piso a terra que me viu nascer com saudade e sinto nela uma carícia húmida e contínua como se há muito tempo me esperasse, como se nunca me quisesse deixar partir. Esforço-me para reencontrar a todos e reviver tudo que me é querido. Vejo-me nas ruas de Maputo, Ndlavela é a capital das emoções, o caos dos chapas me põe frenético, o calor da Matola acorda-me, danço em Mpumalanga e rezo a contínua oração da vida nas zonas altas de Namaacha. Sinto o meu Moçambique acontecer-me, sinto a brisa salgada do oceano Índico me sacudir as vestes europeias que trago e vivo África, cheguei à casa.

Nos encontros existe um eixo comum, poem-se todos a escutar a voz de quem esteve no lado de lá, querem todos saber como é Portugal, como é a Europa, como é o mundo fora. E eu não me faço de rogado, maravilho-lhes os ouvidos, a imaginação e juntos sonhamos nosso Moçambique próspero.

Encontro-me perdido num abraço negro, intenso e profundo, lavo-me e bebo duma boca que mistura temperaturas, afetos e paixões. De repente tudo é interrompido pela voz do comandante do TP284, anuncia que começamos a sobrevoar Lisboa e que devemos apertar os cintos para aterrarmos. Os assistentes de bordo agitam-se e fazem marchas pelos corredores, enquanto vão se assegurando que todos passageiros trazem consigo o cinto apertado.

As minhas memórias se esvaem sem pedir licença. Um "foda-se" entre dentes é tudo que consigo dizer. E pela mesma janelinha que vi minha visita às origens, vejo minha amada "Lisboa menina e moça" a se despir e canto em pensamentos a música do Carlos do Carmo:

 " Lisboa menina e moça menina/ Da luz que os meus olhos vêm tão pura/ Teus seios são as colinas varina/ Pregão que me traz à porta ternura/ Cidade a ponto-luz bordada/ Toalha à beira-mar estendida/ Lisboa menina e moça amada/ Cidade mulher da minha vida".

Felizmente o clube HCB reestruturou-se e passou a União Desportiva do Songo, passo importante para que a população daquela laboriosa vila e os habitantes de Tete se sintam representados. Com o bi-campeonato no seu palmarés, e uma carteira internacional positiva, importa agora criar uma mística, a condizer com o investimento.

Vitórias, atletas e dirigentes emblemáticos, serão a chave que produzirá adeptos ferrenhos e leais ao clube tetense. Algo que já se passa com o Chibuto, onde os “guerreiros” mobilizam e catalisam toda uma região, estimulando a felicidade de ser chibutense, gazense e, numa escala ascendente, o orgulho pela moçambicanidade. Por esta ordem.

Algo idêntico deverá acontecer com a ENH, empresa vocacionada para a exploração de hidrocarbonetos, cuja designação e objectivos deverão passar por representar uma região e não apenas uma empresa.

Há outros casos a repensar. A turma da Autoridade Tributária, que detém o estatuto de “papa-títulos” no voleibol ou a Petromoc, cuja equipa domina o futsal. Uma coisa é a recreação e a competição entre empresas e núcleos surgidos a partir de “carolas”, outra é pôr uma instituição ou empresa a representar distritos, províncias ou mesmo a nação, na alta competição.

Torna-se difícil e até ridículo, um moçambicano explicar que o seu  campeão, para além de se dedicar à colecta de impostos, também faz alta competição ao ponto de representar o seu país. Algo raro, senão inédito no planeta.
 
“CASAMENTO” COM VANTAGENS MÚTUAS
 Os CFM, desde longos anos vêm sendo patronos dos Ferroviários, com “balizas” que parecem bem claras. O clube criou espaço e mística através das suas cores, adeptos e tradição.

Mas no nosso país, vivemos um paradoxo difícil de entender.
Vejamos dois exemplos: clubes com tradição secular, como são o Desportivo e 1.o de Maio de Maputo, com património e história de resistência à colonização, encontram-se nas ruas da amargura. Há um estudo que indica que o salário de dois jogadores dos grandes do Moçambola, pagaria todas as despesas de sobrevivência de uma destas colectividades.

O que seria razoável e benéfico para o país?
Que as grandes empresas e empreendimentos, ao invés de criarem clubes desportivos que pouco têm a ver com a sua carteira de acção e vocação, se envolvessem e patrocinassem colectividades que já têm vida própria, mística e adeptos.

Aqui, claramente, o “dedo”do Estado deveria ser bem mais forte, uma vez que a maior parte das ditas empresas até vivem dos impostos dos cidadãos e como tal, o seu envolvimento seria para beneficiar um todo e não o ego de alguns.

Numa altura em que há “mega” projectos à vista, é uma boa oportunidade para se projectarem parcerias/compromissos sólidos e que não dependam das paixões dos PCA's, para alavancar clubes e competições. Com benefícios mútuos.

É isto que acontece um pouco pelo mundo e em que, para não sermos uma “ilha' nos devemos inspirar.
 

Em 1989 o escritor moçambicano Suleiman Cassamo publicou O Regresso do Morto, uma coletânea de dez Contos “em que apresenta o quadro das contradições sociais e culturais vividas pelos excluídos e explorados trabalhadores das minas, crianças, idosos e, em especial às mulheres moçambicanas. Cassamo presta uma homenagem comovente aos marginalizados sociais representados por personagens sofridas, porém resistentes”.

O Regresso do Morto correu o mundo, transformou-se numa das radionovelas mais célebres em Moçambique, confunde-se com adágios populares e apegou-se em vários discursos motivacionais, e já agora, no dia-a-dia, há muito morto que retorna à vida.

Regressamos, e qualquer lúcido seria capaz de jurar, que renascemos das cinzas.

Foi como: “ O regresso do Morto”.

Temos mais uma vida, como nos videogames e queremos honrá-la. Quer dizer, até aí depende, mas pelo menos disfrutemos da mesma.

Aquilo equivale aproximar coreanos do Sul aos do Norte, atravessar o Mar Vermelho andando por cima da água como fez Moisés, ultrapassar os limites da lógica humana, enfim, extraordinariamente esquisito. 

Cépticos e optimistas abanaram e abanam ao mesmo som. Agora somos nós e o Mundo. Não há Rei que tussa ao nosso lado. Grande final do ano!

No processo de compreensão do passado, interpretação do presente e perspectivação do futuro, o nosso futebol nunca enganou. É, de longe, antipático e se fosse o contrário talvez não haveria euforia.

Como um “chute” pode fazer a diferença e enterrar sofrimento que foi, durante muito tempo, a nossa melhor companhia?

Os mimados estão pasmos, os masoquistas reclamam a devolução do seu sofrimento e os narcisistas dizem que já sabiam. Sabe-se lá. Já era confortável viver da boa vontade alheia.

Foi assim em 2009 quando, diante da Tunísia no famoso “velhinho”, mas sortudo, Estádio da Machava, Dário Monteiro, com pé esquerdo, deu aval ao Kampango para que, no ano seguinte em Angola, mostrasse a sua outra face.

Vai daí as cambalhotas que deu! Pura felicidade do “Keeper” moçambicano, o melhor que havia na vitrina e o mais recomendado daquela época.

Já no CAN, até deu-se ao luxo de correr o mundo à velocidade do Jamaicano Usain Bolt, com a resistência e determinação do fundista britânico Moh Farah, valeu-lhe a internet que não tinha a velocidade dos dias que correm.

Aquelas cambalhotas davam-lhe outra dimensão.

Mas para nós, estar lá era o essencial, e lá estivemos. Não interessa o resto.

É como quem festeja por ter sido insultado por Cristiano Ronaldo. Não é sempre que tal acontece, ou festejas ou festejas. CR7 dirigiu-se a ti, é directo para o Guiness Book. Valha-me Deus!

Ainda que tenha sido o pior momento da sua vida, há que ver o lado positivo da coisa. Sim, muitos querem. Até porque, quem desdenha quer comprar!

Não precisa ser bruxo para adivinhar muita coisa cá do burgo. Não há mistério que permaneça indesvendável. Com todo o respeito e sem nenhum preconceito, é mais fácil ser cortês de casamento entre um gigante e uma anã do que assistir a uma vitória dos Mambas. 

Nos campos não é excepção

Os mais de 40 mil espectadores para o Moçambique x Guine Bissau sabiam que aquilo seria uma tortura, antes mesmo do apito inicial.

Até com a asneira do Guirrugo contra a Namíbia, muitos sonharam. Mas, afinal, ainda havia “espaço na mesa para um morto”.

Já viram a história de Michael Phelps? O norte-americano? Hoje, o nadador mais medalhado dos jogos olímpicos?

Pois então, a sua ascensão começa com a desistência das piscinas, do agora jogador da NBA Kris “Topher” Humphries. Jogador de pouco destaque na National Basktball Association.

Humphries foi carrasco de Phelps, ganhou-lhe em todas e foi considerado uma das grandes promessas da natação dos Estados Unidos da América.

Em 1995 venceu seis provas numa competição nacional, deixando para trás…Michael Phelps!

Aos 10 anos, Humphries era melhor nadador do que o, hoje, maior medalhista olímpico da história.

“Eu era tão bom quando criança que acabei-me ‘queimando’ um pouco. É difícil manter o foco num objectivo quando você tem sucesso ainda pequeno. Precisava de um verdadeiro desafio. Ninguém comparava-se a mim. Ninguém desafiava-me naquela altura”, disse em entrevista televisiva, o homem que até se deu ao luxo de casar e separar-se da Kim Kardashin.

Quanta sorte, muitos dariam sua masculinidade para estar na pele do fulano.

Desistiu Humphries mas “nasceu” um campeão. Quantos conhecem este Poste? O Kris Humphries?

Repare, passou pelos Jazz, Raptors, Mavericks, Nets, Celtics, Wizards ou mesmo Phoenix Suns e…enfim! História para outro Rosário!

…e o regresso do morto?

Pois então! Foi a 18 do mês passado…pouca fé, pouca confiança e pouco público. Não houve ladainha que convencesse. Para Abel Xavier, era matar ou morrer.

Até que se prove o contrário, por baixo das vestes, o luso-moçambicano cobriu-se de adesivo para interditar acções involuntárias de qualquer orifício de que dispõe, caso o rumo dos acontecimentos fosse comprometedor.

Era… amassar o pão par a o diabo comer ou o inverso

Era mais fácil prever um acto racional vindo dum réptil do que aquele chute atrapalhado de Reginaldo que ressuscitou-nos e colocou nos ali, ali pertinho. Em Março vai ser… matar ou morrer. Enquanto não chega 2019, vamos festejar o “Regresso do Morto”.

Momento mágico, aquele do Reginaldo! Meus manos, estamos em pé, em cima duma agulha e a dançar melhor que Zaida Chongo nos seus momentos mais inspirados. Deus a tenha!

Aos 63 minutos do jogo, os moçambicanos lembraram-se de tudo, dos irmãos que estão distante, dos tempos ilusoriamente áureos do nosso futebol, dos momentos menos bons, da visita do Mr. Bow aos Mambas, dos animais de estimação, da força desta Selecção e da Nação, de tudo o resto! Naquele momento, era justo cantar: Moçambique é nosso filho, do Dj Ardiles.

Ao pobre dá-lhe uma migalha para arrancar o seu sorriso. Xavier salvou-se e salvou-nos o ano!

Celebrou-se a segunda vitória diante da Zâmbia mas, mais do que isso, os sete pontos no grupo K, o gosto pela vida, a segunda chance que a vida nos deu. A África que pode ser “nossa”, o Mundo que pode nos conhecer… que se lixem os Camarões que permitiram que a CAF retirasse-lhes o CAN.

Seja onde for, queremos lá estar. Março que nos aguarde.

Dependemos de nós, exclusivamente de nós. Isto equivale ao REGRESSO DO MORTO. Equivale a um dos momentos mais altos do ano, no desporto nacional.

 

Ao olhar para fora da livraria, vejo um ex-amigo fixado na vitrine, diante do meu livro, que era o único em destaque, por ocasião da assinatura de autógrafos – havia várias cópias do mesmo, espalhadas ao longo da montra.

Reconheci um amigo de longa data e alegrou-me saber que, apesar da nossa discussão de há 5 anos atrás, ele decidiu aparecer.

Emocionada e risonha, corro para o convidar a entrar. Ele olha para mim surpreso, igualmente contente!

– Não acredito que vieste! – gargalhei.
– Vim? Como assim? – retorquiu, desligado da pergunta, concentrando-se mais no facto de estar a ver uma amiga que não via há bastante tempo.

Contei-lhe o propósito da minha presença ali.

– Aaaah, sabes, eu estava alí na vitrine a olhar para a tua capa e a tentar puxar pela cabeça, de onde conhecia esse nome – Cri Essencia. Sabia que me era familiar! O teu livro, pois ééé!

– … Rui, deixa-te de estórias! – desconfiei acusando, sorridente, feliz por ver aquele que era oficialmente ex-amigo, depois daquele bate-mail frenético que tivemos há 5 anos, onde ele até de nariguda me chamou.

Reza a lenda que eu punha mola (de secar roupa) no nariz, para que ele se tornasse tão fino quanto o da minha mãe – acreditei no conselho de um tio. Portanto, chamarem-me de nariguda continua subconscientemente ofensivo.

– Sério! Epah, deixa-me comprar já uma cópia!
– E vais comprar assim?
– O In Search of An Accepting Sea? Claro! Há muito que estava à espera dele! Ouvi muito falar e fui me orgulhando na calada, sabes? – e folheava o livro animadamente, acrescentando de seguida:
– Olha, até vou comprar três; dois para oferecer. Quero todos eles assinados, já agora!

Rui procedeu ao ditado dos nomes incomuns e quando chegou a vez de assinar a cópia dele, diz-me a coisa mais linda:
– Escreve: “Para o merda do meu amigo Rui!”

Soltei uma cachinada realizada.

Embora fosse boa ideia, fiz aquela cerimónia de uma aparente boa educação:

– Tens a certeza? Vou por isso! – ameacei, num mode sequestrador delicioso.
– Sim! Escreve isso e assim perdoas-me logo! Escreve com raiva! – suplicou.

E assim, foi feita a nossa vontade.

 

Marcelo Panguana
Conversas do Fim do Mundo
Alcance Editores, 2012
Os Peregrinos da Palavra
Alcance Editores, 2017

 

Ler não é necessariamente uma actividade que só nos liga ao presente. Quando leio posso recuar uns séculos, deslocar-me geograficamente, inventar novas temporalidades; enquanto exercício que irei desenvolver nesta página nem sempre as minhas escolhas serão as mais actuais. Poderei cruzar leituras de diferentes livros, optando por cismar em algum tema que me provoque ou na notação singular de obras (des)arrumadas na estante.

Há muitas maneiras de ler, aquela que nos faz meditar preguiçosamente, a que exige quase por compulsão o exercício da escrita, a que nos faz dormitar, ou aquela outra que nos envolve de sonhos, nos intriga em evasão, nos assusta ou perturba pela novidade. A experiência da leitura é similar à de um sonhador solitário, acto pouco mundano e cada vez mais raro no mundo apressado em que vivemos. Tem algo de monástico e simultaneamente de libertino, pela clandestina privacidade que exige, pelo silêncio a que obriga, pela intemporalidade que se cria nesse solilóquio interior.

É um exercício de atenção e de dádiva, de crescimento e de desprendimento, uma viagem parada, de percursos mais longos ou mais curtos. Todo o livro se converte em criatura criadora quando o abrimos, folheamos, lemos. E pode inclusive ganhar voz pela nossa voz, se a leitura ganhar som e vocalidade. Antigamente os pais liam livros para as crianças ou contavam-lhes histórias. Por vezes no espaço da aula, o professor, que eu também sou, revê-se nesse estatuto de teatralização do livro, para captar a sua audiência. A pedagogia implícita de qualquer livro reside na arte de desencadear curiosidade como processo de prazer e de desvendamento; desvendamento de intrigas narrativas, contemplação poética, vibração interior, viagem pelo desconhecido, conhecimento(s), um livro, uma biblioteca, como diria Marcelo Panguana, pode ser uma verdadeira agência de viagens.

A voz tem qualquer coisa de mágico e é um excelente meio de sedução para levar à leitura. O leitor desabituado que ensaie a voz e faça a prática da recitação, como se de um mantra religioso se tratasse. Que descubra as vozes que o livro lhe quer trazer, as conversas, os segredos, os caminhos.

Que seja um peregrino da palavra, como o Marcelo Panguana, escritor de múltiplas facetas, excelente contista e cronista, autor de romances, literatura infantil e simultaneamente aventuroso leitor de literatura, editor de páginas e de revistas literárias e culturais. Um escritor/leitor muito atento às práticas culturais do seu país. 

Marcelo é um ser quase literário, ousamos dizer, uma personagem muito singular no quadro literário moçambicano, muito discreto no seu alto e esguio vulto, com um olhar sorridente, alguém suficientemente humilde e grande para se espantar com os outros, a quem generosamente dedica a sua escrita. Escreve e pensa com os autores que lê e que leu, vai além de si, porque pensa criticamente e faz literatura, envolvendo-se com ela como se em um constante encontro amoroso, em leitura e em prática ficcional.

Lembro aqui um importante livro de Panguana, As Conversas do Fim do Mundo (2012), que exige a nossa especial atenção; é um livro que experimenta a escrita entre a leitura, a biografia, a crónica e a ficção, num exercício de criação crítica único, uma vez que reúne reflexões diversificadas sobre bibliotecas, obras, autores, conversas, episódios, fragmentos de narrativa, atravessando o autor a rua que separa a ficção da realidade num exercício quase de fantástico; somos presos nessa aventura do leitor culto, que Panguana é, ao personagem em que se transforma, e ao memorialista que resgata as novas obras literárias e as antigas, os espaços da memória. São geografias de cultura  que ele desenha pela memória fazendo travessias da época colonial para o presente, reactivando figuras tutelares da sua aprendizagem, da biblioteca que o compõe; entre leitor e autor Panguana escreve como quem se desdobra em testemunha crítico-ficcionada.

Há algo de borgiano na forma como é construído e como se pode ler As Conversas do Fim do Mundo; a literatura e seus autores ganham vida e invadem o palco da existência, numa prática quase coloquial;  repare-se em alguns dos títulos das crónicas críticas que ligam a vida à literatura: ”No dia em que se destruiu a Torre de Babel”,” A Cidade dos Escritores”, ”Agora Ninguém Escreve Cartas”, “O autógrafo”, “ A história de Um Escritor que nunca deixou de Existir”. Cada estória/crónica/ leitura é a forma como o autor lê e reflecte sobre as obras publicadas em Moçambique, desde autores mais velhos como Aníbal Aleluia, Albino Magaia a autores mais novos como Adelino Timóteo ou  Andes Chivangue, apenas para dar alguns exemplos, exercendo um importante contributo crítico no quadro histórico-literário do país.

O entrelaçamento entre a leitura e escrita, a forma como Panguana escreve, julgo que corresponde àquilo que podemos chamar de “ensaio”; ele ensaia uma escrita crítica, personalizada tanto nos seus afectos literários de leitor, quanto nas suas evocações de vida e de memória, convocando às obras as figurações de personalidades entretanto desaparecidas, como em “Mil e Tantas Palavras ao José Pastor”, “A Voz,“A Segunda Morte do Escritor”.

