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ARTIGOS DE OPINIÃO

O que há de mais sublime numa Olimpíada, é o reencontro da Humanidade consigo própria, através da forte arma que pode unir os povos: o desporto. Durante os Jogos Olímpicos, esquece-se o belicismo, reinando o espírito de paz e de concórdia. 

E a pergunta é: porquê só de quatro em quatro anos? Porque não o “contágio”, em permanência com o mundo, dos ideais olímpicos cada vez mais arredios das mentes, tanto de governantes como de governados? 

Em tempo de olimpíada, os participantes tornam-se embaixadores de afectos, divulgadores dos hábitos e bons costumes, através da transmissão da cultura local, da culinária, etc. O desporto, nessa ocasião, ri-se na cara dos preconceitos rácicos, da diferenciação entre países pobres e desenvolvidos, regimes de direita, centro ou extrema-esquerda, que tanto dividem a Humanidade. Homens e mulheres, sem complexos, esquecem-se dos horrores de um mundo em convulsão, trocando afectos ao invés de tiros. 

DESFILE DA RAÇA HUMANA

Lindo, muito lindo, é o desfile da raça humana, através da nata do desporto. E porque as modalidades, ao mais alto nível competitivo moldam os corpos, torna-se fácil identificar através do aspecto físico a modalidade por cada um praticada. 

Vestes formais e informais, que vão das saias com que os habitantes de Papua Nova Guiné e Tonga desfilam, aos trajes asiáticos e africanos multicolores… tudo é cor e alegria. E o que dizer dos penteados, da forma de andar, das preferências gastronómicas, dos abraços e beijos que nalguns casos acabam selando relações para toda a vida?

A cada Olimpíada, os organizadores esmeram-se no ineditismo quanto à originalidade. As cerimónias da abertura e do encerramento, nunca são iguais a cada nova realização. A beleza e originalidade, são elevadas ao mais alto nível, de tal forma que dificilmente quem pela primeira vez assiste ao vivo aqueles momentos, consegue “segurar” as lágrimas rebeldes nos seus olhos…

E é assim que os basquetebolistas desfilam do alto dos seus dois metros e picos, os nadadores distinguem-se pelo comprimento dos braços em cintura estreita, os ginastas pela graciosidade dos movimentos, os pugilistas pela cana do nariz maltratada, os halterofilistas pela largura dos pescoços e musculatura anormal…As modalidades de luta, são um símbolo paradigmático: sobe-se aos ringue, bate-se forte, mas no final vêm os abraços e, bastas vezes, a troca de contactos para novas pelejas. Com alguma graça se diz que a véspera dos Jogos Olímpicos se pode comparar a um casamento: primeiro flâmulas, flores e troca de lembranças. Os pontapés e os murros vêm depois…

DIAS DE SONHO

Na Vila Olímpica, os almoços, lanches, refrescos e águas minerais, são “mahala” (de graça). E se é verdade que a ocasião serve para partilhar refeições sem ter em conta o bolso de cada um, também é visível que para os atletas de países mais desfavorecidos o momento serve para “tirar a barriga de misérias”.

O momento de forma impõe regras, pelo que cada “garfada” de uma estrela, obedece ao controlo apertado do nutricionista. É a alta competição na sua expressão máxima, não sendo estranho que um latagão com 150 quilos tenha que comer apenas uma pequena salada num pratinho, quando a seu lado a um “lingrinhas” tenha sido recomendado que coma uma pilha de pratos variados, de forma a subir o peso para atacar a medalha da divisão acima a sua.

São 20 dias de sonho para alguns, num ambiente de “neón” diferente, em todos os aspectos, por poderem partilhar o mesmo espaço das estrelas que por vezes só vêem pela televisão.

Todo o espírito olímpico é produto de um trabalho e de um pacto entre os governos e os cidadãos, com alguns anos de antecedência. É um mês de envolvência não só dos actores principais, mas de todo o citadino, do polícia, ao taxeiro, empregado do hotel ao vendedor de pipocas. Todos “beberam” o espírito olímpico que os tornou mais gentis e corteses para com o visitante.

As Olimpíadas, com todos os condimentos que caracterizam a competição considerada como a maior confraternização planetária, apresenta-se como um exemplo que poderia e deveria ser seguido, em permanência pelo Mundo. 

 

O sol está em frente à garagem, quase a estacionar. Em quase todas estações, os dias exigem-lhe o mesmo vigor no cumprimento do seu papel na orquestra. Uma vez e outra fraqueja, muitas vezes chameja e queima tudo. Hoje foi um desses dias em que cumpriu a sua missão com brio. A pérola do índico aqueceu tanto que só uma caixa de geladinhas ajudou a sossegar as gargantas mais religiosas.

Vivemos todos numa competição desenfreada. Tudo depende do que o nosso ego nos pede. O meu sofrimento é maior que o teu. A minha alegria é maior que a tua. A minha tristeza é maior que a tua. Sou mais ético que tu. Às pessoas interessa sempre trazer à tona a parte má da história. As fofocas que nestes dias vêm se tornando questões de interesse nacional não são nada mais que uma estratégia que encontramos para nos sentirmos melhores que os outros. Perdemos horas que poderiam ser despendidas para coisas mais úteis a vilipendiar os outros. Todos afundamos cegamente no mesmo mar, inclusive eu que te escrevo.  

A natureza, também, interiorizou o nosso espírito competitivo. A noite prepara-se para dar início ao seu concerto. Está decidida a superar o dia. Se aquele se serviu do sol para dar o show, ela quer trazer mais que a lua e as estrelas. "O segredo de tudo está na inovação", dizem os mais sabidos. Enquanto a hora não chega vai aproveitando os últimos minutos para fazer as afinações.

Anita não queria perder o show. Quando tudo aconteceu passava quase uma hora desde que recebera a chamada que a dera a esperança de viver aquela noite como deve ser.

? Oiiiii – a rapariga atendeu o telemóvel com uma voz sensual, tentando fazer que cada i compensasse o período de espera que o seu interlocutor suportara para ser atendido.

? Te ligo não me atendes, qual é a cena? ? Perguntou o interlocutor com um ar chateado.

? Desculpa, Brito! Estou a cozinhar, a velha não está… ? respondeu a miúda com um ar de quem pedia desculpas sem se humilhar.

? Qual é a ideia mais logo? ? o interlocutor lançou a isca.

? Ah Brito, estás a me perguntar qual é a ideia mesmo? Por que és assim?

? Claro que estou a perguntar qual é a ideia! Ainda não me respondeste por acaso…

? Mas Brito é para eu dizer o quê? Tu é que és homem. Eu já te disse que estou a cozinhar, a velha não está. Só daqui a uma hora terei acabado tudo!

? Não zanga então, estava a fazer papo! As dzoito passo te pegar.

? Aonde vamos?

? Surpresa! Relaxa, vai ser uma cena doce. Mas vê se me atendes logo.

? Mas Brito eu disse que estava a cozinhar, era para eu fazer o quê?

? Arranja-te, boneca! Se ligar e não me atenderes, bazo …

Os pés molhados roçavam as chinelas à cada passo e faziam nascer um som molito. É como se um dos dois expressasse um sentimento que apenas aquele ruído inconfundível que vem do alto da montanha é capaz de exteriorizar. A rapariga chegou ao quarto. A caminhada cessou. A capulana que trazia amarada à cintura enxugou religiosamente os riachos no corpo negro e formoso. Enquanto vestia, pensava na panela de arroz que deixara a cozer no fogão. Fazia tudo às pressas, mais alguns minutos e Brito ligava. Os olhos não saiam do telemóvel.

Está quase tudo pronto, pensava ela enquanto caminhava apressadamente para varanda onde estava o fogão. Como sempre foi desde que recebeu a chamada do Brito, o telemóvel estava com ela. O vestido vermelho, apertado, que deixava o corpo mais salientado não tinha bolsos. Pelo que o brinquedo teve de vir na mão esquerda. Quando chegou onde estava o fogão, manteve o corpo distante para evitar que o vestido ficasse em contacto directo com o calor que o carvão libertava. Com um pano roto que andava por ali, sem tirar o telemóvel da mão esquerda, esticou os braços, pegou a panela pelas orelhas e levantou-a. Estava pronta para caminhar quando de repente sentiu algo a vibrar. A mão a assar na chapa da panela despertou o grito que saiu da boca e molhou os olhos que viram o telemóvel no chão, o arroz espalhado na areia e a panela vazia.

 

O Governo moçambicano criou recentemente o Fundo de Pensões dos Funcionários do Estado (FPFE) com o objectivo de autonomizar e melhorar os procedimentos de administração da previdência social pública. Com a sua operacionalização, as contribuições arrecadadas passarão a ser aplicadas no mercado e acumuladas sob a forma de activos, o que vai contribuir para a sustentabilidade do sistema. A taxa contributiva deverá ser igual ou superior a 14%, sendo que os funcionários continuarão a contribuir em 7% dos seus salários e o Estado, como empregador, passará a contribuir uma taxa igual ou superior a 7%.

Até ao momento, o sistema funciona com base no orçamento onde as contribuições feitas pelos funcionários entram como uma receita estatal e as pensões são pagas, igualmente, através do orçamento, como se de uma despesa se tratasse. Não havendo investimentos, os cíclicos e crescentes défices financeiros do sistema têm sido da responsabilidade do Estado o que representa um elevado fardo para o orçamento. Para se ter uma ideia, em 2012 o défice foi de mais de 650 milhões de meticais (excluindo as pensões dos militares), quase 1 bilião de meticais em 2015, enquanto em 2017 o défice já espreitava os 1.2 biliões de meticais. Perante esta tendência, é compreensível a decisão tomada pelo governo, pois dificilmente o orçamento estaria disponível para satisfazer o pagamento de pensões e manter o equilíbrio do sistema.

No entanto, a transição de um sistema de repartição para um de capitalização requer um esforço financeiro considerável. Neste caso, o governo necessitará de 300 milhões de dólares (passivo actuarial) para autonomizar o plano público de pensões. Certamente que a preocupação que se levanta é como serão mobilizados recursos desta magnitude tendo em consideração as actuais condições da economia.

Ora, dado que a materialização desta reforma é urgente, o governo poderá optar em fazer uma transição gradual onde nos primeiros anos o gestor do FPFE (Instituto Nacional de Previdência Social – INPS) continuará a depender do orçamento do Estado, enquanto cria a sua robustez e sustentabilidade.

A nova fase impõe desafios ao INPS, nomeadamente a modernização do sistema de pensões e a sua gestão de forma adequada em função dos recursos a serem disponibilizados para evitar as más experiências do Instituto Nacional de Segurança Social (INSS). Assim, as questões centrais de gestão e modernização que carecem de atenção são:
a)  Gestão da Carteira de Investimentos

A necessidade de conservar os valores acumulados para desembolsá-los no futuro, e tratando-se de montantes elevados, exige que os fundos de pensões observem uma política de investimentos que lhes garanta maior rendibilidade, sustentabilidade a longo prazo e conforto dos seus participantes. Isso requer que os gestores dos fundos tomem decisões ponderadas de capitalização.

Em Moçambique, os fundos de pensões existentes são pouco dinâmicos e tendem a investir na mesma classe de activos, nomeadamente depósitos a prazo e títulos do Estado, o que coloca em causa a diversificação do risco. Por exemplo, em 2016 os depósitos a prazo representavam pouco mais de 65% dos investimentos do INSS e Kuhanha. Este cenário contrasta com as tendências observadas internacionalmente onde os depósitos estão abaixo de 25% da carteira de activos dos fundos de pensões que têm investido mais em infra-estruturas, private equities, entre outros. Portanto, se o FPFE pretende ser no futuro uma referência à semelhança do Government Employees Pension Fund da África do Sul (USD 124 biliões em activos), Government Institutions Pension Fund da Namíbia (USD 7.66 biliões em activos) ou o Botswana Public Officers Pension Fund do Botswana (USD 4.9 biliões em activos), deverá acompanhar as tendências globais na gestão e alocação de recursos de pensões.

Diferentemente do INSS, o INPS pode confiar a gestão da carteira de activos a uma entidade autónoma, séria e competente, cujo gestor principal deve ser um indivíduo de reconhecido mérito e altamente respeitado na sociedade. Esta acção não constituiria novidade no sector de pensões e contribuiria para uma maior eficiência e transparência na capitalização de recursos e prestação de contas.

A independência do FPFE será crucial para o seu crescimento a médio e longo prazo. Se as autoridades governamentais tiverem um acesso exclusivo ao fundo e influenciarem fortemente no tipo de activos a adquirir (geralmente títulos do Estado e enfraquecidas empresas públicas) poderá limitar gravemente o seu funcionamento e colocar em causa a sua sustentabilidade. É importante lembrar que, se eventualmente, o FPFE tiver desequilíbrios financeiros, o orçamento do Estado será novamente chamado a intervir para restabelecer o equilíbrio no sistema.

b) Revisão dos benefícios de aposentadoria
Os benefícios de aposentadoria são calculados com base na fórmula . A leitura inicial que se pode fazer é que para um funcionário com um registo de 35 anos de trabalho na função pública, a sua pensão é exactamente igual ao vencimento que aufere. A questão que se coloca é qual dos vencimentos, uma vez que este é variável ao logo da sua vida activa devido às habilidades e experiência de trabalho acumuladas, nível académico, progressões, carreira, entre outros.

A lei diz que o salário médio auferido pelo funcionário nos últimos dois anos é que deve ser considerado para atribuição da pensão. O que isto significa? Por exemplo: o “Sr. João” ingressa na função pública e durante 33 anos de trabalho recebeu em média 20 mil meticais, e, portanto, contribui para o sistema com base nesse valor. Nos últimos dois anos, o “Sr. João” (já com o grau superior completo, experiência, etc) recebe uma promoção para um cargo de direcção e passa a auferir em média, por hipótese, 75 mil meticais, e lhe é taxado 7% deste valor.
Embora o “Sr. João” tenha contribuído com base no seu ordenado de 75 mil meticais apenas nos últimos dois anos da sua carreira, quando passar para a reforma terá direito a receber a pensão igual aos 75 mil meticais (mais bónus especial), não importando o facto de ao longo de 33 anos de actividade ter contribuído com salário de escalão inferior. Este sistema altamente generoso e apetecível tem contribuído para os sucessivos défices financeiros, o que sobrecarrega o orçamento do Estado. Nesta nova etapa, a fórmula de cálculo da pensão de reforma dos funcionários públicos deveria ser revista e considerar as suas contribuições durante a fase produtiva e respectiva capitalização.
c)  Criação de direcções provinciais e modernização do sistema de gestão de pensões

A inexistência de direcções provinciais de previdência social e sistemas modernos de gestão e controlo de pensões têm resultado em inflexibilidade e altos custos de transacção associados. Por exemplo, a gestão de pensões fora de Maputo é feita manualmente pelo pessoal adstrito à Direcção de Economia e Finanças de cada província que, na maioria dos casos, não possui as competências suficientes para a realização deste trabalho. Sendo que a aprovação dos processos é dependente da sede em Maputo, quando a documentação enviada contém informação incorrecta, o que se tem registado com relativa frequência, e como não há articulação através de sistemas informáticos eficientes, a sede devolve-a ao departamento de origem para correcção. Quando o processo é finalmente aprovado, os benefícios são pagos retroactivamente.

A criação de direcções provinciais e investimento em sistemas modernos de gestão de informação contribuirão para maior eficiência, coesão, segurança e harmonia na gestão quotidiana dos recursos. As bases de dados devem ser capazes de criar uma articulação global no sistema de pensões, permitindo mecanismos de consulta e partilha de informação diversa entre os diferentes intervenientes e na produção atempada de informação estatística.   

Certamente que o governo tem interesse que o FPFE/INPS seja viável, transparente e que garanta uma pensão tranquila aos seus funcionários aposentados. Assim, é relevante ponderar sobre o modelo e reformas a adoptar tendo em conta parte dos desafios acima mencionados.

 

Na cidade os homens não se conhecem, não se amam, não se compreendem.

 

Rodrigues Júnior

17h44 em Maputo. Ponteiros do relógio em contagem retrocedente. Faltam 16 minutos para a ante-estreia de Resgate, da Mahla Filmes. Laquino Fonseca (Tony), um dos vilões da história, transpira ansiedade. Mal consegue dar entrevista. Do realizador, Mickey Fonseca, nem sombra. A quatro metros de Laquino estão Gil Alexandre (Bruno) e Arlete Bombe (Mia). Gigliola Zacara vai tirando fotos, gingando para o público que não pára de chegar. Já são horas, e nada de sequestro. Logo, não há Resgate algum. As pessoas esperam, ah se esperam. À moda moçambicana 18 horas são 18 e tal. A essa altura, sim, todos são convidados a subirem as escadas para irem ver o resultado do que a Mahla esteve a fazer nos últimos nove anos.

Cadeiras preenchidas. Agora é uma questão de segundos. Um MC inventa como que improvisando um discurso ao estilo breaking news. Caramba! A espera afinal não terminou. Mais uns 11 minutos adicionados aos 18 e tal. 19 horas à espreita. O filme já vai começar. O pessoal desliga os telemóveis ou então finge. A expectativa é enorme, nota-se no mastigar das malditas pipocas que tanto barulho desnecessário provocam. O pano finalmente sobe. Já ninguém fala nem tosse. Resgate está na grande tela.

100 minutos depois

Terminou o filme. Os rostos dos expectadores parecem estupefactos de todo. Aí entramos nós para explicar o que se passou na grande tela da Lusomundo.

100 minutos antes

Logo que a longa-metragem da Mahla Filmes começa, vê-se um homem a regressar para o seu passado, no entanto, com algumas metamorfoses em relação ao que deixou para trás, quando foi preso. O sujeito em causa chama-se Bruno: altura média, cabeludo, mulato = o “ódio e o amor entre as raças” (Azagaia). Até a altura em que Bruno caminha rumo à reintegração social, o filme não esclarece o que se passou com ele. Deixa vestígios, úteis numa fase mais adiantada.

Bruno vai parar a cadeia por se ter tornado criminoso. Depois de cumprir a pena, sai disposto a reconstruir a vida de forma sensata, com a mulher e a filha. E nisso aprende a conviver com a dor, com a sensação de que poderia ter ajudado a mãe a livrar-se de um maldito cancro se não tivesse feito asneiras que lhe custaram a liberdade. É quando a vida do nosso herói começa a encaixar-se que aparece o anti-herói Tony predisposto a reintroduzi-lo na criminalidade. A essa altura a história ganha aquela acção ao estilo Hollywood, com linguagens fortes e momentos dramáticos, mesmo a condizer com um outro estilo, o dos gangsters.

Entre disparos, sequestros e tentativas de resgates, o filme ficciona a deterioração de uma história de amor sincero, movida pela ganância e presunção. Resgate é uma narrativa sobre os corredores do crime, que vai buscar no submundo de Maputo parte das peripécias responsáveis por tornar a cidade um campo de tiros, ou seja, um lugar onde os homens não se amam, não se compreendem e tão-pouco deixam-se compreender.

Resgate é um filme para ver com amigos. Boa alternativa cinematográfica para o tipo de longas realizadas em Moçambique. Ao contrário da tendência, a produção da Mahla trabalha o presente, dando-o uma razão de ser. Do ponto de vista de enredo, inquestionável. O casting dos actores só não é perfeita porque a perfeição é uma ilusão. As cenas, a ficção, o movimento, o drama, o suspense, o trabalho de pós-produção, logo se vê, preenchem inverosimilhanças que naturalmente o filme possui. Por exemplo, Bruno chega demasiado seco a casa de Mia num dia chuvoso e há exagero no tratamento do dólar em detrimento do metical. Agora, não aconselho que se levem crianças a ver este Resgate. Pode ser demasiado pesado para elas. Seja como for, lá está um barómetro ficcional que bem serve para as afamadas “autoridades competentes” usarem na eliminação das gangues que rebentam a bolsa, a paz e o futuro de Moçambique.

 

*Texto inicialmente publicado pela Xonguila, com o título Resgate.  

 

Título: Resgate

Autor: Mahla Filmes

Filme

Classificação: 16

 

 

 

Esta tarde, dei o meu passeio habitual por um bairro antigo, com casas pequenas –T1, do século XIX. Muito pitoresco e lindo de se contemplar. Os holandeses tornam a coisa ainda mais prazerosa porque eles raramente fecham as cortinas. Tive então a oportunidade de espreitar o interior de algumas delas.

Um homem baixinho, todo ele vestido de preto, óculos escuros, pedalava em minha direcção. Deu-me um sorriso enorme e disse “olá”. Respondi-lhe com um sorriso.

Escassos metros mais à frente, uma casa chamou-me a atenção pela arte e plantas espalhadas ao longo da janela. Dei uma olhada para o interior. Parecia hippie; até tinha uma cascata artesanal, pequena e bonita. Continuei a andar, e quando olhei para trás, lá estava o homem simpático, outra vez sorridente. Ele parou e disse:

Olá, chamo-me Johan. Vejo como te encanta o bairro… – disse ele em holandês, com um forte sotaque alemão.

É realmente interessante! – retorqui.

Eu moro aqui, e tenho o meu atelier aqui também. Tens de vir ver… se quiseres. Podíamos tomar um copo de vinho.

Aquilo fez-me lembrar a minha imaginária Lisboa (apenas a baixa), com toda aquela gente boa, iminentemente a convidar-te para tomar qualquer coisinha – talvez fosse apenas uma questão de tu mesmo sugerires – em suas casas.

Claro, podemos fazer isso! – E eu estava a ser sincera – deixa-me acabar a minha caminhada. Já volto!

Óptimo!

O corpo dele era daqueles que tremia. Ocorreu-me que pudesse ser um corpo abusado.

Voltei, à procura do seu atelier. Para a minha surpresa, a casa dele era aquela casa hippie que eu havia admirado anteriormente.

A porta estava aberta, pude ouvir um som sul-africano. Aquilo foi certamente para me impressionar – pensei.

Olaaaa – gritei.

Ele veio até à porta, convidou-me para entrar, todo feliz.

A casa estava de facto cheia de pequenas coisinhas. Tudo de pequeno que se possa imaginar, estava lá: pedaços de vidro, estatuelas religiosas e de anjos, velas, cachimbo, chaves, termómetro, latas de cerveja, garrafas, etc.

Finalmente havia um sofá. O sofá era ainda mais escuro que o seu verde escuro, devido a absorção de humidade e tudo o que estava sujeito a cair nele.

A minha primeira impressão foi a de que ninguém merecia aquele tratamento.

Queres beber alguma coisa? Tenho vinho…

Depois de ter dado uma vista d’olhos à sala toda, não me apetecia meter nada na boca que viesse daquela casa.

Ah não, obrigada…

Nada de álcool? Tenho água aromatizada, mesmo boa, com algumas ervas… feita por mim. Gosto de aromatizar tudo, até fruta! Deixa-me mostrar-te a água…

Água com ervas? Parecia bom, mas eu não conseguiria.

Ele dirigiu-se à cozinha e trouxe de lá uma jarra contendo a sua arte. A água era amarelada. Pois, era da fusão – pensei.

Eu continuava em pé, tentando equacionar como me sentar, onde colocar a minha carteira. Era uma sala cheia e suja. Não se conseguia ver a sujidade, a poeira, mas o ambiente em si era sujo. Era demasiado para o escuro.

Depois pensei que devesse ser um pouco mais flexível já que ali me encontrava e ele estava a ser simpático desde o início. Aquilo era o que ele era. Se eu ali me encontrava, tinha de aceitar tudo aquilo.

Oh, até tem um aspecto interessante mas acho que não me apetece beber mesmo nada…

Ok. Eu vou beber um vinhito, então…

A quantidade de vinho na garrafa dava apenas para um copo. Ele deitou o vinho no copo e depois levantou-o, em jeito de “saúde”.

A estas alturas já devíamos estar sentados. Coloquei a minha carteira no meu colo e sorri nervosa, sem querer dar a entender que estava pouco à vontade.

Questionava-me sobre o porquê dele me ter abordado. O que foi que ele viu em mim? Onde é que ele encontrou a ligação para uma amizade?

É verdade que precisámos de um leque vasto de amigos. No entanto, amizade implica troca de energia, conhecimento, cheiro, respiração, frustrações, felicidade, etc. Tudo de uma forma em que ambas as partes entendam.

Então, também moras aqui? Há quanto tempo?

Sim. É minha casa e atelier ao mesmo tempo e moro cá há 8 anos. Vim com a minha ex-namorada, que veio estudar arte. Acabámos, ela foi-se… e eu não me mudo da Holanda! – disse ele, muito convencido, com um sorriso trémulo, abrindo os seus olhos amplamente.

Percebo. E trabalhas aqui? O que é que fazes?

Sou artista, como podes ver. Faço de tudo. Infelizmente não faço escultura, mas pinto quase tudo, incluindo retratos. Vês ali? É trabalho meu! – apontou para um retrato pendurado na parede, com a foto original ao lado. Achei que fosse razoável, nada de extraordinário.

Também faço desenho a lápis… de vez em quando vou conseguindo umas encomendas. Deixa-me mostrar-te o meu trabalho. – ele foi buscar dois grandes álbuns cheios de trabalhos seus.

Vimos os álbuns de forma minuciosa pois ele não queria perder nenhum detalhe, explicando tudo. A maior parte dos desenhos eram da sua cidade. Prédios, montanhas, gente, a vida no geral. Eu gostei da forma como ele desenhava as pessoas próximas umas das outras. Não acho que deva ser tarefa fácil – desenhar gente junta, abraçada, multidões. Confesso que ele o fazia muito bem.

Em todos os desenhos, ele alegava estar neles retratado, simplesmente dizendo: “este sou eu”.

Os desenhos eram tão pequenos que eu não conseguia revê-lo no meio daquela gente toda. Perguntei-lhe por que estava tão certo de que era ele, ao que ele respondeu: “Porque eu estava lá quando fiz os desenhos. Por que razão me haveria de excluir deles?”

Muitos desenhos de pessoas nuas. Ele também se encontrava dentre elas…

Oh, podes ficar com estes! – ele deu-me 3 fotocópias de desenhos bem básicos e o seu primeiro poema em holandês.

Muito sinceramente, eu era capaz de viver sem aquilo. Eram tão pequenos quanto a minha mão, eu mal conseguia ver os detalhes neles, para além de que eram fotocópias.

