Soou-me um belo convite ler os poemas deste poeta moçambicano justamente numa altura em que o país vive uma convulsão social pós-eleitoral que nos tem custado a partida de muitos vivos.
Enquanto os vivos das manifestações têm ido algures num céu religioso por conta da sua justa causa, o destino dos vivos do poeta Quive permanece uma incógnita.
Da forma como os primeiros poemas em prosa iniciam a parte l: Cidade, é como se o poeta inopinadamente despertasse no meio de uma era de extinção e se deparasse com um mundo sem homens, homens vivos, pois os homens mortos é que mais pululam no mundo lírico do poeta.
A descrição ou a pintura apocalíptica das cidades é bem conseguida no livro, pois o poeta teve o engenhoso cuidado de fazer uma correcta selecção das palavras que evocam uma atmosfera fúnebre como morte, ruínas, ausência, silêncio, moscas, sepulturas, vazio, e todo etc que nega a cor à vida.
Para adensar tal atmosfera fúnebre, juntam-se alguns nomes das cidades que lembram a guerra: Tripoli, Bagdad, Alepo, Damasco e, talvez Lampedusa aonde, às vezes, chegam os corpos sem vida dos migrantes pelo mediterrâneo.
A inquietação agonizante do sujeito poético sobre o paradeiro dos vivos causa múltiplas interpretações ao leitor que também busca a reposta, ou melhor, as respostas sobre uma espécie que lhe é familiar: os vivos. Para onde foram?
Se o livro fosse feito unicamente dos poemas da Cidade, entender-se-ia que os vivos foram levados metaforicamente pela guerra, catástrofes, pandemias e outras desgraças do mundo para o leito da morte. Mas a entrada dos poemas do Corpo, parte II, trazem outro espectro no livro: o amor que partiu. Os poemas do Corpo são de angústia e solidão. Há uma mulher que partiu e deixou o sujeito lírico desconsolado com a sua ausência tão intensa que se chega a confundir com a inexistência.
O sujeito lírico canta a beleza e as saudades desta mulher, mas no fundo sente que as palavras não lhe são suficientes para curar a solidão. O poeta precisa literalmente do corpo para amar, tal como atesta o Poema XVI:
Cresce-me ardente a saudade da tua presença com os beijos todos que ainda guardo, no labirinto da memória, ínfima a coragem de te encontrar (…) quando pela minha mão o teu corpo se estende em alguma cidade; e entro-te feroz, enraivecido pelos dias de ausência, quase inexistência; (…)
Como se lê, há uma paixão que arde e se acumula no peito do poeta ansioso por encontrar a sua flor de saudades, Zanóbia, e rega-la com o seu amor. Mas quando não tem o seu doce amor, como é que um poeta passa a olhar o mundo dos vivos? Com as cores vivas do arco-íris ou com as cores cinzas da guerra? Eis a questão que se nos mostra um ponto de conexão entre as duas partes do livro: a Cidade e o Corpo.
Ao certo, afigura-se-me que, com a partida da sua amada, o mundo dos vivos aos olhos do poeta também partiu, daí que o sujeito poético passa a indagar: para onde foram os vivos? É como que, no lugar da alegre canção “xiluva” da Banda Kakana, lhe passasse a tocar no coração o “no sunshine when she is gone”; de Bill Withers.
Os vivos para o poeta, em algum momento da sua poesia, significam as cores quentes, a luz, o amor, a esperança que, de cidade à cidade, ele busca reaver sem sucesso desde que a sua amada partiu. Se esta for a premissa maior, então, era suposto que este livro de poesia iniciasse com a causa que acinzenta a sua visão que é parte II — o Corpo — e terminasse com o caos que é parte l — a Cidade. Todavia, na poesia, a desordem tem mais de perfeição que a ordem. Ademais, não deixa de ser interessante que se avente a possibilidade de que as duas partes do livro sejam uma manifestação poética que resultou de um duplo golpe emocional simultâneo sobre o sujeito lírico: um amor ausentado e a desilusão da polis.
Enfim, Para Onde Foram os Vivos é uma obra poética que calha perfeitamente com espírito de um leitor que esteja a enfrentar concomitantemente a solidão amorosa e a distopia do nosso mundo, pois perguntar para onde foram os vivos é mesmo que perguntar para onde foi o amor.