Marcelo Panguana nos diz que o país está presente em cada página do seu livro – “o amor povoa todas as palavras”- e que a cultura é sua preocupação permanente nessa vontade de pensar “a história, as interrogações, as dúvidas existenciais, as conquistas, as percas, a nossa utopia individual e colectiva, (que) são o substracto comum deste livro que se inspira, sobretudo no chão da nossa terra.”

A escrita crítica que Marcelo Panguana convoca com As Conversas do Fim do Mundo, estreia uma página nova no género “ensaio”, que combina a crónica com a leitura, intertextualizando-a. Um contributo indispensável para uma história literária moçambicana.

Este gosto pelo que os seus conterrâneos escrevem, pela história literária e cultural do país, é reinventada no livro Os Peregrinos da Palavra (2017), onde reúne quinze entrevistas a diversos escritores e uma cineasta. Começa com uma mulher emblemática, Paulina Chiziane, a quem questiona, entre muitos tópicos, a existência de uma escrita feminina; termina com outra figura das letras femininas moçambicanas, a “filha de Muhipiti”, Lília Momplé, e no meio surge uma longa e reveladora entrevista com Isabel de Noronha, figura incontornável do cinema moçambicano, realizadora do docuficção biográfico sobre Malangatana Valente, entre outras obras de relevo.

Marcelo Panguana foi recolhendo depoimentos, conversas, que têm cronologias diferentes, mas permitem trazer da sombra, testemunhos sobre Charrua, Diálogo, Xiphefo, sobre o nascimento do cinema moçambicano, entre vários outros significantes acontecimentos na vida literária, enquadrada nos acontecimentos da história do país. Entrevista jornalistas, professores, escritores, poetas, e assim falamos com Filimone Meigos, Suleimane Cassamo, Ungulani Ba Ka Khosa, Nataniel Ngomane, Juvenal Bucuane, Calane da Silva, Eduardo White, Aníbal Aleluia…. falamos/ ouvimos alguns que já desapareceram da cena literária, mas não dos livros, nem da memória, que é necessário ordenar, registar, reactualizando, como neste livro se faz. Os percursos biográficos de cada um destes autores, agora quase personagens também, ganham vida e levam-nos a uma relação de proximidade maior entre a escrita e a existência humana, entre a vida e a literatura.

Estas entrevistas organizam-se com uma introdução personalizada sobre cada autor e no final exibem um fragmento da sua obra; são conduzidas pela curiosidade do entrevistador, que entretece pela sabedoria da pergunta alguns dos trilhos das respostas.

Os títulos que encabeçam as entrevistas notificam uma vez mais a presença de Panguana como escritor. Umas entrevistas são mais curtas que outras, mas sempre nelas se nota a pertinência do testemunho concedido sobre a prática de escrita, a época histórica, alguns segredos trazidos da sombra. Entre as várias vozes que tive o prazer de ler em Os Peregrinos da Palavra, saliento a longa entrevista de Simeão Cachamba, narrador que “abre as páginas do tempo”, à maneira de um contador de histórias, como bem aponta Marcelo na sua apresentação. Ou a de Isabel de Noronha, ou a de Calane da Silva…

Mas não vou alongar-me, pois não quero tirar ao leitor a curiosidade da descoberta de cada uma destas personagens/autores, trazidas à cena, em roteiro de memórias, pela mão atenta de um destacado leitor da literatura e cultura moçambicanas: o escritor Marcelo Panguana, que comemora este ano os seus trinta anos de vida literária, mas certamente mais de uma eternidade de anos como leitor.

 

Ataques em Cabo Delgado que tiram vidas sem piedade e destroem casas; apagão das ATM's que lesam milhares de cidadãos e colocam bancos comerciais em rota de colisão com o regulador; acidentes de viação que ceifam vidas por incúria dos condutores; corrupção em muitos dos sectores nevrálgicos da nossa sociedade, a vários níveis; famílias dilaceradas por actos irracionais de violações de adultos a adolescentes…

Quantas mais notícias negativas nos chegam, dia-a-dia para “digerirmos”, sem o contrabalanço de algo que nos traga alegria, razões para festa patriótica genuína, com abraços de auto-estima verdadeira?
 
VITÓRIA DO ARROJO
 
Neste mês de Novembro, o desporto contribuíu para quebrar esse ciclo, colocando o país a dançar. Primeiro foi no Zimpeto, quando os Mambas venceram a Zâmbia, numa tarde que trouxe de volta a esperança de mais uma presença em fases finais do Campeonato Africano das Nações. Dançou-se numa festa adiada, após os desaires diante da Guiné-Bissau e Namíbia.

E agora, senhoras e senhores: a cereja no topo do bolo, proporcionada pelas meninas e senhoras do basquetebol do Ferroviário de Maputo, ao conquistarem a mais alta competição africana de clubes!

Foram noites de entrega e luta, afirmação real de um querer colectivo. Nas noites no Maxaquene, em crescendo, venceu-se a descrença nas nossas capacidades, cada vez mais subestimadas nesta Pérola do Índico! Derrotou-se o coitadismo!

E como não há grandes vitórias sem arrojo, sem crença e confiança na qualidade do trabalho que se realiza, o mérito deste triunfo recai, em primeiro lugar, na Direcção do Clube Ferroviário, apoiada pelos CFM. Em tempo de uma crise nos tolda acções e até os pensamentos, foi uma forte injecção de patriotismo, a aposta nesta competição. E como a sorte protege os audazes, aí está o resultado, idealizado por uns para ser “saboreado” pelo país inteiro.

As meninas/senhoras, que após uma temporada competindo internamente num nível morno, foram chamadas a demonstrar, em poucos dias, que não só os homens “os têm no sítio”. Crer e querer, elevados a níveis altíssimos, deixando de lado festas de casamento e “xiguianes”, ultrapassando toda uma rotina de lamúrias, foi algo que honra e dignifica o nosso desporto e a nossa mulher.

O público? De batalha em batalha, culminando com a difícil noite da consagração, fez jus ao termómetro que veio do campo, tendo sido sentido e correspondido nas bancadas.
 
MENINAS: POUPEM O MEU CORAÇÃO
 
Para este velho homem da pena, sofrendo no meio da multidão, de novo uma velha questão. Como se descreve o indescritível? Talvez só mesmo os meios áudio-visuais o consigam fazer na plenitude. Por palavras, não é fácil transmitir a forma como os corações acertaram a cadência e, de forma espontânea, os corpos se abraçaram, dançaram e rejubilaram, por vezes num “chilrear” que parecia ensaiado, durando largos minutos. O hino nacional foi entoado, em uníssono!

Em longas noites a cobrir jornadas desportivas, eu já tinha vivido e sentido muita adrenalina. Recordo-me da vitória da Selecção feminina no Africano de Alexandria; vêm-me à mente as emoções da conquista de um Campeonato Africano em Masculinos e os feitos que não se apagam de Lurdes Mutola.

Pensava eu, caros compatriotas, que já tinha visto e vivido tudo em matéria de alegria no desporto… Mas afinal havia ainda estas guerreiras “locomotivadas” a voltarem a testar o meu coração, humedecendo ao mesmo tempo os meus olhos, com lágrimas de felicidade!

«Penélope,

nascida e criada no Alto- Maé. (…)

enquanto esperas/teu primo Ulisses,

o noivo aflito,/lá do Chibuto,

para as lautas bodas/no Ateneu»

João Fonseca Amaral

                                     À

Ximbitane na Lenha

1.

As primas têm a atenção sequestrada pelo grande ecrã, um seriado suga-lhes os olhos. A secretária da casa sabe que não deve anunciar uma visita, matar mosquito ou perguntar seja o que for. Milú e Gita estão ocupadíssimas!
Uma hora depois, aliviada a tensão aproveitam o que sobrou da tarde.
–  Amor, veja lá o que esse daí quer. Eu já disse que estou em casa. Eish! (A Milú entregando o telemóvel à Gita)
–  Tá-te a cumprimentar, mana.
–  Yuh, mas só isso? 
– Hããã. É porque não trago óculos, sabe. Esta minha vista…Escreve-lá, com os teus dedos pitandos, assim do tipo quando te vejo?
–  Mas prima?
–  Okay.

Gita não foi em meias medidas. Escreveu «Quando te vejo? Estou morta de saudades. Um beijo». E doutro lado a resposta não tardou.
–  «Mais logo vou ao Cala-boca. É um Lounge fino. Posso te ver lá no sítio»?
–  «Sim, 19h». Gita decidiu pela prima.

E logo de seguida a conversa muda de rumo. Gita toma iniciativa: 
– Milú, lembras quando brincávamos na continuadores? Paralisavas aquilo tudo! Xissa, phá! E aqueles rapazes davam caramelos, arrufadas só a ti. E tu, Madre Teresa de Calcutá, sentindo pena de nós davas um a mim, à Panguita, à Lola e a prima Sara que bazou para a John…
– Xi. Ainda lembras de coisas do tempo colonial, filha?
–  Até do Kilson eu me lembro, o teu gringo.
–  Pára lá com isso, Gita! Vou-te bater…
– Aquele gajo te queria como pão para a boca, mana!
– E quem foi que te disse que lá isso de ele ser americano dá-lhe algum direito de preferência?
– Acho que nem sabes bem o que queres dizer, mana. O Kilson fez de tudo, foi à casa do tio Mário. Apresentou-se. Lobolou-te. Foi visitar as campas dos vovós Mundau e Salda. Só faltava o gajo dar banho aos cabritos…
–  Esqueça isso, filha. Eu estou masé louca por ir ao Cala-Boca. E tu és minha madrinha hoje. Deixa-te de falecidos, vamos aturrar aquele machangana do Pajó.
– Nem me fales, mana. Vou caprichar. Ainda descolo deste meu azar…
– Qual é o carro que vamos usar hoje, filha? – Atirou a Milú.
– Hoje quero conduzir o Black Mamba. Estou farta de simanguitos nas ruas. 
– Desculpa lá, mana. Vou trocar estas sandálias, calçar uns sapatos rasos. A noite promete.
–  Não demora, filha. 

2.

–  Gi, estava aqui a pensar com os meus botões. Qual é a diferença entre eu e essas ministras que andam por aí? A mulher é que está a dar, filha. Eu até me imagino a falar no parlamento. E tu ficas logo minha chefe de gabinete, diz-lá, o que achas? Seja sincera, querida! 
– Hehehe! Acorda, Amor. E quem vai vestir essas tuas roupas curtas. Aquelas tuas botas, bombar na night,etc? Se te metes naquela merda tens de mudar muita coisa. Posso ligar à prima Luísa. Vai ler para ti a cena dos protocolos, coisas corretinhas e etc e tal. Sei que és uma poderosa, mas veja lá onde metes a fuça, baby …
–  Ei, tens razão. É por isso que gosto muito de ti, meu anjo. Entendi bem e, veja que nem vou dar os meus biquinhos por aí. As selfies no elevador. Ei, sai satanás! Deus me livre! Nem quero saber como é que aquela malta aguenta? Achas mesmo que sou capaz de andar a controlar o instinto do meu beijo molhado?
– Estou a render contigo, mana. Enquanto falavas dei por mim a ler as cartas do Tony daquela banda de rock?
–  Aquele que mandava postais em inglês?
–  Não, mana. Escrevia em Português mesmo.
–  É tudo igual. E tu lias, com todos kapas, éffes e érres.
– E aquele sul-africano, nunca mais fomos ver o sivale?
–  Stop! O que te deu hoje, hein querida? Foste tirar o Boyson, da campa em Benoni? Pensando bem, aquele tipo me abriu os olhos. Comecei a usar a cabeça. Comprei casas na Suázi. 
– Lembras-te das nossas aventuras? E aquele primo do Mswáti a comer na tua mão… Eras uma princesa…
–  Aleluia! Estás a ver que não fui matreca.
–  Nem me fales, prima…
– Olha que ninguém notava que tinha dois dentes partidos.
– Como reparar nisso mana. Tu és uma gatona. Deus estava inspirado…
–  Pára com isso, Linda! Vou estacionar. 
–  Deixa-me abrir-te a porta, mana.

3.

Gita deu a volta à viatura, a Milú ajeitava a maquilhagem quando o telefone vibrou.
– Yuh, como é que o Pajó advinhou a nossa chegada. Fala lá com ele, amor. Estou a acertar o batom. – Milú entregando o celular à prima Gita.
– Não é Pajó, mana. É o ministro aquele teu fã da casa Mapiko.
–  Eish, o Gatafox?
–  Dá cá isso, amor. 
–  Olá, filho de dono. – Milú conjugando o verbo.
– Olá, meu feitiço. Tudo bem?
– Tudo. Sabes com é. Esteja à vontade. Não tenho salamalaques. E tu, gatão?
– Tive de me trancar no escritório para falarmos à vontade. Digamos que estou a terminar a minuta do acordo que vamos celebrar com a Coreia do Sul. Tenho uma viagem dentro de duas semanas.
–  Wow!Estou a gostar disso. Meta-me na mala.
– Isso é pouco, filha. Manda-me agora a cópia do teu passaporte preciso de mandar a minha secretária incluir-te nas passagens…
– Hei, como assim? Ei, veja bem, Gatucho. Não quero vender jornais…
– Isso é cá comigo. Vamos com uma equipe técnica. Já avisei lá em casa que vai uma comitiva ministerial executiva e alguns empresários.
–  Hum. Do tipo mata-e-esfola?
– Isso mesmo. É desta vez… Olha devo desligar. Estou a receber uma chamada das águas grandes.
– Está bem, filho. Mabeijo na orelha. Já te mando por whatsapp.

4

– Filha peço para veres se a minha bolsa tem o passaporte.
–  Qual das bolsas, Linda?
– Aquela que comprámos em Itália. Nem imaginas, estou para ir a Coreia do Sul …
–  Xi. Você não presta mesmo. Ainda por cima com um ministro…
– Estou em cima da casa, filha. Nem imaginas o que o Gatucho armou para a dona das coisas.
– Não me digas que nem falou da viagem à dona fulana…
– Falou. O gajo disse que vai numa coisa executiva, blá, blá. Só homens. O gajo já nem pensa, filha. – E a Milú voltando à carga.
– Olha envia-lhe as imagens do meu passaporte no whatsapp. Ele quer tratar do visto, já. Chuta daí, querida.
–  Vamu que vamu, mana.

5.

Entretanto,

O Pajó já tinha roído todas as unhas. A ansiedade asfixiava-o. Havia rebentado duas torres de cerveja.
– O que tens, filho, que bicho te mordeu?
– Bicho uma ova. 
– Calma, mor!
– Não quero saber. Será que vieste de navio. Ou pensas que sou um boneco?
– Relaxa, moço. Tu sabes que sou tua. E, olha que não digo isso a toda gente…

Foi tudo rápido! As caixas automáticas decidiram tomar um sonífero e dormir no meio de ruas como mendigos. Dormem em todos cantos do país e os guardas são os únicos que vigiam seu sono. Pararam de cuspir nossas notas e as pequenas facturas que nos mostram o pouco que temos em nossas contas. E já nem arrotam e nem rugem como leões, Simbas bravos perdidos no meio da cidade. É a primeira vez que as máquinas decidiram entrar num sono profundo. Estão num sono tão profundo que nem roncam! Como roncariam sem o famoso SIMO? Coitado das nossas caixas.

Escrevo este texto pensando no que sonham as nossas caixas automáticas. Será que sonham com o nosso dinheiro que lhes embalam o sono e serve de almofada? Ou sonham com uma botija de SIMO reactivando-lhes a vida, fornecendo-lhes energia nos músculos para poderem acordar desse sono, ou sonham dizendo-nos as notas que estão disponíveis ou segredando-nos para não esquecer os nossos cartões.

Ou talvez sentem saudades das suas bocas abrindo-se, como hipopótamos eléctricos, a todo momento, para entornar um recibo enrolado ou notas bem lisas e velhas. As bocas das nossas ATM quando se abrem recordam-me as dos crocodilos, do jardim, pescando moscas nas ondas do ar.

Talvez as nossas caixas sentem saudade do homem que chega cantando com a guitarra do assobio, que pressiona em seus botões com raiva e tira-lhes, sem mínimo de cuidado, uma nota de cem meticais; talvez sintam falta do velho que lhes toca os botões com delicadeza e pede ajuda para tirar as notas velhas como ele. Ou da moça de unhas pintadas que carrega nos botões com cuidado para não manchar as paredes pintadas das suas unhas. A mesma moça que tem a conta nutrida mensalmente por contas alheias.

É tanta coisa que me ocorre sobre o sono das nossas caixas. Ou sentem falta da senhora que deposita vinte meticais e sai correndo do banco para verificar o seu saldo. Ou daqueles malandros que desviam cartões e fazem macacadas para sorver, como esponjas, o dinheiro alheio.

Viraram órfãs as nossas caixas; falta-lhes uma fita de luto na roupa que vestem. Ninguém se aproxima deles para lhes dar um abraço e pedir as suas notas. Suas bocas secaram e nem têm um pingo de saliva para fazer deslizar uma nota. Não há filas armadas de cartões em frente às nossas caixas e nem há aqueles homens rudes que espreitam um buraco na fila e logo metem suas barrigas.

Talvez as nossas pobres ATM sintam falta de nossas filas longas ao sol, da nossa impaciência para retirar o cartão, dos nossos suspiros carregados de bolhas de saliva sobre suas caras, dos nossos dedos, indicadores, carregadas de unhas sujas, das nossas manias em fazer-lhes engolir os nossos cartões mesmo informando-nos que não estão bem-dispostas, da nossa rudez em retirar o nosso papelinho de saldo e rasga-lo na hora, nas suas caras movidas por imagens publicitárias.

Dormem as nossas caixas. Descansam o sono acumulado das sextas-feiras, dos feriados nacionais; repousam as transferências cansativas em todo país e o cansaço de ficar de pé, distribuindo notas, aos finais do mês. Não há SIMO e as nossas caixas descansaram os nossos cartões sujos, partidos nos cantos, com rugas em toda parte e tatuados de assinaturas mal escritas nas costas. Quantas vezes foram insultadas as nossas caixas quando a febre do sistema ataca o seu funcionamento normal? Quantos pontapés e pancadas oferecemos às pequenas telas das nossas caixas quando decidem acelerar a digestão engolindo os nossos cartões?

Quando a botija de ar, cheia de SIMO, chegar ao cimo das nossas ATM, elas acordarão e, assim, voltarão a sua rotina normal de nos distribuir dinheiro como mendigos estatelados ao pé de uma mesquita. Estamos no cimo do SIMO e percebemos que há muito limo. Coitado das nossas caixas e de nós. Foi tudo rápido. As nossas caixas automáticas decidiram tomar um sonífero e dormir no meio de ruas como mendigos. Dormem em todos cantos do país e os guardas são os únicos que vigiam seu sono.

“Bons sonhos, queridas caixas. Espero que despertem logo, porque muita gente não apanha sono em seus lares”.

Não, não e não. Recuso-me a aceitar o silêncio do governador do Banco de Moçambique, enquanto dirigente máximo da instituição com maior número de acções na Sociedade Interbancária de Moçambique (SIMO): 51%. É um silêncio covarde para quem nos habituou a frontalidade, independentemente de elogios, críticas ou ainda dimensão da tempestade.

Passam três dias que o país vive um apagão na infra-estrutura de pagamentos electrónicos da rede SIMO, causando danos sem precedentes aos moçambicanos que aderiram à tecnologia para movimentar dinheiro. Empresários a somar prejuízos, clientes de bancos forçados a usar os seus recursos financeiros à moda antiga e o país numa abrupta marcha atrás.