Ele também desenhava muitos sinais cósmicos e salientava como tudo tinha dois lados: um lado escuro e outro claro; grande e pequeno… – tão simples quanto isso.

Vi muito daqueles álbuns, estava a ficar cansada, ansiosa para mudar de assunto. Fazia-lhe perguntas sobre como é que ele conseguia trabalhar, já que não o imaginava a poder sobreviver do seu trabalho, que era evidente ser escasso.

Ah, eu vendo a maior parte do meu trabalho na Alemanha, onde tenho uma clientela regular – disse.

Ele tinha um filho. Pouco sobre ele foi dito. Vive com a mãe.

Vês aquela máscara?

Sim, também a fizeste tu? Parece real…

Não… acho que vem da Etiópia, não achas?

Por que haveria de vir da Etiópia?

Não sei… os detalhes…

Os detalhes não indiciavam que fosse da Etiópia. Ele deveria ter ido pela técnica da coisa se quisesse ser convincente. Parecia mais da África Ocidental, pelo que me lembro dos documentários.

Acho que tenho de me ir embora…

Ok, foi mesmo um prazer conhecer-te. Espero mesmo poder ver-te outra vez. Para a próxima, mostro-te as fotos da minha família! – ele parecia tão feliz.

Passámos quase uma hora e meia juntos, e o Johan não perguntou nada sobre mim. Nada!

Dei conta de que não tivera sido eu que lhe chamara a atenção. Ele precisava mas é de alguém com quem falar, alguém que apreciasse o seu trabalho. Nem sequer estou certa de que ele tenha sentido que eu pudesse ser a pessoa certa para o fazer. Ele apenas fez do melhor para levar alguém para dentro da sua casa.

Já lá fora, quando nos despedíamos, mencionei vagamente estar a passar por um mau momento, como uma desculpa para não o contactar nas próximas semanas…

Ah stress, eu nunca estou stressado! Eu faço Yoga todos os dias de manhã e dá-me para me sentir bem-disposto o dia todo!

Ele continuou a gabar-se do que era capaz de alcançar em termos de paz interior. Parecia muito cansado, problemático… e trémulo. Nada que fosse puro.

Aliviada, parti. Oh, que dia! Detestei tanto este episódio. Não podia acreditar! Senti que ele tivera arruinado o meu dia.

Enquanto eu caminhava para casa, pensei que deveria arranjar uma forma de me desfazer da sua existência. Mesmo. Não levá-lo no pensamento, para a minha casa, para o meu santuário. Detestei! Não porque queria que a atenção recaísse sobre mim, sobre a minha vida conturbada, mas porque ele usou-me, teve-me à borla, do nada. É verdade que me tenha apercebido disso, que poderia ter saído mais cedo mas não vi nenhum inconveniente em fazer-lhe o favor de lhe ouvir e sentir-se bem. Não vejo nada de mau nisso, objectivamente. No entanto, tudo o que ele tinha para oferecer eram os seus líquidos sujos? Pensava ele que eu era barata, fácil de enganar? Donde é que ele obteve tais sinais?

Chegada à casa, fechei a porta com força e encostei-me à ela como se estivesse a bloquear a entrada a alguém. De repente soltei uma gargalhada. Fi-lo durante a noite inteira, sempre que me lembrasse nele. Ele era maluco, então?!! Não consigo ver outra explicação, a não ser solidão. Mas solidão só, não torna uma pessoa em narcisista. Aos 50, sendo ele espiritual, artista, ele tem de sentir, preocupar-se e estar genuinamente interessado noutras pessoas. Esta é a essência de toda a vida que ele tenta projectar.

Apesar deste episódio, continuarei a falar com estranhos. Muitas vezes fui uma estranha, fiz coisa semelhante a que ele fez – abordar gente apenas para fazer novas amizades. Isso dá-me um sentido de liberdade.

É terça- feira e ainda me riu quando penso nele. Simplesmente não havia necessidade de o conhecer. Ah, a última frase dele: “Por que achas que nos conhecemos? Tem mão de Deus nisto”.

Quando se pinta um sonho, a partir dum lugar agachado num mapa nas margens do Índico, com as cores tonificadas de dúvida e certeza, de esperança e desespero, o resultado é esta miscelânea de cores ombreando com o brilho do sol nascente. É com estes traços versus estas tranças coloridas do oriente que se revela o sentido de ser mulher, nesta empreitada de tentar transladar o futuro para o presente.

É desta forma como impacta em mim esta exposição da artista plástica Huwana, composta por uma dezena de quadros, com um temário geral: DICOTOMIAS FIGURATIVAS. Neste conjunto de obras ela traz-nos, por assim dizer, o seu olhar, a sua verdade, entrelaçando contrastes com as cores mais fluentes da vida, num mundo que, por vezes, parece esboroar-se na descrença do amanhã.

É uma pintura aberta ao mundo, como a própria artista que, na sua condição de mulher, tem o condão de trazer à luz esse mistério chamado vida. Estes quadros, que realmente são uma autêntica mescla de amor e sonhos, mito e memória, emprestam ao observador uma experiência de poder e liberdade, pois quem cria a vida é tão poderoso quanto quem cria o mundo. Ambos são arautos da criação, com a diferença de que a Huwana tem um duplo poder, o da criação da vida e o da recriação do universo, através do seu pincel.

Há quem diga que as artes plásticas oscilam entre duas vertentes: a imitação e a música. Elas são impregnadas de ilusionismo e abstracionismo. Quanto a mim, aquele que consegue estabelecer o equilíbrio entre estas dimensões pode se dar por satisfeito, na medida em que a arte só é plena quando alcança esse equilíbrio. É assim que estas telas de cores brilhantes que a Huwana nos propõe convocam a saudade e a memória de viver a vida ressuscitando a esperança. Nelas há um esforço ou seja uma intenção clara de a artista nos convidar a viajar com ela na sua busca pelo futuro. Mas, afinal, como se retrata então a empatia entre o nosso mundo interior e exterior? Como se transpõe, por exemplo, o sentimento de dó ou compaixão que borbulha em nós para uma tela? Estas e outras questões a artista tenta responder em cada tracejado, em cada gradação da luz, neste mar de cores ondulando nos seus quadros.

A narrativa da vida e do tempo é igualmente explicada nestes traços, nestes sombreados, nesta luz que até transborda para fora das próprias telas, porque, na verdade, a época em que vivemos é também caracterizada por um intrincamento de desgraças e tristezas. A Huwana tenta, por isso, não perder o fôlego e muito menos o foco daquilo que é o seu sonho anichado nestas linhas e formas, que acabam revelando as suas próprias crenças, principalmente aquelas sobre o poder da cor e da luz na procura da felicidade.

O acasalamento das cores e da luz nos quadros da Huwana simboliza o amor supremo que ela oferece a si própria e ao mundo. Todas as suas obras, incluindo as que corporizam esta exposição, são uma espécie de alegoria de si própria numa terra que lhe é simultaneamente hostil e bem-aventurada.

Gosto desta afirmação de Picasso: “A pintura não é feita para decorar os aposentos. É um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo.” É caso para perguntar se a Huwana não estará, porventura, a dar continuidade a uma guerra, herdada do seu ADN, visando reavivar nos homens e mulheres da nossa época a vontade e alegria de viver, a partir das contrariedades do quotidiano?

 

 

Magid Osman tem uma trajectória conhecida, como homem forte na área da "mola". Daí que, a muitos que o conhecem, não passe pela cabeça que este cidadão, óculos com graduação alta, falas mansas sempre viradas para os cifrões, tenha sido um grande atleta nos 110 metros barreiras e excelente executante no futebol de salão.

Diariamente, era vê-lo no então Sporting de Lourenço Marques, a treinar duro para melhorar as suas marcas, rivalizando com o seu colega de equipa Abdul Ismail. Estamos a falar de meados da década 60.

Ter sabido compensar a sua insuficiente massa muscular e o baixo peso (75kg) através de um aturado trabalho técnico, foram os seus principais argumentos. Ensaiava até ao pormenor o arranque, depois a passada certa e forma de passar as barreiras. Nada de improvisos.
Fez parte de algumas selecções nacionais. O seu melhor tempo andava pelos 15.3 segundos, muito próximo do recorde nacional que nunca chegou a bater. Corria os 100 metros  planos com o tempo a rondar os 11 segundos, que em pista de cinza era uma marca assinalável.

 

DEIXOU O FUTEBOL PARA NÃO SER… DAVIDS

Chegou a jogar o futebol nos juniores do Desportivo de Maputo, mas não continuou nesta modalidade pelo facto de não enxergar bem, pois usava óculos. E como não queria ser como Edgar Davids (um craque da selecção da Holanda que jogava com óculos), optou pelo atletismo, passando para o Sporting, sob orientação de Luís Revés, uma vez que o treinador "alvi-negro" António Matos, era muito exigente.

 

PERDEU-SE UM ATLETA GANHOU-SE UM ECONOMISTA

Após ter ido para Portugal seguir os estudos, o frio e a intensidade dos treinos no CDUL (Clube Desportivo Universitário de Lisboa), fizeram com que abandonasse as pistas. A sua veia para assuntos de economia, falou mais alto. Perdeu-se um bom barreirista, mas ganhou-se um dos nossos mais conceituados homens das finanças.

No seu estilo recatado, revelou-nos um dia que continua a acompanhar o desporto, mas que a sua vida desportiva, comparada com a de Eusébio, Mutola ou Coluna, não tem interesse para a sociedade.
Mas nós consideramos, sem favor, este madala de sucesso, um desportista dedicado e acima da média.

 

 

Há dias que acordamos com a alma acabada de voltar do lado de lá e não nos sobra nada senão uma lembrança e olhos na almofada. Tenho o corpo todo molhado, a dissolver-se, a cobrar-me amores.

Há dias que queremos que nos massageiem o coração, a memória, a alma, qualquer coisa, desde que toquem lá com jeitinho e seja tudo eterno. Tenho a alma a sair pelos olhos. Há dias que apenas desejamos que seja tudo profundo, real e eterno, só para nos confundirmos com o mundo que queima dentro de nós. Tenho isto sempre comigo. Em todos os dias há saudades…

Com esse palavreado desassossegado deves estar a pensar que enlouqueci de vez, nem? Dá-me só um tempo para me recompor e hoje prometo tentar-te contar tudo o que me tortura sem aquelas palhaçadas de sempre. Não te entusiasmes assim, então! Eu disse que prometia tentar, não asseguro que o faça. 

O perdão que dou ao outro é um subterfúgio para viver em paz. Mas há coisas que por mais que tentemos nos custam perdoar. Muitas vezes esse beneplácito só nos aparece já com a alma a se juntar ao universo e o corpo quase na tumba. Há feridas que sempre estarão ali, latentes, comendo-nos por dentro. A minha relação com o tempo é complexa. Constantemente cobro-lhe o que passou. Nunca vivi tanto a infância e o meu país que agora. Estes beijos voluptuosos ensinam-me a me contentar com o pouco que a memória fumega.
O sábado apresenta-se de céu límpido em Lisboa.

Já vamos em Agosto e o Verão ainda não conseguiu germinar como deve ser. Hoje é a excepção, a cidade se deixou tomar pelo calor. O almoço foi bem forte, ainda sinto o sabor da feijoada na minha boca! Uso como pretexto o facto de ter tido uma semana cansativa e deixo encarnar em mim uma das características daquele animal de sete vidas. A preguiça me toca com propriedade e eu não me faço de gostoso, deixo-me levar. Despreocupadamente me deito e deixo que aconteça o que é suposto acontecer. 

? Uyo pfumela, uyo pfumela, uyo pfumelaaa – António Marcos, o nosso maengane, embala-me e sonho-me em criança a correr atrás de uma bicicleta.

A minha infância persegue-me repetidamente ou eu a ela. Ela aconteceu num período de uma genuinidade sem igual. Vivíamos com pouco, mas éramos felizes. Brincávamos na rua até que se fizesse tarde. Ainda houve quem apanhou uma boa sova por apenas ter estado a brincar. Desculpem-me, brincar até tarde. Doía no momento, dia seguinte a história repetia-se. Lugar de criança não era no Youtube ou Facebook a fazer palermices para que tivesse seguidores. Os seguidores eram os próprios amigos. E se tivesses uma bola de futebol, ui se tivesses uma bicicleta! Enchiam-te a casa e nunca te sentias só. Quando o que tivesses se estragava te tornavas também seguidor de alguém. Hoje sou eu, amanhã és tu. Brincávamos todos juntos, até nos sujarmos. A amizade começava por interesse, mas com o tempo tornava-se sincera. 

Tive a minha primeira bicicleta com catorze anos, porque me foi dada na escola quando era activista. Devia usá-la como meio de transporte quando ia fazer palestras noutras escolas. Até aquela idade nem eu, nem meus irmãos sabíamos o que era ter uma bicicleta. Era algo caro e que os nossos pais não nos podiam dar. Quando vivi na casa da minha avó aprendi a andar de bicicleta. Meu tio Alfredo, irmão da minha mãe, arranjava bicicletas. Como os mecânicos das oficinas de Maputo que gingam por aí com carros de dono alegando estarem a verificar se os defeitos foram eliminados, eu e meus primos fazíamos o mesmo com as bicicletas. Geralmente o mais esperto ia sentado na bicicleta a pedalá-la e os outros corriam atrás. Confesso que muitas vezes fiz parte do grupo dos que corriam atrás da bicicleta, era matreco. Durante aqueles percursos, que muitas vezes eram longos, todos dizíamos esperançosos a mesma frase: 

? Na curva é para você me emprestar. 
Quero-te perdoar, tempo. Mas como o fazer se há dias li por aí essa frase e fui tomado por uma nostalgia que constantemente me tortura em pensamentos e sonhos? 

 

Cobarde, o mundo é cobarde! Ele viu, vê e verá. Mas nunca intervém.

Minha mãe, a senhora Fátima Mendes, morreu vítima duma destas doenças chiques e modernas. Não sei bem se é ABC, AVC ou ADC, mas é por aí que ouvi meu tio José Oliveira falar para a tia Sandra.

Em casa eu vivia com Tio José e meu pai, o senhor Alfredo Afonso. Na verdade eu tomava a ambos como meus pais, é assim que eu era tratada. A princesa da casa. Meus dois pais eram uns amores inimagináveis.

Meu pai era médico no Hospital Central de Maputo, escassos metros de casa. Meu tio José era gerente duma pastelaria também perto de casa e é lá onde eu almoçava sempre que a dona Anastâcia, a secretária, não viesse.

Acordar encontrar a casa cheia de solidão. Limpar-me e tomar o pequeno-almoço acompanhada pelo Mickey Mouse. Esta era a minha rotina, pois mesmo vindo, a secretária chegava às nove, depois do pequeno-almoço.

Uma menina de quatro anos como eu era e com um pai que não me queria misturada com outras na creche só podia ser abalizada no que respeita aos bonecos animados. E eu era de facto.

Com volume do televisor alto, super alto. Neste dia eu só queria ver videoclips na GloomChannel. Passava naquele momento o vídeo dum cantor moçambicano que canta em Changana e apesar de não entender eu gostava das suas músicas, tal de Bawito.

Então ouvi um barulho desusado nas músicas daquele ídolo. Mas pouco me importei. Além de ser criança para me preocupar, eram naturais as surpresas quando o assunto fosse música daquele senhor. Outra vez o som.

Como nunca tinha sentido em minha casa, eu estava em pânico e angustiada. Quem seria se eu tinha feito a ronda habitual para me assegurar que apenas a solidão e eu estávamos ali.

Um senhor branco, cabelo longo (parecido com Jesus), mal vestido e com dentes podres estava na minha frente. A janela estava arrombada. Meu medo estava estoirado. Orei Pai Nosso, Ave Maria e todas outras aves possíveis.

Sarcasticamente ele sorriu expondo a podridão dentária. Fiquei enjoada. Levantou a mão e fez um movimento alternado com os dedos como quem estava a saudar-me. Correspondi exactamente do mesmo jeito, como via meninas portuguesas a fazer na TV.

Com lágrimas no rosto, eu pedi àquele senhor que deixasse a casa senão eu gritava. Um pedido que ele anuiu sem pensar duas vezes… Quem imaginaria que ele seria tão compreensivo quanto à saída de casa? Mas de seguida formulou-me um convite, queria sair junto comigo.

Até achei “fixe” a ideia. Eu nunca saía e ele queria me levar para ver o sol. O problema é que eu queria ver Gomby na JimJam às nove. Ele garantiu-me que veria noutra ocasião. Mas recusei porque ele assustava. Aí ele fez o que lhe competia, carregou-me.  

Com pessoas passeando normalmente na rua. Soltando gargalhadas e carros aos roncos. Tudo estava em 360º para mim. Girava no colo mal cheiroso daquele tio. Eu gritava chorando. Pedia socorro. Todos ouviam e viam-me aos gemidos, mas olhavam e apenas continuavam a “exaltar a pátria”.

Houve até quem se aproximou, depois disse que pensou que estivesse sozinha, mas como eu estava com um adulto branco então estava tudo bem. Eu estava aos gemidos, aos gemidos! Por que mais uma criança gemeria senão de dor? Por que aquela senhora não se preocupou? E se fosse filha dela?

Já tinha ouvido que andavam uns senhores que raptavam crianças para retirar órgãos para fins tão ilógicos como tirar vida de alguém para salvar outra. Isso assustava muito.

O senhor que me carregava deixou-me num carro com vidros transparentes. Como se eu fosse sua filha. Eu chorava desesperadamente. Todos viam, mas ninguém dizia nada. Pedi ajuda como nunca. Num instante o senhor ficou mais chateado e eu fiquei mais apavorada. Pavor que crescia proporcionalmente aos gritos.

Agora éramos dois aos gritos. Ele gritava para que eu parasse de chorar porque queria ouvir música. Eu decidi que iria calar, mas o choro estava mais forte que a minha decisão. O senhor dos dentes podres decidiu ser generoso e ajudar-me a calar. Calou para sempre com uma chapada na cara. Tão dolorosa que não resisti e fui embora. Matou-me na rua. Todos viram, mas ninguém vai assumir. Cobardes!

Os filhos são sempre uma amarra forte, que não deixa os velhos afundarem-se quando a desgraça lhes bate à porta.

Rodrigues Júnior

 

In medias res (do latim, no meio dos acontecimentos), ou seja, início do discurso narrativo pelos eventos já adiantados em relação ao princípio da história. Assim começa o espectáculo teatral Incêndios, de Wajdi Mouawad, encenado por Victor de Oliveira, cuja estreia aconteceu sexta-feira passada, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, na cidade de Maputo.

Logo no princípio da peça, com mais ou menos três horas de duração, dois irmãos, Simão Marwan (Bruno Huca) e Joana Marwan (Rita Couto), são confrontados com uma trágica e inevitável realidade: a morte da mãe, Nawal Marwan (Sufaida Moyane, Josefina Massango e Ana Magaia). Nesse momento, além dos dois irmãos, em cena está um hilariante Emílio Jubela (Alberto Magassela), encarregado por ler o testamento deixado pela mulher que foi sua amiga e confidente. A partir daí, logo se percebe que a história da peça não está no princípio e tão-pouco no fim. Por isso, na necessidade de se ir buscar ao passado a origem das coisas, num ímpeto, o espectador é confrontado com uma bateria de questões que o levam a questionar-se sobre as razões, por exemplo, de um filho chamar a recém-falecida mãe de cabra e puta, recusando-se a ceder às suas últimas vontades.

Esse mistério do passado que obscurece a maior parte da peça é revelado, como é característico em histórias que iniciam in medias res, com a instauração de várias analepses (externa, interna e mista). Aí encontra-se um dos fascínios técnicos de Incêndios, pois a história não vale apenas o enlace em si, antes disso, o encanto advém da maneira como o relato é apresentado por personagens pueris, românticas, airosas ou atrozes. Paralelamente, faz de Incêndios um espectáculo absolutamente fascinante a facilidade com que nos embala e faz-nos mergulhar no verdadeiro caos da guerra, esta coisa terrível e abominável, sem nenhum eufemismo. No fundo, e sem hipérboles de qualquer índole, a encenação de Victor de Oliveira (moçambicano residente em Paris há 20 anos, cuja família deixou Moçambique precisamente por causa da guerra dos 16 anos) é uma caracterização do que o homem tem de melhor e de pior. No primeiro caso, claro está, o amor é a beleza das coisas, dos actos, das aspirações, do sentido de partilha que deveria justificar a existência humana. No segundo, muito repugnante, está explícita a intolerância, a incapacidade de uns e outros donos da pátria coexistirem no mesmo espaço sem que se cuspam na cara.

Igualmente, contado a história de uma família como muitas em Moçambique, constituída por uma mãe e dois filhos, cujo pai ausente foi levado para bem longe pela força das circunstâncias evitáveis, Oliveira apresentou no Franco-Moçambicano a origem das grandes adversidades sociais. A mensagem do encenador parece ser muito clara: tornamo-nos selvagens a partir do momento que combatemos o amor. Então, no lugar de brotar a semente do afecto, da fraternidade ou do efeito cor-de-rosa responsável pelas mais nobres sensações da vida, no lugar de tudo isso germina num ápice um embondeiro de sentimentos desprezíveis. Augusto Conrado, esse notável poeta muitas vezes esquecido, quando nos referimos a toda uma geração de importantes autores moçambicanos dos anos 30/40 do século passado, terá sempre razão: “O coração que não ama não tem tom”. Como pode ter tom uma coisa vazia, seca, inútil?   

Certamente, Incêndios é uma história de amor e de rancores. Os dois irmãos que logo a seguir à morte da mãe ficam a saber da existência do pai e de um irmão na terra natal, personalizam, uma (Joana) a eterna esperança nas pessoas, na perspectiva de que ainda se pode reconstruir os fundamentos destruídos pelo ódio; outro (Simão) é o símbolo da descrença, dos conflitos individuais (sociais também, consequentemente). Sendo ambos gémeos, logo se vê, os irmãos Marwan aparecem como duas faces da mesma moeda, a lutarem pelo mesmo objectivo de forma diferente.        

Nunca vi (e aqui tenho mesmo de singularizar o discurso), um espectáculo teatral tão intenso, envolvente e emotivo como Incêndios, na encenação de Victor de Oliveira; ainda não vi um espectáculo teatral cuja história sangrenta de um povo, aquela que nunca deveria ter acontecido, estivesse tão bem contada como se fosse inspirada nesta terra. É o melhor espectáculo teatral que já vi. Concorre para o efeito a trágica e, paradoxalmente, linda história de Nawal e Wahab (Horácio Guiamba); concorre para o efeito a ousada produção justificada no cenário da peça, preparado para, em alguns momentos, o desenvolvimento de acções simultâneas, isoladas pelo tempo ou espaço; mais do que tudo isso, concorre para o efeito a qualidade dos actores, dos quais falaremos a seguir, pois conectaram-se e entregaram-se ao texto com excêntrica dedicação.

Portanto, contando uma história de amor e sobre os seus contornos trágicos, Incêndios devolve à realidade a podridão daí resultante. Esta é uma peça para ver, chorar e aprender a medir as consequências dos nossos actos antes de cometermos asneiras. É um texto para dizermos basta de armas, por isso não poderia ter sido estreada num momento tão oportuno quanto este. Se os políticos pudessem ver este Incêndios, provavelmente, apagariam definitivamente as chamas que incendeiam os seus corações e de todo um povo que apenas quer uma palhota tranquila para amar.

  

À parte – algumas notas sobre os actores/personagens

Alberto Magassela

Pronto. Vi Incêndios acompanhado pela minha mulher, que se encantou por Emílio Jubela (Alberto Magassela). Ainda bem que esse personagem não tem vida fora do palco, anteviam-se problemas lá em casa. Sempre que aquele gajo entrava em cena, vislumbra uma certa nuvem de ciúme no céu cinzento, pois o auditório punha-se a rir divertido mesmo sem ele dizer patavina. E o pior nem é isso. A minha mulher punha-se a repetir quase sussurrando: “este tipo é bom!”. A certa altura fartei-me da frase e disse-lhe: “baby, aqui todos são bons!”. E não estava a mentir. Alberto Magassela fez bem o seu papel (com gestos, caretas e olhares a condizer), tão bem que seguramente divertiu-se em palco. O carácter cómico do seu personagem preservou na peça pretextos para as pessoas descontraírem-se um pouco ao invés de verem a peça de forma sisuda do princípio ao fim. Com Magassela, Jubela foi cómico, mas não vulgar, presunçoso, às vezes, porém nunca ordinário. Então valeu mesmo a pena Victor de Oliveira tê-lo trazido de volta.

Ana Magaia

É a actriz moçambicana que melhor conheço, e, coincidentemente, a que mais aprecio. Também por ela decidi não perder a estreia do Incêndios. Na peça, Ana Magaia interpreta dois papéis. Primeiro, a de Nazira, avó de Nawal. Segundo, a de Nawal com 60 anos de idade. Nos dois casos, as personagens são idóneas, ponderadas e deveras consequentes. O derradeiro momento do espectáculo tem a actriz em palco, que no som das palavras cumpre a promessa de amar sempre, incondicionalmente. Como sábia, mesmo devido às vicissitudes pelas quais é obrigada a passar Nawal, Ana consegue ser o equilíbrio entre o amor e o ódio, entre o perdão e a sentença. Não explode como actriz, nem poderia naquele papel, no entanto, quando intervém, inquieta como se impõe com oscilações emotivas sintetizadas no último discurso de Nawal.  

Bruno Huca

Simão, o inconveniente. Jovem angustiado, essencialmente frágil na sua bravura. Pugilista. Intransigente. Rebelde. Teimoso. Vi o rancor de Simão Marwan nos olhos de Bruno Huca. Já disse uma vez, um actor incrível, artista versátil. Huca é daqueles que não precisa de muito tempo em palco para mostrar o seu valor. No papel exigente interpretado por ele, despiu-se de tudo para encarnar o espírito de um jovem já sem esperança na humanidade, que prefere julgar antes de compreender. Huca foi arrepiante ao manifestar o quão reles o rancor pode tornar as pessoas.