Um retrocesso com efeitos socioeconómicos em cascata, considerando as estatísticas das transacções financeiras nesta rede. Um cenário sombrio que não comove as mais altas estruturas desde país, até mesmo quando se belisca a soberania do Estado.

Rogério Zandamela, que seguramente conhece muito bem os contornos deste negócio, assim como tem influência nas decisões tomadas, optou pela mão dura nas negociações com o provedor do sistema, mas não foi assertivo nas consequências: o risco de colapso do sistema financeiro. Só agora, há indícios de migração massiva para o único banco que por força da sua grandeza não tinha, ainda, aderido a este sistema. Depois ouvir que não há solução à vista para este problema e possíveis soluções apontarem para médio e longo prazo, escuso-me de pensar no resto…

Não se coloca em dúvida a inteligência e experiência do governador do Banco de Moçambique, de tal forma que era expectável que fosse o próprio a argumentar o porquê de uma negociação que data de Abril deste ano ter culminado com este apagão no sistema.

A administração da SIMO, a quem coube abordar este problema da Nação, foi clara em esclarecer que as exigências da empresa provedora do software tinham impacto financeiro e outras punham em causa a soberania do Estado. Olha, quando se belisca a soberania de um Estado no mínimo é ver respostas vindas do topo da estrutura, no caso, do governador do Banco de Moçambique e, por que não, do Conselho de Ministros e até mesmo do Presidente da República.

O silêncio sobre os detalhes do contracto entre a SIMO e a Bizfirst, conjugado com a informação a conta-gotas que nos chega, nomeadamente, da cedência de uma das exigências atinente à actuação exclusiva do provedor desde Agosto deste ano, leva-nos a crer que existe muita sujeira por limpar debaixo do tapete.   

O comunicado emitido este domingo pela empresa chantagista, como apelidou a PCA da SIMO, requer esclarecimentos urgentes, pois descredibiliza toda a comunicação nacional, que agora fica com a fama de mentirosa, até nova defesa.

Para já, o TPC para a próxima conferência de imprensa: que não seja uma ilustre desconhecida a falar sobre assuntos que põem em causa a soberania do Estado; que se explique por que optamos por esta empresa e aceitámos as condições que hoje nos amarram; que tipo de contrato foi celebrado com a Bizfirst; por que depois da primeira paralisação, em Junho e Julho, não tomámos as providências necessárias para evitar o apagão; por que forçámos os bancos a aderirem a este serviço; que limitações temos em encontrar alternativas seguras…

O equinócio de Março acabava de visitar Lisboa e consigo tinha trazido a Primavera. Frágil como uma mulher que acabava de dar a luz, mas ali estava ela. Algumas folhas preguiçosas iam esverdeando as árvores. A noite que noutros tempos nascia e morria cinzenta, frígida, e, quiçá, desinteressante, se mostrava reconciliada com a cidade.

Quando vivemos momentos como este, não vemos o que vivemos. Os pés desconhecem o chão e tudo que nos rodeia parece ser engolido apenas por um querer sentir que nos possui sem talvez ou sem chance de outra vez.

O semblante matreiro de Zé Manel acendia quando cambaleante descia a rua. Já há muito lhe fazia falta uma Lisboa como aquela.  Entre jolas e fados do Bairro Alto, Lisboa se lhe tinha feito brilhar a luz do luar.

Minutos antes Joaquim, seu copincha, tentava convencê-lo que a noite parecia ter dado tudo que tinha para dar, contudo desde que chegara ao "Maria Caxuxa" que Zé Manel colocara na cabeça que aquela noite seria uma daquelas dos marinheiros. Acaba quando não mais há lua e só revela os seus encantos se a falarmos coisas doces aos ouvidos.

-Nada mais temos aqui a fazer, compadre!- Disse Joaquim fazendo sinal que era hora de abandonar o bar "Maria Caxuxa".

-Eu já disse que esta não era noite para paneleirices, Jaquim! A noite só acaba quando o sol nascer… – gritou Zé Manel enquanto encaminhava o copo de cerveja à boca.

-Tenho dito compadre, esta Lisboa já não é a mesma… – Respondeu Joaquim com um ar resignado.

-Tu estás é com a jola a te subir os cornos! Isso é transmissível! – disse Zé Manel interrompendo a fala com pequenos, mas fortes, risos de mofa. – Prefiro ser eu a te deixar, que tu a me deixares. Vou-me embora, vou descobrir essa noite que ainda anda pela cidade abaixo.

Zé Manel encheu o peito de ar, ganhou força, levantou-se e começou a descer a rua cambaleante. Ainda ao longe vira aquilo que o fizera dizer, como se se congratulasse:

– E agora a cereja no topo do bolo!

Estava ela de costas ao fundo da rua com uma saia que deixava o vento noturno se deleitar das carnudas pernas brancas. Os cabelos compridos quase que tocavam o traseiro arrebitado. O salto alto que calçava a dava um ar de senhora da noite.

Como que impelido por alguma força sobrenatural Zé Manel esforçou-se para aumentar o passo sem se dar o luxo de sentir o tempo acontecer. Quando deu por si tinha as mãos no traseiro da "senhora da noite" e sentiu a respiração cessar ao ouvir uma voz masculina dizer-lhe:

– Cinquenta euros-meia hora.

Foram milhares de quilómetros percorridos, por pessoas com experiências e ideias diferentes, foram milhões de meticais consumidos. Marcaram-se muitos golos, não tantos quantos os desejáveis e até expectáveis, mas aconteceram jogadas e momentos dignos dos maiores estádios do mundo.

Nas bancadas, viveram-se emoções ao rubro, com abraços e afectos, novas amizades e conhecimentos, propiciadores de ideias para novos negócios. Os vendedores formais e informais, foram fazendo os seus negócios.

É o Moçambola, a maior competição futebolística interna, que chegou ao fim, nesta temporada, com ganhos difíceis de quantificar e até qualificar.

PASSOS A DAR

Com o mesmo ou com um novo figurino, algo mais poderia e deveria ser projectado nas componentes da recolha, troca e transmissão de experiências e conhecimentos, pois nessas perspectivas e tendo em conta até o investimento, o saldo é negativo.

Vejamos alguns factos: metade das 16 equipas, semanalmente na condição de visitante, movimentam 20 jogadores e técnicos, mais os dirigentes e pessoal de apoio, qualquer coisa como 30 elementos, o que totaliza 240 pessoas. Elas viajam e aterram em vários lugares do país, para alguns totalmente desconhecidos.

A pergunta é: o que lá deixam (ou levam), para além dos pontapés na bola e queixas das arbitragens?

Por serem adversários, antes dos jogos torna-se aceitável que procurem resguardar conceitos e outros trunfos, dos adversários. Mas porque não se verificam contactos em áreas sociais e do conhecimento, focados nos benefícios da troca de ideias e conceitos a serem partilhados, sem que isso interfira na competitividade que se pretende?

Faltam visitas a locais de interesse histórico, político e social, contactos com culturas, hábitos e formas de vida diferentes das do seu dia-a-dia. Elas trariam um enriquecimento cultural grande aos componentes de cada delegação, algo que nem todos podemos alcançar, pela dificuldade de nos deslocarmos pelo país, com a facilidade que o Moçambola proporciona aos seus protagonistas.

De premeio, palestras envolvendo treinadores, médicos, massagistas e dirigentes, claramente “mais valias” que justificariam e “dariam força” ao investimento.

Agora que a época terminou, seremos bem capazes de ver clubes, a gastarem valores avultados para que técnicos envolvidos no Moçambola se desloquem para locais onde já tinham estado, a fim de darem cursos ou palestras!

É incompreensível, mas real, que há jogadores que se deslocaram a várias províncias, várias vezes, mas acabam por voltar sem os conhecimentos básicos das danças, iguarias ou hábitos culturais desses locais. Faz sentido?

Disse o Presidente Nyussi que o Moçambola é um factor importante de unidade nacional. Por isso, importa reforçar esse papel, indo para além dos muitos pontapés na bola fora de casa!
 

Mzeno Wa Melekwane

 «O futebol profissional é algo parecido com uma guerra. E quem se comporta de maneira muito gentil perde».

Rinus Michels

(1928-2005)

Singela homenagem a Míster Baba!

                  (1964- 2001)

No dia que cheguei atrasado ao muro descobri muitos outros companheiros, que para além de mim, todos os sábados se dedicavam a assistir aos treinos de futebol no campo da São Gabriel. Um senhor de casaco preto, funcionário do Conselho Executivo da Matola tinha abandonado a viatura encostada ao passeio, com a chave na ignição. Talvez movido pela curiosidade, a gritaria, os aplausos que choviam na assistência. A senhora que vendia arrufadas e sumos aos jogadores e à assistência. Um velhote batia palmas ao sabor dos malabarismos da rapaziada. O madala todo entretido pelas jogadas frenéticas, exibindo um par de marfins escassos e uma careca reluzente.

Mister Baba, ao centro dava instruções rodeado por jogadores, de rostos suados depois do aquecimento. Há medida que ia falando, o míster dividia os pupilos em grupos, criando sete equipas. Para além destes havia o grupo de guarda-redes: Euclides, Mitó, Avelino e Elias.

O dia era de um sol fulgurante. Míster Baba, de fato de treino, apito pendurado ao pescoço, sapatilhas, uma prancheta debaixo do braço e um boné à cabeça. Os místeres Baba e Nino orientavam a movimentação dos jogadores, ensaiando jogadas diversas, explorando jogadas pelas laterais, em movimento ofensivo. Um outro grupo de jogadores, na faixa central, esmerava-se no plano defensivo. A cada jogada mal feita o míster Baba interrompia, dava instruções, aconselhava, insistindo sobretudo com a condução da bola rente ao chão. O míster recomendava repetidamente a prática do cruzamento em queda caso a bola fosse lançada em velocidade junto à linha. Isto permitia que a bola ganhasse altura ao ser cruzada. Assim o atacante ou defesa haveria de receber a bola, com potência suficiente para cabecear à baliza ou aliviar, dependendo do interveniente que ganhasse o esférico.

Um outro grupo, junto à baliza da parte norte fazia uma peladinha. Jogava à bola rentinha ao chão, como fazem as galinhas debicando os grãos sobre a terra: GALINHA COME NO CHÃO. Um, dois toques, depois o portador fazia o passe. A bola é trocada entre os colegas, pressionados pelos adversários de ocasião. Os grupos distinguiam-se por haver uns vestindo coletes amarelos, com inscrição OBSERVADOR NACIONAL. Os outros envergavam camisetes brancas.

Míster Baba desdobrava-se, incansável e paciente entre os grupos. O mestre preocupava-se com a postura do jogador ao transportar a bola, a marcação de jogadas rápidas, cantos curtos, a técnica de bloqueio, a astúcia dos defesas perante a ratice dos avançados. O treino era um regalo de se ver, sobretudo pela idade dos executantes, a rondar entre 11 a 14 anos. Corria o ano 1994. Aos treinos a rapaziada levava pastas, porque para além da roupa para mudar era preciso levar cadernos para apontamentos técnicos-tácticos e cultura-geral. O míster queria que todos jogadores dominassem os rudimentos do futebol, desde as medidas do rectângulo do jogo ao mínimo detalhe. Baba leva ao extremo a influência do futebol total de Rinus Michels.

Ubaldo Muthambe, mais conhecido por Míster Baba decidiu abraçar o projecto da escola de jogadores GALINHA COME NO CHÃO, após o seu regresso de Angola onde cursara petroquímica. Baba fundou a equipa de futebol PROGRESSO, enquanto prosseguía com os estudos tendo se formando em sociologia. Os místers Baba e Nino recolheram, desde os irmãos, sobrinhos de casa, aos vizinhos, andando por vários bairros da cidade da Matola para iniciá-los no ofício da Bola. No campo da Igreja São Gabriel treinavam iniciados, juniores, seniores, uma equipa feminina e até veteranos todos sob o olhar tutelar de Míster Baba.

Olga Muthambe, irmã que acompanhou-o de perto revelou que Baba foi influenciado por um vizinho da família Calado na mítica Mafalala, onde nasceu no 1.º de Maio de 64. Uma influência que obviamente se estendia a craques da Mafalala e outros subúrbios que já jogavam em Portugal, isto para não falar de Hilário, Coluna, Matateu Mário Wilson, Eusébio, Vicente, Armando Manhiça e outras vedetas. A família Muthambe saíu da Mafalala para viver na Matola no ano que a selecção holandesa, orientada por Rinus Michelis sagrou-se campeã mundial, com Cruyff à cabeça do carrossel da laranja mecânica, em 1974.

Voltando à peladinha, o médio ofensivo Baggio, depois de receber um passe do Bónswa, passou por Marito e Parmalat, fez um passe ao Tujó, que ao primeiro toque soltou a bola para o Nelson. Este desceu pelo flanco direito, já em queda cruzou para a área de rigor. Germano amorteceu a bola com o peito para Ravanelli que finalizou, em habilidade na baliza improvisada, perante o olhar desolado de Popescu. Era este encanto que me convocava reliogiosamente, ultrapassando a geografia dos meus desejos. O muro estava inudado de espectadores.

Uma das maiores virtudes do mister Baba era o ensino da atitude correcta ao jogador, com ou sem bola, o aperfeiçoamento das jogadas, o ensino da paixão pelo jogo. O míster Baba ensinava com primor, tanto ao sol, à chuva, ou ao vento, com a mesma paixão com que abraçava efusivamente aos seus pupilos na celebração do golo ou de jogadas bem-feitas. O Míster transfomou-se numa figura icónica da Matola. Para além do treino ampliou os quintais das famílias matolenses, unindo mais de quinhentos jogadores, entre crianças, jovens e adultos.

A paciência característica do Míster Baba contrastava com a cólera quando um jogador falhasse um lance, numa atitude desinteressada ele explodia:

-Onde dormiste ontem? Passaste a noite lá no Macopeni com a tua avó? Sai daí mesmo, cabrão!

E de onde estivesse o visado já sabia que devia dar três voltas ao campo antes de ocupar o lugar no banco de suplentes.

Podia ter dissertado uma tarde inteira sobre o míster Baba. E, tal como disse o Bónswa numa conversa recente, o míster era um professor da dimensão de um Carlos Queiroz. Pena que teve pouca sorte e o magnetismo que nos fazia inundar o campo da São Gabriel perdeu-se com a sua morte em 2001, aos 37 anos. Eis que resgato o Poeta Rui Knopfli neste «precário registo das palavras», que pretendem ser provas guardadas, de poder e sabedoria de um cidadão verdadeiramente admirável.

 

 

Nos últimos anos os moçambicanos têm estado a discutir de forma intensa sobre que tipo de país, que tipo de Estado e que tipo de Nação ou Pátria estamos a construir ou queremos construir. O objectivo principal de qualquer Estado é prover o bem-estar dos seus sócios, os cidadãos. E isso é feito por uma correcta gestão da coisa pública e da criação de condições para que cada cidadão desenvolva suas habilidades e contribua de forma decisiva para o crescimento e desenvolvimento do Estado.

Os melhores Estados não são na minha óptica aqueles que têm economias mais fortes, para mim são aqueles que são desenvolvidos. Aqueles que garantem que cada um dos seus cidadãos têm acesso a melhores cuidados de saúde, melhor educação e tem renda suficiente para garantir habitação, alimentação e outras condições condignas. Ou seja, qualidade de vida aceitável.

Pelo que os esforços de um Estado não pode ser apenas conseguir ter maior crescimento económico entre outros indicadores económicos, tem que ser sempre o quanto conseguiu garantir que menos pessoas vivem na miséria, menos pessoas estão no desemprego, menos pessoas morrem por causas evitáveis, isto incluindo crianças e mulheres grávidas.

Alguém pode dizer que isto é socialismo ou comunismo. Mas não é. Todos nós contribuímos através de impostos para o funcionamento do Estado para que este possa desenvolver um conjunto de acções que nos garantam um bem-estar comum. Por isso, quem dirige o Estado deve ter em primeiro lugar a consciência de que no final de cada dia do seu mandato tem de ter tomado decisões que vão ao encontro dos objectivos pelos quais o Estado que dirige foi criado. Melhorar a forma como os que o mandataram vivem.

10 de Novembro vamos inaugurar a Ponte Maputo-Katembe. Possivelmente é a maior infra-estrutura que construímos desde que estamos independentes. A pergunta que me coloco é se conseguimos com a construção daquela infra-estrutura fazer com que os moçambicanos aprendam a construir empreendimentos daquele tipo e dimensão? A ponto de passarem a faze-lo dentro do país ou contratados por outros países para fazê-lo? O dinheiro investido naquela obra, que é um empréstimo que vamos todos nós moçambicanos pagar, serviu para dinamizar a economia local, através de pagamento de salários aos trabalhadores, da aquisição de bens e serviços como por exemplo: pregos, arames, madeira, aço/alumínio, ferro de construção, equipamento de protecção, maquinarias e viaturas para construção, catering, entre outros utilitários. Ao que tudo indica não tivemos esses ganhos todos à excepção do cimento, pedra e areias que foram adquiridos localmente.

No meu entender são projectos âncoras como o Projecto da Ponte Maputo-Katembe, as Estradas de Ligação e a Estrada Circular que custaram mais de Um Bilião de dólares norte-americanos que impulsionam o desenvolvimento económico de um país, distribuem a renda porque fazem com que as Pequenas e Médias Empresas ganhem robustez e empreguem cada vez mais pessoas e adquirem conhecimento e tecnologia para continuarem a crescer, para além de pagar impostos.

Os ganhos de obras como aquelas não estão apenas a posterior da sua construção, o país deve tê-los já desde a sua concepção, desenvolvimento, implementação e depois na operacionalização.

A mesma pergunta acima faço em relação às chamadas dívidas ocultas. Que ganhos o país tirou delas? Não é mau um país contrair dívidas, mas elas devem realmente servir para o desenvolvimento dos países. Tivemos naqueles projectos da EMATUM, MAM e ProÍndicus uma soberana oportunidade para desenvolver no país a indústria de construção naval, para não falar da indústria de pesca e processamento do atum e de protecção costeira. E agora a dívida vai ser paga por esta e próximas gerações sem ter servido praticamente em nada o Estado Moçambicano.

E o dinheiro para pagar a dívida vamos buscar nas receitas do gás. Por acaso nem vejo mal nenhum porque devemos pagar de qualquer jeito e o dinheiro vai ter que sair de algum sítio. A minha grande preocupação é se nós estamos preparados para não mais cometer esses erros todos com os projectos de exploração do gás natural?

Por exemplo a Noruega descobriu petróleo nos finais da década 60 e iniciou a sua exploração nos inícios da década 70. A exploração era feita pelos americanos. Mas os noruegueses que não tinham capacidade nenhuma aliaram-se aos americanos e aprenderam durante o processo de pesquisa e exploração do petróleo e desenvolveram capacidades que hoje eles vendem serviços em quase toda a cadeia de pesquisa, exploração e processamento de hidrocarbonetos e isso gera rendas muito altas para o país.

Ou seja, por mais que o petróleo acabe na Noruega eles estão em condições de ir explorar noutros países, aliás o fazem aqui mesmo em Moçambique e podem prestar assistência aos outros países através do conhecimento que desenvolveram até para construir plataformas.