Elliot Alex

Coitado. Teve de morrer duas vezes no palco. A primeira, como miliciano, foi fuzilado por Sawda, a amiga de Nawal. A segunda vez, como fotógrafo, foi igualmente fuzilado, pelo sanguinário Nihad Ibrahim. Não teve papéis para se destacar, nem seria possível tal ventura para todos. Soube portar-se como personagem secundária (sobretudo como António) e morrer.

Horácio Guiamba

Muitas vezes conotado como um actor cómico, em Incêndios interpreta dois papéis: Wahab, o namorado de Nawal na juventude, e Nihad Ibrahim, um guerrilheiro desprezível. São dois papéis totalmente diferentes. No primeiro ama e contribui na reprodução de uma vida no meio da cólera. No segundo, fruto dessa cólera que se mescla com amor, é o causador da morte. Na pele de Nihad Ibrahim Guiamba exibe o seu potencial, personificando o horror dos homens contratados para matar e dos que matam pelo simples prazer de ouvir os outros darem o último suspiro. Nele viu-se, de facto, as guerras fazem os homens ser animais.

Josefina Massango

É das antigas e experientes actrizes moçambicanas. Teve a missão de ser mãe de Nawal e Nawal aos 40 anos de idade. Particularmente, gostei de a ver como mãe. Aí foi rude e dura com verosimilhança, como muitas, quando ficam a saber que a filha está grávida. Como Nawal senti falta de qualquer coisa, se calhar, a exteriorização dessa evolução emotiva de quem perde várias vidas à procura de futuro incerto.

Rita Couto

É sedutora a simplicidade e a devoção de Rita Couto na condição de Joana Marwan, a filha ponderada de Nawal. Como estudante universitária e professora de Matemática, fantástica. Como uma menina sofrida, carente e solitária, contagiante. As discussões que Joana tem com o irmão só não as consideramos reais, pois sabemos estarmos numa peça teatral. A Rita encaixou perfeitamente no papel de Joana que o carácter da personagem pareceu realidade e actriz o inverso. Inclusive, o seu papel teve umas variações interessantes. Na condição de professora, transmitiu uma imagem adulta e na da menina que busca o passado da mãe, mostrou-se mais ingénua. A Rita é uma excelente actriz!

Rogério Manjate

Teve uma meia dúzia de papéis, em geral muito idênticos. De alguns personagens de Manjate depende a pretensão dos irmãos Marwan descobrirem a verdade sobre o seu nascimento. Portanto, essencialmente, os papéis de Rogério Manjate não variam muito. Como Fahim, Malak ou Chamssedine o actor não decepciona a ninguém. Boa interpretação e presença no palco, fazendo apenas o recomendavel. Sem excessos.  

Sufaida Moyane

Sempre que a vejo a actuar lembro-me de Lucrécia Paco. No Incêndios não foi diferente. Pequena, voz juvenil, Sufaida é outro grande talento nesta nova vaga de actores moçambicanos. Na encenação de Victor de Oliveira representa Nawal, entre os 14 e 20 anos de idade. A sua missão é acreditar no amor e desistir do mesmo na primeira grande dificuldade que lhe aparece pela frente. A história trágica, na verdade, começa quando Nawal, ainda nova, é obrigada pela mãe a desistir do filho recém-nascido. Depois vêm o arrependimento e as tentativas de corrigir o erro do passado. Assim sendo, a actriz foi capaz de ser adolescente romântica e jovem amargurada.

Eunice Mandlate

Pulamos a ordem alfabética de propósito, de modo a deixá-la para o fim. Confesso, quando vi o nome na ficha técnica do Incêndios fiquei surpreendido. Não por ela ser má actriz, mas por ainda ter algumas fragilidades que me fizeram julgar que iriam interferir no seu desempenho na peça. Já a tenho acompanhado há uns três anos. A última vez que a vi em palco foi n’A história de um homem honesto, reposta pelo Mutumbela Gogo. Não me agradou. Entretanto, no Incêndios foi completamente diferente. Conheci uma outra Eunice Mandlate, que deixa até a última gota de sangue no palco. Insignificante como Amina, a parteira que fica com o filho de Nawal, é extraordinária representando Sawda. Um papel bem a altura das capacidades da actriz que conseguiu ser meio aparvalhada, transtornada e cheia de fel. Eunice encarnou profundamente a personagem e posicionou-se de forma verosímil no contexto de guerra que chorou no palco como eu nunca tinha visto antes. De repente, a Sawda, numa discussão brava com a amiga Nawal, emociona-se e exprime com as lágrimas o que as palavras já não são capazes. Silêncio total no auditório e no interior dos expectadores. Era a vez de Eunice Mandlate brilhar no meio de colossos e consagrar-se de algum modo. Quem se entregou ao espectáculo como ela, merece a confiança de estar no Incêndios e de ser levada a sério.

 

Título: Incêndios

Encenação: Victor de Oliveira

Teatro

Classificação: 19  

 

 

 

 

 

  

Nos tempos que correm a realidade confunde-se à imaginação e converte-se em algo sem precisão. É tudo duvidoso. Um discurso escorregadio embriaga-nos e tudo se transforma em ficção. A verdade deixou de interessar. O desejo de nos mantermos no poder nos faz ridicularizar a bússola que os génios usam para fugir de um despautério como o nosso.  Tontices e politiquices se aliam frequentemente contra a verdade.

As janelas fechadas e a luz fluorescente que era emitida por uma lâmpada colada a uma das paredes brancas do quarto neutralizavam o tempo. Naquele quarto, assim como em todos quartos daquele edifício, é sempre noite.

Os olhos de um homem deitado de costas numa cama abriram-se penosamente. O acamado olhou com muita atenção para única coisa chamativa que estava no seu campo visual. A máquina de reconhecimento que existe dentro de todos nós procurou por aquela imagem na base de dados. Já tinham sido armazenadas várias imagens semelhantes àquela, mas nenhuma delas correspondia à porta branca em questão. A mente do homem disse ao corpo que nunca tinham estado naquele lugar. Até ali os sentidos tinham funcionado desordenadamente, o homem que dirigisse a operação se quisesse respostas. Então ele virou a cabeça para o lado direito da cama e viu um monitor no qual ziguezagueavam algumas cobrinhas no sentido esquerda-direita e se destacava um número com uma cor vermelha. Os apitos que vinham da máquina despertaram a audição do homem.
– Pufffff! – bufou o homem.

À medida que se ia dando conta que aquilo era uma máquina que registava os seus batimentos cardíacos sentia no corpo os buraquinhos por onde entravam os tubos hospitalares aos quais o seu corpo estava ligado. Fez um esforço para se lembrar como tinha ido parar ao hospital. Mas o cheiro a éter que lhe beijava as narinas roubou-lhe a concentração. O despertar de cada sentido paria dores. Na cabeça tudo girava e se descontrolava como um país sem liderança. As tonturas o torturavam. O peito ainda se ressentia das fortes pancadas que o coração lhe dera.

A maçaneta da porta girou. Os olhos do homem voltaram-se ansiosos para a porta. Dois segundos depois um homem com um ar idoso que trazia vestida uma bata branca entrou no quarto.

– Olha quem está acordado… – disse o médico enquanto se aproximava da cama do doente.

O doente olhou para os lados como se procurasse o tal acordado e ao perceber que ele era o único que poderia ter estado a dormir cobriu a cara com a mão direita como quem quisesse esconder a vergonha.

– Olá doutor! Há quanto tempo estou aqui? Perdi a noção do tempo…

–  É normal que te sintas assim. Demos-te um sedativo, por causa das dores. Já passa…–disse o médico com um ar tranquilo enquanto tirava os óculos.

– Estou com umas tonturas… Durante quanto tempo dormi, que dia é hoje?

– Se tivesses dado entrada num hospital da província vizinha estarias a acordar em dois mil e quarenta… Não te preocupes, foram apenas algumas horas. – disse o médico com um tom jocoso.

– Dois mil e quê???? – perguntou o homem visivelmente aturdido. O médico não precisou de explicar aquele número, fez-se luz na cabeça do doente. O homem concluiu que o que o médico tinha dito só poderia ter algo a ver com a questão cabeluda do recenseamento eleitoral que tinha sido levantada há dias. – Awena! Ainda se anda nisso? A Propósito, alguma novidade?

– A mesma palhaçada de sempre! Quase que já nem se toca no assunto, anda tudo distraído com leões que comem milho e mandioca das machambas de Matutuine… – disse o médico com um tom irónico.
– Leões que comem o quê??? Desde quando os leões são vegetarianos? Começo a acreditar que acordei em dois mil e quarenta mesmo!

O médico riu-se. Levou as olivas auriculares do estetoscópio aos seus ouvidos e colou a outra parte do instrumento ao peito do doente para o examinar. Enquanto fazia o seu trabalho o sorriso denunciava a tranquilidade de um profissional, cuja verdade científica, por enquanto, não dependia do carimbo político para ser acreditada.
 

Me desculpe o grandessíssimo Mia Couto por roubar o seu título de um grande texto seu para fazê-lo meu de forma emprestada. Mia elaborou o texto no sentido de retratar a sociedade no geral, mas eu vou pedí-lo emprestado para retratar um caso específico; o desporto. Cheguei a ver o problema do futebol como um problema isolado, como se fosse problema do Selecionador, da FMF, mas vejo que é um problema que vai mais além; É o Desporto Nacional que está doente.

DIRIGISMO DESPORTIVO – O problema começa aqui. A maior parte dos dirigentes que gravitam no desporto vão lá para tirar dividendos financeiros e políticos. Tem dirigentes que enriquecem brutalmente, quando aquele que faz o espectáculo está mais pobre, essa pirâmide está invertida em Moçambique, devia ser o atleta a enriquecer ou pelo menos a conseguir viver dignamente. Onde estão as pessoas formadas nas universidades desportivas do país? Porque a maior parte não está na estrutura dos clubes?

PROFISSIONALISMO – O Moçambola é uma Liga Profissional? Sim, é! A Liga Nacional de Basquetebol é profissional? Sim, já foi (dei exemplo das principais ligas do país). Penso que o profissionalismo, não está no facto de treinar todos dias e viver daquela arte. É preciso assumir o profissionalismo, coisa que está a faltar. O que estamos a fazer é: uns fingem que pagam e outros fingem que jogam.

RESPONSABILIZAÇÃO – O desporto tem que deixar de ser um clube de amigos. Que legado deixa um dirigente de um clube, que a sua solução para os seus problemas é a de vender o património do seu clube? Esse fenômeno acontece um pouco por todo país. É preciso responsabilizar essas pessoas, mas também é preciso responsabilizar o atleta pela sua falta de entrega e profissionalismo, mas primeiro, para ele perceber que este é um assunto sério, ele tem que ver aqueles que defraudam as suas expectativas a serem responsabilizados pelas suas más decisões que na maioria das vezes lesam a colectividade.

MARKETING DESPORTIVO – Desporto é um produto e por consequência deve ser visto como um negócio. A selecção nacional de futebol usa lacactoni e o que mais vende nos dias de jogo é Puma, equipamento que a selecção usou há mais de 5 anos. Não condeno quem infesta o mercado com o equipamento Puma, pois viu uma oportunidade de negócio e avançou, talvez a outra marca esteja a dormir. Quantos clubes tem uma “lojinha” nas suas instalações de merchandising? Quantos clubes capitalizam a imagem dos seus atletas, priorizando a venda de equipamentos?

FORMALIDADE – Temos que sair de um desporto informal para o formal, só assim será uma INDÚSTRIA rentável e auto-sustentável. Quantos atletas fazem uma carreira de longos anos sem saber o que é pagar imposto sobre os seus Rendimentos ou descontar para o INSS? Isso permitirá ao atleta no fim da sua carreira receber aquilo que descontou e não andar de mão estendida. Os clubes tem que estar legais e organizados. Formou-se hoje e única coisa que sabe dizer é que quer ganhar, sem no entanto ter montado as bases para o efeito e nem sequer escalões de FORMAÇÃO tem, logo, mergulha em práticas nocivas como CORRUPÇÃO e CURANDEIRISMO e faz toda sua estrutura acreditar nisso, tornando estas, práticas e formas, de normais.

CORRUPÇÃO e CUMPLICIDADE – Desde a eleição para as FEDERAÇÕES e ASSOCIAÇÕES até a competição, é tudo um ciclo vicioso de corrupção onde há cumplicidade de todos actores (atletas, jornalistas, dirigentes). Quando os atores do desporto não pensarem primeiro no “o que eu vou GANHAR" ai teremos um melhor desporto. Os jornalistas falam ou se calam em função dos seus interesses umbilicais. Se eles assim o fazem, quem irá lutar pela VERDADE DESPORTIVA? Os clubes tem que deixar de ser um canal de saída de dinheiro. O Dinheiro não deve passar, deve ficar no desporto. Quando o Estado tira 3 milhões de dólares para a reabilitação de um pavilhão (Maxaquene) e o mesmo continua pior e ninguém é responsabilizado é porque a corrupção é endêmica.

Quando o Presidente Guebuza há 10 anos assumiu o desafio de se organizarem os Jogos Africanos em Moçambique, um dos desafios que deixou à organização, é que era uma oportunidade para se revitalizar as infraestruturas desportivas; construir novas infraestruturas e (ou) dar uma nova cara as já existentes. Sabe-se que para esta empreitada foram disponibilizados mais de 200 milhões de dólares, mas pelo contrário nem pavilhões novos e muito menos reabilitados, senão um banho de tinta e obras de pequeno vulto para o inglês ver.

Existe muita coisa que não faz sentido a nível do nosso desporto. Acho que Moçambique é um dos primeiros países a nível mundial onde jogadores de formação são consagrados os melhores do país. Formação é formação, alto rendimento é outra coisa e deve haver uma barreira a separar as duas coisas. Espanta-me em que quase todas galas de consagração dos melhores atletas, a maior parte dos vencedores sempre são atletas de palmo e meio, ainda em formação.

Olhando para formação é de louvar o esforço do governo em priorizar os Jogos Escolares, mas infelizmente ainda não está claro o que se pretende atingir com o desporto escolar. É muito dinheiro que é gasto para a realização dos mesmos sem que se tire proveito e em simultâneos os clubes também a gastarem dinheiro com os escalões de formação. Digo que não se tira proveito, porque a maior parte dos atletas que se fazem a estes jogos, já são atletas de clubes a bons anos, logo, não há nada a ser descoberto e muito menos a se pesquisar. Porque não se faz a união dos escalões de formação e o desporto escolar, onde as competições escolares culminariam com o festival e representariam os campeonatos nacionais, os clubes trabalhariam com escolas satélites e depois dos 16 anos o aluno-atleta ingressaria num CLUBE, os melhores claros. Ganharia a estrutura desportiva nos escalões de formação, teríamos um atleta um estudante e para praticar desporto primeiro teria que estar matriculado num estabelecimento de ensino, não teríamos 2 centros de formação onde 1 forma (clubes) e outro finge que descobre (escolas) e os clubes não gastariam o dinheiro que não tem, até porque qualquer atleta começa os seus primeiros passos na escola. Há que se dar um destino ou rumo à formação, em particular, e trazer de volta aos eixos o desporto nacional. 

Não é que éramos ou é para sermos campeões mundiais, mas exige-se o mínimo de organização a nível das modalidades. Desde o Moçambola e passando por outras modalidades, é tudo feito a retalho e no sufoco. Exige-se o mínimo de rigor, os processos não podem andar a reboque das pessoas, pelo contrário as pessoas é que tem que andar a reboque das instituições desportivas.

 

 

            O que actualmente vivemos é uma cultura do vazio, do efémero, do transitório, do descartável que leva, por um lado, à fragmentação das sociedades e seus valores intrínsecos e, por outro lado, a uma condição de cegueira intelectual que atirou o homem à incerteza do que ele próprio é e quer ser. A literatura, no contexto aqui descrito, passou a ocupar um lugar quase que de ausência, pois ainda se recusa a alimentar-se de efemeridades e mediocridades dissimuladas de arte e de grandeza daqueles que acreditam que, mesmo sem ler e sem se cultivar, podem escrever: ainda há, paradoxalmente, quem acredite que há-de ser [livre] sem ler e sem buscar conhecimento.

            Estas palavras parecem-nos ter alguma razão de ser, pois, se cada vez mais se tem uma juventude que renunciou à leitura, principalmente de literatura, culpando-a de não se deixar compreender, a poesia continua a ser o arquétipo de um género sem leitores [comuns] e que, salvo miopia nossa, é o menos publicado em comparação com a prosa. Poderemos, deste modo, afirmar que a poesia não é para qualquer leitor?

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no livro Asas da Água, de Nelson Lineu. Divido em três partes, nomeadamente “Os sinais do rio”, “Poema folha” e “A ave no canto”, neste livro, explora o poeta elementos da natureza, flagrantes no título e nalguns poemas. São alguns desses elementos as aves, a água [do rio], a folha. Explora ainda a questão do ser e da natureza da liberdade que radica, em particular, na referência às aves, às asas e à leveza da folha e, finalmente, a questão da relação fenomenológica entre a consciência e os fenómenos, tal como se pode observar no seguinte poema:

 

“aproximar os ouvidos à terra

ouvir a folha

como criança

riscar o chão com a dúvida

é o que procuro no relógio” (Lineu, 2019: 52)

Neste poema, temos um sujeito poético que realiza a epoché segundo Edmund Husserl, ao reconhecer, na inocência e na dúvida, o esvaziamento da consciência para “ouvir a terra e a folha”.

Ora, enquanto a prosa é a continuidade da realidade, a poesia é a construção de uma realidade. A respeito, Sartre (2004: 13) afirma que a prosa é o império dos signos. Assim, se, de um modo geral, signo é algo que substitui ou representa algo, então, a posição de Sartre significa que, na linguagem prosaica, os signos remetem para realidades exteriores ao próprio signo. A linguagem constitui um meio ou instrumento voltado para as coisas do mundo, a serviço das acções do homem. Portanto, “a prosa é utilitária por essência; o prosador é um homem que se serve das palavras (…) Na prosa, as palavras não são, de início, objectos, mas designações de objectos” (SARTRE, ibid: 18).

A poesia, por sua vez, imbuída de um intuito de construir realidades que remetem a si próprias, tem um carácter mais abstracto e mais conceptual. Sartre (ibid: 13) defende que, na poesia, o poeta não se serve das palavras (como na prosa), mas serve as palavras. Disto percebemos que a “palavra poética” (no sentido de ser referente à poesia) não se situa no plano utilitário, ou seja, o poeta serve as palavras com referentes intratextuais.

Esta visão de Jean-Paul Sartre explica a razão de, na linguagem poética, os signos, não sendo instrumentos, estarem virados para si próprios, porquanto se manifestam como coisas. Assim, “o poeta afastou-se por completo da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não signos” (SARTRE, idem).

Em Asas da Água, de Nelson Lineu, o que fundamenta a ideia de uma grande tendência para o abstracto nos poemas começa no título. Há, neste título, e inclusivamente nos poemas de todo o livro, metáforas que enformam um discurso referencial de segundo grau que, segundo Ricoeur (2000: 13), consiste na suspensão da realidade, transitando-se para um discurso centrado em si mesmo e para a construção de uma “dupla referencialidade”, e não “duplo sentido”. Assim, na estrutura “asas da água”, “asas”, entendidas como partes das aves, parecem remeter para uma básica ideia de passagem do domínio da necessidade para o domínio da liberdade, e o voo que, de um modo geral, tais asas permitem é que conduz à liberdade. “Água” (do rio, elemento que atravessa a quase totalidade dos poemas do livro) remete, por sua vez, à ideia de transformação, de mudança do mundo e dos fenómenos, ancorada no carácter de fluidez que caracteriza um rio. Então, que sentidos resultam de “águas da asa”? Não será este um exemplo de que as palavras, neste livro, são em si coisas ou referentes e não remetem a coisas ou realidades exteriores a si?

Vejamos alguns exemplos:

 

“as casas na cidade

são cópias das casas no rio

aprendemos a decorá-las

com os peixes” (Lineu, 2019: 21)

 

“abro as palavras

limpo o silêncio

acabo com a dor da água” (ibid: 25)

 

“a ave está certa

a sombra no chão

é a respiração da folha” (ibid: 44)

      

“o sal adorna as ondas

e anuncia à ave

a chegada da concha” (ibid: 63)

 

Encontramos, nestes e noutros exemplos, metáforas que transpõem o comum, o banal, o ordinário, o trivial.

Ainda no contexto do abstracto a que nos temos vindo a referir neste texto, em Asas da Água, o sentido dos poemas inscreve-se nos espaços em branco do papel, associados aos espaços em branco dos próprios poemas, vistos enquanto estrutura potencial a ser preenchida pelos leitores. Por meio desta estratégia, as palavras também se tornam signos de si próprios, ou seja, são “palavras-coisas” que instituem realidades próprias. Em cada uma das páginas deste livro, os poemas estão postos no centro, jogando com o imagético e o conteudístico; omitem-se as vírgulas, subverte-se a sintaxe, desarrumando-se, por vezes, a ordem dos constituintes frásicos. Estas características, como dizem Campos, Pignatari & Campos, 1975:34), ao analisarem a poesia concreta, põem os significados à margem ou em segundo plano.

Como ilustração, tomemos em consideração os seguintes poemas:

 

“intercepto a brisa

antes de afagar

as árvores de outra margem

acrescento uma palavra

em seu corpo

como quem escolhe

o sonho para a noite” (Lineu, 2019: 27)

 

            “a folha caiu no rio

conhecia a água

a conversa das aves” (ibid: 45)

 

“adormeço a voz

levo o verde à folha

o lenço branco a flor” (ibid: 48)

 

            A brevidade dos poemas, a subversão das regras sintácticas e a exploração dos espaços vazios da folha (em que os poemas mais se inscrevem do que se escrevem) tornam as palavras gestos, objectos e ideias ou uma espécie de linossigno ou ideograma, segundo Bosi (2007: 477). Por isso, as palavras ou signos mantêm-se abstractos até na sua forma externa, combinando sentidos, por vezes dissonantes – veja-se o título do livro, “asas da água” –, contrários, contraditórios, imprevisíveis e inimagináveis. Ademais, o mundo instituído por e nos poemas desta obra rompe com os fundamentos e com a lógica fenomenológica de um mundo apreendido por uma consciência e, por conseguinte, sugerem um mundo ou mundos em certa medida inalcançáveis, cuja configuração ontológica devolve à poesia a nobre condição de ser em si.

            Para terminar, queremos afirmar que uma poesia como esta (e como outras de cariz intimista e menos engajado) e de exploração de universos imateriais, em que as palavras são coisas e os signos têm em si mesmos os significados, constitui um constante desafio para uma sociedade – sobretudo para a juventude – vazia, oca, ociosa, que não percebe e não compreende o mundo hipermoderno onde se encontra e que espera, de forma absoluta, ver-se livre e salva pelas crenças emergentes que, no fundo, são consequência do neoliberalismo que governa o que Lipovetsky e Serroy (2011) chamam de cultura-mundo.

 

Bibliografia       

 

BOSI, Alfredo (2007) História Concisa da Literatura Brasileira. 44.ª ed. São Paulo: Editora Cultrix.

CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de (1975) Teoria da Poesia Concreta. Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. 2ª ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades.

LINEU, Nelson. (2019). Asas da Água. Maputo: Tipografia Prelo Clássico.

LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. (2011). A cultura-mundo: Resposta a uma sociedade desorientada. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras.

RICOEUR, Paul. (2000). A Metáfora Viva. Tradução de Dion David Macedo. São Paulo: Edições Loyola.

SARTRE, Jean-Paul. (2004). Que é a Literatura? 3.ª ed. Tradução de Carlos Filipe Moisés. São Paulo: Editora Ática.

Texto de apresentação do livro Asas da Água, de Nelson Lineu, no Centro Cultural Brasil-Moçambique.

Esta posição de Sartre é discutível se a considerarmos para uma poesia de pendor mais engajado que dominou um determinado período da Literatura moçambicana. Admitimos, porém, que esta ideia se aplique à poesia de Armando Artur e de outros poetas tendencialmente menos engajados, que cultivam a palavra em si.

Desta vez não foi no “fatídico” minuto 92, mas a meio da segunda parte, em seis minutos, que a Mamba, com a eliminatória “no papo” adormeceu e a onda malgaxe levou.

– Ao intervalo, o Presidente Simango da FMF, afirmou que o estarmos a vencer por 3-0, “reflectia a diferença de nível entre o Moçambola e o campeonato malgaxe”.
– No final do jogo, a Ministra da Juventude e Desportos, Nyelete Mondlane, referiu que é necessário repensar o nosso futebol, pesquisando talentos nas camadas jovens.

Estes posicionamentos, reflectem alguma falta de profundidade nas nossas análises e a dificuldade de passarmos das intenções à prática, aos vários níveis. O que a segunda parte do jogo trouxe à tona é a realidade: lugar 116 no ranking FIFA, “clientes assíduos” das pré-eliminatórias e, como se não bastasse, cada vez mais dificuldades para ultrapassar adversários que há poucos anos nos temiam.

Daí que, se tivéssemos mantido o 3-0 até ao final da partida, a esta altura estaríamos a colocar o nosso futebol nos píncaros.

UMA REVIRAVOLTA
“QUE JÁ NÃO SE USA”

O espaço para lamentações começa a fartar. Aquela reviravolta, já não se usa na alta competição. Orientações como investir na formação e buscar talentos, viraram “slogans” que nada alteram.  O que nos falta? Passar das palavras às acções – pensadas, programadas e cumpridas.

Efectivamente, teremos que dar razão ao ditado que diz que quando o camarão dorme, a onda leva. É o que está a acontecer. Acobertados pela ideia de que “abundam talentos e é só pesquisá-los”, acções pensadas e planificadas vão sendo subalternizadas.

A realidade está aí. O futebol de Madagáscar, Maurícias, Lesotho, Namíbia, Comores e por aí fora, que ao que tudo indica não parou no espaço e no tempo, vai-nos surpreendendo. Neste caso, basta repararmos na evolução da constituição física da Selecção malgaxe, comparada com a dos primeiros clubes e selecções daquele país que nos visitaram, para equacionarmos um dos pontos da evolução do vizinho.

ALGUNS DOS “NÓS”
DE ESTRANGULAMENTO

Só ao fim de muitos anos, nos convencemos que a medida tomada pelo Estado, de proibir a transferência de jogadores nacionais para o estrangeiro – dizia-se que não são uma mercadoria – estava errada. Acabámos, nessa vertente, por tentar “acertar o passo” com o que é normal lá fora.