Se queremos desenvolver os moçambicanos é este tipo de apostas que o nosso Estado deve fazer. A nossa aposta não deve ser apenas em extrair os recursos ou construir infra-estruturas. A nossa aposta deve ser sobretudo desenvolvermos conhecimento e adquirirmos tecnologia que nos permita termos capacidade para nós próprios pesquisar, explorar e processar hidrocarbonetos ou outro tipo de produtos e vender essa capacidade para as outras nações.

O mesmo para o grafite que é praticamente o petróleo do futuro, já deviamos pensar no processamento interno e em fábricas de baterias e nos tornarmos líderes mundiais no fornecimento de baterias para viaturas eléctricas. Isso é que desenvolve um país e as pessoas.

O desenvolvimento deste tipo de capacidades vai implicar necessariamente investir seriamente nos moçambicanos porque essas capacidades são possíveis adquirir quando as pessoas têm boa saúde, são bem nutridas desde bebés, têm acesso a uma educação que estimula todas as suas capacidades cognitivas e no fim poderão sozinhas gerar renda para se sustentar.

Todos países que são hoje ricos e desenvolvidos um dia foram pobres e miseráveis. Mas chegou o dia em que perceberam que a pobreza não era seu destino e que depende deles mudarem o curso das coisas e desenvolverem seus países e povos. E essa decisão parte de quem dirige o Estado e conduz a sociedade para trabalhar pela prosperidade.

E no nosso caso devemos sempre nos envergonhar ser pobres porque Deus deu-nos tudo para sermos ricos, falta-nos é apenas conhecimento e vontade para transformar estas potencialidades em riqueza que beneficia a todos. Pois isso é possível só depende de nós. Senão Cuba não seria o único país tropical que não têm doenças tropicais como a malária, cóleras, diarreias, etc. Senão Coreia do Sul, Japão, todos Países Nórdicos seriam até hoje pobres.

 

Conquistas, derrotas e lutas. Esta é a trindade que define o carácter de Paula Chonguene, protagonista do primeiro livro de Cri Essencia. Na história que faz Em busca do mar certo, a autora moçambicana residente em Londres, capital inglesa, desenterra do seu âmago interior lições de vida, daquelas que se geram em pessoas destemidas, casmurras e determinadas.

É um livro de vivências intensas este que Essencia, e não Essência, publica como que para desabafar, purificar-se e, quiçá, o mais importante, motivar quem se encontra entre o desespero e a revolta, o ódio e o inconformismo. Estes aspectos todos, acumulados numa única personagem, oriunda de um país humilde a tentar ser gente na Europa, fazem de Paula um sujeito além do comum, dona das suas próprias metas quase intransponíveis. Esta condição confere à narrativa muitos sonhos ousados acompanhados de desfechos imprevisíveis, e, à medida que os eventos são revelados por uma narradora autodiegética, por integrar na história que narra como personagem principal, daí contar as peripécias na primeira pessoa do singular, há uma espécie de amargura a transcender o texto, podendo, por essa razão, ferir as sensibilidades do leitor. 

Em busca do mar certo é uma história que mistura muitas realidades: tradição, feitiços, subalternização da mulher, machismo, racismo, prepotência e choques culturais, mas sem virar as costas à amizade, ao amor, mas sem aquelas tonalidades cor-de-rosa. Todo este cenário e as suas variáveis vêm acompanhados de muita predisposição, sem lamúrias, sem fugas, afinal, como nos diz uma entidade do romance Terra conquistada – primeiro prémio de concurso de literatura colonial (1945), da autoria de Ed. Correia de Matos, oportunamente falaremos mais deste autor que o leitor moçambicano não deve esquecer – , um coração que foge não é um coração que triunfa. E triunfar é tudo o que Paula Chonguene almeja, desde que sai de Moçambique para viver em Portugal e, depois, na Holanda, fazendo desta história universal, por explorar espaços, circunstâncias e feitios atinentes a diversas nacionalidades.

Neste contexto, com efeito, o poder da escrita de Cri Essencia encontra-se no facto de a história de Paula afirmar-se como um exemplo de luta, de como os boicotes devem apenas existir para impulsionar o sucesso de quem não se conforma com o mundo que tem nos seus pés.

Sem ser uma história provida de uma escrita tecnicamente bem elaborada, Em busca do mar certo vale por ser uma narrativa altruísta, por questionar tudo o que consome a alma humana. É uma história que envolve o leitor, inserindo-lhe na intimidade da protagonista e revelando-lhe o quanto custa ser ave neste mundo apegado às fronteiras em detrimento do que a humanidade tem de comum. É um brado africano, repúdio, retrato da pequenez de alguns homens, uma ode a tanta mulher deserdada por um irmão nojento, absolutamente desprezível, do património deixado por uma mãe. É nisso que se encontra o poder da escrita de Cri Essencia, na destreza de nos emancipar durante o processo de leitura, purificando-nos interiormente e, simultaneamente, fazendo de nós pessoas mais solidárias.  

Título: Em busca do mar certo

Autor: Cri Essencia

Editora: Alcance Editores

Classificação: 13

 

Publicado pela primeira vez em 1987, Ualalapi permanece mobilizando corações e mentes à volta de debates que, entre outros aspectos, exprimem a dinâmica histórica de Moçambique, um país atravessado por muita instabilidade e uma grande capacidade de resistir. A longa noite colonial, a difícil luta pela independência, os sucessivos conflitos que vêm atravessando décadas e a intensa pobreza que quase inviabiliza a vida de seus habitantes têm como contraface uma notável pluralidade cultural e uma imensa vocação para se reinventar.  Ungulani Ba Ka Khosa, o autor dessa narrativa e muitos outros títulos, inscreve-se nesse contexto, procurando de diversas maneiras balançar qualquer cordão de isolamento erguido para separar as tintas e disciplinar as cores. Sua opção ao longo dos anos tem sido o caminho da insubmissão no exercício de uma escrita que se demarca de versões cristalizadas pelo discurso hegemônico.

Reeditado entre nós em muito boa hora pela Kapulana, Ualalapi é um bom exemplo desse desassossego que marca o itinerário do autor em sua circulação pelos gêneros literários e em seu compromisso com os modos de ler a História enfrentando  com energia os perigos de sua petrificação. Mesmo a afirmação que escolhe como epígrafe “A História é uma ficção controlada”, colhida à romancista portuguesa Agustina Bessa Luís, em sua narrativa convida à discussão. Em um momento pulsante da vida do recém-fundado país, Ungulani vai buscar uma figura histórica escolhida pelo novo poder para ser uma espécie de mito fundador da nacionalidade e investe no desvendamento das contradições dessa hipótese que o discurso político elegia. Nas páginas em que desfilam passagens decisivas da vida de Gungunhana, o sentido da resistência desse imperador que lutou bravamente contra a invasão colonial é emoldurado pelas cenas que nos trazem as invasões protagonizadas pelo próprio na expansão de seu império.

Uma espécie de convulsão percorre o tempo captado, levando-nos logo à desmitificação da ideia de harmonia que ainda frequenta o imaginário sobre o período pré-colonial e exporta uma equivocada ideia do continente. Contaminada pela violência dos fatos, a escrita se apoia em expressões fortes, reveladoras da dimensão dos conflitos que estavam no cotidiano daquele espaço. Se, por um lado, dilui-se o mito da paz harmônica entre os africanos antes da chegada dos invasores, por outro lado, as ações revelam o africano como sujeito ativo, desfazendo a noção de passividade que a literatura colonial desejou perpetuar. Aqui, não nos vemos diante de elementos do cenário  – como podemos encontrar até mesmo em textos paradigmáticos do cânone ocidental – mas de homens em confronto com adversários. E, ao perderem, pagam o alto preço da derrota. São de qualquer forma, homens inteiros, empenhados em suas lutas, agentes de sua própria história.

As notas da originalidade que tocam o enredo são amplificadas na estrutura da obra que se nutre de elementos variados, que vão da incorporação de passagens bíblicas ao aproveitamento de provérbios africanos, propondo um diálogo refratário à rigidez de limites entre os vários patrimônios culturais que constroem Moçambique no presente. A montagem dos fragmentos aponta para um desenho peculiar que barra, à partida, a rápida identificação de um gênero literário. Assim, em sua interdependência, as partes que compõem o todo, combinam-se em sua autonomia e nos fazem indagar se o que nos apresenta é  um romance ou um conjunto de contos, questão que não precisa ser respondida e aguça o interesse da obra, pois nos coloca de frente para a reinvenção de modelos estéticos, compromisso com que os escritores africanos têm lidado e do qual desdobram-se diferentes soluções. A presença de matrizes da oralidade é apenas uma das chaves para esse processo que resulta na mesclagem entre bens de raiz e valores trazidos com a colonização.

A desmitificação de um dos heróis sagrados pela História que a voz dominante da independência quer disseminar exprime-se na força de uma escrita hiperbólica, que, em certa medida, reforça a função conativa e espelha um desejo de convencimento. Desse modo, insinua-se a disputa de versões presentes na construção da narrativa histórica que dá corpo ao discurso da nacionalidade. A pluralidade etno-linguística, por um lado, a ocupação recente do território colonial e, consequentemente, a tardia definição do mapa moçambicano explicam a instabilidade do terreno, no plano físico e no domínio cultural, tudo  a projetar-se em uma linguagem carregada de energias. Na voz do narrador e nas falas das personagens se fazem notar sinais de uma inegável aspereza refletida na escrita por uma adjetivação empenhada em banir qualquer hipótese de estabilidade.

Ao trazer as pontas de uma história constituída sobre abalos, o escritor busca demonstrar os limites de medidas que não considerem a profundidade das fendas que os tempos impuseram ao espaço que hoje é Moçambique.  Em 1985, após uma longa negociação com instituições portuguesas, o Governo do país independente recupera o que seriam as cinzas de Gungunhana e, ao transportá-las solenemente de volta à terra da qual ele foi levado como símbolo da conquista colonial, pretende consagrá-lo entre os heróis da libertação. A reorganização da memória coletiva centrada na revisão de verdades plantadas pela dominação estrangeira integrava o programa da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, em evidente coerência com o projeto de nacionalidade que a independência animava. Ao escrever Ualalapi, seu autor, sem dúvida, mostra-se atento a uma das funções da literatura: a de colocar em causa a horizontalidade das narrativas políticas e, assim, manter aceso o debate que atesta a vivacidade das questões éticas e a necessidade de projetos estéticos capazes de acusar a transitoriedade de pensamentos que se querem únicos e definitivos. Penetrando na linguagem, a noção de descontrole parece dominar a atmosfera para sugerir a iminência de novos ciclos, afinal, como evocaria outro escritor africano, o angolano Pepetela em A geração da utopia: “só os ciclos são eternos”. Se é verdade que a nação precisa de monumentos, e a história de todos os países não nos brinda com exemplos contrastantes, Ungulani Ba Ka Khosa nos recorda que a literatura só faz sentido como movimento, compromisso que ele tem abraçado ao longo de uma já extensa travessia.

*Texto cedido pela editora Kapulana do Brasil.

 

Estamos num país em que não há problemas! Há desafios! Isto é o que diariamente referem certos oradores que solicitam a palavra, apenas para serem vistos e ouvidos. E como apareceu na TV, ele sabe que passará a ser um pequeno herói no seu bairro, porque falou, embora com pouca substância.

Há profissionais da palavra. Alguns parece que fizeram o doutoramento na matéria e (de) têm o dom da frase feita, bem arrumada, as fórmulas de monopolizar o microfone.

Passemos em revista alguns dos “clichés” em voga:

O saldo é positivo, pois as metas previstas foram “cumpridas” (ou compridas?) em 70 por cento.

Nós, como Governo, de acordo com o plano quinquenal… é o verbo fácil, decorado e/ou decalcado, da maioria dos politólogos.

No âmbito das directivas superiores, emanadas num despacho ministerial recente, já teremos condições para implementar um projecto, que permitirá, a médio prazo (quando?), melhorar as condições habitacionais na maioria dos bairros suburbanos.

Aos alunos recém-formados: como há escassez de trabalho, a orientação que vos damos é que optem pelo auto-emprego (vender crédito?). Vocês já possuem as ferramentas essenciais (quais?) para criarem as vossas empresas.

No desporto: fomos derrotados, agora só importa levantar a cabeça e continuar a trabalhar…

No Parlamento: Sra Presidente da AR, Excelência; Sr Primeiro Ministro Excelência, Srs Ministros e Vice-Ministros, Excelências; Digníssimos Presidentes do Conselho Constitucional e do Tribunal Administrativo, Excelências; Digníssimos mandatários do povo, Excelências! Protocolo observado, não posso esquecer o meu círculo eleitoral. Excelências: pedi a palavra, em nome do meu partido, para saudar a plateia e concordar com as contribuições do orador que me antecedeu. Muito obrigado!

Nas TV's: em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar os colegas do painel, saudar o apresentador, enviar agradecimentos aos telespectadores e agradecer a oportunidade que me concedem. Indo directamente à questão que me coloca, gostaria de concordar com as contribuições da maioria dos ouvintes e reforçar a opinião do colega do painel que me antecedeu. Muito obrigado!

FORMALISMO ELEVADO AO EXTREMO

– “Temos um país sentado” – dizia o saudoso Ricardo Rangel, quando caracterizava a distância entre as intenções e a prática, com que nos deparamos dia-a-dia.

Vivemos uma herança de salamaleques, que virou moda. Discursos sem conteúdo, frases feitas, sem substância, “é o que está a dar”. Com a psicose dos títulos de Doutor ou Engenheiro, de premeio. Ao contrário do tratamento que se dá a Bill Clinton ou a Barack Obama, por exemplo. Entre nós, perde-se mais tempo nas citações, do que no transmitir algo palpável para contribuir para a matéria em debate.

Diz-se que em televisão, o tempo é dinheiro. Porquê, então, esbanjar tanta “mola” em tempo de crise?

Pessoalmente, cada vez que vejo alguém numa TV ou rádio, a desfazer em “entretantos” mudo de canal pois o sentimento que me invade, é o de que o “cara” não tem nada de substancial para transmitir.

 

O ser humano não morre quando o seu coração deixa de bater.
O ser humano morre quando, de alguma forma, deixa de se sentir importante.

in O vendedor de sonhos, Jayme Monjardim

Há 31 anos, Ungulani Ba Ka Khosa estreou-se em livro, num período em que a literatura moçambicana passava, eventualmente, por um dos melhores momentos até aqui. Na década de 80, foi lançado o primeiro concurso literário do país, foi criada a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), e, enfim, foi lançada a primeira revista literária moçambicana pós-independência, a Charrua, de que o nosso escritor é co-fundador. Este foi um momento de ouro, que, inclusive, contribuiu para a afirmação de uma escrita comprometida com a estética, por nela existir, quiçá, os (des)equilíbrios cruciais à literatura.  É neste contexto de reinvenção de uma arte, num país recém-nascido, que Ba Ka Khosa ousa apresentar-se em obra, depois de muito publicar na imprensa. Nessa altura, tinha 30 anos de idade e havia vivido em todas as regiões de Moçambique.

E então, o livro escolhido para a primeira aparição foi Ualalapi, colectânea de contos, para uns, romance, para muitos, e novela, para os mais centristas. Neste livro, um dos dois que constitui Gungunhana, obra ora lançada pela editora Kapulana, Ungulani percorre os labirintos da história, e, fugaz, aldraba a morte, retirando nela um personagem controverso (ora herói, por ter travado toda uma luta contra o regime colonial português, ora vilão, por tanto ter liderado ofensivas contra os chopes, uma etnia do Sul de Moçambique): Gungunhana/ Ngungunhane. Ao ficcionar a vida do imperador de Gaza, homem extremamente violento, Khosa constrói um cenário maquiavélico, que ao tirano permite atingir o poder sem ameaças de o perder, delegando, por isso, a morte do seu irmão, Mafemane, a Ualalapi.

A partir dos conflitos, da ganância e dos jogos de interesse instituídos na narrativa, Ungulani introduz-nos no raciocínio de um ditador que, à imagem de tantos outros de terno e gravata, não medem consequências no longo percurso ao trono. Por isso, esta é uma história actual e com muitos anos de vida.

O segundo livro que compõe a obra Gungunhana é intitulado As mulheres do imperador, na qual temos um narrador didático como cicerone no prosseguimento dos caminhos trilhados pelas rainhas de Gaza, na desnecessária viagem que termina com um exílio delas na sua terra, mas longe da sua gente. Se Ualalapi, essencialmente, ergue e derroca um império nguni, essa etnia de Ngungunhane, As mulheres do imperador é mais uma história além das peripécias que ditaram o fim de um reinado. Esta história produz-se na viagem pelo Sul de Moçambique, por Portugal, São Tomé e, mais profundo, pelas crenças, dores, desassossegos e sentimentos dessas rainhas pretas, desabitadas de si mesmas por terem conquistado a preferência de Ngungunhane. Também por isso, dá-se nesta ficção a grave degradação da personagem. Mas comecemos pelo primeiro livro.

Em Ualalapi, temos pelo menos dois momentos em que a degradação da personagem acontece. No primeiro, é Damboia, tia do imperador, quem está no centro das atenções, quando morre ainda viva, vítima de uma menstruação de três meses. Devido ao cheiro nauseabundo aí causado, Damboia perde poder e influência, quando os seus movimentos ficam condicionados ao átrio domiciliar. A linguaruda, que chama cães aos súbditos, enferma, perde a capacidade de falar e é invadida por loucura: “Começou a andar de gatas e a trepar as paredes da casa como um réptil em desespero. Durante a noite uivava como os cães” (p. 48).

Num segundo momento, a degradação da personagem, em Ualalapi, acontece quando o imperador, já nas mãos dos portugueses, profere o seu último discurso ao seu povo. Sem poder nenhum, Ngungunhane transforma-se numa entidade banal, ridícula, deprimida e cheia de fel. Destarte, o outrora poderoso imperador vira um objecto falante, prémio de guerra, conduzido, na verdade, não para um exílio, mas para um museu em que ele é a síntese do passado.

Em As mulheres do imperador essa degradação continua, quer em Ngungunhane quer nas suas esposas. No caso do “leão de Gaza”, a situação é agravada porque, arrancado da sua terra com as sete das tantas mulheres que possui, em Portugal, não fica nem com uma sequer, um verdadeiro ultraje e castigo para quem tanto preza o calor feminino. Além disso, mesmo tendo-se recusado a converter-se à religião dos brancos, já dominado, o imperador é baptizado, passando a ter um nome português. Morre triste e humilhado.

Não obstante, separadas do homem, as rainhas de Gaza, igualmente, experimentam a derradeira condição do marido. Logo, com a excepção de Namatuco, tornam-se vulneráveis, passando a comer peixe e a desejarem ser amarfanhadas pelos braços dos homens. E o facto de Namatuco ser a mais sisuda, não a impede de se tornar uma personagem amarga, pois, desterrada de Moçambique, perde o contacto com os seus espíritos, daí a incapacidade de enxergar o futuro.

Portanto, este Gungunhana encerra nas suas linhas uma preocupação estética alicerçada a uma história que se vai diluindo. Esta é uma porta de entrada para quem se preocupa com o passado e com o presente de Moçambique. E faz sentido o livro ser publicado no Brasil, afinal em causa está o conhecimento sobre a humanidade, que não se esgota na fronteira dos nossos pés, que nos faz proprietários da nossa própria voz. A degradação da personagem manifesta em Gungunhana também é nossa, por aceitarmos ser parte de uma história cujos protagonistas são os narradores do esquecimento, esses que nos afastam da nossa terra e das nossas particularidades.