Hoje, diferentemente do que aconteceu a Gil, Luís,  ngelo Jerónimo, Orlando Conde e muitos outros, as portas parecem escancaradas para “exportar” atletas, até para clubes de divisões secundárias, não sendo necessário “saltar o arame”.

Os nossos craques – particularmente os do futebol e basquetebol – já iniciam as suas carreiras com um horizonte amplo, pois o profissionalismo de alto nível, além dos rendimentos pecuniários, dá prestígio ao indivíduo e ao país.

PROFISSIONALISMO PELA METADE

Vivemos um profissionalismo pela metade. Os números existem, as contratações acontecem, mas os valores envolvidos, ao contrário do que acontece pelo mundo fora, permanecem no segredo dos deuses.

Vejamos: se um qualquer cidadão pretender aceder às contas do Manchester United, Benfica, Sporting ou qualquer outro clube de gabarito, fá-lo com relativa facilidade. As grandes transferências e os salários das estrelas são públicas e publicitadas. Mas nós continuamos a pautar pelo secretismo absoluto, apesar de o dinheiro que o desporto movimenta, ser maioritariamente desembolsado pelo Governo – directamente ou através das empresas públicas – e como tal produto dos impostos dos cidadãos.

Equacionemos este cenário: se a direcção de um clube integrado ou patrocinado, quiser destinar a maior parte da receita que lhe é alocada na formação, invertendo a actual pirâmide em que só “migalhas” é que vão para esse sector, seguramente que não conseguirá levar o seu propósito a bom porto.

Os “donos do dinheiro” dificilmente estarão de acordo com um plano – por mais bem elaborado que esteja – de investir numa movimentação séria e orientada para os jovens, pois só produzirá efeitos a médio e longo prazos.

A pressão virá de vários quadrantes, incluindo dos sócios. Daí que a solução mais cómoda seja contratar “craquezitos” de um país vizinho, para chegar a resultados rápidos.

E o assunto torna-se mais complexo se a colectividade fôr do norte ou centro do país. Aí, contrata-se um treinador de renome, juntam-se os rejeitados dos grandes clubes do sul e concretiza-se o desiderato de estar presente no Moçambola. É por isso que por lá já não brotam jogadores como Joaquim João, Tayobe, Nuro Americano, Paulito e outros, titulares da Selecção Nacional forjados e temperados nas suas zonas de origem, antes de virem para a capital. Actualmente, chegam e sobram os dedos de uma mão para indicar, em cada equipa nortenha os craques, formados localmente.

PARAR NÃO É SOLUÇÃO

Temos pela frente, um “edifício” complexo e que nem o Governo, nem a maioria dos cidadãos se predispõem a colocá-lo no lugar que merece: o desporto, como um assunto de Estado.

Sentimos – particularmente no futebol – que os moçambicanos vivem, com extrema paixão, o desporto-rei que se movimenta pelo mundo, reservando apenas pequenos espaços do seu dia-a-dia, para tecer críticas ao nosso “futebolzinho”.

Mas a ideia de “parar para repensar”, seguramente não é o melhor caminho. Estaríamos a “enterrar”, os modelos de que dispomos, reduzir para a juventude as razões para ela sentir como suas as estrelas locais.

A solução passa por trazer à luz do dia, o que cada entidade desportiva destina à formação e à competição, com regras claras de que, sem matar o presente, se investe no futuro.
Afinal, se desporto é saúde e educação, se incentiva o turismo e

dá prestígio ao país, porque é tão subalternizado, numa Pátria que quando era colonizada produzia estrelas de nível mundial?

Manuel Mutimucuio nasceu em Maputo, em 1985, mas teve os seus anos formativos na Beira. É doutorando em Governação e profissional de desenvolvimento. A sua apresentação ao panorama bibliográfico-literário deu-se através do «Visão» (2017) e avantajou-se com «Moçambique com Z de Zarolho» (2018).

A escrita deste autor enquadra-se no que o teórico moçambicano Mallinda (2001) chama questionamento do «status quo». A verdade é que a partir da degustação do duo literário de Mutimucuio, alcançamos um diferencial que parece espremer incisivamente os calos nos pés da pérola do índico. «Visão», embora livro de estreia disseca com brio sobre as amarras que estão, também, na base de muitos dos questionamentos que assolam a mente e o sedentarismo epistemológico dos moçambicanos. A obra apresenta-nos verdades obscuras e fala-nos sobre o lixo que está por baixo de diversas alcatifas sociais. Faz-se pertinente lançar um olhar especial à forma como este autor narra e satiriza problemas como a infidelidade, o lambibotismo, a ganância, o egoísmo exacerbado, entre outros.

Já com «Moçambique com Z de Zarolho», o autor inquieta-se mais com a situação da língua como elemento diferenciador de classes individuais e grupais, esta mesma língua é-nos ainda apresentada como condição suficiente de ascensão social e financeira. Apresenta-nos uma sociedade moçambicana moderna, um factor um tanto quanto ineditista, que a passos galopantes desvincula-se da herança linguística do colono e em que as diferenças sociais estão em GARRAFAIS. Como dissemos no início, é uma escrita profundamente acasalada com o questionamento do «status quo» moçambicano, repleto de elementos novos da modernidade que mesmo assim não se desvinculam das cosmogonias africanas e de símbolos e espaços característicos da nossa literatura, tais são os casos do «sonho», «monólogos dialogantes», «oralidade» e não diríamos racismo, em «Visão», mas uma perpetuação de uma colonização ideológica que faz sinonimizar a pele branca a benefícios e superioridade existencial. Por outro lado, preste-se atenção ao profuso recurso à descrição de que o autor se serve nas duas obras, fazendo recordar o célebre «Nós matámos o Cão-Tinhoso» (1964), de Luís Bernardo Honwana, no conto «Inventário de imóveis e jacentes». Por estas e outras razões que as nossas limitações epistemológicas não lograram alcançar, consideramos que a escrita de Mutimucuio é revestida de muitas verdades prementes e reveladora de tantos escombros que nos parece que se trata de um homem cuja mão não tapa o sol com a peneira.
 
Bibliografia
MALLINDA, Daniel Augusto. Cartografias da Nação Literária Moçambicana: Contos e Lendas, de Carneiro Gonçalves. Maputo, PROMédia, 2001.

Se os Mambas se tivessem qualificado – bastava um pouco mais de “manha” nos minutos finais de três jogos – estaria o país a falar de um Abel Xavier herói. Ainda por cima porque a qualificação transportaria a inédita façanha das duas primeiras vitórias, em competições oficiais, diante da toda (ex?) poderosa Zâmbia. Tal não aconteceu e o sentimento girou 180 graus. Para alguns foi um falhanço total, a partir de um currículo que denota inexperiência, passando pelas convocatórias e métodos errados.

Repare-se no que aconteceu com as claques: após a derrota diante da Namíbia, cercaram o autocarro dos Mambas, exigindo de imediato a cabeça do técnico. Depois, muitos deles integrados na “onda vermelha” em Bissau gritaram a plenos pulmões:
– “Queremos Abel Xavier! Queremos Abel Xavier, mesmo que os outros já não te queiram! Ele terminou o jogo abraçando e chorando junto dos jogadores. É assim a vida dos Seleccionadores e treinadores. Numa análise mais a frio, há que referir que não é justo aquilatar a acção do recém-demitido treinador dos Mambas, sem ter em conta os momentos difíceis e multifacetados que tem vivido o país e, por tabela, o desporto nacional. 

Uma clara desvantagem que se nos coloca nas competições continentais, é a da fragilidade naquilo a que se chama de jogo invisível. Ou seja, acção fora das quatro linhas. Quem acompanhou as nossas equipas pelo continente, sabe bem dos frequentes “imprevistos”, acção e pressão sobre árbitros e comissários da CAF, o que nos coloca em desvantagem em casa, como eternas “virgens imaculadas” que continuamos a ser. 

MUDARAM-SE OS TEMPOS
E TAMBÉM AS REALIDADES

A situação política e social no país, tem efeitos directos no desporto, bem como a acção das direcções das federações em exercício. Nesta altura, a “exportação” dos principais craques para vários países é, claramente, um factor positivo, na linha do que até fazem as grandes potências. 
Mas traz novos desafios, em especial a “gestão” da forma de cada atleta, bem como o aquilatar da competitividade de campeonatos de níveis muito desequilibrados.

Juntar os atletas apenas três ou quatro dias antes das partidas e decidir sobre o onze ideal, é tarefa extremamente complicada. Veja-se que uns actuam na França, Albânia, Portugal (no Amora) ou na Alemanha. E a decisão sobre quem, após viajar mais de 10 horas de avião, terá que ficar no banco? Estrelas como Reinildo, Mexer ou Zainadine, se ficarem a suplentes numa selecção tão mal colocada no ranking FIFA, poderá ser para eles factor desmotivador, porque objecto de “chacota” junto dos colegas. Nesse aspecto, a acção de Abel Xavier terá representado um “abanão” positivo na gestão das mentalidades, tanto as de dentro, como as de fora.

 

O PAPEL DO MOÇAMBOLA

O Moçambola deveria ser o principal suporte da Selecção Nacional. Mas não é. Com mais espaço para se discutirem modelos que se alteram anualmente e mais preocupação com as viagens do que com os treinos, a nossa competicão-mor vai funcionando ao estilo “tchova-xita-duma” (empurra que vai pegar).

Daí que o exíguo número de “seleccionáveis”, tenha como base duas razões: baixo nível na competitividade geral e presença marcante de estrangeiros nas equipas “top”, como principais desequilibradores. A partir daí, o seleccionador têm que se virar mais para os internacionais que actuam além-fronteiras – mesmo em turmas de valor secundário – para depois preencher os pontos fracos com os que actuam internamente.

MAMBAS NO RANKING FIFA

Quando Abel Xavier assumiu o comando, os “Mambas” ocupavam o 107º lugar. Moçambique conseguiu dar um pontapé na crise de maus resultados em Junho de 2017, quando em pleno estádio Levy Mwanawasa derrotou a Zâmbia, com um golo de Ratifo. A selecção ascendeu à posição 97. Porém, nos jogos que se seguiram, lapsos e desconcentrações em momentos decisivos deitaram tudo a perder. O empate amargo com a Guiné-Bissau, seguido pela surpreendente derrota diante dos namibianos, foram a “gota-de-água”.

Ao ser afastado do cargo para dar lugar a Vítor Matine, o treinador luso-moçambicano, deixou a selecção no lugar 116, isto é 9 postos abaixo da que encontrara. Refira-se que a nossa melhor classificação de sempre no ranking FIFA até hoje, foi o 68º posto, quando nos qualificámos para o CAN 96, sob o comando da dupla Bondarenko/Salvado. Em contraponto, a pior, em 2006, foi a posição 134, numa altura em que os Mambas eram orientados por Artur Semedo.

Um gráfico sobre o valor dos treinadores dos Mambas, tendo em conta as várias “nuances” porque tem passado a equipa de todos nós, e considerando, embora à distância, as oscilações no ranking dos adversários, colocaria Abel Xavier no pódio de um técnico que apesar da não qualificação ao CAN, iniciou um novo ciclo, que importa agora dar continuidade, com o registo que ele afirmou ter deixado na FMF.

 

Os destinos da humanidade estiveram sempre nas mãos dos adultos.

São eles que traçam um futuro que seguramente não será o seu,

mas sim um futuro em que nós jovens teremos de viver.

in Eduardo Paixão

 

 

Uma narrativa envolvente, daquelas que habitualmente não são inventadas na literatura moçambicana. De forma prévia, ocorre-nos dizer isto do novo livro de Agnaldo Bata, como se sabe, menção honrosa do Prémio INCM/ Eugénio Lisboa 2018.

Intitulado Sonhos manchados, sonhos vividos, o romance de Bata é uma história ao estilo O fiel jardineiro, de John le Carré (como se observa no britânico, também em Bata existe uma personagem entendida em matérias de saúde, que investiga diagnósticos clínicos, interesses por detrás disso, teimosa e muito arrojada. No caso, Gertrudes, estagiária do Instituto Nacional de Saúde). Por isso, temos nesta proposta literária um conjunto de personagens genuínas, as quais não hesitam em intrometer-se em esquemas complicadíssimos, a envolver altas autoridades.

Resumidamente, o romance gira à volta das relações de amizade entre jovens que têm sonhos comuns, entretanto muito difíceis de concretizar. Ao invés de se deixarem levar pelas dificuldades, Gertrudes (a protagonista) e os seus amigos encontram formas de viverem os sonhos sempre por acontecer. Deste ponto de vista, o livro de Bata é um romance com um peso motivacional muito forte, pois derruba os limites responsáveis por conter os desejos de as pessoas voarem para outras altitudes. Certamente, há-de ter sido esta a intenção do autor ao escrever esta história muito próxima às circunstâncias em desenvolvimento na actualidade moçambicana.

Sonhos manchados é, igualmente, uma narrativa sobre desafios, sobre os amores e desamores para com o ser humano. Macossa é o centro de tudo isso e de um sentido patriótico bem assente na juventude humilde, aquela que não tem nenhuma propriedade, afinal um roubo: “basta a miragem na propriedade para um homem decente se tornar prepotente, um tirano” (Pepetela, 1992: 74-75).

A propósito de juventude, Bata dá eco àquela velha ideia bem dita por Eduardo Paixão em Cacimbo, um dos fantásticos romances moçambicanos: “os destinos da humanidade estiveram sempre nas mãos dos adultos. São eles que traçam um futuro que seguramente não será o seu [brexit?], mas sim um futuro em que nós jovens teremos de viver”. Como que atentos à gravidade desta afirmação, os jovens de Sonhos manchados desafiam o poder político, o status quo, sem ficarem à espera das possibilidades para fazerem o certo. No meio de uma tempestade, tomam um avião entre disparos da polícia no aeroporto e voam para Macossa (Manica). Objectivo? Ir desmascarar autoridades da Saúde que inventam uma falsa febre-amarela num esquema de enriquecimento sujo, que coloca várias vidas em risco.

Sinceramente, Sonhos manchados, mesmo com este título horrível, a soar qualquer coisa de testemunho ou de biográfico (Bata poderia ter optado pelo título Macossa, simples e apropriado), só não venceu o Prémio INCM/ Eugénio Lisboa 2018 porque o autor cometeu algumas falhas. Por exemplo, o exagero da coincidência. A história tem muitas personagens com mesmos sonhos, mesmas dificuldades, perspectivas de vida, afinidades, receios e etc. Aliado a isso, algumas passagens da história são pouco convincentes. É verdade que no chapa fala-se de tudo um pouco, mas parece forçada a passagem em que o cobrador Joaquim, amigo de Gertrudes, ouve no seu mini bus que técnicos da Saúde viajam numa missão secreta para Macossa. Dissemos, anteriormente, que um conjunto de jovens tomam ilegalmente um avião. Pois é, diante de uma tempestade severa, o cenário da aterragem numa pista terra batida, em Macossa, merecia melhor desenvolvimento. A impressão com que ficamos é a de que em alguns momentos a história poderia ter sido mais pausada. Atentamente, observa-se um salto de peripécias brusco do capítulo 35 para 36. Por fim, o equilíbrio do discurso narrativo destoa em alguns momentos. O júri deve ter estado atento a estas questões. Se Bata tivesse evitado estes pormenores, sem dúvida que seria o Prémio INCM/ Eugénio Lisboa 2018, pois do ponto de vista de riqueza da história, imaginação e criatividade, Sonhos manchados, sonhos vividos é melhor que Saga d’ouro, de Aurélio Furdela. Mas também é verdade: parece que Furdela foi mais escritor do ponto de vista da consistência discursiva.   

 

Título: Sonhos manchados, sonhos vividos

Autor: Agnaldo Bata

Editora: Imprensa Nacional

Classificação: 13

 

 

 

Levei mais de um ano a juntar elementos que pudessem suportar a minha reflexão sobre os ataques armados em Cabo Delgado, Norte de Moçambique, até que esta semana a procuradora-geral-adjunta, Dra. Amabélia Chuquela, me deu os últimos subsídios para compor este artigo de opinião, cuja conclusão se baseia na constatação feita no terreno, das três vezes que estive no teatro das operações como jornalista, para além de conversa com várias fontes entendidas na matéria.

Como ponto de partida e para melhor entendimento, sem equívocos, gostava de trazer o excerto da entrevista que a magistrada do Ministério Público deu à STV, à margem do seminário que visa o fortalecimento da capacidade de prevenção e combate ao terrorismo, que termina hoje na cidade de Pemba, na qual disse:

“O que aconteceu nos casos dos indivíduos que foram absolvidos é que os elementos não foram suficientes. Portanto, não foram acareados elementos suficientes para levar à condenação das pessoas. Por isso mesmo que estamos a dizer que é preciso investir, e nós só podemos resolver a questão de Cabo Delgado se começarmos também a apostar e investir nos órgãos que estão aqui no terreno a fazer a investigação, a fazer a prossecução e a fazer o julgamento destes casos. É preciso que o Serviço Nacional de Investigação Criminal seja dotado de meios financeiros, económicos, equipamento que lhe permita detectar e fazer face a este fenómeno. Não se pode combater o fenómeno de ataques em Cabo Delgado de uma forma como nós temos vindo a fazer. É preciso sofisticar, dotar os agentes criminais, os procuradores, os juízes, de elementos que lhes permitam fazer face a esta situação. Estamos a ver um fenómeno que parece que está a surgir assim como que não é nada, mas se não conseguirmos controlar a tempo e não investimos exactamente na prevenção e repressão, este fenómeno poderá alastrar-se para outras províncias.”

Esta é para mim a primeira crítica directa que é feita ao Governa por uma entidade que por natureza defende o Estado – como é o caso da Procuradoria-Geral da República. E da entrevista da Dra. Amabélia, pode-se depreender o seguinte:

1.     Não há aposta no investimento para que os órgãos que estão no terreno façam uma investigação exaustiva daqueles crimes bárbaros perpetrados contra a população. Ou, se houver, pelo menos a crítica aponta para um investimento não à altura da seriedade do assunto. Se calhar seja por isso que há muitos detidos e muitos absolvidos, igualmente, por insuficiência de prova, o que, em linguagem técnica, equivale a dizer insuficiência de instrução do processo.

2.    Parece faltar meios financeiros e materiais para o Serviço Nacional de Investigação Criminal detectar os sinais operacionais dos criminosos para os descactivar antes de fazerem novas incursões. Estamos aqui no campo preventivo e não reactivo das autoridades.

3.    Há um alerta no sentido de que enquanto as coisas continuarem como estão, o fenómeno pode alastrar-se para outras províncias, visto que em Cabo Delgado esses grupos terroristas estão a incubar-se e a levarem a cabo acções terroristas, colocando em causa a autoridade das Forças de Defesa e Segurança do Estado.  

Posto isto, e estando num Estado de direito democrático, onde a liberdade de opinião e de imprensa é um dos princípios basilares, julgo importante discutirmos alguns aspectos de forma objectiva, sem, no entanto, pôr em causa a confidencialidade de assuntos de natureza militar que à luz da Lei de Imprensa configuram Segredos do Estado.

Primeiro, é pertinente salientar que o primeiro ataque a uma unidade policial não de deu em Cabo Delgado, mas sim na vila de Nametil, distrito de Mogovolas, província de Nampula, na madrugada do dia 27 de Agosto de 2017, quando dois indivíduos foram ao comando distrital fingindo querer participar uma denúncia contra um terceiro. Depois de se fazerem ao interior das instalações, tiraram armas de fogo do tipo pistola, mataram o oficial de permanência e feriram gravemente outro agente da polícia. Nesse ataque, roubaram armamento e munições.

Na madrugada do dia 5 de Outubro do mesmo ano, houve quatro ataques armados em Mocímboa da Praia, província de Cabo Delgado: um contra um posto policial em Auasse; o segundo contra uma unidade da Polícia de Protecção de Recursos Naturais (onde roubaram munições e armamento); o terceiro no comando distrital na vila da Mocímboa da Praia e o quarto contra um quartel militar, naquela vila, que na altura parecia meio abandonado.

Quase dois anos depois, a investigação a estes casos mostra-se pouco frutífera, a avaliar pelo facto de os ataques se alastrarem e nunca vimos os cabecilhas dessas incursões detidos, julgados e condenados, e o balanço oficial aponta para mais de 250 pessoas mortas, 130 condenados a penas de prisão maior e acima de 100 absolvidos por insuficiência de provas.

Estes últimos números provam claramente que muitos processos são mal instruídos, se calhar naqueles velhos moldes de prender para investigar, e quando faltam provas, o juiz nada pode fazer a não ser exarar um mandado de soltura ou emitir um despacho de pedido de produção de melhores provas.

Mas o que levaria uma instituição como o Serviço Nacional de Investigação Criminal mandar ao tribunal um processo sem provas? Falta de técnica de investigação ou de meios operativos para o efeito? Que condições o Estado oferece aos agentes desse Serviço para investigarem como mandam as regras?

Quando há poucos anos o Governo decidiu obrigar ao registo dos cartões de telefonia móvel, um dos objectivos era permitir que agentes de investigação legalmente autorizados pudessem ter mecanismos para localizar os criminosos a partir de simples comunicações telefónicas.

Ora, como se explica que em dois anos não se desmantele a rede de criminosos que opera em apenas sete distritos de uma província chamada Cabo Delgado? Colocado de outra forma: qual é a eficiência desse registo de números de telefones celulares? Ou melhor, sem registo do cartão é ou não possível usar esses números e descartá-los de seguida? E se isso acontece, qual é a explicação?  

Um bom piloto é considerado tal pelo número de acidentes que consegue evitar, porque, quando acontece, é, na maioria das vezes, fatal. Aliás, os médicos dizem que quando o organismo começa a ficar com as células CD4 fracas, é preciso começar o tratamento, porque esse organismo está vulnerável a qualquer doença, uma vez que as suas células defensoras foram atacadas.  

Como explicar à nação que militares sejam assassinados com a maior brutalidade? O que está a falhar no concreto? Se calhar seja a seriedade na forma de encarar este conflito.

No início deste mês, acompanhámos notícias de um ataque armado no distrito de Nangade, onde os terroristas assaltaram uma base militar e esquartejaram militares. Esta é uma afronta à autoridade do Estado e deixa desesperada a população que deposita confiança nessas autoridades.

Se no início o conflito se desenrolava em Mocímboa da Praia, Palma, Quissanga e Nangade, agora evoluiu para Muidumbe e Meluco. Como se explica que um conflito localizado, por mais complexo que seja, esteja a levar o tempo que está a levar?

Há muita presença militar no terreno? Claro! Mas será que essa é a melhor forma de combate? Hoje em dia, as guerras são tecnológicas e, se formos a ver, foram contraídas dívidas em nome da segurança do Estado, mas sucumbimos no primeiro teste de resistência. Então, de que segurança estamos a falar?

Olhando ao de Cabo Delgado, pode constatar-se que os distritos de Palma, Mocímboa da Praia, Macomia e Quissanga estão na parte costeira, o que dá uma pista bastante interessante de que provavelmente os insurgentes podem estar a movimentar-se por via marítima. Perante essa hipótese, o que é feito no concreto?

Por outro lado, se dos condenados até aqui existem estrangeiros, como tanzanianos e burundeses, aliado ao facto de o primeiro ataque ter sido em Nampula – a província que tem um grande centro de acolhimento de refugiados –, que trabalho de inteligência do Estado é feito para encontrar alguns pontos que sejam importantes neste conflito?

Enfim, o meu texto tem mais interrogações que afirmações, porque gostava um dia que alguém me desse respostas, tal como qualquer moçambicano interessado na paz quer.  

E mais do que isso, pretendo questionar o papel das instituições que nós próprios como Estado criamos.

Por fim, ao Comandante-chefe das Forças de Defesa e Segurança, gostava de questionar se conhece as reais condições de trabalho dos militares e polícias que estão na linha da frente do combate?

No futebol, quando uma equipa não ganha, o treinador é que é sacrificado. E perante o dilema de Cabo Delgado, quem se deve sacrificar?

 

A riqueza nem sempre vale o alto preço que por ela se paga.

João Salva-Rey

 

Estas coisas de nos encontrarmos com amigos inspiradores valem sempre. Há uma semana foi com o Celso. Apenas dois minutos de conversa resultaram num artigo sobre o premiado livro Saga d’ouro, de Aurélio Furdela. Desta vez, a conversa durou menos tempo – 30 segundos no máximo –, e foi com o meu colega Emídio, um tipo igualmente apreciável. A seguir, conto-vos como o episódio ocorreu.

***

A página do word 2013 que abri no hp permaneceu longos minutos em branco. Poucas vezes isso acontece-me. Geralmente, sento-me diante do computador já com uma ideia sólida sobre o que pretendo escrever. E aí a escrita acontece espontaneamente. Na última sexta-feira à tarde a coisa foi diferente. As palavras passearam distantes de mim. Então, estando ainda na Redacção na qual trabalho, decidi chamar um tipo lúcido para lhe fazer um pedido simples. Foi assim: – Emídio, sugere-me lá uma palavra para que eu inicie um artigo sobre a peça do Mutumbela Gogo em exibição no Teatro Avenida. Naturalmente, antes de se aventurar em qualquer tentativa de resposta, o meu colega fez-me a seguinte pergunta: – Sobre o que trata a peça? Respondi-lhe num ímpeto: – É A história de um homem honesto, um espectáculo sobre um personagem que não se deixa corromper e que… O Emídio não me deixou terminar. De maneira quase atroz, interrompeu-me às gargalhadas, dizendo: – Esquece-me lá, oh Remédios. Se é uma peça sobre um homem honesto eu não sou a pessoa certa para te ajudar. Fim da conversa… e da página em branco.