Maputo, 20 de outubro de 2018.

 

*Texto inicialmente publicado pela editora Kapulana do Brasil.

Nely Nyaka; “Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”

Começa assim “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, a nossa Vovó Nely. A Vovó Nely faz, esta sexta-feira, 98 anos. Mais não houvesse a distinguir, nesta longa e prodigiosa vida, este facto bastaria por si como motivo para a celebrarmos. Acontece que há muito para dizer sobre ela e há, até, motivos inéditos e dignos de exultação, como este livro. A Vovó Nely decidiu, aos 97 anos, fazer o registo da sua memória. Sou editor desta obra – declaro-o desde já e não temo que seja parcimonioso por isso. Mas antes disso, sou neto dela.

Edito livros há mais de 15 anos e este é um daqueles soberbos documentos que me passaram pelas mãos e que eu tive o privilégio de o transformar no objecto livro. Quando em finais de Julho fui à casa da Vovó Nely para tomar um chá e receber essa incumbência senti, nos ombros, o peso de uma irrecusável responsabilidade. Depois fui para casa e pus-me a lê-lo de imediato enquanto tratava de articular os diversos aspectos que compõem o complexo e fascinante labirinto da edição, entre nós.

 A Vovó Nely fala, de forma competente e impecável, a língua portuguesa. Mas é proficiente no ronga e foi nesta que ela ditou estas fabulosas memórias. O livro não perde fluidez, está enriquecido pela oralidade e transporta vocábulos de duas línguas – ronga e português – que se iluminam. Texto escorreito, memória prodigiosa, pessoas e acontecimentos, lugares e topónimos, cartografia de uma vida, de uma cidade, de uma época, de um tempo. O livro, que teve o concurso da sua filha, Gita Honwana Welch, na fixação do texto, é uma verdadeira relíquia.

Gita Honwana Welch, no prefácio, cita o livro do pai, Raul Bernardo Honwana, “Memórias”, como leit motiv deste. Na verdade, as duas obras dialogam, pese embora esta não se invista tanto a interpretar, através da biografia, os acontecimentos e os factos históricos e políticos, o que encontramos na obra precedente. Este livro é, di-lo a prefaciadora e bem, uma “cartografia.” Quem quiser saber como se vivia nos arredores da grande cidade, que era onde viviam os aborígenes – ou autóctones, ou indígenas, pode e deve socorrer-se dele. Isso por um lado. Por outro, esta descrição, em filigrana, das famílias, sobretudo de Lourenço Marques – ou mesmo da Catembe, Ressano Garcia – é extraordinária. A desmemória ou o desinteresse estratégico pela memória costumam relegar para um espaço obscuro nomes e percursos que, são, por assim dizer, os protagonistas do proto-nacionalismo. Muitos dos nomes anotados e tratados pela memória activa e esplêndida da Vovó Nely fazem, indubitavelmente, parte desse universo. Aqui se fala das origens e da importância desses nomes e dessas famílias no nosso percurso histórico. O pai da autora foi um dos fundadores, em 1920, do Congresso Nacional Africano, em Lourenço Marques, que mantinha contactos com o Congresso Nacional Africano (ANC), da África do Sul. Mas há muito mais.

Gita Honwana Welch: “Penso que terá sido a publicação do livro “Memórias”, do meu pai, Raul Bernardo Honwana, há mais de 30 anos, o que alimentou nela a vontade de também deixar, por escrito, o seu “legado” às novas gerações. Os meus pais assumiram como dever a transmissão do saber e das histórias que receberam das gerações que os antecederam. A importância que sempre deram à escola e ao ensino formal não diminuía a necessidade que sentiam de equipar, pelo menos os filhos, com outras formas de conhecimento, especialmente aquelas que nos deram consciência de quem somos e de onde viemos. O meu pai inclui no seu livro “Memórias”, publicado em 1985, vários episódios do seu percurso pessoal que nós já lhe tínhamos ouvido, vezes sem conta, nos serões de família, desde que éramos pequenos. Contudo, em “Memórias”, esses episódios têm forte conotação com o quadro político prevalecente, o que revela o profundo sentido de história que caracterizava o meu pai. A minha mãe vem agora partilhar neste livro a sua experiência de vida, usando como compasso social e moral o conhecimento do lugar onde nasceu, cresceu e viveu, a forma de ser e de estar (mahanyela), das pessoas e famílias com quem conviveu e, de maneira geral, o mundo dos subúrbios da grande cidade.”

Anoto-vos, capítulo a capítulo, do que trata verdadeiramente este Mahanyela: o primeiro capítulo versa as origens: KaTembe, a mãe Jinita e o pai Jeremia. Lourenço Marques, nos anos 20, para onde se muda aos 5 anos, a cidade e a periferia ocupam o segundo e terceiro capítulos. “Mahanyela,” a forma de viver, enformam o quarto capítulo. O quinto – que se refere à organização e aos rituais da vida – parece-me um dos mais facundos. Ou o sexto, a descrição do seu casamento com Raul Bernardo Honwana, o sétimo que se atém à Moamba, ao dia-a-dia da vila, às famílias, às relações familiares e sociais. As vidas nas terras do Sabié ocupam o oitavo capítulo. Os filhos – os oito filhos que teve – fazem o nono capítulo. Os tempos tenebrosos da acção da PIDE e a prisão do marido, a hostilidade que irão sentir na Moamba, o anúncio dos tempos sombrios, perfazem o décimo capítulo. No décimo primeiro, o regresso a Lourenço Marques – a casa de Xipamamnine, a prisão do filho Luís, o cerco da PIDE, o assassinato de presos políticos (as mortes sórdidas de Zedequias Manganhela ou de Ebenizário Guambe), a Vila Algarve, o papel de Adrião Rodrigues, Santa Rita, Pereira Leite, Rui Baltazar, Almeida Santos que defenderam, com coragem, generosidade e galhardia, José Craveirinha, Malangatana, Luís Bernardo Honwana, Rui Nogar, Daniel Magaia, Armando Pedro Muiuane, Abner e Abiatar Muthemba, entre outros. A autora revela um plano de assassinato do filho na prisão numa descrição assombrosa. Acresce a este capítulo, igualmente facundo, a viagem a Portugal, a mudança para a Matola. Este é um capítulo essencial da nossa história política. Seguem-se-lhe, no décimo segundo capítulo, os alvores da liberdade: o 7 de Setembro, o Governo de Transição, a viagem à Tanzânia, a convite de Samora Machel, os preparativos para a Independência. A revolução, Samora Machel, a nacionalização das casas de madeira e zinco, a acção cívica, sobretudo como juíza eleita, a operação produção. Não se coíbe de lhe apontar os erros: “Testemunhar a Independência Nacional foi uma coisa extraordinária, uma coisa única”, escreve. “Mas, no meio da euforia da Independência Nacional, houve um episódio que marcou muita gente: as nacionalizações dos prédios de rendimento. Acho que este episódio serviu para nos acordar para o facto de que, no nosso processo de construção do país, nem tudo seria fácil, haveria muitas dificuldades, muitos altos e baixos.” “A minha amiga, a vovó Teresa, mãe do Marcelino dos Santos, com quem sempre falávamos dessas coisas, dizia até pouco antes de morrer que a Independência era a melhor coisa que lhe tinha acontecido na vida, mas que nunca havia de perdoar à FRELIMO o ter-lhe tirado a casa que ela e o seu marido tinham construído com tanto sacrifício.” Ouvi o mesmo da minha avó Angelina até ela morrer aos 89 anos. A autora também é severa quanto à operação produção. Mas não vou insistir nesses temas, pois não são o esteio desta narrativa. A morte do marido, em 1994, ditando o fim de 54 anos de casamento, está na origem da mudança de casa. Sai da Sommerschield, para onde fora viver em 1975 e vai para um pequeno apartamento das Torres Vermelhas. Aqui ela se reinventa. O décimo quarto capítulo trata dessa ressurreição: a Pfuna, com Beatriz Garrido e outras activistas. O capítulo seguinte – décimo quinto – indaga o presente da cidade, preocupações de natureza cultural, a questão das línguas nacionais, aliás, o livro irá encerrar com um anexo importante neste domínio. O décimo sexto capítulo é uma espécie de epílogo: a vida aos 97 anos: “Vivo, hoje, no meu apartamento não muito longe das Torres Vermelhas, onde passei 23 anos da minha vida. Depois de viver em n`Hlanguene, no Ximphamanine, na Moamba, no Ximphamanine (outra vez), na Matola, na Sommerschield e nas Torres Vermelhas, sinto que este é um sítio tranquilo para a minha velhice porque, agora, sim, considero-me, de facto, velha”, assim começa este capítulo final, no qual relata a vida rodeada de filhos, netos e bisnetos e trisnetos, as viagens que a enriqueceram. “Na minha casa, vivo rodeada de retratos nas paredes e sobre os móveis. A cada minuto do dia, estes retratos recordam-me aspectos importantes e felizes destes noventa e oito anos.”

Esta “cartografia”, estabelecida pela “candura da observação” do interior, de como funcionam as famílias e a sociedade, mostra como evoluiu KaMpfumu, a antiga Lourenço Marques. Um dos capítulos que mais me empolgou, o quinto, trata da “organização da casa e os rituais da vida.” Volto a ele: o namoro (“Naquele tempo, os pais não escolhiam noivo para as meninas, mas havia controle sobre o namoro. As meninas começavam a namorar aos 16 ou 17 anos. Não havia ritos de iniciação ligados à puberdade, como havia noutros pontos do país.”); o casamento (“O cerimonial de casamento evoluiu muito. Quando eu era muito miúda, ainda me lembro dos convidados todos bem vestidos, caminhando para o local da cerimónia religiosa em grupo. Na altura não se andava de carro e as distâncias a percorrer eram, normalmente, longas. As meninas sofriam muito pois tinham que usar sapatos, coisa a que não estavam acostumadas no dia-a-dia, bem como espartilhos e soutiens, os quais eram só usados em tais ocasiões. Por isso, as meninas e as senhoras de idade levavam consigo cadeiras para se sentarem e descansarem, quando estivessem cansadas, ao longo do caminho”); a gravidez e o parto (“Antigamente, só se sabia que a mulher estava grávida quando a barriga já era bem visível, ou quando a criança nascia. A gravidez não se anunciava fora do ciclo familiar íntimo, e isto era assim porque em tempos idos, a situação de se ter um nado morto era, infelizmente, frequente, e havia a crença de que o anúncio da gravidez poderia “atrair azar.”; o falecimento (“De facto, antigamente, só a família chegada que, por exemplo, tivesse vindo de longe para o funeral, ficava e participava nas cerimónias dos oito dias após o enterro. O mesmo se passava com a missa de um mês, caso ela fosse feita, ou com as cerimónias dos 40 dias, em famílias islâmicas. Quanto aos vizinhos, o costume era passarem de manhã para saudar a família enlutada. Nessa altura, eram portadores de algo para ajudar a família, como chá, açúcar, ovos, ou mesmo algum dinheiro. Não ficavam lá para o almoço. Se, por acaso, chegassem à hora da refeição, traziam a sua própria comida para comer com a família, em sinal de solidariedade. E isto era só feito nos primeiros dias após o enterro. Penso que esta prática era mais digna, e fazia mais sentido. Na nossa cultura, a preocupação era chorar a morte do ente querido, com dignidade. Eu sei que, em outras culturas, há o hábito de se fazerem grandes velórios, com muita comida e bebida, que se considera uma celebração da vida do defunto. Se calhar o que se passa agora é, também, influenciado por esses costumes importados. Cada um é livre de fazer como entender, mas sou de opinião de que só deveríamos imitar aquilo que faz sentido, em termos de capacidade económica das famílias, e que demonstra respeito e compaixão pela perda de entes queridos. Uma festa não pode ser manifestação de pesar.”). A mudança estrutural, profundíssima, que se operou na sociedade moçambicana, motivada por factores endógenos e exógenos, produziu um contexto e circunstâncias que tornarão, para muitos leitores, sobretudo os mais jovens, espantosa esta experiência e este contacto com o passado.

 

A memória foi sempre o escopo da minha actuação. A memória, a herança, o património. Numa só palavra: a cultura. Vejo-a transversal a tudo. Politicamente relegada, dou-lhe a primazia e a relevância de principal estame para a sociedade. A cultura como essência da nossa experiência individual e colectiva. Como passado, como presente e como futuro. A cultura como educação, como cidadania. Desde muito jovem, quando iniciei a minha vida de publicista, queria fazer o registo do passado e indagava os escritores que tinham fundado a nossa literatura sobre o passado e narrava-lhes o percurso. “Os Habitantes da Memória” investe-se dessa intenção. A intenção da memória, a intenção do património, a intenção da herança. Queria, sobretudo, perceber aquilo que a história oficial ocultava ou não enunciava. Este jubiloso livro – “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, socorre-me nessa demanda.

A Vovó Nely Nyaka tem uma soberba trajectória, fez um longo percurso cujo activismo social, iniciado na Igreja Metodista Wesleyana, prosseguido no Instituto Negrófilo, que seria depois Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique, e, mais recentemente, prosseguiu na associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs. Aqui ela faz o testemunho e o testamento das profundas transformações que se operaram ao longo destes quase 100 anos da sua existência. Fá-lo com lucidez espantosa, humor e um ineditismo que faz deste livro, indubitavelmente, um referencial da moçambicanidade, um acervo imprescindível para o conhecimento, investigação e estudos futuros.

Sinto uma enorme gratitude por ter lido este livro e, sobretudo, por ter contribuído, ainda que modestamente, para que ele tivesse luz. Estou penhorado por isso. Quando, em finais de Julho, fui tomar chá à casa da Vovó Nely, na Ponta Vermelha, de onde ela avista a Catembe, onde nasceu há quase um século, e de onde ela faz este instigante relato, que não é um epílogo de uma vida, mas é um vigoroso hino ao futuro, eu estava avisado de que levaria para casa o projecto de um belíssimo livro. A despeito, sempre que o li, coisa que pratiquei inúmeras vezes, por dever de ofício, não deixei de ficar verdadeiramente assombrado. Termino, citando, as suas últimas palavras:

Nely Nyaka: “Olhando pela janela, a partir da minha sala de visitas, vejo KaTembe, do outro lado da baía. O sítio onde nasci. O sítio onde tudo começou.” Assim termina este notável “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo.

Post Scriptum: Aqui, nestas páginas, ao longo de um ano, intentei a celebração da memória. Regozijo-me pelo facto de terminar este excurso com um livro e uma personagem que me permitem exaltar a nossa esplendorosa – muitas vezes enjeitada – memória individual e colectiva. Assim encerro a redacção destes textos e esta gratificante colaboração.

 

 

 

 

 

 

 

Como que evocando acontecimentos e memórias do meu pequeno percurso, digo com frequência e propriedade frases como "venho de muito longe eu". Para quem pouco me conhece, o peso dessa frase pode parecer simplório quando não cuidadosamente descortinados os factos que ela encobre.  Sem intenção de ser o sujeito principal deste humílimo escrito, mas tentando chamar à atenção para uma realidade que me é muito próxima, descortino-os.

O horário das notícias da noite sempre foi sagrado na casa dos meus pais, não só porque coincidia com o do jantar, mas também porque era a hora em que toda a minha família se reunia depois de um dia de desencontros. Como que procurando viver à minha maneira uma parte daquele momento sagrado, por estar deslocado do ambiente familiar, quando a escuridão visita Lisboa e a noite se confunde com  a madrugada, acesso o YouTube em busca da gravação do "Jornal da Noite" da STV e acompanho o quotidiano da "pátria amada".

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", disse Camões. Já não vejo todas as reportagens, confesso. Avançando ou recuando o vídeo, procuro as notícias que me parecem mais "quentes" e assisto os desenvolvimentos feitos pelas respectivas reportagens.

Nada de novo, até que algo me prende o olhar e me transporta no tempo.
Não posso crer! A apresentadora fala de algo relacionado à escola onde frequentei o ensino primário. Aumento o volume  e acompanho atentamente a reportagem. Ela finda, sinto um vazio e nada mais preenche o meu ser senão um turbilhão de lembranças.
Chama-se Escola Primária Completa de Ndlavela, ou simplesmente "Círculo Ndlavela" como é popularmente conhecida. Indepentendemente de como lhe chamem, foi lá, numa sala de madeira e zinco que me permitia um estágio no inferno quando fazia calor, sentado no poeirento chão, que com quase uma centena de crianças se iniciou o meu processo de formação. Coube à professora Laura, a minha primeira ensinadora, a missão de iluminar aquelas crianças. Nunca esqueci aquela professora, não só por ter sido a primeira, mas pela forma cativante e carinhosa como se preocupava em moldar naquelas crianças choronas pessoas com o máximo dos padrões de educação e competências que se pode exigir de um ser social. Nos três anos que juntos estivemos, ela me ensinou mais que escrever, ler ou contar, complementou o que eu recebia da minha família. Minha amiga Michela usa a expressão "um simples ser humano" quando se quer referir a  uma pessoa que não agrega valor à sociedade e só traz problemas. A professora Laura ensinou-me a não ser isso, "um simples ser humano".

Sempre que passávamos para o ano seguinte criava-se uma forte expectativa, sobretudo para os que tínhamos as aulas nas salas de madeira e zinco, em mudar de sala e continuar com o mesmo professor. O que me aconteceu na quarta classe foi o que ninguém desejava: mudei de sala e de professora. Ainda superei a mudança de professora, mas o difícil foi passsar a ter as aulas debaixo de uma árvore. Tinha as minhas aulas das seis e meia às dez da manhã. E, agora que escrevo, sou visitado pelo frio e pelo desconforto daquela experiência. Minha mãe dava-me uma capulana para estender no chão, por ser essa a nossa mesa e o nosso banco.  

A quinta classe ainda começámos debaixo da árvore, mas logo depois fomos premiados. Passámos para a sala dez, que era de alvenaria. Aquelas salas representavam o topo das melhores condicões, tinham sido intituladas ma predwene (os prédios). A sala continuava sem carteiras, mas já tínhamos umas chapas de zinco cobrindo a sala. Lembro-me de organizar um grupo de colegas de turma e chegarmos à escola por volta das seis da manhã para tirarmos as poucas carteiras que estavam noutras salas e pormos na nossa. Funcionávamos segundo a lei do mais forte, por isso, de quando em vez, ainda nos sentávamos no chão quando, nessa luta pelas carteiras, encontrássemos colegas mais fortes.

Sorte era algo muito bem-vindo naquela escola. Faltou-me alguma na classe e fui ter aulas numa sala de madeira e zinco que se encontrava ao lado do maltratado WC que nos expunha a todo tipo de doenças.

Precisava de um pouco de sorte, só um pouco para no último ano do ensino primário voltar a uma sala de alvenaria e concluir a minha passagem pelo Círculo com melhores condições. Fora tanto o desejo, que a sorte se fez presente e tive aulas na sala dois.

Apesar de tudo, aprendi e fui muito feliz naquela escola! Tive bons professores e fiz bons amigos! E, embora me tenham obrigado a aprender nessas condições, venci o determinismo e cheguei aonde cheguei.

Tempo, governos, directores, professores e alunos… Foram muitos os que por lá passaram e a escola não podia estar mais degradada… Ao ver esta reportagem, digo com um ar mais triste "venho de muito longe eu".  