Mal o Emídio disse-me aquilo, ocorreram-me algumas questões: – Será que o meu colega não é um homem honesto? Ou a honestidade dele está mesmo na humildade de se julgar incapaz de mim ajudar no que lhe pedi? Daí não adveio nenhuma resposta. E nem era suposto. Então resolvi rever o espectáculo do Mutumbela Gogo de memória, o qual, essencialmente, narra a história de Zeferino Fanequisso (Jorge Vaz), que, farto da pobreza, se lança do campo para a cidade grande a fim de buscar melhores oportunidades. No espectáculo, Zeferino Faniquisso é o único homem honesto do universo, por isso um alvo a abater. A namorada/mulher, os colegas, o patrão e a polícia julgam-no um aparvalhado problemático, por não corromper e, sobretudo, por não se deixar corromper. Logo, as suas relações na cidade tornam-se complicadas. Aí entendi tudo. Talvez essa tenha sido a razão do Emídio não querer falar de honestidade, pois referir-se aos honestos, de algum modo, pode implicar citar os desonestos. Na verdade, este é o cenário da peça teatral do Mutumbela. Com os holofotes direccionados a Zeferino, enxergamos os comportamentos, escolhas e receios do personagem, bem como os oportunistas à sua volta no espaço urbano.

Sem rodeios, A história de um homem honesto, adaptada do texto original do autor sueco Henning Mankell, que viveu em Moçambique, é um espectáculo que sugere as razões de a decência estar a tornar-se numa praga no país. Ou seja, se antes as pessoas sensatas uniam-se para combater os corruptos, estes, actualmente, é que se unem para eliminar os decentes. Pelo menos esta é a abordagem da peça que também tem o gigantesco Filipe Branquinho em cena, um dos meus actores preferidos.

Ora, uma das personagens que mais me chamaram atenção na peça foi a mãe do homem honesto (Eunice Mandlate). E justifico. Quando Zeferino deixa a sua aldeia, a mãe, depois de tanto tentar impedir a viagem do filho para a cidade, sem sucesso, obriga-lhe a jurar manter-se íntegro. Conhecendo os vícios da cidade, a velha do campo inventa uma mentirinha de que, caso Zeferino se deixasse levar pela imoralidade, iria magoá-la com fortes dores de cabeça. Isto quer dizer que, embora separados pela distância, mãe e filho estariam conectados. Se Zeferino agisse bem, a mãe seria uma mulher feliz. Se agisse mal, sofreria. Este episódio faz diferença na história, pois mantém o protagonista num determinado percurso – de propósito não digo qual é, mas sempre sugiro. Diante das tentações citadinas, Zeferino ajuda, é aldrabado, humilhado e injustiçado, todavia não perde os seus valores. Continua focado, firme na ideia de sempre agir bem.

Fundamentalmente, há pelo menos duas questões em causa na peça do Mutumbela Gogo. Primeiro, A história de um homem honesto desconfigura a cidade enquanto espaço ético, de convivências autênticas. Partindo de experiências concretas, como as que envolvem os subornos na via pública ou os desvios de fundo do Estado, o espectáculo teatral revela como Moçambique vai-se desintegrando na qualidade de um projecto de desenvolvimento para o benefício dos moçambicanos. E mais, A história de um homem honesto descreve-nos a cidade como o centro dos conflitos, da discórdia, do ódio, da ganância, da hipocrisia e do vale tudo para enriquecer ilicitamente. Todos sujeitam-se a receber luvas em troca de uma ajudinha qualquer, menos Zeferino. O homem honesto é o único que veemente resiste ao enriquecimento abominável, afinal ninguém mais consegue compreender a velha frase bem dita no romance kufemba, de João Salva-Rey: “a riqueza nem sempre vale o alto preço que por ela se paga”. Desde o princípio, Zeferino resiste a pagar ou a receber o que não deve. Logo, recusa como quem combate o vírus por detrás de uma enfermidade que penhora o futuro de gerações de moçambicanos.

Em segundo lugar, num cenário asqueroso a envolver os donos da cidadania, como calha em Hinyambaan, de João Paulo Borges Coelho, Mutumbela Gogo conduz o seu público para onde resiste a esperança de Moçambique: o campo, por lá a palavra “moral” ainda fazer algum sentido. A mãe de Zeferino é a síntese disso. Daí, mesmo sem marido, educar o único filho para ser gente, muito acima da presunção.

Esta versão d’A história de um homem honesto não é dos grandes espectáculos do Mutumbela Gogo – entretanto ninguém perde alguma coisa por ver. Pelo contrário, ganha por se conectar com a realidade. Quase sem adereços em cena, a obra centra-se mais na mensagem a transmitir em “detrimento de tudo o resto”. Zeferino é o verdadeiro centro da peça, o que permite Jorge Vaz destacar-se como quiser. O mesmo não acontece com a personagem Júlia (Silvana Pombal), mulher de Zeferino, ou mãe de Zeferino (Eunice Mandlate), que, para mim, deixaram escapar algum brio na performance, mesmo sem terem actuado mal. Também achei a encenação algo pouco surpreendente, se quisermos, calculável. Como já vi várias peças do Mutumbela e li e ouvi muitas histórias sobre os movimentos campo-cidade, o deslumbre foi-se escasseando. Tal afirmação não faz de A história de um homem honesto um péssimo trabalho. Longe disso. É espectáculo razoável ou então necessário.

Seja como for, o exercício concebido como que a influenciar atitudes tem a virtude de ser uma chamada de atenção pontual, de modo a penetrarmos no âmago do país, de olhos abertos, e de nós próprios como condição para recuperarmos algo perdido lá atrás.

 

Título: A história de um homem honesto

Autor: Mutumbela Gogo

Teatro

Classificação: 13

Coube-me a tarefa de apresentar três estudos, cujo denominador comum entre os mesmos é a discussão em torno do cânone literário em Moçambique ou do cânone literário moçambicano. Confesso que me senti como alguém a quem pregaram uma partida, dada a responsabilidade que o exercício exige. Mas porque a apresentação de livros pressupõe um exercício de aprendizagem, decidi não perder a oportunidade de ficar a saber alguma coisa sobre um tema tão importante quanto controverso para o nosso sistema literário como é a questão do cânone. Não sei, por isso, se vou, de facto, apresentar os livros, ou se apresento as inquietações que estes despertaram em mim, ou ainda um pouco das duas coisas.

Devo começar, para fechar esta introdução, com a leitura de duas formulações trazidas em dois dos livros e que, quanto a mim, evocam outro debate, surgido, pelo menos, nos anos 40 do século passado e que viu registado na Imprensa da década de 80 o seu momento alto: falo do debate sobre a nacionalidade literária, no qual a Professora Ana Mafalda Leite foi uma das protagonistas. Mas então que formulações são essas, evocadoras desse não esquecido debate? Refiro-me ao facto de Vanessa Pinheiro, no título do seu livro, falar do […]Cânone Literário em Moçambique, e das três autoras, no livro que organizam, falarem do Cânone Literário Moçambicano.

Se, no caso do cânone literário em Moçambique podemos supor que não é exclusivamente do cânone gerado pelo sistema literário moçambicano que se pretende falar, mas sim, eventualmente, da manifestação de outros cânones com que o ambiente cultural moçambicano manteve contacto, como é o caso do cânone português, já no segundo caso, do cânone literário moçambicano, parece ficar claro que é acerca do cânone gerado pela literatura moçambicana como sistema que se pretende abordar, ou seja, um cânone gerado da relação autor-obra-leitor, como propõe o teórico brasileiro Antonio Candido, citado pelas autoras. Estas formulações constroem, como o fizeram outras do já referido debate (poetas de Moçambique, poesia moçambicana, literatura em Moçambique) um espaço de ambiguidades teóricas e práticas provavelmente insolúveis e que, por isso mesmo, exigem tomada de posições claras e fundamentadas de quem pretenda dar uma resposta à problemática do cânone. Ao ler estes livros, e sobretudo no que ao cânone diz respeito, fiquei com esta sensação, a sensação de estar perante um terreno movediço, mas, ao mesmo tempo, atraente.

 

Primeiro afloramento

Comecemos então com os Ensaios Teóricos e Estudos Sobre Literatura Moçambicana, de Ana Mafalda Leite. Ao lermos a nota que a autora coloca para abrir o livro, percebemos o iminente contacto, tal como defendem Wellek e Warren (1949), com um estudo sistemático e integrado da literatura moçambicana. De facto, ao lermos o livro, entendemos que a autora nos apresenta um estudo sobre a literatura moçambicana a partir dos três domínios recomendados por Wellek e Warren, a saber: o teórico, o crítico e o histórico. É verdade que, tal como estes dois autores avisam, estes domínios, não sendo necessariamente exclusivos entre si, podem e devem complementar-se, seja qual for a perspectiva de análise dominante, se teórica, crítica ou histórica. Destacamos, entretanto, o facto de na obra de Ana Mafalda Leite haver uma intenção declarada de os abordar de forma particular, facto que não deixará de atestar a longa experiência da Professora no estudo da literatura e da literatura moçambicana, como aliás já fizemos referência.

Ensaios Teóricos e Estudos Sobre Literatura Moçambicana é um livro dividido em duas partes. A primeira, teórica, faz uma espécie de dissertação sobre as teorias pós-coloniais. A autora aponta as controvérsias criadas pelas diferentes designações do termo «pós-colonial», muitas vezes colocadas entre os extremos epistemológico e cronológico. Ou seja, há uma confusão gerada pelo termo se pensado, na esteira de Leite (2013), como ideia que se refere aos efeitos culturais da colonização, independentemente de qualquer marco cronológico, e, em contrapartida, como termo que procura demarcar as literaturas surgidas de países recém-independentes, como é o caso da literatura moçambicana. Nesta parte do livro, coloca-se também a questão da relação entre o termo «pós-colonial» e o domínio de estudos literários designado estética da recepção, considerando o movimento da Globalização, que tende a rasurar o sentimento local. Esta parte do livro aborda, ainda, a relação entre a pós-colonialidade e os modelos críticos baseados em representações orais. A literatura oral é também aqui discutida como um factor importante para se (re)pensar a questão do cânone. A relação, os contactos entre a ficção, a História e a Memória são também abordados nesta parte do livro.

A segunda parte do livro de Ana Mafalda Leite trata da História da literatura moçambicana. É uma questão ainda não resolvida. A autora evoca Almiro Lobo e Francisco Noa, outros autores que se têm debruçado sobre a matéria. É neste diálogo entre o seu próprio trabalho investigativo e o de outros autores, que a autora sugere alguns tópicos para a escrita da história da literatura moçambicana, nomeadamente:

  1. O papel do missionário João Nogueira e a literatura de viagem.
  2. A introdução da tipografia, em 1854.
  3. A literatura surgida do contacto histórico com outros sistemas literários, como é o caso da literatura portuguesa.
  4. Os manuscritos sobre Moçambique, enquanto contributo da Literatura de Viagens.

Como dissemos, a obra de Ana Mafalda Leite é também analítica, debruça-se sobre autores já canonizados, como são os casos de Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White e outros autores que, quanto a nós, poderão fazer parte do cânone se forem integradas na equação da canonização outras variáveis, conforme nos dizem os ensaios de Artur Minzo, Sara Jona, Aurélio Cuna, Vanessa Pinheiro e Giulia Spinuzza. São esses autores Rui Knopfli, Filimone Meigos e Adelino Timóteo. De qualquer forma, ao abordar estes autores, Ana Mafalda Leite realiza umas das variáveis evocadas para a canonização de um autor, os estudos de recepção. E, nessa variável, poetas como Rui Knopfli e Filimone Meigos não são avaros de um olhar especializado sobre a sua produção. Refiro-me, por exemplo, aos estudos do ensaísta Francisco Noa.

A segunda parte do livro de Leite trata ainda de novíssimos autores que este novo século deu a conhecer, reflexo do dinamismo editorial que se assinala, pese embora Vanessa Pinheiro considere essa dinâmica ainda fraca, e com razão, se quisermos comparar com outros sistemas literários. É nossa convicção que a atenção que Leite dedica a esta geração, com particular destaque para Hirondina Joshua e para a presença da voz feminina na poesia moçambicana, indicia um gesto que, decerto, se prolongará no futuro. De resto, não é novidade este interesse por parte da autora em relação às novas gerações de escritores moçambicanos: Chagas Levene e Celso Manguana são alguns dos autores já tratados pela autora noutras abordagens. Todavia, esta geração, à qual apelido de Geração XXI, permanece candidata ao cânone. Trata-se, naturalmente, de uma candidatura, pois a sua canonização não depende apenas das análises que sejam feitas, como veremos adiante. Adivinho, entretanto, que o trabalho teórico, analítico e de enquadramento histórico que Leite nos oferece é um contributo valioso para se (re)pensarem as lógicas e utopias do cânone literário moçambicano, na medida em que promove um aparelho teórico que, equacionando a relação que a nossa literatura escrita estabelece com outros sistemas literários e com o nosso universo da oralidade, procura construir uma ancoragem, uma concepção teórica, crítica e histórica ajustada à ficção moçambicana. É preciso dizer, entretanto, que a autora não prescreve nada; pelo contrário, há aqui um processo de reflexão contínuo em que os textos literários são vistos, na esteira de Ana Maria Martinho, como fenómenos culturais intensivos, isto é, como modeladores, eles próprios, no jogo da intersubjectividade, da sua própria natureza, sua teoria, sua história e sua crítica. De outra forma, diríamos que, ao lermos o pensamento de Ana Mafalda Leite, neste livro, ouvimos a voz reorientadora de Lévi-Strauss ao dizer que não são as pessoas que falam através dos objectos, mas estes que falam através das pessoas.

Segundo afloramento

Vanessa Pinheiro apresenta-nos o A Formação do Cânone Literário em Moçambique. Trata-se de um livro dividido em três partes. Na primeira parte, a autora representa o cânone como produto da História das sociedades e, por via disso, reflexo de valores e ideais – políticos, ideológicos – variáveis ao longo do tempo. Ou seja, cânone que se constrói e desconstrói política e ideologicamente, é determinado por “representações socioculturais que lhe são subjacentes do que no texto propriamente dito”, razão por que, no sistema literário moçambicano, como decerto acontece noutros sistemas, temos escritores esquecidos, por não se ajustarem a essas determinações históricas. Mesmo tratando-se da sua ausência (do cânone), esta deve ser entendida como uma construção sociocultural, isto é, sistémica. Ora, julgamos que isto equivale a dizer que o cânone existe à revelia da própria vontade política, é condição existencial de qualquer sistema literário consolidado ou em vias de consolidação, como é o moçambicano. O facto de Moçambique não ter ainda um Plano Nacional de Leitura não significa que o cânone não exista, obviamente, mas que esse cânone não é revisitado, questionado, reconstruído, penso que estamos todos de acordo. Sara Jona, por exemplo, mais adiante, ajuda-nos a perceber que o cânone estabelece uma relação umbilical com o projecto de Nação que se pretenda criar, com os níveis de desenvolvimento humano que se pretendam atingir, enfim, com o tipo de moçambicanos que pretendemos ser neste século de muita perplexidade. Percebe-se ainda, das abordagens de Vanessa Pinheiro, que o cânone acaba por corresponder a um processo natural de sucessão entre antigos e modernos, velhos e novos, imponham-se os entraves que se quiserem impor.

Depois de abordar, genericamente, as características do cânone, Vanessa Pinheiro volta o seu olhar para o cânone africano e obriga-nos a pensar num cânone que se funda a partir da representação das tradições. Trata-se aqui da valorização das identidades das nações novas. José Craveirinha, num texto em que acusa Rui Knopfli de constantemente deitar-lhe à cara o seu Mozart («Mozart e Fani Fumo», de 1970) diz-nos o seguinte: «E no entanto / eu compreendo ao longe Mozart / mas sinto mais o que me diz Fani Fumo / e o que Miriam Makeba canta. // E / Constantemente / entro em diálogo com a magia dos tambores. / E tu?»

Como o poema de Craveirinha pode sugerir, definir o cânone moçambicano passará, como já o tinha referido Ana Mafalda Leite, por lançar o olhar sobre o universo da nossa oralidade, lançar o olhar sobre as formas da literatura oral enxertadas na literatura escrita ou vice-versa. Este ideal de resgate, entretanto, tem estado a dinamizar uma incursão pelo exotismo vendável na Europa e noutras partes do mundo, quase mesmo beirando o «exotismo de fachada», como o próprio Rui Knopfli classificaria, em 1974, a incursão pela cor local destituída da alma e da vibração dos seres e lugares representados.

A nova geração de escritores moçambicanos tem estado a olhar para esta questão com alguma desconfiança, destacando que esse ideal identitário tradicional quase extremista acaba por comprometer o valor estético da obra literária, numa alusão insistente e valorativa em relação à forma de escrita e ao tratamento dos grandes temas da humanidade. É por essa via que esta geração se mostra mais preocupada com um cânone internacional onde ela se possa situar e ser aceite universalmente, e, para o efeito, vai-se credenciando pela referência a grandes nomes da literatura dita universal, quer nos textos, quer em entrevistas ou simples opiniões. Trata-se, enfim, de um velho debate que a construção do cânone deve acautelar, sobretudo se se considerar um sistema literário em renovação, como é, sem dúvidas, o caso do moçambicano.

Vanessa Pinheiro debruça-se também sobre a formação dos sistemas literários em Angola e Moçambique, sinalizando o livro Espontaneidades da Minha Alma, de Maria Ferreira, como marco, no século XIX, da formação do sistema literário angolano. Em Moçambique, já no século XX, a autora destaca o poeta Rui de Noronha. O papel da Imprensa como instrumento de canonização também é abordado pela autora, tal como o fazem, como veremos, Aurélio Cuna e Ubiratã Sousa. Vanessa Pinheiro cita autores como Noémia de Sousa, Marcelino dos Santos ou Kalungano, José Craveirinha, Rui Nogar, Orlando Mendes, cujos processos de canonização se iniciaram na Imprensa.

A questão da transnacionalidade também interessa a autora. Para tal, ela analisa as obras de Rui Knopfli, Mia Couto e Ana Mafalda Leite para afirmar, com Rita Chaves, que «no interior da engrenagem colonial [o escritor está condicionado] a enfrentar a fatalidade de viver entre dois mundos». Esta afirmação obriga-nos a reequacionar a questão do cânone, tendo em conta sobretudo o que Lúcia Liba Mucznic chama de «um certo sentimento íntimo». Adivinho que este sentimento seja um elemento integrador, independentemente do debate sobre a questão da nacionalidade literária ou de todas as questões extraliterárias que para esse debate concorrem, como a cor da pele, o lugar de nascimento, a filiação política, etc.

À segunda parte do livro, Vanessa intitula «A voz dos autores». Nela perpassam entrevistas com escritores já canonizados e outros que não ou ainda não. E as questões são várias e diversificadas, como por exemplo:

  • o sentimento de que Moçambique ainda vive um processo de descoberta, de autoconhecimento e de busca de um projecto como Nação;
  • o sentimento de que a internacionalização da obra/autor moçambicanos, no quadro da Globalização, se faz numa relação tensa com o projecto de imaginar, tradicionalmente, a Nação;
  • a acusação feita a Portugal e Brasil como países que irradiam todo o comércio externo ligado à literatura produzida pelas ex-colónias africanas falantes do Português e o desconhecimento dos autores da CPLP entre si – seus textos – assunto discutido no Festival de Literatura Resiliência 3, cujo lema era exactamente «mobilidade no espaço da CPLP»;
  • a questão da canonização: que critérios consagram um autor, visto que há escritores que pouco publicam e continuam canónicos: o cânone é dinâmico ou estático, como é que uma obra entra, se mantém ou sai do cânone?
  • o tom acusativo à falta de uma política do livro e um plano nacional de leitura: não se faz um cânone sem distribuição, divulgação e promoção do livro e da leitura;
  • o tom acusativo às editoras, pelas suas escolhas, quantas vezes questionáveis: em rigor, não existe um cânone de autor, mas de obras de autores: trata-se de reposicionar o que interessa quando se fala de literatura, as obras fundamentalmente e não os seus autores.

A terceira parte do livro intitula-se “O outro lado do cânone”. No nosso entender, o outro lado do cânone podem ser muitos lados, como por exemplo, o lado perverso de uma crítica demissionária em relação ao que a nova geração de escritores moçambicanos vem produzindo: uma geração a contar com mais de dez anos de publicação e a quem verbalmente se lhe reconhece o mérito, não só como depositária das gerações anteriores, mas também como garantia da manutenção da marca de qualidade que, de uma forma geral, se reconhece à literatura moçambicana. Este reconhecimento é feito inclusivamente internacionalmente.

Este lado de um silêncio perverso da crítica, entretanto, deve ser entendido também como a incapacidade sistémica de produzir mais e novos críticos: cada cânone produz os seus teóricos, os seus críticos, ou, dito de outra forma: tendencialmente, os críticos de determinado período histórico produzem o cânone respectivo. É desejável que o crítico literário adopte uma perspectiva mais diacrónica no seu amoroso exercício de falar sobre a nossa literatura, mas mais desejável ainda é que a nova geração de escritores produza também os seus teóricos. Lembremo-nos que o cânone é também uma questão estética, de gosto e estes não se discutem; mas podem ser ensinados.

Penso que é preciso, isso sim, questionar as instituições ligadas ao ensino do jornalismo, se estão de facto a formar jornalistas para as artes: a «Gazeta de Artes e Letras», da revista Tempo, é um exemplo de provas dadas de que é possível falar das artes moçambicanas, discuti-las. Estávamos então na década de 80, tempo em que se buscavam referências para a ideia da moçambicanidade e então produziu-se o cânone que temos hoje – para recordar, uma vez mais, o papel da Imprensa. Vanessa Pinheiro traz-nos, neste outro lado do cânone, Amosse Mucavel, Mbate Pedro, Andes Chivangue, Sangare Okapi e Hirondina Joshua. Será esta a antecâmara dos canonizáveis? Espero bem que sim.

Terceiro afloramento

O livro Seis Reflexões em Torno do Cânone Literário Moçambicano, organizado por Ana Mafalda Leite, Sara Jona e Vanessa Pinheiro discute a questão das variáveis a levarem-se em conta na formação do cânone. Efectivamente, o cânone literário moçambicano é visto como produto do ensino: aí, deverá promover a diversidade cultural moçambicana, o que, segundo Sara Jona, não acontece. Digamos que entraríamos aqui para a função pedagógica do próprio cânone. Entretanto, Artur Minzo entende que é possível construir o cânone virando a atenção para a sua função estética, considerando os diferentes períodos, épocas, gerações literárias, movimentos ou correntes ideológicas ou filosóficas. É interessante notar que Minzo admite a convivência, na escola, de textos canonizados com os não canonizados, uma relação difícil entre o velho e o novo, entre o tradicional e o moderno, facto que denota que o cânone se constrói a partir de um processo natural e lento de conhecimento e substituição pelas instâncias legitimadoras.

O cânone literário moçambicano também pode ser visto como produto da Imprensa: Aurélio Cuna justifica que a falência do processo de canonização radica na demissionária actividade jornalística. Este é também o enfoque de Ubiratã Souza. Hoje, escasseiam os suplementos culturais, as páginas e revistas literárias de qualidade, diga-se. O mundo da Internet em que vivemos acaba, ele também, por substituir as instâncias de legitimação por um hiperindividualismo que concebe, produz e difunde conteúdos que se pretendem esteticamente literários, mas falhos de um olhar esteticamente educado e experiente. Se calhar, com a Internet ou mundo virtual, entramos para um processo de pseudocanonização, mercê da visibilidade instantânea e da suposição do mérito.

Vanessa Pinheiro, entre outros aspectos, questiona de onde vem o discurso da canonização, se de dentro ou de fora. Isto é particularmente interessante porque pode significar que há autores canonizados entre-lugares e não em Moçambique, autores reconhecidos em outros quadrantes e não em Moçambique, basta nos lembrarmos que uma autora como Paulina Chiziane foi inicialmente ovacionada fora e só depois em Moçambique; aliás, já diz a sabedoria popular que “santo de casa não faz milagres”. Haverá algures, então, um cânone literário internacional respeitante à literatura moçambicana e à procura do lugar de poiso. Esta espécie de cânone diaspório resulta, para a autora, de outros factores internos de Moçambique que é preciso rever: a rede do mercado livreiro – temos livrarias a fecharem e não a abrirem –, a dinâmica editorial deficiente – fraca distribuição do livro e existência de poucas editoras, entre outros factores.

Giulia Spinuzza chama a atenção para o facto de o cânone da literatura moçambicana estar a ser construído como elemento da construção da Nação, ou seja, muito arreigado ao passado colonial em relação ao qual é necessário desmistificar ideológica e politicamente: é preciso exorcizar as mentes, afim de não permanecermos ou cairmos nas malhas de uma espécie de canonização maniqueísta.

Obrigado!

Xindau chegou, devagar, silencioso, como o ar antes de ser vento. Xissena, num gesto feminino, puxou a capulana de pouca cor e cobriu os joelhos. Estava sentada, entre o sol pardo e o chão resignado, sobre uma esteira de palha antiga, único bem que pôde resgatar da fúria recente do vento, das águas e dos espíritos, com os filhos ao colo, impotente às chapas paredes da sua casa a serem sentenciadas pela tempestade. 

O chão gretado estalou. Eram as lascas quebradiças de terra a cederem às pisadas de Xindau. Xissena percebeu a presença mas não olhou para trás. Deixou-se estar na esteira, o olhar no chão, no entrelaçado da palha antiga, na mosca sobre o prato metálico vazio, na sombra fria do homem. 

Os filhos cederam ao olhar da mãe e afastaram-se como as águas deveriam ter recuado, no dia em que, com as crias e a esteira ao colo, ela ancorou-se num galho a gritar rezas insultuosas aos deuses.
Levantou-se, deixou o cansaço no chão. “Uma mulher não se cansa, minha filha”, ecoou o conselho da mãe. O joelho estalou com o esforço guindaste de erguer o corpo, a coluna chiou quando se baixou para recolher a esteira. Deslizou para um espaço entre estacas firmes, que antes das cheias fora o interior da casa. Estendeu a esteira sobre as chapas para a reconstrução. Deitou-se, sem olhar para o homem, não na posição de se dar, mas na de se deixar levar.

Ouviu-se o som do desabotoar urgente, da fivela do cinto, dos atacadores e da ganga das calças a friccionarem as pernas até aos joelhos. Xindau deitou-se sobre Xissena. Ela não sentiu o peso do homem, sentiu arrepios quando sombra fria se aproximou, com a lentidão voluptuosa das nuvens escuras que, naquele dia, trouxeram o vento que trouxe a chuva que veio com as águas do mar que molharam tudo.  O coração saltou. Apetecia-lhe levar a esteira e as crianças ao colo e fugir. Xissena fechou os olhos e o rosto.

Aos poucos inundada de suor como as águas inesperadas que vieram com a tempestade. Os dedos sulcavam desesperadamente o chão da esteira. O corpo balançava. As chapas de zinco sob a esteira chiavam: txim!, txim! Sob a tempestade Xissena corria, nadava, gritava, engasgava o grito: socorro!, mas não chorava, não fossem as lágrimas aumentar as águas muitas da inundação.

Quando o vento, a chuva, o mar e o rio, amainaram a fúria, as chapas deram o último demorado gemido: txuiiiim! Xindau desfaleceu, ofegante, sobre o ombro travesseiro de Xissena. 

Xindau abotoou as roupas que se colavam ao corpo húmido. Vestiu o colete da instituição que cuida das vítimas. Empurrou com o pé, para perto do corpo deitado de Xissena, os sacos trazidos há pouco. Ela reconheceu o óleo, a farinha, o sabão, outras embalagens de coisas urgentes e a escrita: “Gestão de Calamidades”. Puxou a capulana, cobriu-se, ficou deitada a ver a sombra de Xindau, abotoando-se, a afastar-se como as águas e o vento pós estrago recolheram para o rio… para mar. 

Xissena cobriu-se com a capulana. Xindau foi-se embora, devagar, silencioso, como o ar depois de ser vento.    

 

Estreou-se em livro próprio em Espelho dos Dias. Volvidos 33 anos, conta já uma dezena de livros. Todos a marcarem o traço de um poeta que quer conjugar todas as possíveis funções da poesia, sendo profundamente influenciado pelo tempo que vive

Há uma ilustração, assinada por Gemuce, em Muery: elegia em Si maior (Cavalo do Mar, 2019) que pode ser vista como uma metáfora da carreira literária de Armando Artur. O risco começa ensombrado, como se fosse um vulto, ganha contornos de esboço, expressão melancólica, depois é tingido de outras cores, menos tristes, e há um feixe de luz, de sorriso. É no processo destas quatro páginas, que nos faz chegar à ilustração definitiva, que está a metáfora de um artista sempre a procura do traço certo, do melhor verso, tingir de vida ou de morte a pena para o melhor poema, melhor livro de sempre, como se fechasse os olhos para todos os outros, e quisesse, a cada novo livro, superar todos os outros livros próprios.

Espelho dos Dias (AEMO, 1986) foi lançado em um tempo que ainda se celebrava a literatura. O prelo ainda expelia 3000 exemplares por obra. Agora, as editoras tiram em média entre 200 e 500. Estes números parecem levantar a bandeira do fim de uma época de leitores e com eles também de escritores. Jurgen Habermas já havia avisado numa entrevista ao El pais que não pode haver intelectuais se não há leitores. Onde se lê intelectuais se lê também escritores, jornalistas ou qualquer artista que faz da palavra um exercício de pensamento, de reflexão, de contestação, de expiação, de exorcismo, de catarse.

 A poesia de Armando Artur é sobre isso, mas se o quisermos colocar em um tempo, não há-de ter poiso fixo, é um pêndulo sempre em movimento, a apontar ao passado, presente, futuro.

Moçambique ainda aprendia a caminhar pelos próprios pés, vivia a euforia da vida em nome próprio, quando eclodiu a guerra-civil. Outra vez, o desencanto, almas angustiadas, outra vez seria preciso viver de futuro. É este estado de alma que captamos no primeiro livro, mas também nos outros, com os contextos que se lhe seguiram e impuseram. Afinal, o artista não se faz fora do seu meio, do seu momento/tempo, do estado de alma de uma sociedade de que também faz parte. Por isso há em Armando Artur, quando olha para fora, e muitas vezes olha para fora, aquela poesia socialmente comprometida, que vale também por ser emocional, reflexiva, que se adensa no ritmo e nas imagens, a negar apenas a arte pela arte. Porque entre o dilema de arte pela arte ou uma poesia politica e socialmente engajada, Armando Artur coloca-se numa ménage à trois ou à quatre, o autor quer conjugar todas as possíveis funções da poesia, a estética, a social, a espiritual, colocando achas na fogueira que ajuda a ultrapassar o frio da noite, de Deus, e ajuda a chegar a um novo dia. “é urgente inventar/novos atalhos/acender novos archotes/ e descobrir novos horizontes”, (pág. 44). E o poeta, o artista, podemos ler nas entrelinhas, é o cicerone nesta romaria, como se anunciou em Zambezia, 2061, de Alain Kamal Martial, com Lucrécia Paco.

 O sujeito poético na obra arturiana, que talvez não pareça distante da pessoa, como se fossem faces da mesma moeda, o mesmo que se diz sobre Sophia de Mello Breyner, tantas vezes invocada por Armando Artur, sonha, incentiva a sonhar, ajuda a sonhar. “As manhãs sobem/ como um grito de esperança”.

A cada livro, sem intervalos constantes, porque – ele mesmo disse-o um dia – não escreve a pensar exactamente num livro, o poeta atesta que o homem é o barro do tempo, é moldado pelo contexto. Não se trata apenas de reflecti-lo como se fosse o poema uma sala de espelhos, mas de olhar o homem dentro destes contextos. O autor acompanhou os sonhos que animaram a luta, o desencanto de uma nova guerra, as mortes, muitas mortes, outra vez a esperança e foi neste tinteiro que colocou a pena, sempre com o homem – o antigo e o novo – em linha, interpelando-lhe a conduta, exemplo maior é Os Dias em Riste (AEMO, 2002). A poesia de Armando Artur, como notava Ana Mafalda Leite, parece também viver deste compromisso conciliatório sobre a conduta humana, de que a temporalidade se investe.

O “eu” em Armando Artur é uma confluência de muitos “eus”, que se tornam “nós”, a tentar buscar o real, o essencial do ser humano, algumas vezes raiando o filosófico, questionando o lugar do homem na sua dimensão singular na órbita da nação humana. “Quando digo eu/ Somos nós todos num só/Porém em mim próprio. /Pois sou mais ou menos igual/Ou diferente do próprio eu.” (Artur, 2007: 61).

E o tempo, enquanto manhã, tarde, noite ou enquanto presente, passado, futuro, quase sempre presente na poética arturiana, serve para dizer sempre mais do que isso, é sempre uma metáfora por escavar, o mesmo acontece-se-lhe com a natureza. “Amanheceu. Dia brilhante./Oferenda divina. Urgência de re-partir/Todavia chove dentro de mim.  (Copiosamente!)” (Artur, 2007:34).

Armando Artur sempre estabeleceu relação com outros artistas, do seu tempo ou os que há muito já haviam reformado da pena e da vida. Esta “interpelação”, ora era feita em epígrafes, ora em dedicatória, ora em títulos, mas algumas vezes deixando que o leitor as ausculte.

(…) A poesia está na vida, / nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos, /(…) A poesia está na luta dos homens,/está nos olhos abertos para amanhã.” São versos de Mário Dionísio, poeta português, que em muito dizem também da poesia de Armando Artur.

Entre o primeiro e o último livro de Armando Artur volveram-se 33 anos, 8 obras entre eles, entre eles também já se anunciava a ideia de poema-livro, Os dias em riste (AEMO, 2002) e no coração da noite (Texto Editores, 2007) são dois exemplos; a reinvenção da pedra (Cavalo do Mar, 2018) está ainda mais próximo desse registo. Mas Muery: elegia em Si menor, talvez também porque o género pede, esta ideia está ainda mais patente. É um livro que pode ter começado a ser escrito em As Falas do Poeta (Texto Editores, 2014), com o texto ‘Estes dias sem ti Milena’, que acaba, de qualquer das formas, sendo uma ante câmara desta elegia, um monumento a tragédia que é a vida em contra-mão de toda a esperança que apregoamos.

 

 

Salvar a história, seja onde for, impõe a liberdade
de escolher ser livre ou sujeitar-se ao sacrifício.
Adelino Timóteo

Há dias encontrei-me com um velho amigo, que me perguntou: “então, José, e a crítica a Saga d’ouro? O que achaste do livro?” Bem, o Celso, o velho amigo, já havia lido a obra distinguida com o Prémio INCM/ Eugénio Lisboa 2018, no entanto, ainda assim, queria saber qual era a minha opinião sobre o novo romance de Aurélio Furdela. Bem, a primeira coisa que me ocorreu foi: “como este tipo sabe que li o livro?”. Na verdade, naquele mesmo dia, eu acaba de terminar a leitura, e, portanto, tinha o que lhe responder. Fi-lo de forma fragmentada, afinal sempre há conversas predestinadas a durar dois minutos do máximo. E se descontarmos o tempo da saudação, da pergunta – o Celso é sereno: fala muito vagarosamente –, devo ter respondido nuns 37 segundos. Ao fim desse período, cortei a conversa e o ensaísta foi exercer o jornalismo. Mas ficou a promessa, responder-lhe nesta coluna: “Outras margens”. Então, cá vamos nós.

Camarada Celso, conforme disse-lhe há dias, naquele encontro instantâneo, apreciei o livro do Furdela. Sinceramente, surpreendeu-me do ponto de vista do enredo e, principalmente, do discurso narrativo. Acho que estava à espera de outra coisa. Saga d’ouro está um livro bom de se ler, simultaneamente suave e complexo. Deve-se ler com muita concentração, sobretudo porque as personagens são relativamente parecidas e, como têm nomes particulares, esses diferentes de José ou Angélica, muitas vezes, até confundem.

Como bem sabes, camarada, afinal terminaste a leitura antes de mim, nestas 129 páginas Aurélio Furdela conduz-nos ao presente da história dos moçambicanos – cidadãos de África e do mundo –, por via do passado. Ao proceder assim, o autor vai buscar algures um mambo, soberano do Estado de Mwenemutapa, ressuscitando-lhe, dando-lhe uma nova oportunidade de ficar para história, quiçá, como referência de alguma coisa boa. Entretanto, GatsiRucere, o protagonista deste romance histórico, desobedece o seu criador, teimando em vestir a pele de vilão que tão bem assenta nos heróis do antigamente. Esses que pegaram em armas? Sem dúvidas.

Nota-se que foi um exercício muito árduo este de um ficcionista também armar-se em historiador e desbravar ambientes agrestes, nos quais, eventualmente, inicia muito do que hoje nos caracteriza, a nós, mais uma vez, os moçambicanos cidadãos de África e do mundo.
Ao reconduzir-nos lá para as bandas do Mwenemutapa, unindo pesquisa e criatividade, inclusive com emprego de um jogo anacrónico bem apropriado – veja-se, por exemplo, a passagem em que a tão disputada Manyara, preocupada pelo seu querido Mudzingaze, aproxima-se ao pai de criação dele, Folofanye –, Furdela reedifica os bastidores do poder, a partir dos quais lança vários questionamentos sobre o sentido de pertença a um propósito ou de lealdade a uma causa. Para o efeito, coloca três forças a disputarem as lancinantes minas de ouro: GatsiRucere, Matuzianhe e os ardilosos portugueses. Claro que aí não falta esse misto de feitiçaria e tradição que nos colocam numa lengalenga enquanto tentamos compreender a origem dessas forças anormais muito normalizadas. Importa mesmo, camarada Celso, que chegamos aonde o escritor pretende: às dimensões de um personagem narcisista.

A propósito de narcisismo – segundo a mitologia grega, que deriva de Narciso, jovem que se apaixonou pela sua própria imagem, tendo-se suicidado devido a impossibilidade desse amor poder realizar-se –, este é o termo que caracteriza GatsiRucere, pois bem sabes, por Freud, na Psicanálise, a palavra foi introduzida para se referir à fase inicial egocentrista do desenvolvimento da criança. Por analogia a estas duas vertentes, mitológica e psicanalítica, logo percebe-se, GatsiRucere é um narcisista à imagem de muitos chefes do presente, os quais muitas vezes julgam ser à medida de tudo, do conhecimento, da inteligência, daí a arrogância de se julgarem legítimos produtores de oportunidades e destinos.

GatsiRucere é uma boa proposta para repensarmos a importância da liberdade quando esse direito parece ser posta em causa pelos opressores, inclusive por aqueles que se escondem na democracia, como diria George Orwell, uma forma bonita de dizer ditadura.

Portanto, o narcisismo de GatsiRucere é um vício, uma praga que se vai alastrando um pouco por todo lado e sectores socias, de onde a prepotência e a presunção são mecanismos incapazes de abafar a incompetência de liderança.

No livro, camarada Celso, e isso é o que mais interessa, chamaram-me atenção as práticas de um protagonista que mata ou manda matar, semeia ódios ao invés de esperanças, desterra para não perdoar, e oprime ao invés de amar. Aliás, quando o afecto muito raramente manifesta-se, o próprio GatsiRucere tece algumas cogitações para o aniquilar, pois, para a sua mesquinhice, tudo à sua volta existe para o satisfazer.

GatsiRucere é o centro do universo. Como Narciso, a sua queda sempre iminente é antecedida de um amor próprio exacerbado, sem partilha. Então, para se manter no trono, o nosso anti-herói não hesita em usar a velha técnica dividir para reinar, colocando, no meio da divisão, Manyara a prémio. Mudzingaze e Bengo são os objectos dessa luta, por terem sido impingidos pelo mambo a uma missão fatal. Com isso – como é frequente em Adelino Timóteo –, o amor dissipa-se, nessa circunstância e noutra em que o feiticeiro Rumbindzai é atraiçoado por GatsiRucere, vendido aos portugueses que o arrancam da sua terra para lhe atirarem ao Brasil. Consequência: as esposas do polígamo ficam sem quem as satisfazer o desejo, criando-se aí qualquer coisa de hilariante, bem descrito, embora breve.

A descrição é uma técnica, neste Saga d’ouro, que introduzi o leitor num universo que lhe é distante. O autor tinha mesmo de manter o cuidado de o situar de múltiplas maneiras, conciliando o vocabular e os contextos que lembram a época de GatsiRucere com a necessidade de manter a história actual. Furdela conseguiu isso. Mas, tendo melhorado muito em relação ao último livro dele que li, As hienas também sorriem, “pecou” em três coisas – e tu já deves imaginar, ó Celso, que és muito atento a essas questões: primeiro, poderia ter explorado com maior profundidade o perfil das personagens, inclusive do protagonista. Segundo, o fim… Saga d’ouro inicia e evolui de maneira que prende o leitor. O enredo, a lembrar-nos muito Ualalapi e As mulheres do Imperador, de Ungulani Ba Ka Khosa, mantém-nos muito expectantes em relação ao fim. Quando chega, pimba, parece que não é bem aquilo que estávamos à espera ou que deveria ser. Não te vou mentir, quase fiquei desiludido. Furdela poderia ter trabalhado melhor o fecho; terceiro, o trabalho sobre a emoção não foi muito sólido. Por exemplo, a passagem em que Mudzingaze é deixado para trás, depois de ter sido ferido por Bengo, poderia ter sido mais dolorosa. Sinceramente, devia e não consegui sentir a dor de Mudzingaze, de Folofanye e de Manyara, na sequência da crueldade de Bengo.

Seja como for, camarada Celso – noto que o relógio marca 1h02, e já é altura de ler Sonhos manchados, sonhos vividos para daqui a uma ou duas semanas voltarmos a esta coluna –, respondo-te com franqueza: valeu a pena ler a história desse narcisista, contada por Aurélia Furdela. Por isso, a todos que gostam de regressar à realidade a partir da ficção, mesmos os que já se fartaram do passado na ficção moçambicana, fica a nossa sugestão.
 
Título: Saga d’ouro
Autor: Aurélio Furdela
Editora: Imprensa Nacional
Classificação: 14

Ela segurou-me pelos olhos. Pelo fio do olhar, delicado, mas fatal como a seda teia de uma aranha. Entramos para a cela escura. Não, não estávamos detidos. Pagamos três notas aos policias da esquadra, para termos meia hora de privacidade naquele compartimento.

Deslizou um, dois, três passos felinos. Pousou a cidra no chão, depois de um gole. Na bolsa entreaberta, uma capulana em prontidão. Estendeu-a sobre uma pilha de tijolos que, sob uma placa de madeira e outras coisas, fazia uma cama estreita, no compartimento estreito, na tarde estreita, como a vida, estreita.

Sentou-se sobre a capulana. Não se despiu. Com a crise, elas não se despem antes do pagamento. Outro gole de cidra, sem me soltar do olhar. Soltou os lábios. O sorriso lampejou o lugar semi-escuro.

Contive a pressa, fechei a grade. Dei um coice na porta sem fechadura, com o calcanhar. A porta bateu, estremeceu docemente as lascas de que se cobria e voltou a entreabrir-se, como se percebeu no gemido penoso das dobradiças.

Sentei-me sobre a capulana, ao lado dela. O enchido que fazia de colchão suspirou com o peso. Ela acendeu outro sorriso, receptiva, e iluminou o quase quarto. Soltou-me do olhar e virou-se para a janelinha gradeada. Segui-lhe o olhar, enquanto o meu braço lhe percorria, pelas costas, o tecido leve da blusa e os volumes de carne que lhe esculpem a cintura. De esguelha viu-me mexer, com a outra mão, num pequeno baralho de notas pequenas, preparando o pagamento.

– Faço anos – atiçava-me a generosidade no pagamento, puro golpe de marketing, com a delicadeza duma timbila sedutora na voz nasalada.

Era junho. Estávamos a vinte cinco. Vinte cinco da independência. Eu disse-lhe que era privilegiada por ter nascido naquela data.

– E sou de 1975, tenho idade da independência.

Olhava para a janelinha gradeada como se procurasse alguma independência por ali. Não lhe entreguei ainda o dinheiro. Precisava da mão para segurar as dela, tremulas. Já não sorria. Sem o sorriso os músculos da fase cederam. Deu um gole na cidra, apercebeu-se da garrafa vazia, e disse, olhando para a garrafa:

– Sabes, o mundo é vazio.

Animei-a dizendo que junho era um mês bonito, de bons feriados. Dia da criança. De África. Da independência. Massacre em Mueda. Tinha conseguido a ignição de um sorriso, mas o motor foi-se abaixo quando lembrei do 16 de Junho, dia da moeda.
– O dinheiro… – suspirou –, o grande mal deste mundo.
– A guerra também – acrescentei.
– Vem tudo junto. Eu tenho a idade de um país que sofreu com guerras e está endividado. Sei disso porque pelo meu corpo também passaram por muitas guerras.
– Mas tu estás endividada?
Suspirou. Teria dado outro gole na cidra se a garrafa não estivesse vazia. Não olhou para mim:
– Eu sou puta.
Não lhe vi os olhos, mas percebi uma lágrima no tom da voz. Olhávamos para a janelinha da cela. Apertei, instintivamente, o abraço. Ela deixou cair os cabelos postiços sobre mim e a cabeça no meu ombro. Assim abraçados, e a olhar para as grades da janelinha da cela, comecei a sentir-me gradeado num sentimento indescritível. Lá fora, uma bandeira içada no pátio da esquadra, resignava os seus últimos fiapos, na tarde sem vento.

 

 

 

Semedo saíu daqui para jogar em Portugal. Por lá, fez o curso de treinadores. Regressou com estranhos galões que lhe outorgaram o direito de catalogar, a nós que “não saltámos o arame”, de cidadãos cujos cérebros definharam, de tal forma que os nossos raciocínios terão parado, no espaço e no tempo. De facto, a nossa passividade perante um semear de guerras contra tudo e todos, parece dar-lhe razão. Uma recolha dos posicionamentos deste treinador, conferem ao leitor a possibilidade de fazer o seu julgamento.

Uma citacão: Foram estes briosos jogadores, que fizeram de mim treinador – Bruno Lage, técnico do Benfica de Lisboa, equipa campeã de Portugal.

O antípoda, “made in Semedo”: Este plantel não vale nada. O treinador é que lhe dá dimensão e isso permite-lhes sonhar com o título.

OS RECADOS DO SEM… MEDO

O auto-elogio:
Como treinador, tenho o quarto nível. Esta qualificação dá-me a possibilidade de treinar qualquer equipa do espaço europeu. Ou seja, posso treinar o Real Madrid, o Barcelona ou o Bayern de Munique. Por cá, escolho os clubes que quero treinar e, por causa desta assumpção, tenho merecido da parte dos meus detractores muitas críticas. Na verdade, não faço escolhas marginais, pois com todo o capital e experiência que colhi ao longo da minha carreira, cheguei a uma encruzilhada tal que me permite, claramente, escolher os clubes em função das pessoas que o dirigem. Sendo assim, escolho as pessoas com quem quero trabalhar.

Sobre o nosso futebol

O futebol moçambicano é uma grande comédia, uma fraude. Os gestores são uns trapaceiros. Como é que posso estar zangado com um futebol medíocre? Não estou zangado, se estivesse tê-lo-ia abandonado há muito tempo. Não voltei para pedir favores de qualquer espécie, pelo contrário, vim dar muito da ajuda que este futebol precisa porque, na verdade, rege-se por lei e comportamentos ainda demasiados primários. Chamem-me arrogante ou o que quiserem, mas estou acima deste futebol. Não é ele que vai prescindir do meu trabalho. Não voltei para pedir favores de qualquer espécie, a ninguém.

Aos colegas de profissão:
O que sei é que alguns se proclamam grandes treinadores, apenas porque ganharam mais títulos do que os outros… Hoje, o primeiro critério é de um treinador submisso, que faz as vontades das direcções, que não questiona nem põe em causa a vida dos clubes, que oculta tudo o que põe em causa o seu trabalho. Por isso, estamos como estamos.

Aos árbitros:
Devo dizer que os árbitros são apenas instrumentos. Já apanhei uma suspensão de dois meses sem ter feito nada.

Aos dirigentes:
No nosso futebol há alguns personagens que surgem como os mais influenciadores do próprio sistema. Eles conseguem aglutinar, à volta de si mesmos, todos os conceitos de futebol, usando, algumas vezes, o seu poderio financeiro. Há pessoas que têm feito de tudo, para que eventualmente eu abandone o meu país, sentem a minha presença como um incómodo por defender as causas do futebol.

À Comunicação Social:
A imprensa nunca teve tempo nem espaço como agora para retratar coisas do nosso futebol, porque as críticas que tenho feito, ajudam os próprios jornalistas a exercitarem-se no sentido de contrariarem tudo o que vou dizendo e por vezes corroborarem. Portanto, penso que estou a ajudar muita gente, de facto”. Recentemente: “deixo o resto para os comentaristas da STV, embora não lhes reconheça idoneidade técnica para isso”.

Ao país:
Ser competente, é um problema neste país. Não querem que eu trabalhe neste “futebolzinho”. O mundo não é só Moçambique, por isso estou à vontade para trilhar os caminhos que sempre quis e quero. Não voltei ao meu país para ganhar dinheiro, se fosse para ganhar dinheiro não voltava.

OS MISTERIOSOS GALÕES

Decorria o ano de 2005, quando Artur Semedo me procurou, pedindo-me para o entrevistar de forma a ser conhecido no país. Na altura, aparentava ser “um soldado raso”, em busca de afirmação, no regresso de Portugal, onde protagonizou uma carreira com altos e baixos, que foram desde o Oliveira do Hospital (quem conhece este clube?) até ao Marítimo, onde brilhou.
Volvidos menos de cinco anos, já possuía “galões”que lhe permitiam chamar de “futebolzinho” e de “jornaleiros” aos que o receberam. Aos colegas de profissão, dizia que lhes faltava capacidade para chegarem ao nível de declarações que fazia.

E até pode deduzir-se que está por cá, como que por favor, pois considera-se melhor que Mourinho.
Recordemos:
“Nunca disse que eu era o Mourinho de cá. Acho que é uma declaração menor. Não me inspiro nele. Mas gostaria de dizer que se alguma semelhança se pudesse estabelecer, que fosse ao contrário, pois ele aparece depois de eu fazer certas constatações. Porque é que eu tenho que me comparar a Mourinho e não o contrário?

CERNE DA QUESTÃO:
O NOSSO DEIXA FALAR

Fica-se com a impressão de que Artur Semedo, pela lábia, ganhou um estatuto especial. É-lhe permitido o que não admitimos a outros cidadãos. Faz declarações inaceitáveis. Daí que, com o nosso encolher de ombros, na Comunicação Social e não só, sejamos todos cúmplices do “Semedismo”, pois ele até é… bom treinador!

Estamos a falar de quê?  
Orientar (mesmo com qualidade) treinos e jogos de uma equipa, não outorga por si só, o título de BOM treinador, que se atribui a Artur Semedo. Há muitas mais qualidades a exigir a um condutor de homens, no cada vez mais difícil caminho para se chegar aos triunfos no desporto-rei.

 

Exemplos, são muitos. No topo, o luso-moçambicano Carlos Queirós, homem afável, com currículo mundial, que evita confrontações idênticas às que estamos a reportar. Sobretudo com árbitros e jornalistas. Os porquês, são óbvios. Uns têm o apito e os outros, a caneta. Não se trata de submissão, mas de respeito e independência pela actividade de cada um.

No caso dos técnicos de alto nível, a função de correr ao lado dos jogadores, saber do seu estado psicológico ou de saúde, é cada vez menor, pois é desempenhada por outros profissionais que fazem parte da sua equipa técnica. Ao mister, compete coordenar, definir tácticas, projectar, estudar os adversários e, sobretudo, estabelecer pontes e relações com os outros actores da modalidade, de forma a que daí resultem vantagens para o seu clube.

CALADO, ÉS UM POETA…

Por melhores capacidades e “quartos níveis” que tenha, Semedo, um técnico em permanente busca de inimigos, vive o inverso de um velho ditado. Na verdade, ele “semeia ventos, para colher frutos”. É isso que explica o rodopio deste técnico, por vários clubes, com pouca glória e não menor isolamento. Cito, para terminar, um título recente, contido neste jornal: “Semedo, calado, tu és um poeta”!

 

 

"Vais morrer?" Perguntou Mujaxihi, meu único irmão, entre aquela multidão de jovens sonhadores. Eu, inspirado pela inspiração de todos disse: se tiver de ser que seja. Mas tu, meu irmão, tu não vais morrer.