Não podendo fazer nada, faço-me criança e entre choros e soluções peço que salvem a minha e outras escolas em condições semelhantes. Há que apostar muito mais no sector da educação, Moçambique!

 

Com um considerável atraso, Suleiman Cassamo desembarca no Brasil. O regresso do morto, que vem marcar a estreia do escritor entre nós, teve sua primeira edição em 1989, tempos conturbados em Moçambique. Passavam-se 14 anos da tardia independência e o país estava imerso nos sobressaltos de uma guerra que perduraria até 1992. Nesse período, a literatura, que tinha integrado o eufórico coro da utopia nos anos 70, já observava os desvios do sonho e as dificuldades do projeto nacional que a partir de 1964 mobilizara a luta armada.

Sem perder de vista a noção de originalidade que é condição da obra literária, Suleiman Cassamo nos traz, revitalizados, personagens que fizeram sua entrada na literatura produzida em Moçambique pelos poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa. Como nos poemas dos anos 50 e 60, os contos de O regresso do morto estão povoados pelos trabalhadores pobres da cidade, os deslocados do campo, os Magaíças a retornar do duro trabalho das minas sul-africanas, carregados de bugigangas, fantasia e a memória do desterro. Na narrativa que dá nome à coletânea, é um deles, o emigrado que vem da estranha terra do “Jone” a irromper na cena, trazendo uma das poucas imagens de alívio e alegria de toda a obra.

Optando pelo conto, modalidade literária bastante presente no contexto moçambicano, Suleiman Cassamo nos traz dez narrativas que compõem um instigante painel das diversas realidades abrigadas num conjunto espaciotemporal que se desenha para além das fronteiras que teoricamente dividiriam o colonial e o tempo da independência. São muitas e de muitas ordens as contradições que estão no centro das vidas que se movimentam nos diferentes cenários. A aproximar os personagens está a experiência da exclusão, que, em muitos casos, é temperada por actos violentos.

Física e simbólica, a violência constitui uma presença de relevo nas vidas que se representam em cada conto. De maneira intensa, ela toca a mulher, que está situada na ponta extrema da injustiça social e individual nessas sociedades em que a sobrevivência é uma luta diária, e tantas vezes fadada ao fracasso. Pelas narrativas de Cassamo, podemos observar como as personagens femininas condensam em si as duas pontas: a da dor e a da resistência. Os dois primeiros contos são exemplares desse lugar que tocado pela humilhação gera respostas insubmissas. Seus títulos – “Ngilina, tu vai morrer” e “Laurinda, tu vai mbunhar” – têm a mesma estrutura e traduzem uma espécie de ameaça que, ao se realizar, confere uma especial dignidade a inarredáveis destinos.

Sem se referir explicitamente ao colonialismo, o autor confronta-nos com a sua face mais cruel, trazendo-nos as gentes que ele explora e segrega e apontando-nos as suas mais profundas contradições. A brutalidade maior desse sistema talvez seja precisamente a sua capacidade de prolongar-se, arrastando-se para além do celebrado tempo das independências nacionais. E, assim, algumas das cenas não se identificam especificamente com os anos de vigência do sistema. A condição colonial ultrapassa os limites cronológicos e a tinta das iniquidades surge, por exemplo, na “caça” ao pão do já referido “Laurinda, tu vai mbunhar”. Intensamente marcadas, as imagens asseguram ao conto uma envolvente tensão, fazendo do contista, nas palavras de Júlio Cortázar, “um pescador de momentos singulares”.

Conhecedor dos riscos de uma avaliação superficial, Cassamo empenha-se em mergulhar em profundidade na rede armada pelo sistema e mostra como se amarram alguns de seus nós, dos quais não escapa o colonizado, dividido, ou melhor, emparedado entre os mundos em que cresceu. Em “Madalena, xiluva do meu coração”, na angústia de Fabião Neves, temos a machucada consciência de quem se vê perifericamente num mundo sem deixar de pertencer a um outro. A experiência da dualidade que se nota está longe do hibridismo suavizado por alguns discursos pós-coloniais. Sob a temática do dilaceramento amoroso, o enredo evoca, a célebre conferência intitulada “Cultura e colonização” de Aimé Césaire: “A colonização é esse fenômeno que inclui, entre outras consequências psicológicas a seguinte: fazer vacilar os conceitos sobre os quais os colonizados poderiam construir ou reconstruir o mundo.”

Erguendo-se das ruínas de uma sociedade, sobre as quais era preciso erguer outra, a voz de Suleiman Cassamo busca projetar na linguagem esse mundo feito de estilhaços, refratário às hipóteses de harmonia em que tantos africanos tentaram acreditar. Daí deriva uma escrita feita de pedaços, constituindo-se a partir de fortes imagens, apoiando-se numa sintaxe que contraria a norma da língua portuguesa. A expressão por ele cultivada elege como eixo um léxico que, mesclando ao português palavras e construções das línguas moçambicanas que fertilizam a língua herdada/imposta, faz da oralidade não um recurso, mas uma poderosa matriz. Na diversidade de tempos, de espaços, de enredos, o ritmo da oralidade assume a mediação e coloca-se como a face viva de um universo historicamente cindido. Isso explica o peso das lacunas na modulação da escrita. Montado com fragmentos, construído sobre e sob escombros, o mundo que emerge não pode prescindir da elipse como uma importante chave de estruturação.

Conferindo visibilidade a um conjunto de seres marginalizados, os “esquecidos” que desfilam pelas ruas de tantas cidades africanas, e não só, O regresso do morto supera os domínios da denúncia e apresenta-se como um fascinante trabalho literário. Vemo-nos diante de um exercício capaz de conduzir o leitor a um singular universo de sentidos, recordando-nos que a literatura nos permite ver aquilo que a vida, a um só tempo, mostra e esconde. Venha de onde vier.

*Texto extraído do prefácio de O regresso do morto, publicado pela editora Kapulana no Brasil.

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Álvaro de Campos 15-1-1928

Ao

Adérito Matsimbe – Spice

A casa assiste de porta aberta à correria da mãe do Xavito. Será que ela teve um desarranjo intestinal ou estará a fugir da polícia municipal? A Dona Maimuna exibe uma passada de fazer inveja aos jovens. Riscou a rua até ao seu quintal e, num ápice, entrou casa adentro para o espanto das laranjeiras. Segunda-feira, logo pela manhã era isto, este inesperado frenesim.

– Xavito. Xavitoôôôôhhhh.

– Mamããããããhh. – Respondeu do fundo do quintal, interrompendo o soprar do carvão que revelava teimosia.

– Telfone, papá! Querem falar contigo. – Dona Maimuna interrompe a marcha em suspiro longo.

Xavito põe-se a falar com a voz do outro lado da linha, a sua careta trazia movimentos alegres, ele meneava a cabeça, esboçando um sorriso contido. Parou em silêncio momentâneo e anunciou:

– Mamã fui chamado para uma entrevista na quarta-feira. Parece que é uma empresa nova.

– Hi! Hosi yanga! Deus te oiça, filho…

– Vamos ver, mãe. Se ligaram é porque gostaram do meu currícullum.

– Que assim seja, meu pai!

A Dona Maimuna voltou à banca montada doutro lado da rua Kapa Não Se Escreve. Fazia já dois anos que Xavier se tornara num estafeta de distribuição de CV`s de porta em porta. Nunca se quer recebera um sinal que fosse de recusa. Xavito ganhara, por direito, um lugar cativo nos escritórios do Jardim Tunduro. Ali se reunia e era tido em alta conta entre os seus companheiros. O bairro de Maxaquene ‘C’ conhecia-o como o explicador e professor para os exames de admissão.

Um novo dia chegou luminoso. Ao certificar-se da indumentária Xavier meteu-se a caminho da empresa de telefonia móvel, localizada para os lados da Rainha da Maxaquene. Teve o cuidado de ir à esquina engraxar os sapatos emprestados pelo primo Flávio e ajeitar a gravata alugada ao vizinho que estava de folga naquela manhã de quarta-feira. Olhou para as horas e notou que faltava ainda uma hora e meia para a entrevista. Xavier preferiu fazer uma caminhada. Assim pouparia meticais para o pão no regresso.

O jovem benzeu-se pela terceira vez, ao passar junto à Igreja Nossa Senhora da Vitória e, acelerou o passo já sobre o passeio da Colmeia. Sem dificuldades encontrava-se a metros da Pandora. A avenida Eduardo Mondlane ficava a minutos e, daí a um quarto de hora estaria no décimo andar da empresa.

A camisa a cheirar a ferro de engomar, passada mil vezes pelas mãos zelosas de Maimuna Zunguza da Silva. O lencinho dobrado e vincado no bolso esquerdo, era a viva ilustração do pilar da fé maternal Estava garantida a porta de entrada para o quintal dos assalariados. Xavier inebriava-se, cheio de sonhos: «Do primeiro salário, mais de metade será para a minha mãe montar um negócio decente. Depois, aos poucos reabilito a casa e descolo a Milú para o meu ninho». Descia rente ao muro da antiga maçonaria, a Escola Industrial. O Xavier finta para evitar a lixeirada transbordada do contentor à berma do passeio, e zás o azar oportunista faz o filho da Dona Maimuna tropeçar, caindo de borco sobre o passeio. O pé esquerdo estava preso a uma fossa aberta, a camisa tinha manchas de sangue. Estava irrenconhecível. Sangrava pela boca, tinha perdido dois dentes. As calças tinham um rasgão indecente, na parte frontal e de baixo, como um desses indigentes que pulverizam a capital.

Dois rapazes que por ali passavam aproximaram-se em ajuda ao sonhador de troféus. O senhor da rua que há pouco roncava, em sono de bebé, ocupando uma esteira, já estava acordado e disponível a acudí-lo. De olhos marejados Xavier chorava em desespero e fúria. Não se continha. Fervia, em soluço contínuo. Em gíria futebolística dir-se-ia que aquela, era uma grande penalidade em plena avenida Vladimir Lénine. Uma viatura encostou-se à berma. Será o carro do vídeo-árbitro da Salubridade e Meio-Ambiente ou uma alma caridosa, em socorro do filho da Dona Maimuna?

O homem é sempre tímido perante a mulher que se deseja

João Salva-Rey

Mar me quer é o título do espectáculo teatral do grupo Girassol, em exibição no Teatro Avenida até 28 deste mês. A peça é adaptada (e encenada) do texto dramatúrgico de Mia Couto, por Joaquim Matavel, igualmente mentor do Festival Internacional Teatro de Inverno (FITI), que se realiza anualmente em Maputo.

Nesta versão do Girassol, essencialmente, fazem Mar me quer três personagens: Zeca Perpétuo (Horácio Mazuze), Luarmina (Albertina Guilaze) e avô Celestiano (Rafael Vilanculos), uma entidade que aparece em momentos específicos pronto para ajudar o neto a avassalar a sua amada casmurra, a esmerar-se em não ceder o coração ao miúdo que afinal ama, do seu jeito, contra todas as expectativas.

Aí nas tentativas de Zeca armar-se de argumentos, actos e jogos de sedução amiúde direccionados à vivida Luarmina, na verdade, instaura-se na trama uma espécie de relação Édipo e Jocasta, em que um filho apaixona-se por uma mulher que foi do pai, antes dele partir. No entanto, ao contrário de Rei Édipo, de Sófocles, Mar me quer, de Girassol, não é uma história trágica, sangrenta ou de vinganças, é uma história de amor infinito, aparentemente genuíno, pueril às vezes, na qual, como nos sugere o narrador de Ku femba, um dos melhores romances da literatura moçambicana publicado no período colonial, da autoria de João Salva-Rey – falaremos mais deste grande autor e do património que deixou para Moçambique oportunamente –, o homem, de facto, é um ser tímido perante a mulher que deseja.

Ao mesmo tempo que Mar me quer explora a obsessão amorosa do imberbe Zeca Perpétuo por uma Luarmina idónea, alicerça-se no poder que os mais velhos insistem em ter na vida dos jovens em contextos rurais. Com isso, avô Celestiano ganha no enredo um protagonismo que faz dele um conselheiro e invocador das façanhas dos antepassados. Celestiano é a ponte dos afectos entre Zeca e Luarmina, mas também entre o amor e a tradição, sua matriz identitária e do seu querido neto céptico em relação ao conhecimento ancestral. Assim, o rapaz vai inventando subterfúgios para contrariar os conselhos do velhote, quiçá por isso condenar-se ao masoquismo que se robustecesse à medida que as suas investidas rumo ao coração de Luarmina fracassa. Desse amor indeciso, a fugir do efeito de lês-a-lês, à beira mar, emana obrigatoriamente um discurso poético e filosófico entre o casal imperfeito. No caso de Zeca, para persuadir e dissuadir simultaneamente; no caso de Luarmina, para resistir e sustentar a vaidade de ter o seu amado por perto, paradoxalmente. É nesse particular, aliás, que fica explícito ser este espectáculo com bom cenário uma adaptação de um texto de Mia Couto. O nível de conversa entre os “pombinhos”, a construção frásica, a reinvenção semântica com recurso a neologismos, claro está, devolvem o espectador ao poder criativo daquele autor, todavia sem o desprender da encenação – a peça peca por ter um fim demasiado brusco.  

Portanto, este Mar me quer do Girassol é uma peça de mistérios, em que o amor está lá para revelar a importância do passado no presente das personagens e, em última instância, das pessoas. O espectáculo, de forma recorrente, mostra como o passado pode ser um factor decisivo no futuro dos sentimentalistas e das relações. De igual modo, ao invocar o passado de Zeca e Luarmina, Mar me quer questiona-nos, colocando-nos a pensar sobre o certo e o errado, medindo o peso do amor, a sua capacidade de resistir ao preconceito.

 

Título: Mar me quer

Autor: Grupo Girassol

Teatro

Classificação: 14

São Paulo é uma das minhas cidades electivas. Vivi dois anos, dos anos mais esplendorosos da minha vida, em Sampa, como é conhecida a desvairada cidade paulistana. É um lugar fulgurante, excitante, exuberante! Soberbo! É a mais populosa do Brasil e uma das mais populosas da América do Sul. É uma cidade imensa. Imensíssima. O trânsito pode ser a personificação do Inferno. Ou mesmo do diabo: o metro na hora de ponta. Foi um cantor, oriundo de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, que a cantou, melhor do que ninguém, numa belíssima música, intitulada precisamente “Sampa”: “Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João.” Cheguei com pouco mais de 40 anos, disposto a fazer um interregno na minha vida, no ocaso de uma experiência esgotante, mas a cidade não significou um intervalo, foi antes um novo capítulo. Eu trazia na bagagem o meu amor pela Bossa Nova, pelo maestro soberano Tom Jobim, pelo Caetano Veloso, Chico Buarque, pela Marisa Monte, pela Luciana Souza ou pelos Paralamas do Sucesso. Trazia comigo a indeclinável paixão pela poesia do Carlos Drummond de Andrade ou a minha filiação imperecível dos cronistas brasileiros: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o próprio Drummond. Foi com eles que debutei no ofício. A esta distância relevo como um período determinante aquele que ali permaneci. Rejuvenesci, por assim dizer, em São Paulo. Foi lá onde fiz o luto do cidadão engravatado e fui tolhido pela paixão da t-shirt preta, calças jeans e ténis. Também foi lá onde rapei o cabelo, desde então uso máquina zero. (Abro um parêntesis para dizer o seguinte: senti que São Paulo era minha cidade no dia em que fidelizei o lugar onde passaria a cortar cabelo.) Um novo e belo capítulo na minha vida: dois anos vibrantes, numa grande cidade, que faz a síntese entre as minhas origens e tudo o que o mundo afora permitiu acolher como património afectivo. Para mim, que sou um amante inveterado de cidades, de grandes cidades, esse estágio significou muito. Significou tudo.

Recordo aquela imensidão de pedra que me acolheu naquele dia 1 de Março de 2008. Era o final de uma tarde usual. Fiquei na primeira noite no hotel, e nesse mesmo dia – era um sábado – fui a uma festa, em casa de amigos, o que amenizou a solidão da chegada. No dia seguinte, mudei-me para a casa de uma amiga moçambicana, a minha queridíssima mana Mafalda Mussengue, que me acoitou durante dias e me mostrou os segredos da USP (Universidade de São Paulo) e ajudou-me a desvendar os labirintos da burocracia que assombra qualquer forasteiro. Tenho uma dívida de gratidão, uma dívida impagável, uma dívida de afecto e uma amizade sem fim com e pela Mafalda. Digo-lhe sempre isso. Depois, mudei-me para o apartamento de  outros dois bons amigos – da Rita e do Zé Luís -, perto das Clínicas, onde seria a minha casa de sempre naquela cidade. Tinha deixado um quotidiano estafante de fato e gravata em Maputo e adorava andar de jeans, ténis, t-shirt e sacola às costas, andar de ónibus (machimbombo) com auriculares, ouvindo música, o que diminuía as longas e impacientes distâncias. Não esqueço que eu ouvia obsessivamente “Carioca”, de Chico Buarque – um paulistano carioquíssimo -, sobretudo “Bye bye, Brasil”: “Com a bênção de Nosso Senhor/ O sol nunca mais vai se pôr.” Essa composição (de Chico Buarque e Roberto Menescal) foi feita para um filme homónimo de Cacá Diegues: uma comédia de artistas ambulantes. Ouvia, na mesma sequência, “Grande Hotel”, música que junta o soberbo talento do sambista Chico com a malandragem carioca e o bom humor do baterista e maestro Wilson das Neves. Outra personagem da música que eu ouvi em São Paulo foi Adoniran Barbosa. Ele compôs o “Trem  das Onze”: (“Não posso ficar nem mais um minuto com você/ Sinto muito amor, mas não pode ser/ Moro em Jaçanã / Se eu perder esse trem/ Que sai agora às onze horas/ Só amanhã de manhã/ Além disso, mulher/ Tem outra coisa/ Minha mãe não dorme/ Enquanto eu não chegar/ Sou filho único/ Tenho minha casa para olhar/ E eu não posso ficar”), que o celebrizou e provavelmente toda a gente conhece. Quase todos os dias eu apanhava o autocarro que ia para Jaçanã, no sentido contrário, que era o da Cidade Universitária, em Butantã. Mas eu adorava ouvir “Samba do Arnesto” ou, sobretudo, a “Saudosa Maloca.” Tem um verso inesquecível: “Deus dá o frio conforme o cobertor.” A Maria Rita tem uma versão insuperável da “Saudosa Maloca.” Adoniran foi um grande sambista paulistano.

Eu amei viver em São Paulo e tenho a impressão de que dormi muito pouco enquanto lá permaneci. Tinha o compromisso de fazer um mestrado em sociologia, na USP, o que levava grande parte do meu tempo, a ler, a ir aos seminários, a fazer os trabalhos. Para além disso, ia ao cinema com afinco e via muito bom cinema brasileiro. Ia ao teatro. Ia ver os shows de música. Passava as minhas tardes na livraria Cultura na Paulista. Adorava bater o pé na Paulista, de ponta a ponta. Ir a Casa das Rosas. Caminhava aos sábados para Higienópolis ou ia para Óscar Freire, uma espécie de Quinta Avenida. Gosto de focinhar pelas lojas, gosto de espreitar marcas, tenho um apelo irresistível pelo glamour. Que fazer? Por vezes, não muitas vezes, ia ao Bairro Liberdade.