Cabelo despenteado, pálido como o rosto, quase a criar uma mata. Calções pretos, com uma forte tonalidade de branco e dois furos à medida das nádegas. Camiseta? Essa só cobria o ombro. Pre-adolescente inocente. Esta é a imagem que ficaria do meu irmão, aliás tinha de ficar, pois só assim eu me esforçaria para, na volta, deixar meu irmão sempre com cabelo penteado.

Mafelatiku está aí? Uma voz feminina e muito suave perguntou, interropendo a conversa com meu irmão. Levantei a mão indicando a minha presença. Dei o último abraço nele. Entrei ao carro com outros como eu, todos querendo tornar-se Messias. Da janela veio outra voz feminina, roca. É a Rindzela que disse: cuida de ti por mim. No meio a gritos idénticos procurei um espaço e também gritei: cuidem um do outro enquanto Mafelatiku não está aí.

Longe de todos e tudo. Vinte e dois anos de idade. Num lugar onde tenho apenas três actividades diárias: orar, treinar e comer. E a única coisa que estava sempre disponível eram as armas e tudo o resto para treino. "Derramar suor em treino para poupar sangue em batalha." Assim falavam os instrutores para que nos entregássemos. E eu, todo empenhado, fazia tudo que me mandassem, acreditando que assim estaria brevemente perto de todos e tudo.

Forte fuzileiro. Dois anos depois. Jovem bem bonito e vaidoso. Soldado que se dá o máximo de respeito. Forte e muito temido entre os da mesma categoria. Ainda sem chance de regressar à casa. Grandes esperanças de novas patências. Um facto. Já com dia e local marcados para o patenteamento. Mas no meio dos preparativos, uma informação: há confrontos militares num dos campos próximos ao quartel. Quem vai à batalha? Fraco fuzileiro.

Uniformizados estamos. Todos com a fúria adquirida durante os treinos. Eu mais confiante que o resto. Primeira vez em guerra oficial. Nosso comandante fala de tal forma que nos enfuresséssemos ainda mais. Mas ele fica. Partímos nós para a batalha. Inimigos aparente e claramente mais experientes que nós. De repente… nem me recordo exactamente do som, mas sei que de seguida eu estava no chão, de onde vos falo e desuniformizados estávamos.  

Vou morrer? Sinto meu sangue misturado com areia. Minha voz misturada com ar denso. Minhas acções resumidas nas vontades. Pessoas desconhecidas juntam-se por mim. Rosto nenhum é-me familiar. Mas todos tornaram-se família. Lutam todos juntos pela minha vida, para que juntos lutemos pela nossa vida e a de todos. Eu não vou morrer.

"Vais morrer?" Recordei-me da pergunta de Mujaxihi, mas me confortava ter-lhes pedido para cuidar um do outro enquanto eu não estivesse lá, ele e a cunhada, minha namorada. E agora, mais do que nunca, eles precisavam honrar este meu pedido, pois, respondendo ao Mujaxihi: Não estava nos planos, mas sim, eu MORRI.

 

A minha loucura mais perene é a minha lucidez. A vida é um rio ornado por vazios estilhaçados. Quando chove, do rio desponta a vida e o vazio se afunda no lugar onde nunca existiu. Muitas vezes escrevo porque me sinto tacteando o silêncio, nas restantes namoro o proibido.

Até aqui muita «conversa para boi dormir», nem? Não perca paciência, tenho estas manias quando o que quero exteriorizar vem do fundo do coração. Já me endireito! Enquanto isso, despe-te e toma este banho. O meu coração chove gostoso.

A memória é a vida distribuída por outros tempos. Tudo o que os silêncios desta madrugada me fazem escutar são vozes doutras vidas. Talvez esta noite seja insuficiente para tanto sentimento. Contudo, todo meu sentimento despe-se e se deixa deitar nesta cama branca.

Hoje ocorre-me celebrar a vida. E a melhor forma que tenho para o fazer é lembrar e partilhar com os outros as minhas origens. É viver os meus pais. Com vocês, papá e mamã, aprendi muito mais que viver. Pouca coisa faz sentido neste texto incompleto. Mas uma é certa, chama-se saudade a ilha na qual me encontro exilado. Os mais literatos que me perdoem se isto fugir o domínio literário. Mas o que será a Literatura senão a vida em texto?

Ao longo desta minha caminhada por estas terras lusas é frequente me perguntarem o que os meus pais fazem. Há uma ideia de que quem cá vem estudar é filho de uma família abastada. Digo-lhes, sem vergonha, que sou filho de um motorista e de uma vendedeira informal. Com uma mistura de espanto e pena a lhes colonizar a face perguntam-me como fiz este percurso. A resposta é simples, o mérito é todo daquele casal pobre que me gerou. Na sua luta diária aprendi a amar, a ser temente a Deus, a respeitar o próximo e a correr atrás das coisas. Os meus pais são pobres em bens materiais, mas muito ricos em espírito. Deles me veio a lição mais importante desta vida, a nossa condição económica nunca deve ser barreira para sonhar.

Desde os meus primeiros anos de vida mesmo com os condicionalismos que sempre tiveram, os meus pais sempre se preocuparam em garantir que eu e os meus irmãos tivéssemos uma sorte diferente da que eles tiveram no que respeita à formação. O investimento na educação dos filhos sempre foi a prioridade deles. Dos seus filhos eu fui o único que ainda teve a sorte de frequentar um centro infantil. Para um motorista e uma vendedeira informal que para além de garantir que a renda da casa era paga e que não faltava comida na mesa, acrescentar aquela despesa era um fardo. Mas eles levaram a ideia à diante e permitiram que eu fosse uma criança privilegiada e a minha formação iniciasse mais cedo.

As vantagens de uma criança frequentar um centro infantil antes de ser introduzida no ensino primário são tantas. Pode não funcionar do mesmo modo para todas as crianças, porque cada ser é uma substância individual. Mas, temos de concordar que uma criança que frequente um centro infantil tem um desenvolvimento cognitivo diferente da que o seu processo de formação apenas inicia com seis anos no ensino primário. Enfim, dissertar sobre este assunto não cabe a este solilóquio.
Parece tacanho escrever um texto porque os meus pais me matricularam numa creche. Mas isso é só um exemplo. Expresso neste palavreado o meu agradecimento por no meio de tanta adversidade terem sempre investido na minha educação e me darem asas para sonhar. Naquele centro infantil, que poderia ser visto como uma banalidade, tive o primeiro contacto com o mundo das artes. Lá tive contacto com a poesia, com a música, até com a dança, esse bicho de sete cabeças para mim.

Todos os centros infantis têm uma cerimónia de fim do ano onde as crianças apresentam alguns números culturais. Numa dessas cerimónias declamei um dos meus primeiros poemas, do qual a memória apenas reteve um verso: «Guardo o papa no bolso e a mamã no coração». Digo-vos papá e mamã, quer seja no bolso, quer seja no coração, sempre vos tenho comigo.

 

Um romancista não terá, forçosamente, que depender do êxito ou fracasso dos seus livros, terá que continuar, sem desfalecimentos, no caminho que se propôs seguir.

Eduardo Paixão

“Dazanana de Araújo Simplíssimo vivia uma estranha sensação de que estava morto. Durante muitos anos cultivava em demasia a crença de que a sua vida era a morte” (p. 5). Assim inicia a história de um personagem muito particular, obstinado e comprometido com as dimensões gigantescas do seu sonho: Dazanana, do rhonga, língua falada na capital moçambicana, idiota ou palerma. Pode ser que estes dois significados encaixem no perfil do protagonista de Cemitério dos pássaros, mas apenas se se considerar à sua entrega a um propósito claramente definido: o de construir um cemitério no qual os finados da sua família reencarnariam como pássaros, alcançando, por isso, outras dimensões da existência.

Colocando a narrativa neste prisma, Adelino Timóteo, logo no princípio da diegese, questiona sobre os limites da vida na mesma proporção que minimiza a morte, afinal, a acreditarmos como Dazanana defende, nunca deixamos de viver, quando morremos. O que ocorre é um trânsito para lugares quase inimagináveis, os quais, uma vez alcançados, conferem à alma uma espécie invulgar de transcendência. Então, diante do seu maior projecto de vida, o protagonista de Cemitério dos pássaros move-se num labirinto estranho, decidido a levantar o véu dum cenário jamais desmistificado: o além. No fundo, há nessa entrega uma continuidade, a de fazer do realismo mágico uma forma de escrita. Continuidade porque esta não é a primeira vez que Timóteo atribui à existência a capacidade de vencer a morte, revelando, nessa condição, as imprecisões características. 

Dazanana é o instrumento usado pelo escritor para representar a obsessão humana em prolongar a sobrevivência, não no além, que é incerto, mas neste mesmo mundo. Logo, o personagem funciona como cicerone de uma trajectória que termina em metamorfose. Não podendo permanecer eternamente no plano real, numa condição de partida, cheia de vigor juvenil, o herói timoteano, com uma fé religiosa, põe-se a sustentar a pretensão de transformar o seu cemitério num ninho, lugar predestinado para reinventar os conceitos de gestação. Na verdade, é mesmo de evolução que estamos a falar, como se a natureza fosse exageradamente generosa para permitir a humanidade permanecer num mundo que a destrói, de múltiplas maneiras.

Por via de Dazanana, o romance de Adelino Timóteo sustenta-se na susceptibilidade de mergulhar fundo nos aspectos folclóricos, se quisermos, tradicionais de uma cultura oral ainda bem enraizada no quotidiano dos moçambicanos, e, acreditamos, dos brasileiros também. Este livro inédito ora publicado pela editora Kapulana, fruto de uma imaginação absolutamente incrível, é um lugar de propagação de crenças, sem restringir-se a isso, mesclando uma ficção delicada com uma visão holística sobre o meio e as culturas. Quiçá, essa deve ser a razão de Cemitério dos pássaros ser um livro riquíssimo do ponto de vista temático. À semelhança dos títulos anteriores, por exemplo, Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz (romance) e Na aldeia dos crocodilos (infanto-juvenil considerado “Altamente recomendável” no Brasil, e, por isso, finalista do Prémio FNLIJ) este novo livro do poeta e romancista moçambicano, natural da Beira, cidade rebelde agora afamada devido aos danos do ciclone Idai, vai buscar ao Vale do Zambeze a fertilidade indispensável para uma boa narrativa, como quem reinventa as particularidades daquele espaço mitológico cheio de muitos encontros inaugurais entre povos de diversas culturas. Com o Zambeze resgata-se o passado (e a origem da miscigenação na Zambézia, província do Centro de Moçambique), eventualmente porque, como escreve Ungulani Ba Ka Khosa no seu Gungunhana, “esta terra [Moçambique] está sendo construída sem o passado. Tudo o que é passado é coisa morta”. Ou desvalorizada. Sendo que “morta” e “desvalorizada”, neste contexto, acabam sendo a mesma coisa.

A propósito, uma vez Adelino Timóteo prometeu-nos publicar três ou mais romances sobre o Zambeze. Pode ser que a promessa esteja já a ser cumprida, e, daí, um Moçambique diferente do actual esteja a ser apresentado ao mundo, na asa da escrita, onde cabe o imaginário, os hábitos e costumes no livro bem valorizados. Portanto, Cemitério dos pássaros é um romance filantrópico em que “Salvar a história, seja onde for, impõe a liberdade de escolher ser livre ou sujeitar-se ao sacrifício” (p. 46). Dazanana, tal como o seu criador, sempre escolhem a liberdade, mesmo quando o conforto está na covardia, mesmo quando a decisão de marchar em frente custa mais que suor. A liberdade de concretizar e assumir o risco disso está tão vincada em Dazanana que Maria de Lourdes Pintassilgo, a esposa, passa a ter um companheiro no lugar de um marido. Porque perseguindo o seu ideal, aquele protagonista reinventa-nos como leitores às vezes estáticos na ousadia de alcançarmos outros voos. Bem visto, esse tipo de relações amorosas que Maria de Lourdes deseja que sejam calorosas, cor-de-rosa, não têm proeminência em Adelino Timóteo. Os casais timoteanos, quase sempre desleixados às singularidades do afecto, deixam-se prender por outras obrigações. Em Cemitério dos pássaros acontece o mesmo, por exemplo, com Dona Ana, a lembrar-nos esse registo “ninfomaníaco” recorrente na narrativa do autor. Na verdade, Dona Ana é a continuidade do carácter que o romancista estampa numa outra personagem: Luíza Michaela, em Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz.

Quanto mais Adelino Timóteo vai escrevendo, traz propostas para a libertação das pessoas das amarras sociais, questionando preconceitos, tabus, e, em derradeira instância, os cânones civilizacionais, por exemplo, esses que oprimem a mulher em cada oportunidade cedida ao homem. Se Dazanana é um exemplo de coragem na luta pelo que acredita, Dona Ana pode ser entendida como esse pássaro decidido a aprender a voar na intimidade das suas sensações, desejos e fantasias. Com o sexo no centro de tudo.

À parte tudo isto, mais uma vez, a Kapulana publica – como nos lembra Eduardo Paixão no seu Tchova, tchova – um autor que não terá que depender do êxito ou fracasso dos seus romances, terá que continuar, e continua sem desfalecimentos, no caminho que se propôs seguir. Da Beira, onde vive, Adelino Timóteo projecta-se sempre com a sua obra, predisposto a reinventar a história, inovando-a, e, por consequência, a tornar os seus leitores melhores pastores da vida.

Maputo, 11 de Maio de 2019

*Texto inicialmente publicado no Brasil, pela editora Kapulana.

 

 

 

 

Por aqueles lados, quando o assunto é cumprir a tradição, um pequeno detalhe pode custar um casamento. Duvidas? Não te atrapalhes, conto-te isto e verás.

Os frangos, deitados de costas naquela cama de ferro, desenhavam loucuras nas mentes de quem os olhava. Lembravam memórias barulhentas que não cabem numa só vida.  Por baixo da cama, cinco paus de pinheiro juntavam forças para produzir uma luz incandescente que beijava o metal e produziam o calor que oprimia aquelas aves. Os frangos ganhavam aos poucos uma cor torrada. Fumegavam sempre que o calor aumentasse ou quando algum suco de limão lhes pingasse. Assavam e espalhavam o seu cheiro picante. Os estômagos sonhavam e rezavam para que aquela tortura acabasse logo.

Os olhos das mulheres sofriam. A fumaça não os poupava, castigava-os. E eles expeliam aquele líquido branco que sabe a sal.  De vez em quando, parando de mexer as panelas ou de virar os frangos, as mulheres dobravam o corpo e iam até aos pés para levar a ponta da capulana que traziam amarrada em volta da cintura e limpar as lágrimas. 
O ambiente festivo sentia-se de longe. Liloca e "Tsova" denunciavam o esquema. A orquestra de aromas dos vários pratos que aquelas mulheres confeccionavam tocavam uma sinfonia inaudita. Cada elemento da orquestra exibia o seu charme. O show era em grupo, mas a estrela que morava no interior de cada um deles gritava pelo protagonismo. E lutavam entre eles pelo domínio absoluto do ar. As narinas que se arranjassem. A musa de todas as festas tornava-se mais atraente à medida que se banhava com os perfumes dos temperos. Uma coisa tenho de vos confessar, aquela feijoada reinaria os pratos quando chegasse a hora dos comes.

A tradição se cumpria. No interior da casa começava o mais importante para a família Macamo e Mondlane. A aliança entre as duas famílias se estabeleceria através daquela união matrimonial. 

Estavam todos trajados a rigor. Os homens usavam fatos e as mulheres traziam vestidas blusas de cores alegres e capulanas. Aqueles panos floridos que traziam amarrados à volta da cintura oprimiam as matsamelas e todas as carnes em volta das ruas do pecado. Naquela sala não havia nenhuma criança. Aquela primeira parte da cerimónia era coisa de adultos. 

Um dos tios do noivo, que trazia vestido um fato cor de vinho e uma gravata azul sufocando o pescoço, limpou o suor que lhe inundava a testa, tossiu e olhou para os outros. Perguntava-se por que aquilo demorava. Para ele a festa era lá fora, aquilo que se passava ali naquela sala era uma palhaçada do passado que devia ser abolida. Quando ouviu uma voz rouca a anunciar que a família do noivo podia apresentar os presentes exigidos pela família da noiva sobressaltou-se e soltou um «eishhh».  

Algumas mulheres, que tinham vindo na comitiva da família do noivo, abriram uma mala preta e retiraram o exigido. Tudo tinha de estar ali. Minutos depois viam-se, na capulana sobre a esteira que estava estendida no meio da sala, um fato, uma bengala, um frasco de rapé, um cachimbo, duas camisas, cinco capulanas, cinco lenços, dois garrafões de vinho e filas de notas avermelhadas, que traziam em cada uma delas o rosto de Samora Machel estampado. Aquelas notas somadas totalizavam cinco mil meticais, era o valor do lobolo. 

Assim que apresentaram os presentes, manifestaram o desejo de lobolar a rapariga. Parecia estar tudo reunido para que o lobolo acontecesse. As pessoas, o dinheiro e os bens pedidos pela família da noiva, os "comes e bebes". Mas aquele desejo recebeu uma resposta negativa pela família da noiva. Não haveria lobolo, não haveria casamento.

Aquela resposta negativa foi um balde de água fria para a família do noivo. O exigido para o lobolo estava ali. Sentiram as lágrimas do noivo a inundarem a cidade e começaram a murmurar. Quando lhes foi dito o motivo da recusa bufaram de alívio. Na tradição da família da noiva, qualquer dinheiro do mundo, sem o brilho de uma moeda a reluzir por cima das notas, não tinha valor.

 

Primeiro O Céu: espaço ilimitado em que se movem os astros, mas também, e destaco: parte desse espaço limitado pelo horizonte, ou seja, pelo olhar de quem o observa. Segundo Não Sabe Dançar, sendo que esta é uma qualidade mais humana, visto que os homens inventaram a música e decidiram dar saltos ou passos cadenciados conforme o ritmo (haverá quem considere a dança uma qualidade mais animal e os vídeos do YouTube, ao mesmo tempo que nos divertem com animais de estimação em alegóricas coreografias, parece quererem, exactamente, negar tratar-se de simples fábulas modernas). Terceiro Sozinho, O Céu Não Sabe Dançar Sozinho, ou seja, absolutamente só, desacompanhado, isolado. Socorrendo-me de Kant, na sua Crítica da Razão Pura, ao considerar que está-nos vedado o conhecimento dos objectos, coisas, conceitos, realidades em si, senão através da nossa sensibilidade, ou seja, dentro do nosso horizonte possível, resolvo a curiosidade do título do livro sugerindo que, em última instância, quem não sabe dançar sonzinho somos nós, homens e mulheres. E se a música é a arte e ciência de combinar sons, então a dança pode exigir uma arte e ciência de combinar os saltos ou passos. Uma combinação exige harmonia, diálogos e afectos; ou seja, felizmente, somos seres irremediavelmente condenados a viver e estar com um outro semelhante. Creio que esta ideia encontrará algum eco na epígrafe do livro: «em qualquer estação, / é perto que mais somos.» A epígrafe faz de nós sujeitos solitários em viagem permanente pelas estações da vida, pelas estações que fazem de nós o que somos. Ora, sugere a epígrafe, que seremos à medida que nos aproximarmos do outro.

O Céu Não Sabe Dançar Sozinho é um livro de contos que têm a particularidade de levar títulos de locais conhecidos e/ou imaginados pelo autor pelas estações, arrisco-me a dizer, da sua própria vida, incluindo aqui a vida de escritor. Vejam-se títulos como «Buenos Aires», «Budapeste», «Madrid». Não é, pois, por mero acaso que o narrador destas histórias as conte como as viveu, algumas vezes como protagonista, outras como testemunha. São histórias, portanto, que revelam paisagens de uma viagem pessoal. No entanto, não se trata aqui apenas de contar histórias de viagens. O tom pessoal destes relatos revela-nos um outro investimento que parece complicar a ideia simplista de serem experiências de viagens. É que Ondjaki elege o sonho como outro grande tema do seu livro, ao qual vão se subordinar micro-temas, como os da premonição, do medo, da morte, da obsessão, do insólito, da memória, da identidade, da alteridade. Ou seja, sonho e viagem andam de mãos dadas, os sonhos são uma espécie de viagem pelas estações do íntimo e as viagens começam por ser sonhos, que nos sobram depois como memórias. O sonho é também a metáfora da estrutura dos seus contos; isto significa que estes contos são imagens de sonhos: breves, densos mas poéticos, abertos, regra geral sem a consciência do espaço e do tempo em que efectivamente as personagens se movem, se constroem, se tornam ambíguas e volatilizam. Desta estrutura resulta que estes sonhos em viagens ou estas viagens sonhadas captem, pelas esquinas de «Macau», «Praga» ou «Moçâmedes», aspectos da vida que escapam às leis da regularidade e da harmonia, pois Ondjaki trabalha poeticamente o trivial, o corriqueiro. Tem de haver um significado profundo nas coisas aparentemente banais da vida. E assim fechamos o triângulo dos grandes temas sugeridos neste livro: o sonho, a viagem e o trivial.

As personagens de Ondjaki também obedecem à densidade e ambiguidade estruturantes dos próprios contos. Sem contornos definidos como acontece nos sonhos, elas valem sobretudo pelo que dizem e revelam-se entidades tensas e perturbadas, o que pode ver-se, com destaque, na primeira parte do livro, em que vemos um investimento por parte do autor nos diálogos, chegando mesmo a aproximar-se da forma dramática. A segunda parte do livro faz o inverso da primeira: vemos um investimento na narração e diminui o enfoque no diálogo, facto que não obsta que cheguemos de forma particularmente interessante ao conhecimento das personagens, pois, como dissemos, elas relatam as suas próprias experiências ou as de outras personagens, que elas testemunharam. Na terceira parte do livro, o autor abandona as estratégias das duas primeiras e traz-nos uma narrativa, digamos, mais descritiva, fotográfica, suportada pela pontuação que parece congelar o fluxo de consciência do narrador. É uma espécie de inventário do horizonte do narrador que observa o mundo fragmentado à sua volta.

Diálogo, narração e descrição revelem-se, por conseguinte, investimentos técnico-compositivos distintos na primeira, segunda e terceira parte do livro, respectivamente. Ou os sonhos são em si realidades fragmentadas ou estas correspondem às várias estações da viagem do primeiro e último narrador destas histórias, Ondjaki, no seu desejo de estabelecer diálogos, de contar e reter o mundo nestas páginas. A quarta parte do livro faz como que uma espécie de síntese das três primeiras, trazendo um pouco das três. Aqui, a memória está presente de forma assumida, como se fosse um despertar para o que nos sobra dos sonhos ou das viagens, e é quase uma memória institucional:

«Vêm buscá-la à hora do jantar. As crianças já to- maram banho. A mesa está posta. Tem tempo ape- nas de apagar o fogo do fogão e deixar os bifes arrefecerem na frigideira.

Quatro homens armados. Um bote de borracha.

As ordens que tinham.

Foi vestir-se melhor, buscar uns sapatos.

As crianças já tinham tomado banho. Já estavam à mesa, sentadas.

? A mamã não vai comer connosco?

? A mãe já vem. Tem que ir falar com uns cama- radas em Luanda.

Quatro homens armados levam a mulher para o bote de borracha. Os vizinhos olham. O pai disfarça, vai até à cozinha, traz a frigideira com os bifes. O arroz já está na mesa. Uma vizinha vem ajudar. Toca as crianças na cabeça, inventa uma conversa.

O mar está calmo. Quase escuro. A luz fluorescente da varanda não deixa ver o brilho da lua sobre o mar. O bote de borracha atravessa a escuridão em direção a Luanda. Uma das crianças diz que já não tem fome, mas que vai comer. O pai diz que ainda tem fome, mas não irá comer. A vizinha tem fome e vai comer.

? Como é, tudo nos conformes? – o vizinho distraído não sabia o que se tinha passado. – Tenho ali preparado o champagne para a meia-noite.

? Vamos ver… Vamos ver… – diz o pai, com voz triste.

O pai olha o mar. Apesar das luzes fluorescentes da varanda, o pai sabe que o mar está escuro. Pensa na mulher sozinha no barco de borracha, acompanhada pelos quatro homens armados. Olha o relógio. Irá olhar o relógio muitas vezes nessa noite.»

Obrigado!

Lucílio Manjate

 

 

 

 

 

 

 

 

Algo chamou-me atenção em Lisboa, algo que nunca foi importante observar nas ocasiões passadas, digo Lisboa  como casa da memória Colonial, um espaço de reencontros étnicos-raciais, pese ainda a (in) diferença social por debaixo da glória dos descobrimentos, narrativa sempre contada na primeira pessoa do singular.

Sempre olhei com desconfiança certos epítetos a que são anunciados uns (a minoria) pelos outros (a maioria), sempre duvidei o silenciamento institucional dos portugueses afrodescendentes (estes somente o desporto lhes dá asas para o seu reconhecimento e consequentemente exaltação como portugueses) ou dos africanos residentes em Portugal, em diversas áreas, seja na educação, ciência e cultura. Este cenário já em sim, revela alguma mancha histórica, que se ressignifica na balança do tempo, revisitado por discursos de exclusão pelo tom da pele.

Ademais, é importante lembrar que um país se reconstrói pela diversidade multicultural e é de facto, um dos muitos e dos mais importantes valores universais, hoje e agora fragmentado pelo traço inconsciente do questionamento "duvidoso" do outro pelas suas origens.

Será que Portugal tem medo dos seus filhos? Custa seguir um teste de escolha múltipla para o exame da sua sociedade?

Porventura com excepção dos escritores luso-descendentes divulgados em Portugal com todo o aparato institucional, um gesto de cunho memorialista/saudosista, alguém conhece alguns intelectuais/professores universitários/ escritores negros portugueses? Ou se existem levanta-se sempre a naturalidade dos seus progenitores (português de origem moçambicana, filho de pais guineenses, etc.).

A descrição da sociedade portuguesa, é um minúsculo inventário das cores, a primeira superior, dona das ideias e segunda a inferior sempre redimensionada pela "esquecida" linha de Sintra, é claro que, a linha de Sintra na voz dos primeiros literalmente significa lugar dos excluídos/ marginalizados. O que fica depois no exercício da liberdade de cada um tomar o seu espaço? É aí onde quero-me ater nas pequenas circunstâncias para delimitar o espaço a ocupar pelos tais "excluídos".