Há muitas cidades dentro da cidade de São Paulo. O Centro fascinava-me. O edifício do Teatro Nacional, o prédio Itália, o Copan – projecto do Niemeyer em S, lembrando a inequívoca curva feminina, o maior condomínio da América do Sul -, o edifício antigo dos Correios e Telégrafos, a Estação da Luz – onde estava instalado o magnífico Museu da Língua Portuguesa, que ardeu, entretanto -, as belíssimas praças, como a República, o vale de Anhangabaú, entre o viaduto do Chá e a Santa Efigénia, os prédios, as fontes de água, as esculturas. Os Jardins, aquelas casas elegantes, amuralhadas muitas, com ruas ornamentadas, que cheiram a flores, o que espanta os incautos. O parque Ibirapuera.

Caetano Veloso: “Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João/ É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ Da dura poesia concreta de tuas esquinas/ Da deselegância discreta das tuas meninas/ Ainda não havia para mim Rita Lee/ A tua mais completa tradução/ Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza  a Ipiranga e a Av. São João// Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto/ Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto/ É que Narciso acha feio o que não é espelho/ E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho/ Nada do que era antes quando não somos mutantes/ E foste um difícil começo/ Afasto o que não conheço/ E quem vem de outro sonho feliz de cidade/ Aprende depressa a chamar-te de realidade/ Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso// Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas/ Da força da grana que ergue e destrói coisas belas/ Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas/ Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços/ Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva/ Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba/ Mas possível novo quilombo de Zumbi/ E os Novos Baianos passeiam na tua garoa/ e novos baianos te podem curtir numa boa.”

Os encantos de São Paulo são infinitos. Caetano Veloso fala da feia fumaça que sobe dos prédios e apaga as estrelas ou da força da grana que ergue e destrói coisas belas e do difícil começo que se tem, de quem nada entende ou entendia. Mas o tempo – ah, a benesse do tempo! – faz-nos entender e amar Sampa: a dura poesia concreta das suas ruas. Digo aos meus amigos, que muitas vezes estranham este meu exorbitado amor pela cidade, que a diferença entre o Rio e São Paulo está na comparação (espero que não seja grosseira) entre duas mulheres: o Rio é uma mulher esplendorosa, com as suas esplêndidas e generosas curvas e declives, o seu mar soberbo e as suas enseadas que guardam segredos, a sua mata Atlântica, as suas montanhas, o Cristo de braços abertos e a sua redenção. Mas uma mulher com muito pouca roupa. O encanto desvanece em algum (pouco) tempo. São Paulo é o anverso disso: mulher elegante, hierática, bela, cujos encantos e mistérios se vão descobrindo com o tempo e cada vez mais surpreendentes. O encanto de Sampa reside aí, nessa surpreendente e constante descoberta.

São Paulo é uma cidade de cultura, com uma oferta cultural incrível. Desde shows a museus, cinema a teatro, livrarias e galerias, eu sei lá! Restaurantes: de comida italiana sumptuosa à comida árabe aromática e instigante. A comida em São Paulo é um caso libidinoso. Vive-se 24 horas em São Paulo, a cidade não dorme. E a qualquer hora, pense-se o que se pensar, imagine-se o que se quiser, em São Paulo encontra-se ou acontece. Há lugares, como a Vila Madalena, onde se reinventam ambientes de bairro. Ouve-se música, come-se feijoada ao sábado, e é muito gostoso calcorrear as suas ruas, algumas delas bastante íngremes. É frequentado por artistas, tem bares e botecos, onde se ouvem belos sambas e se bebem drinques de vária ordem. Há uma bela livraria, a Livraria da Vila, absolutamente imperdível.

Os mercados de domingo são comuns. O Mercadão é o mais-mais. Mas há em outras zonas: bebe-se água de coco, come-se uma sanduíche de mortadela, leva-se fruta para casa, ouve-se música e compram-se bijutarias. Eu sou um amante indefectível da cidade, esta é uma das minhas cidades. O meu amigo e mestre inesquecível Baptista-Bastos dizia-me há remotíssimos anos: “as coisas devem pertencer a quem as ama!” Eu amo São Paulo. São Paulo pertenceu-me indesmentivelmente. Foram dois anos em que o Brasil estava numa onda de optimismo. Nem a crise financeira, na sequência do colapso do Lehman Brothers, pareceria abalar a sua obstinada esperança. Permaneci dois anos em São Paulo e fui feliz. Estive lá no ano passado e notei um país cabisbaixo e deprimido. A própria cidade desvanecera. No entanto, permanece como uma das minhas cidades. A primeira (excluindo Maputo e o meu mítico e vetusto Bairro Indígena) foi uma cidade de poeira e amendoeiras, a Norte, chamada Nacala. Jorge Luis Borges, o genial escritor argentino, dizia da sua velha Buenos Aires: o meu passado, o meu presente e o meu futuro. Nacala para mim investe-se dessa mitologia. Vivi alguns (largos) meses em Chaves, no norte de Portugal, vivi quase cinco anos em Lisboa, tenho um sonho longamente porfiado por Barcelona, calcorreei outras tantas cidades e estabeleci-me na belíssima Cidade do Cabo. A despeito: a volúpia, o desvario, o encantamento, a quimera, ou a vertigem de Sampa insistem como uma das lembranças mais duradoiras, retumbantes e ingentes daqueles meus anos. Ou da minha utopia de cidade. Ainda hoje, quando lá retorno, sinto o apelo do Caetano Veloso: alguma coisa acontece no meu coração. Senti-o de novo há um ano. Mas eu sou incapaz de narrar esse meu estouvamento: o avesso do avesso do avesso do avesso.

 

Cá estamos novamente com os rostos cheirando lágrimas de derrotas e com pegadas de choros. O cheiro das nossas lágrimas é crescente e faz nuvens de tristeza em nossos rostos. Nós amamos a nossa selecção e isso nos faz sofrer. Aprendemos em tempos de versos, mal escritos em cadernos, que quem ama sofre. E nós não sofremos porque amamos. Sofremos porque amamos derrotas. O verdadeiro amor não ama derrotas, mas sim ama derrotar. Nós amamos os Mambas, amamos as derrotas. Amamos esses Mambas que nos levam ao Zimpeto para uma tarde de beijos de vergonha, declarações de fraqueza e abraços filtrados por goleadas. O Zimpeto devia ser o lugar das nossas histórias de amor, nossos episódios de namoriscos marcados de beijos mordidos de olhos fechados; mas virou um semi-cemitério do nosso amor.

Sentados nos bancos de Zimpeto sempre esperamos o melhor do nosso amor. Esperamos que o nosso amor nos faça vibrar, meta-nos na língua chocolates em formas de golos, dê-nos cantando um buquê com rosas bem avermelhas de alegria e bem enrolado por uma fita que ao meio sorri um nó brilhante; uma fita que deixa cair dois laços meigos como a língua de uma Mamba silvando na selva.

Saímos sempre do Zimpeto com as lágrimas entornando-se das torneiras mal fechadas dos nossos olhos. Caem-nos as lágrimas como gotas da torneira mal fechada de uma cozinha. Cada gota que cai cria um eco de amargura na loiça suja das nossas almas. Parece que vivemos de promessas e ilusões. Os Mambas são um amor que não nos sabe cuidar. Nós sabemos cuidar deles porque são nosso amor: enfeitamo-nos as caras com cores que eles mais gostam, vestimos as camisetes com os seus nomes, cantamos as canções que mais gostam para nos amarem mais e enchemos o Zimpeto. E eles como namorados não maduros atiram-nos à cara uma declaração de amor com uma enorme assinatura de derrotas.

Os Mambas são namorados infiéis. Traem-nos em nossa própria casa sem se esconderem. Fazem viagens com seus amantes em todos campos do continente, fazem compras em lojas onde a derrota é paga em cheques e dólares e depois voltam à casa nos consolar e nos encher as mãos dos ouvidos com palavras gordas, nas sílabas, de vitória. E o Abel? Firme tenta nos reconciliar, sempre, com os Mambas como um padrinho que não se cansa de nos entulhar em reuniões onde a sua voz é o único timbre que mexe as chapas de zinco da sala de estar.

Sofremos porque amamos derrotas dos nossos Mambas. Os Mambas não sabem que enquanto jogam nossos corações explodem de amor nas veias; eles jogam e nós como seus amores preparamos o jantar, acendemos as velas, espalhamos cartazes sobre a mesa com desenhos de corações, colocamos ao fundo uma música onde um piano bate nas notas e chora. Parece que este texto desliza como o nosso amor pelos Mambas, aliás, os Mambas apenas deslizam de derrota em derrota porque não têm pernas. Se tivessem pernas saberiam os passos necessários para chegar ao coração de quem ama.

E penso que os Mambas precisam de transfusão de veneno. Os Mambas já não têm veneno na língua. Têm derrotas em forma de sangue nas gengivas. Eles precisam de veneno para cuspir, quando rastejam, na relva do Zimpeto. Doze Mambas, juntos, de línguas em riste, e outros enrolados nos ramos dos bancos não conseguem unir os seus cuspos e obter uma gota de veneno? Distribuamos frascos, como se fazem nos hospitais, em todos cantos do país. E cuspamos neles até termos os frascos com mais veneno na saliva; e levemos esses frascos a Federação para introduzi-los, mete-los na corrente do sangue dos Mambas. Precisamos de Mambas que sabem que são amadas e que cuspam o veneno para tornar esse amor imortal.

E nós não sofremos porque amamos. Sofremos porque amamos derrotas. Talvez o nosso amor termine no dia que os Mambas nos trouxerem um vaso de flores com uma carta de amor em anexo. Assim talvez caiamos de emoção e assim termine a nossa história de amor.

 

O exercício de actividades profissionais por estrangeiros tem sido dos assuntos mais polémicos no país. Para quem acompanha estes assuntos, sabe que deste 2007 tem sido feito um enorme trabalho pelo Ministério do Trabalho, desde a introdução do regime de quotas, a flexibilização do regime de contratação de estrangeiros e um crescente abandono da discricionariedade das autoridades laborais na tramitação dos processos. Muito se fez, mas há muito ainda por fazer. Na advocacia, o regime continua o mesmo desde 1994, apesar das fratricidas discussões para mudar o sistema, sempre que a questão é colocada. Foi assim em 2007, tal como em 2015/2013. Sempre esteve muito claro que proibir o exercício da advocacia por estrangeiros não era uma boa solução, mas a abertura idêntica à da Lei do Trabalho também não me pareceu desejável. Foi por isso que defendi a solução tímida que está na Lei das Sociedades de Advogados, que admite o regime de parcerias que também é visto com alguma desconfiança. Muito por culpa da arbitragem, tenho desenvolvido uma carreira internacional, o que me tem ajudado a compreender melhor a advocacia e as suas dinâmicas ao redor do mundo. Tenho oportunidade de partilhar experiências com muitos advogados, o que me ajuda a compreender a advocacia que se faz noutras geografias e, mais do que isso, as crescentes necessidades dos clientes, estes cada vez mais globais. Ainda há dois meses, James Banda, o então Presidente da SADC Lawyers Association disse em Maputo que dos serviços jurídicos prestados em África só 30% dos honorários ficam no continente, ou seja, 70% vão para fora de África. Desde que, há dois anos, deixei a liderança da Ordem dos Advogados, tenho prestado atenção à evolução da advocacia internacional. Ela está a mudar, do mesmo modo que o mundo também muda. Hoje, com os meios de comunicação e informação disponíveis, não é necessária a presença física dos advogados para prestar serviços jurídicos em diversos países, pelo que se pode até questionar se este tipo de prestação de serviços configura ou não procuradoria ilícita. Há que ter em conta também que a abertura de muitos escritórios internacionais para receber advogados moçambicanos para formação ou mesmo em regime de destacamento, têm que ter alguma forma de reciprocidade, sem o que não terá os resultados desejados. E, tal como diz o Dr. José Manuel Caldeira, a chamada formação “on the job”, a possibilidade de trabalhar com diversas matérias, com a dimensão que no futuro serão cada vez mais frequentes no nosso País, são essenciais e para o que não bastam as acções pontuais de formação e participação em seminários. Os sinais são muitos e para um país como Moçambique que quer o investimento estrangeiro como o pão para a boca, não é difícil perceber isso. Tem sido normal os escritórios nacionais – pelo menos os médios e os maiores – serem contactados pelos grandes escritórios internacionais para apresentarem propostas de serviços jurídicos sobre o direito moçambicano, sem que se esteja na linha da frente do contacto com o cliente. A experiência em transacções internacionais só muito marginalmente passa para advogados moçambicanos. Muitas vezes, é o Governo ou entidades públicas que, em situações de legalidade duvidosa, contratam escritórios internacionais para a prestação de serviços jurídicos em Moçambique. Não pretendo defender que deveriam contratar sempre aqui, mesmo para discutir com grandes escritórios em temas de que tem pouco domínio. É necessário que as entidades nacionais promovam a participação de escritórios nacionais nessas transacções. Está em debate público uma Proposta de Revisão do Estatuto da Ordem dos Advogados. Sobre esta questão, nada se propôs. Imagino que, como é um assunto polémico, ninguém queira levá-lo a discussão, até para facilitar a aprovação das questões agora em debate. Mais do que o que os outros devem fazer, os advogados, uma profissão auto-regulada, devem estar na linha da frente deste combate. Creio que temos de ser mais ousados. Dez anos depois das últimas alterações, é importante tocar nesse ponto (sensível), até porque já houve oportunidade de reflectirmos sobre o tema por altura da elaboração da Lei das Sociedades de Advogados. Durante a 2.ª Conferência Nacional dos Advogados realizada na Beira em 2017, na sequência de uma abordagem feita pelo Dr. Leopoldo Amaral sobre a advocacia nos grandes projectos, muitos advogados partilharam a sua experiência e visão sobre o que pode e deve ser a advocacia moçambicana nos dias de hoje. É um debate que não pode ser posto de lado, não podemos evitá-lo. Por isso, vou propor uma alteração do Estatuto da Ordem dos Advogados no sentido de definir regras para que a prestação de serviços jurídicos por estrangeiros possa ser feita de forma aberta, transparente e benéfica para a advocacia e para o país, desde que em equipas onde participem advogados inscritos em Moçambique. Haverá mais impostos pagos em Moçambique; haverá transferência de know how para advogados moçambicanos; haverá uma melhor advocacia Moçambicana. Tal como tento demonstrar num artigo com o título Advocacia de Língua Portuguesa na SADC (no prelo), a advocacia que se faz na Africa do Sul está, cada vez mais, a expandir-se para Moçambique. Importa considerar que grande parte dos escritórios “originariamente” sul-africanos, foram integrados/aderiram às grandes redes internacionais de escritórios, alterando, inclusivamente em grande parte dos casos, a sua própria denominação, passando Joanesburgo a ser um “hub” das firmas internacionais para a sua prática não só na África do Sul, mas inclusivamente nos restantes países do nosso continente. A tendência, até por força de alguma diminuição de negócio na África do Sul, é que os escritórios de Joanesburgo intervenham cada vez mais em operações nos países da região. Até agora temos estado um pouco protegidos dessa abertura de escritórios em Moçambique, por um lado pela dimensão do nosso mercado – ainda que se e Inserir/Editar Âncorasteja a tornar cada vez mais apetecível para essas firmas globais -, mas acima de tudo por causa do nosso sistema jurídico e língua, bastante diferentes do anglo-saxónico, o que os leva a sentir-se menos confortáveis em operar localmente. Como diz o Dr. Paulo Pimenta, é uma questão de tempo. Muito pouco tempo, acrescento. É, pois, necessário iniciar um debate aberto, franco e informado sobre o assunto.

Com oito anos saí de casa para ir viver com os meus pais. Dito isto, assim, deste modo, poderá parecer, à primeira vista, algo paradoxal, mas não o é. Há aqui um facto verosímil que explica esta aparente contradição: a minha casa, de facto, sempre foi a casa da minha avó Angelina, onde vivi os meus primeiros oito anos e muitos dos anos (posteriores), que seriam indesmentíveis para a minha formação. Pouco depois de eu nascer, a minha mãe engravidou e a minha avó levou-me consigo. Quando o meu irmão, que me segue, nasceu, eu tinha treze meses. Vivi, entre 1967 e 1974, com a avó Angelina (Xinguavilana) no Bairro Indígena, vulgo Xitala Mati. Em finais de 1975, embarquei com os meus irmãos (Dulce, Flávio, Hélder – o Paulino nasceria depois), acompanhados da nossa mãe, ao encontro do pai, que fora transferido (foi a primeira vez que ouvi esse vocábulo na minha vida, que então me parecia luminoso) para o Porto de Nacala.

Deixei, compungido, a minha avó e os meus amigos, com quem jogava futebol – a bola era de trapo – à frente da loja do Muchina; ficaram os meus companheiros da Escola Primária do Bairro Indígena, onde comecei a estudar; deixei os amigos com quem ia ao mercado do Xipamanine, ou ia aos campos de Muhafil Issilamo ou arredores. Não mais iria espreitar o outro lado da Avenida de Angola, nem tentar alcançar a Circunvalação. Também dera costas à Igreja Wesleyana, cuja cor nunca me sairia da cabeça, e deixara de fazer parte do meu quotidiano. Deixei de brincar no prédio que sobrevive ainda hoje, pese embora decrépito, na Rua do Zambeze. Também não mais iria espreitar os seios que despontavam nas blusas protuberantes das meninas que vendiam badjias e matoritoris na varanda da loja do Muchina. Nem vislumbraria o fémur delas a espreitar das capulanas desobedientes ou dos irreverentes vestidos de chita que vestiam.

Redijo este texto confessional – uma espécie de um atlas confidencial – no dia em que a minha mãe faz 80 anos e a minha avó faria 99 anos. As duas nasceram a 16 de Outubro: uma em 1919, outra em 1938. Minha mãe nasceu ali no Khovo – que era então a maternidade para os africanos, sendo que na altura os portugueses pariam os seus pósteros na maternidade do Hospital Central Miguel Bombarda. Isso depois mudaria. A descendência autóctone ganhou estatuto e direito a sóbole numa maternidade menos inditosa. Ficou registada: Alice Cumbula. Era provinda de David Machapo Cumbula e de Angelina Sitoi. Os Cumbula eram oriundos do outro lado da baía, da Katembe. Meu avô David começara a vida profissional como ardina no vetusto Notícias, antes de ingressar nos Caminhos-de-ferro, onde permaneceu até se reformar. Os filhos seguiram-lhe as peugadas: o meu tio Alberto, nascido do mesmo útero, ou o tio Carlos, filho da minha avó Daína, com quem o meu avô David haveria de praticar as suas mais longas núpcias, ulteriores à minha avó Angelina.    

Foi em Ressano Garcia, onde Joe Mathada e Sofia Mpfumo fundaram a sua prole – na qual avultavam os meus avós Angelina, Manuesse (pai da minha tia Sofia, mãe dos meus irmãos Alice e Carmo, que são ao mesmo tempo meus primos – mas essa história não cabe aqui hoje), Felicidade, Xavier, Henrique, Maria, Laura, Hilário (mais conhecido por Fanyana, era o mais novo e morreu muito cedo), e basearam a família, onde meu avô David interpelou aquela belíssima donzela Angelina, filha mais velha do funcionário da Alfândega, que viera de Mambone e que ocultara o seu verdadeiro apelido. A minha avó tinha um génio dificílimo e fazia questão de afirmar as suas origens ndau. O meu imaginário está habitado dessa paisagem onírica e dos duendes que sempre me haveriam de assombrar. Todos os irmãos da minha avó ou viviam em Ressano Garcia ou do outro lado da fronteira. Eu ia miúdo para Ressano e tenho recordações impressivas dessas viagens de comboio. Quando ela morreu, pediu para ser enterrada ali: o meu neto quando for à África do Sul, vai passar e visitar a minha campa – sentenciou ela. Escusado será dizer que sempre que eu empreendo viagem e por ali passo vou ao cemitério saudá-la, deixar uma flor e pedir sorte e protecção.

No entanto, outro dia fomos, de propósito, a Ressano Garcia: pôr flores na campa da avó Angelina e visitar a avó Laura. Dos irmãos, é a única sobrevivente. Avó Laura é uma das mais novas irmãs da avó Angelina. Liga-nos o nome tradicional: ela é Tchone, nome da mulher de Marimbique. Eu sou Marimbique, que era o nome do avô de Joe, o pai delas. Nas libações, a avó Angelina pedia sempre protecção a Marimbique. Testemunhei tantas vezes as suas invocações aos antepassados onde o nome do meu xará Marimbique assumia um protagonismo incontestado. Mambone, Marimbique, Ressano Garcia, Joe Mathada, Sofia Mpfumo eram e são uma espécie da minha cartografia, os meus numes, as minhas divindades.

Ressano Garcia é, por conseguinte, um lugar mágico para mim. Ia com a minha avó, de comboio, visitar a mãe dela, minha bisavó Sofia. Num dos registos, reconheço o avô Carlos, marido da avó Maria, uma das irmãs da avó Angelina. Na fotografia julgo reconhecer a minha tia Hortência, que viveu comigo em casa da avó Angelina e que era uma estampa. Viveriam muitas outras sobrinhas dela, quando vinham estudar para a capital. A minha mãe contou-me, a seguir a esta romaria, que Hortência já não habita este reino e isso surpreendeu-me e entristeceu-me. Um destes dias eu assentara em versos as impressões que aquele lugar causara e causava em mim:

Ressano Garcia: O rio Incomati demora lesto nas margens / da minha infância sobre a paisagem de pedra/ inclinada nos dias de visita à casa da bisavó Sofia/ em Ressano Garcia onde avultavam  duendes, histórias de mortos-vivos/ e o mito dos crocodilos que devoravam os incautos.// Passados estes anos retorno a Ressano Garcia/ curvo-me diante da lápide/ com nome da minha avó Angelina/ sepultada na tumba do pai Joe Mathada/ no cemitério que margina a estrada/ e anuncia a fronteira, a alfândega, os viajantes, os vendedores de tudo -/os flibusteiros.// Nas fotografias em sépia que sobrevivem/ à corrosão do tempo/ os delidos rostos da minha família materna/ reunida no quintal da casa dos pais da minha avó/ onde me surpreendo de calções, peúgas altas e sapatos/ sentado entre adultos e alguns jovens de então/ a olhar fissurado para uma das minhas tias.”

Naquele dia, ali, naquela casa, a seguir ao cemitério, fitando a encosta inclinada, a areia vermelha, o chão empedrado, o calor impenitente, conversando, docemente, com a avó Laura, olhava para ela sem nunca disfarçar o meu espanto: a semelhança com a avó Angelina. A avó Angelina era uma mulher muito bonita e vaidosíssima. Tinha uma personalidade fortíssima e era inabalável. Tenho lembranças incólumes dela: deitava-se à porta de casa, pedindo-me para lhe fazer uma massagem. Essa é uma das lembranças mais ternas que tenho dela. À noite tirava os dentes postiços e colocava-os num copo de água. Cozinhava esplendorosamente. O seu arroz de cabidela era absolutamente indescritível. Era uma conversadora exemplar. Falava-me nas duas línguas: ronga e português.

Em Novembro de 1975 parti para Nacala. Para trás deixei a melancólica litania dos dias de chuva naquela minha casa de sempre. A chuva a embalar-me sobre o zinco e a memória remotíssima das cheias, dos barcos a resgatar as pessoas, das galochas nos pés de muito poucos, das brincadeiras à chuva, do drama que eu não entendia ainda e que estava na origem daquele milagre da minha infância: a chuva a bater no tecto de zinco. Parti alegre porque ia viajar, ia num avião, ia para o Norte. Lá onde estava o meu pai e lá para onde se dirigia a família: Nacala. E foi lá, primeiro em casa da tia Amélia e do tio Américo, que nos acoitaram, enquanto o apartamento do bairro Ferroviário ficava pronto, onde vivi, com a minha família nuclear, pela primeira vez, aos 8 anos. Eu era então o Nelsinho, o mano Chinho, o estrangeiro. Creio que sempre fui uma espécie de estrangeiro entre os meus irmãos. Não tinha vivido com eles no Infulene e não vivera na Liberdade. Ia à casa dos meus pais em visita, algumas das poucas lembranças que tenho, ou pelo menos as duas mais marcantes, são lancinantes: a do dia em que fui circuncisado e quando me foram buscar para o funeral da minha irmã Angelina, que tinha justamente o nome da nossa avó. Do Sérgio, outro irmão que morreu muito pequeno, não tenho lembrança firme. Da Angelina, lembro sobretudo os ciprestes, as lágrimas na face do meu pai, enquanto a procissão fúnebre vogava por um cemitério de Lhanguene que ainda guardava, entre aquelas campas, alguma dignidade.

Nacala deu-me o convívio com a minha mãe biológica e com os irmãos, que nunca tivera até então, sem eu, no entanto, enjeitar, de alguma forma, a minha avó Angelina, que na verdade foi a figura materna predominante na minha vida. Aliás, quando retornei de Nacala, quis e fui viver de novo com ela. Fomos para Xiquelene, um novo bairro, onde ela construíra a sua nova casa, desta feita de alvenaria. A minha avó era uma vendedora de mercado – lembro-me que ela foi pioneira no Mercado Janet, onde cheguei a ajudá-la, da fase do mercado da Baixa não tenho memória – que, com as suas poupanças, conseguiu construir duas casas de madeira e zinco, ali no Bairro Indígena. Uma delas haveria de perder quando das nacionalizações. Viveria toda a vida vituperando o regime que lha tinha espoliado.

Não ficámos muito tempo em casa dos tios Amélia e Américo e logo tivemos a nossa casa. Aqueles cinco anos passaram-se tão depressa que ainda hoje tenho nostalgia daquela pequena cidade portuária, com encostas lambidas pela erosão, com ruas de amendoeiras, o calor obsidiante e um impressivo mar azul. O mar de Nacala ainda povoa o meu imaginário. Aquele mar que invadiu as janelas da automotora na noite em que chegámos. O mar que eu haveria de descobrir na Maiaia, ou ao largo do porto, ou diante de um daqueles baldios onde íamos fisgar passarinhos, ou na casa do Director do Porto, onde subíamos à árvore para roubar jambalau. A minha mãe é sobretudo esse tempo de Nacala. E recordo-me, quando atingi os 10 anos, e fiz uma reivindicação: sou Nelson, não Nelsinho nem Chinho. Ali, na amurada do prédio, tentando perscrutar alguma nesga de mar, de peito cheio. Hoje, com mais de 50 anos, eu quereria ser outra vez Nelsinho, ou mano Chinho, como me chamavam.

Em 1980 desembarcámos em Maputo. Fomos ali para a Rua Simões da Silva. Ainda hoje se chama assim, defronte do Arcebispado. Era um apartamento da avó Angelina, que haveria de passar para os meus pais. Ali vivi uns anos, ali a nossa mãe revelou-se uma heroína para nós, sobretudo para mim, como todas aquelas mães, que tinham de inventar comida e futuro, num tempo e num contexto bastante adverso. Eram os tempos da escassez de tudo, eram os anos da crise, os anos de todas as carências, os anos da falta de tudo: luz, água, comida. Tudo. Absolutamente tudo. A minha mãe é sobretudo a heroína desses anos que tudo fez para que pudéssemos ir à escola e que víssemos ali a frincha por onde enxergar a esperança.

Íamos ao Tunduru acartar a água. Comíamos repolho com repolho. Por vezes, carapau de Angola. Não havia pão. Fazíamos bicha às 4 da manhã no talho na esperança desesperada de comprar a carne do Botswana. Íamos para o liceu, muitas vezes, com o estômago vazio. O queijo do tio Reagan e as maçãs do tio Botha, anos depois, fariam milagres no intervalo das 10 horas, da Josina Machel. Guardo desse tempo a admiração pelo papel intrémulo da minha mãe. Bem sei que muitas mães eram tão briosas, mas naqueles anos desalegres ela foi intrépida. A audácia, o arrojo, o denodo, o desassombro, a obstinação, ou a firmeza da minha avó são factos inequívocos.

Sairia, no entanto, de casa. Da casa da minha avó e da casa dos meus pais. Debutara, precoce, aos dezasseis anos, na profissão. Antes dos 20 um colega de meu pai deixar-me-ia a sua casa. Aos domingos, quando vou ao Infulene fazer a minha visita sacramental, muitas vezes, escolho o caminho que me faz passar ao largo da rua do Zambeze, pela avenida de Angola, onde a minha avó vivia – ela haveria de voltar, entretanto, ao antigo Bairro Indígena. Sobressalto-me com a memória vívida da avó Angelina. Passam muitos anos, mas ainda me revejo nela. Redijo este enternecido encómio diante de duas vetustas fotografias delas. Dou-me conta do olhar resoluto de ambas. Minha mãe não foi tão perseverante, no entanto. Chega combalida aos 80, mas chega e isso é uma bênção. A mãe dela era ainda uma fortaleza quando, pouco antes de morrer, se lhe revelou o óbice da idade. A Avó Angelina faria hoje 99 anos, abandonou este reino aos 89, meses antes de fazer 90 anos. A minha mãe Alice celebra hoje 80 anos. É um prodígio, é uma graça, e é uma dádiva, aos quais não me furto de celebrar, comovidamente, nestas páginas. 

 

Guarda o que não presta e encontrarás o que é preciso

José Saramago

Há quem diga que o Homem, na terra, é efémero e que um dia irá transcender para uma outra dimensão. E o que dizer dos objectos? Bem, se colocássemos a pergunta a João Roxo, a resposta seria, eventualmente, estão em trânsito. E logo se percebe, afinal “Objectos em trânsito” é o título da exposição do artista visual moçambicano, patente no Centro Cultural Português, em Maputo, até próximo mês. Nessa obra, feita de batik, instalação, som e vídeo, Roxo resume o que expõe ao conceito que persegue, o qual alicerça-se à promoção de uma reflexão sobre fenómenos que envolvem a humanidade e a sua presunção.

À partida, “Objectos em trânsito” parece algo difuso, vazio e de um suspense inquietante. Precisa-se estar conectado ao espírito do criador, tentando sê-lo, para que se enxergue a profundidade das coisas que são ditas, com e sem palavras. É uma exposição multidisciplinar, na qual o artista esgota-se na exploração dos espaços no lugar onde a obra está patente. Em alguns casos, há peças da obra penduradas; outras encontram-se nas paredes e ainda outras no chão. Isso provoca e desafia-nos à medida que naqueles artefactos procuramos ouvir o que o silêncio não diz, porque não quer ou porque não pode. Sei lá… a verdade, ou pelo menos o que parece ser, é que o vazio e o difuso desvanece num zás, e, num rompante, começa-se a visualizar trechos, atalhos e o horizonte para onde se move tudo aquilo.

A propósito de movimento, isto é o que a exposição de Roxo sugere nessa projecção por vezes fílmica em que determinadas partículas partem de um lado para o outro ou transportam algo de concreto ou intangível. Por exemplo, sob os “post fear” colocados à parede do Camões, papeis transportam informação, conhecimento como princípio de tudo cuja meta é uma partilha contínua. De igual modo, o som da rádio ou das telas apresentam nas suas ondas sugerem realidades, transferindo-as de um lugar para mente. São essas ondas repetitivas que quebram o silêncio, no entanto sem o anular. É como se o som e o silêncio fossem duas faces complementares de uma moeda ideal, cheia de mensagens: “como os objectos, estamos todos em trânsito”. A este nível, a outra questão é: para onde? Nem Roxo e tão-pouco a exposição devem ter a resposta. E se tiverem, nada explícito.

Na parede do Camões há ainda traçados a cor que nos devolvem ao raciocínio as imagens dos plásticos, esses como que veículos que transportam variados produtos. À frente dos plásticos, os fardos, também esses transportadores de roupas, calçados, etc. Portanto, de forma recorrente, os fragmentos que constituem a exposição de João Roxo revelam como o autor está preocupado com o movimento dos objectos, poluentes, “benevolentes” e informativos. Para onde isso vai? E depois, qual o problema a advir desse movimento?

Retratando os objectos, como efeito ou mesmo como causa, Roxo questiona o materialismo e dependência que isso cria em nós. Vendo a exposição nesta perspectiva, na essência, não é de artefactos que se trata a obra do artista visual. É mais ousada ao criar daí um paralelismo com que hoje define a condição humana, apegada às coisas palpáveis, se calhar, por resolverem problemas pontuais, todavia reféns a algum cronótopo. Se os objectos estão num trânsito banal e previsível, e então, o que dizer dos homens que se apegam aos mesmos? Enfim, Roxo conduz-nos a esse movimento espiral para fomentar uma introspecção em nós, quiçá para aprendermos a guardar o que não presta, de modo a encontrarmos o que é preciso.

 

Título: Objectos em trânsito

Autor: João Roxo

Exposição

Classificação: 13

 

(…)
E tu danças,
Apagando sinas, decretos, contratos,
Por dentro da gravidade da terra!
Melita Matsinhe, in IGNIÇÃO DOS SONHOS

À Virgília Ferrão
«17:50:21 Se não acreditas liga, irmão»
«17:25:05 Até exibia um ar de quem faz aquilo, há meses»

Paulo leu a mensagem enviada pelo primo Mateus sufocado por intensa luz do telemóvel, aturdindo-o no interior da viatura. Passava já das vinte e duas horas, a meta diária de trabalho, quando o turno de Paulo Ximboane terminou.

Paulo venceu a hesitação inicial, prosseguindo com a leitura da montanha de sms.
«16:49:44  Até agora não consigo acreditar, mano»
«15:29:12  Há quanto tempo ela faz isso?»
«15:09:03  Nem reconheci o rosto do tipo de fato preto»
«15:07:07  O casaco que a Cláudia trajava é aquele que ela vestiu na festa do meu aniversário»

Quem reparasse no Paulo podia ver para além do cansaço que lhe contraía o sorriso, a leveza sufocada, como se fosse um pássaro molhado por uma vaga de chuva tropical. O Paulo e os dezanove colegas tinham antes recolhido aos balneários. Depois passaram pelo refeitório para um tomar a pasta de frutas, ao que de seguida cada um rumou aos aposentos para o merecido descanço. Ele ainda lembrou-se de abrir o seu cacifo para dalí retirar os seus pertences, de entre eles o inseparável telemovél.

Rodou a chave preta na portinhola onde constam as iniciais do titular PX- 24. Depois de montar a pasta nas costas, retirou os auriculares e, de seguida o telemóvel.

Ligou o aparelho. Depois das sinaléticas da marca e cumpridas a ligações dos dados. A avalanche de quase de 30 mensagens veio logo a seguir para sufocar as emoções do moço, sem apelo, nem agravo, como fazem os ladrões a pessoas indefesas.

«14:47:00 É uma fia da mãe, porraaaahhh!»
«14:15:08 Ela anda a ferrar-te os cornos com um guarda- prisional»
«14:10:56 Pelo sorriso que eles trocaram notava-se que aquilo acontecia muitas vezes».
«14:09:07 Estava toda sorridente para aquele maricas… E até entregou um take away ao gajo».
«13:45:19 O que faz a tua mulher ali?»
«13:30:00 Mano nem queiras acreditar que vi a tua Cláudia na cadeia»
«13:15:40  A tua mulher  está na cadeia. A fazer o quê?»
«13:11:33 Tentei-me segurar mas não consigo. Tenho de abrir-me com alguém».
«13:10:02 Acho que temos abertura suficiente para conversar»

Paulo fervia furioso, sem saber o que fazer. Passava-se um filme horrível na cabeça do moço. Mesmo assim ele conservava os olhos em chamas fixos na avenida, conduzindo. Se fumasse já teria esgotado um volume de cigarros. E pelos vistos ele não tinha vontade de falar com mais ninguém. E, justo naquele instante, mais duas sms piscaram no telemóvel. Era a Cláudia:
«01:31:01Amo-te!»
«01:30:00 Ainda demoras, mor?»
De repente, os pneus do carro chiaram sobre o asfalto, numa tentativa de evitar um camião que abacava de cortar a prioridade à viatura do Paulo.

Por volta da uma e quarenta da manhã a Cláudia despertou ao som de uma chamada insistente e incômoda. Levantou-se com esforço, apoiando-se na cama, deslizando sobre os lençóis e atendeu ao telemóvel que estava sobre a cabeceira, ainda ensonada:
«Oi, amor?»
«Amor?»
«Não, senhora. Não é ele. Sou Papaíto. Apanhei o telefone no carro. Ele está muito mal, dona. A notícia que tenho para dar é muito triste. Socorremos o teu marido.

Ele acidentou, na esquila do mata-e-esfola junto ao quiosque da Rua do Doutor Pescoço. Ele não aguentou. Ainda nem chegamos ao hospital. Perdeu a vida».

Cláudia soltou um grito lancinante e desmaiou. Do outro lado da linha, quando a empregada doméstica foi ver o que se passava, ainda alguém dizia:
«Vivo na zona de Intaka. Trabalho nos Serviços Sociais do clube Desportivo». E de seguida a linha caíu.

Mais tarde os familiares do casal souberam por via do Papaíto daquela desgraça que se abatera sobre a família Ximboane. O jovem foi informando os familiares que estavam registados no telemóvel como «tios», «primos», «sobrinhos», etc. E quando alguns tios foram reconhecer o corpo lá estava Papaíto para testemunhar e entregar o telemóvel do Paulo aos familiares que acabavam de perder de uma vez um jovem casal que cumprira o matrimónio, há um ano e sete meses. A Cláudia não resistiu à carga de emoções. Ela estava já no sexto mês de gestação. Perdera a vida na flor da manhã do dia seguinte.

Depois da missa de 30 dias, a tia Joaquina, a mais próxima e amiga do casal Cláudia & Paulo, com ar severo reuniu com o Mateus para entre várias coisas perceber o teor dos sms´s que ela lera alertada, pelo Papaíto. O Mateus mordia-se de vergonha. Não conseguia dizer palavra alguma. Depois de vencer a mudez Mateus confessou-se à tia:

– Eu vi a Cláudia. Estava a conduzir. Abrandei a marcha e tentei perceber o que ela estava a fazer… Aconteceu-me um ciúme inexplicável, tia. Tentei alertar o primo, pensando que ele estivesse de folga.

A tia Joaquina, mesmo sem compreender a razão daquela atitude sentenciou:

«Mas tu não sabes que a Cláudia acabava de começar a trabalhar num escritório de advogados?»

 

E o teatro, o que vai ganharʔ

Provocações…, ah provocações Devia ser um gemido grego Para dizer provocações… António Abujamra     Reler o Teatro e a Peste de Antonin Artaud, nestes

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