Para melhor atender o significado etimológico da linha de Sintra, fui lá visitar a Amadora epicentro da comunidade africana e Portuguesa afrodescendente e Couva da Moura, famoso "bairro problemático", ghetizado pelos seus residentes, alcandorados nas ilhas de auto-exclusão, Ilhéus que a prior não tem identidade muito menos nacionalidade, apenas naturalidade, cidadãos do mundo? Cidadãos portugueses? Cidadãos cabo verdeanos?

Esta autoghetização dos portugueses afrodescendentes não é só pela mão das políticas de exclusão é uma herança "descasada" com actualidade, significa, que a narrativa do espaço derrubado, sempre afirmada com convicção pelos seus antepassados, que de geração em geração, tem mostrado a dificuldade de criar novos caminhos da história e a emergência de saltar etapas históricas para fazer delas um renovado canto de aprendizagens. Neste sentido, podemos afirmar que a comunidade portuguesa afrodescendente,tenta a todo custo, crioulizar o discurso, como forma de resistência ao opressor, facto que concorre para o aprisionamento do espaço e do tempo, legitimando assim a divisão entre "eles", "outros" e "nós" traduzível no abandono que se quer tradição.

Ao considerar a coligação de vários factores sejam eles económicos ou sociais, chega-se a conclusão de que esta decadência de uma comunidade despovoada do seu próprio país, parece, em todo caso, uma luta no escuro, com todo o despreparo possível, que tanto os primeiros com todas as dificuldades, na sua maioria analfabetos quanto a quinta ou sexta geração nascida em Portugal ou portugueses com todo o "abandono" institucional para celebrar as liberdades escusadas aos seus antepassados, estes portugueses afrodescendentes simplesmente arriscam a sua participação, renovando o discurso da colonização. Consequentemente, a escolha fundamental do crioulo como língua oficial, renegando quase por completo a língua portuguesa, em total consonância com o abandono escolar repartem-se entre a delinquência, drogas e abandono escolar. Considerando que o mesmo não acontece com os africanos residentes em Portugal, estes com todas as dificuldades, na sua maioria conseguem fazer ecoar a sua voz, não é por acaso, que quando estes rompem as fronteiras da academia, a sua constante luta é em prol destes portugueses afrodescendentes desarmados num mundo de contraditórios.

 

No Estádio do Zimpeto, com pouco público, Desportivo e Costa do Sol disputaram uma partida do Moçambola, em ambiente frio e com pouco público, dando a impressão de que estavam apenas a cumprir o calendário.

Na mesma altura, no Pavilhão do Maxaquene, Ferroviário de Maputo e A Politécnica, em basquetebol, davam corpo a uma jornada plena festa em basquetebol, renhida e aplaudido por muito público. Era a ronda final do campeonato de Maputo. No final, jovens, alguns com os olhos marejados de lágrimas – uns de choro outros de alegria – trocavam abraços e beijos, num ambiente infelizmente cada vez mais raro no nosso país.

Que contraste!!!

POUCOS, MAS BONS

De um lado, a geração dos “enta”, com muitas caras que deram vida e projecção à bola-ao-cesto, fiéis à sua modalidade e seguros de que, com crise ou sem ela, há que encurtar a distância entre as intenções e a prática. O patrocinador, a Engen, rendido à entrega dos atletas, declarou-se feliz e com retorno, face à alegria patente nos olhos dos assistentes.

O que impede então, que aconteça o mesmo, na alta-roda do nosso futebol, sobretudo na Zona Sul? São várias as razões, mas salta à vista uma, que tem sido subalternizada: poucos, mas bons!

Para o Moçambola, muito se falou sobre a participação “só” dos clubes devidamente licenciados, situação dita e repetida pelo Presidente da FMF, a duas semanas do arranque da prova. Ficou tudo na mesma.

É verdade que o primeiro passo, que é o da redução das equipas nesta e na próxima temporada, já foi dado. Porém, mais rigor no cumprimento das regras é o que se recomenda.

Se tivermos que ter um Moçambola “à melhor de qualquer coisa” após as fases de qualificação, porque não? Os triunfos, quanto mais desafiadores e suados, melhor. Só assim ficará claro, “quem é que os tem no sítio”!

Numa altura em que se anunciam novas e prometedoras realizações financeiras no país, a força crescente do desporto-rei no mundo, não pode permanecer em plano secundário entre nós.
E que fique claro que patrocínio, não é caridade. O PR – como já aconteceu por duas vezes – não pode ser a tábua de salvação para o Moçambola chegar ao fim.

Se persistirmos nesta realidade de pouca exigência para tomar parte na maior prova futebolística do país, de descida em descida no “ranking” FIFA, só nos restará insistir e persistir na super-desgastada frase “levantar a cabeça e continuar a trabalhar”.

 

Eu vim/ para ser onda ao mesmo tempo que eu olho/ para o mar

Raquel Lanseros

 

A fotografia é a imortalidade do instante, se quisermos, a intercessão entre o efémero e a durabilidade das circunstâncias. Quem fotografa, na verdade, está a exercer o seu poder demiúrgico sobre as coisas e, sobretudo, sobre as emoções que os factos não elucidam. Então, a fotografia é a pós-revelação do que, tendo sucedido, não enxergamos na mesma proporção revelada pela imagem.

Do mesmo modo, o vigor do clique fotográfico é um veículo que nos transporta numa viagem ulterior em torno da essência… do que nos move e demove, afinal a fotografia tanto pode ser uma resposta quanto uma questão sem resposta nenhuma. Seja como for, é um lugar composto por universos (in)verosímeis, nos quais se entrelaçam histórias individuais e colectivas. Bem dito, este é o caso de Raízes de sal, quarta individual de fotografia de Mariano Silva, residente em Moçambique lá vão seis anos.

Nesta exposição constituída por 43 peças, com curadoria de Filipe Branquinho, Mariano Silva mostra-se sensível e atento às incríveis realidades a que os moçambicanos se sujeitam ao longo do litoral, concretamente, em Nacala-Porto, Ilha de Moçambique (Nampula) e Mocímboa da Praia (Cabo Delgado). De facto, aqui as fotografias cumprem a tarefa de registar o momento, e, paralelamente, vão tecendo os fios que o compõem.

Sempre alicerçado a um altruísmo explícito, eventualmente inconsciente, Mariano Silva reconstrói, nestas Raízes de sal, o quotidiano de gente abastada na sua humildade. Abastada e às vezes feliz, pois, paradoxalmente, da incerteza e dificuldade encontra no mar, esse espaço místico e poético, as respostas para a sobrevivência. Por isso, logo se vê, entre os semblantes captados pela câmara de Silva e o Índico, na invertida umbrela de tudo, está a cumplicidade de uma causa fácil de descobrir, a reciprocidade entre quem alimenta e é alimentado até ao limite das suas forças ou de geração em geração, já que aqui não morremos, transcendemos para outras vidas.

Ao mesmo tempo que o olhar de Mariano Silva se fixa nos homens, nas mulheres e nas crianças nessa tentativa de exprimir sereno o que sentiu no Norte de Moçambique, o nosso artista adiciona à realidade, que apenas ele captou, o efeito do belo que jamais alguém explicou. A beleza está na intenção ou na apresentação? Certamente, há-de estar no que cada um sente ao introduzir-se nos contextos sugeridos pelas 43 peças visualmente cheias de humanismo. Assim, como não sentir a dor dos pescadores debaixo de um sol que se adivinha abrasador? Como não sermos mais solidários com os que, à nossa imagem, se esmeram por fazer deste mundo um lugar melhor para os seus? Como não beijarmos a face dessa mulher que, de peito aberto, retira de si para o filho menor muito do pouco alimento que encontra no mar? “Há perguntas que não podem ser dirigidas às pessoas, mas à vida” (Mia Couto). A exposição Raízes de sal lembra-nos sempre disso e do valor da existência colectiva, quiçá daí apropriarmo-nos da dor que há muito tempo é esperança naqueles pescadores da sobrevivência.

Portanto, se o mar é o maior fornecedor da alegria intermitente dos homens, mulheres e crianças no litoral – olvidamos os velhos, coitados –, Raízes de sal assevera-se uma simbiose bem-intencionada entre o estético e o documental. A partir daí, as peças de Mariano Silva podem ser tudo o que quisermos: conhecimento, revisitação do lugar, choque, aproximação e catarse, o que é possível graças ao emprego de pormenores técnicos a mostrarem um Índico algo além do nosso conforto urbano.

 

*Texto de apresentação da exposição fotográfica Raízes de sal, de Mariano Silva, patente no Franco-Moçambicano até dia 2 de Julho.

É para mim um enorme prazer apresentar um livro de Clemente Bata, um autor, diga-se, já a contar com mais de 25 anos de publicação – quer em revistas e jornais, quer sob a forma de livros – e cuja actividade literária mereceu o reconhecimento nacional e internacional, como são os casos do Prémio Literário 10 de Novembro, Prémio Literário Instituto Camões e Prémio Literário da Francofonia. Clemente Bata faz parte de uma nova geração literária em Moçambique, a que começa a publicar livros a partir dos anos 2000. A sua forma de escrita é herdeira de obras consideradas, hoje, clássicos da literatura nacional, com destaque para o Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana. Aliás, é a partir desta herança que vemos o texto de Bata em diálogo com Os Molwenes, de Isaac Zita, ou com as obras de um Aldino Muianga ou Juvenal Bucuane. É com base também nestes testemunhos que Clemente Bata participa na construção da nossa literatura, consolidando a vertente realista como uma das suas características.

Porque falámos na corrente realista, um primeiro aspecto que gostaríamos de destacar em Outras Coisas tem a ver com o narrador das histórias, aquele a quem Clemente Bata delega a missão de relatar as «coisas». Clemente opta, na generalidade, por um narrador «ausente» da história que conta. Ou seja, não é um narrador pessoalizado a falar de si, não participa dos eventos narrados, as histórias existem simplesmente, tal como nós vivemos a realidade, sem que dela tenhamos algum controle. De qualquer forma, importa dizer que esta ausência é relativa apenas aos factos da história, porque, do ponto de vista do discurso, o narrador está sempre presente, ainda que o enuncie (o discurso) numa terceira pessoa: é ele que narra, isto é, seleciona o que e como narrar. Mas este é outro assunto. O que interessa aqui é que esta impessoalização do narrador faz com que a narrativa de Clemente Bata atinja uma dimensão realista que, no jogo da literatura, pretende-se inquestionável, exactamente porque é da aspiração do real que falamos.

Uma das características do realismo é a ambição de falar das coisas ao pormenor, ao detalhe quase fotográfico – e aqui é preciso lembrar que o primeiro livro de Bata é, sugestivamente, Retratos do Instante, facto que parece provar que Clemente tem uma espécie de obsessão pelo real. Ou seja, a ambição da corrente realista é a de falar das «coisas tal como elas realmente são». Nesse sentido, Outras Coisas é um conjunto de histórias captadas de situações das mais comuns de viver ou de se ouvir no dia-a-dia, mas sem nunca se transformarem em histórias banais, muito pelo contrário.

Se nos lembrarmos que o título deste livro é uma apropriação de uma expressão muito popular hoje («hum, outras coisas!»), que serve para expressar sentimentos variados, como os de indignação, espanto ou assombro, vamos perceber que o realismo de Clemente Bata pode revelar-nos um mundo em desequilíbrio, uma realidade desorientada. E para revelar esse desequilíbrio do mundo, Clemente elege a ironia como técnica de escrita, o que de resto já acontece no seu primeiro livro. De facto, o que vemos neste livro são retratos da vida sugestivamente irónicos, pois, afinal, não se trata de retratar as coisas apenas, mas de as revelar como sendo outras. Ou seja, o que se lê nestas histórias revela-nos outras dimensões da vida que não as que logo à partida percebemos, afinal, a própria vida já é irónica. Diríamos, então, lembrando Roland Barthes, para quem a literatura só pode ser absolutamente realista, que o realismo aqui patente revela-se a dois níveis, dos factos em si e dos seus significados também eles.

Um segundo aspecto a destacar em Outras Coisas é o facto de as histórias darem-se num espaço preferencialmente rural, mas também suburbano e, às vezes, entre o subúrbio e a cidade. Ou seja, as coisas de que nos fala Clemente são periféricas, não do centro urbano ou citadino, e há-de ser também por essa razão que são outras.

Aos espaços rural e suburbano junta-se um tempo que é este nosso tempo, o actualíssimo: «O embrulho», um dos contos do livro, é suficiente para ilustrar o que dizemos: uma empregada doméstica, afligida pela crise financeira, decide roubar do recheio da casa da patroa, peixe, bata e cebola, para alimentar a família que a espera. Entretanto, antes de abandonar o local de serviço, misteriosamente, o embrulho onde guardava o produto do roubo, desaparece. Afligida agora pelo desaparecimento misterioso do embrulho e com medo de que a patroa viesse a descobrir o acto, já no my love, a empregada conta o caso a um velho que, a seguir, a aconselha – conselho que aqui não vou revelar, pois cito este conto apenas para situar o tempo destas histórias como um tempo actualíssimo, para o que concorrem entidades como crise financeira e my love.

O terceiro aspecto a destacar é que ao escrever sobre a actualidade num cenário sobretudo rural e suburbano, Clemente Bata destaca temas como a morte, quer a biológica, quer a simbólica; o roubo – em Outras Coisas, rouba-se um pouco de tudo: rouba-se gado como roubam-se amores; a superstição; o insólito; o absurdo, o nepotismo; o amor; a fidelidade vs. infidelidade, a confiança vs. desconfiança. De uma forma geral, e em coesão com o espaço rural e suburbano, em Outras Coisas há também uma dimensão ancestral da vida, ou seja, os factos narrados assentam na crença na tradição e na veneração dos antepassados defuntos, um imaginário muito caro aos escritores moçambicanos, como é o caso de um Marcelo Panguana ou Ungulani Ba Ka Khosa. Perpassa, portanto, pela obra, a representação de uma sabedoria ou de uma particular visão do mundo, quer sobre a forma de máximas, quer sobre a forma de provérbios, quer ainda sobre a forma de práticas ritualísticas. Por conseguinte, essa sabedoria se faz guardiã do respeito que merecem os velhos ou a tradição representados na obra. Um exemplo pode ser encontrado em «Marozana», conto que abre o livro, quando a personagem Mpulani, para convencer Guedjo a aceitar o primeiro grande peixe que pescou na vida, diz: «– É preciso sim. É como o primeiro salário de um filho que se preze. Não se recusa…» (p. 23)

Mas, de todos os aspectos destacados, o que nos parece definitivamente interessante é o emprego da ironia. Como já o dissemos, a ironia é, de facto, a forma escolhida por Clemente para escrever as suas histórias. Ou seja, todas elas têm um quê de irónico a estruturar o destino das personagens. Quer de forma velada, quer de forma revelada, o pensamento de Clemente é, nesta obra, profundamente irónico. Por sua vez, a ironia é responsável, em alguns casos, por um humor subtil que atravessa obra. É o que se vê no já citado conto «O embrulho»: a empregada doméstica, antes de abandonar o posto de trabalho e afligida pelo medo de a patroa vir a descobrir o roubo, decide procurar na casa inteira pelo embrulho, o que a leva a fazer uma limpeza que fez admirar a filha da patroa, pois esta nunca vira a casa tão limpa como no dia do roubo. No conto «O outro lado do mar», Makhate, para se livrar da pobreza, convence a mulher, Rindza, a sentar num bar e a fazerem-se passar por irmãos que têm o pai muito doente, pelo que Rindza deveria conseguir que alguém a desse dinheiro para a saúde do pai; o resultado é que Rindza acaba casada com o primeiro homem que a conquistou, um pescador, e Makhate acaba morto, atirado ao mar. Ou seja, tanto Rindza como Makhate acabam «pescados», facto que pode alertar-nos para o absurdo dessa outra vida, ou destas Outras Coisas do universo rural ou suburbano, com as suas crenças, práticas e peripécias.

Obrigado!

 

Texto de apresentação do livro Outras Coisas, de Clemente Bata, no BCI, no dia 30 de Agosto de 2018.

Cf. Shaw, Harry, Dicionário de Termos Literários, Lisboa, Dom Quixote, 1982.

Poh!
O som seco estilhaçou a tarde, ribombou nos tímpanos, cutucou os instintos, atiçou o medo no salão de festas:

– Yuh!
Havia um “Yowê” profundo subentendido no rosto pânico das pessoas. As cabeças saltaram dos ombros. Os pescoços rodaram como periscópios assustados, na direcção do estrondo. As bocas abertas. As sombracelhas levantadas. As pupilas soltaram-se como se fossem os olhos explodir.

– Hii!
Mau jeito. A senhora pousou a mão no peito para segurar as palpitações e controlar a hipertensão. As pernas moles da cadeira de plástico não suportaram por muito tempo os gestos repentinos e o peso das matsamelas, cederam. A senhora aflita, sem entender nada, esperneia, esbraceja como se nadasse para se equilibrar na queda. Alguém gritou: “cuidado!” agitando ainda mais os presentes.

No desajeito a mesa estremeceu. Num copo cheio despejou-se algo muito valioso para o paladar. Não interessa se se partiu ou não, mas o sobressalto de salvar o copo, ou o conteúdo, atiçou a algazarra.

– Yôoo!
A aflição das mulheres é na língua materna. Com as patas traseiras da cadeira quebradas, a senhora caiu de costas. As pernas para o ar esvoaçaram uma flor com os panos da saia, da meia-saia, capulana e outros panos que lhes seguram as ádipes.
– Eish!
Estrondo, grito, agitação.
– Cuidado!

Correm tempos de medo. Muito medo. Estrondos estranhos assustam. Há muita gente a viver nas reticências. A caminhar pelas sombras. Com o coração e a consciência em delicados sobressaltos. Insônias. Há muita gente a fazer as contas, a apagar ficheiros, a limpar processos e tentar limpar o nome. Nos tempos que correm nunca se sabe quando é que uma intimação nos virá bater à porta. “Nem os chefes estão à vontade”, comenta-se.

Do outro lado da sala, um fulano redondo, com mais peso na consciência do que na barriga, saltou da cadeira como se, por engano, tivesse sentado por cima de um cacto. No salto, mais mesas sacudidas, mais garrafas e copos com líquidos preciosos em risco de desperdício.
– Cuidado!

Um homem de pouca idade manipulava tecnologia wifi e garantia música online. Nada ouvira por causa dos auscultadores. Percebeu a algazarra que já se tinha alastrado por todas as mesas do salão. Baixou o volume e afastou os auscultadores dos ouvidos como se espreitasse por uma cortina, para um lugar onde nunca tivesse estado.

As crianças, indiferentes à confusão, empinavam-se ao ritmo estonteante da música, em poses para maiores de dezoito anos. Nem mesmo o volume baixo lhes demoveu de continuar a vibrar as bundinhas.

Alguém fez de guindaste e levantou a senhora, em esforço, como se recuperasse do chão a economia nacional. Reforçou as cadeiras. Sentou-se sobre duas. Respirou fundo. Bebeu qualquer coisa que lhe refrescou a consciência. Disse “ishi!” de alívio, com a mão sobre os seios para segurar as palpitações e controlar a hipertensão. Havia um jornal sobre a mesa, ignorou a manchete com slogans anti-corrupção. Sacudiu o jornal, violentamente, com a urgência de um leque. Foi se acalmando com a energia formiga das crianças a celebrarem o primeiro dia de Junho.

Respirou, respirou, respirou. Só descansou quando percebeu que aquele estrondo fora só o rebentar desesperado de um balão com excesso de ar. E ar é nada.

Eis que fui a um colóquio… não, apresentação de um livro, disfarçado de colóquio. Na minha opinião, desnecessariamente porque é normal fazer menção à verdadeira intenção por detrás de um colóquio, até porque várias vezes, por coincidência, há livros a serem apresentados em colóquios. Bom! Então, depois do “colóquio” houve “petiscas e bebes” em redor da venda da obra.

– Ah, és de Moçambique… vocês tiveram uma história um tanto triste… e com um vizinho como a África do Sul ao lado, foi mesmo péssimo!
– Ah sim? De que fala?
– Falo do comunismo/socialismo…
– Mas fala da ideologia ou de Moçambique?
– …
– Não, é que imagino que a crítica que tenha a fazer seja geral, da ideologia, tal como lhe foi incutida na perspectiva ocidental. Deixe-me dizer-lhe isto: no caso de Moçambique, não foi tão mau assim…
– Mas e a ditadura?
– Qual ditadura? Ditadura é relativa…
– Ohohoho, nunca ouvi essa!
– Pois não, porque cresceu no tempo em que ou se era comunista ou se era democrata. Diferença equivalente ao diabo e o anjo, respectivamente… e hoje em dia, sabemos que assim não é nem nunca foi! Socialismo foi (comparativamente) o mal mais necessário para que tivéssemos a oportunidade de construir uma identidade nacional, depois da era colonial. Após o colonialismo, como é que se poderia ser pró-capitalismo? Afinal lutámos para construir uma nação ou para construir uma empresa? O capitalismo em si, nunca teve consideração para com valores de igualdade entre os Homens. Em nome do capitalismo sustentou-se a escravatura, o colonialismo, as invasões ao Vietname, Coreia, Cuba, Nicaragua (…) e o apoio aos movimentos beligerantes em África…
– Olha lá, quantos anos tens?
– Porquê?
– Vá lá, diz-me… eu tenho 50…
– E eu trinta e tal… continuando, o nosso ditador (em particular) era mais ditador para vocês e não para nós os moçambicanos. Era ditador porque não vos deixava entrar massivamente com os vossos produtos, marcas e estilo de vida virado para o consumismo sem limites! Era para vocês ditador porque escolheu o vosso inimigo como aliado! Estavam a perder zonas de influência para o inimigo, o que vos diminuiria a hegemonia mundial!
– Mas o teu querido ditador… não matou inocentes?
– Não tão aleatoriamente assim. E os vossos regimes democráticos, capitalistas, não matam inocentes? Ok. Portanto, nós precisávamos de espaço para aprender a ser donos da nossa terra; a amá-la e a criar mecanismos mentais e fisicos para defendê-la contra qualquer invasão desistabilizadora, incluindo a da globalização! Está a imaginar nós a gostarmos de Mcdonalds mais do que de um caril de amendoim?
– Isolamento, portanto. Tal como foi o caso de Cuba, que acabou moribunda e tal como é o caso da Coreia do Norte.
– Nada disso, nós tinhamos os nossos cooperantes. O que é certo é que precisávamos de tempo para incutir valores que nos identificassem como nação e o nosso ditador fê-lo de forma extremamente dedicada e marcante. Por isso é que ele é recordado em Moçambique com muito carinho, ao contrário do que deveria ser, caso tivesse sido o ditador que vocês o rotularam ser. O nosso ditador é hoje em dia fonte de princípios morais; é a nossa bíblia sagrada!
– Sabes, eu também sou socialista…
– Ahaha, em prol da diferença ou por uma questão de princípio? Sim porque anarquismo é “in” por estas bandas…
– Ouve lá, “in” com a minha idade?

Em jeito de sabotagem:

Socialismo – humanismo para com o próximo/Capitalismo ­– animalismo para com o próximo;
Socialismo – aplicação de penas de forma severa, explícita/Capitalismo – aplicação de penas severas, muitas vezes de forma oculta;
Socialismo – combate inimigos reais/Capitalismo – combate inimigos fictícios, inventados por si, para legitimar democraticamente (ou não) a sua invasão a países terceiros e ingerência em assuntos internos;
Socialismo – a maior parte de bens de primeira necessidade é grátis/Capitalismo – tudo vende-se. Se não tens dinheiro para pagar a tua estadia no hospital, a tua permanência será interrompida, sem qualquer preocupação com o teu potencial perecimento;
Socialismo – controle estatal severo, explícito/Capitalismo – câmaras por todo o lado; escutas telefónicas; hacking de computadores; todos os dados pessoais devem ser declarados em todas as instituições. Liberdade aparente, portanto…

 

Nem tudo o que agora te conto é totalmente fiel ao acontecimento. Aquilo foi mais um exemplo das tantas vergonhas que aconteceram desde o início da crise. Conto-te devido à elevada significância da instituição em causa. A realidade não enganava, o despautério andava solto.

A sessão de interpelações ao governo tinha acabado de iniciar. Os ministros já estavam habituados àquela tortura, mas prova oral que é prova oral sempre os deixava nervosos e ali estavam eles, mais uma vez, com as caras mijadas. Transpiravam. De vez em quando obrigavam os lencinhos de seda que bailavam nas mãos a beijarem as suas faces, a enxugar aquela adrenalina que se convertia em água e se exilava do corpo.

– […] O nível de roubalheira deste governo é demais. Comem tudo sozinhos. Não é assim… – disparava um homem de fato preto que falava a partir de um púlpito de madeira na sala das sessões plenárias do parlamento. As palavras saíam cansadas da boca, ziguezagueavam pela sala, carregavam nas costas o peso do sotaque changana.

– Digníssimo colega, acabou o seu tempo – interrompeu-o, com uma voz rastejante, uma senhora de cabeça rechonchuda, na qual um par de lentes permaneciam suspensas num aro metálico.

 – Sim, digníssima presidente. Já termino, só mais dois minutos! – respondeu o homem do fato preto.

– Eu disse que acabou o tempo colega. Não há nem mais um minuto! – rematou a senhora.

Havia fumo tóxico no ar. A tensão se apossava da sala. Mesmo assim há quem conseguisse adormecer naquele ambiente. Não era um, nem dois os deputados que se encontravam a tirar uma soneca enquanto a sessão decorria.

O homem do fato preto estava decidido a acabar o que restava do seu discurso. Como se aquela fosse a parte mais importante de sua intervenção, não se intimidou. Ajeitou o micro e disse:
– O que tenho por dizer não leva nem um segundo. – A senhora fez sinal que o ia interromper, mas o discurso do homem corria velozmente. Era um desses camiões que "voam parece vião". Acabou por se resignar e o deixou continuar a sua fala. – Estiveram o tempo todo a dizer que a dívida era do povo e pioraram as condições de vida de quem já não precisava de mais nenhum fardo, enquanto vocês sempre tomaram banho com água mineral e se untaram o corpo com caviar. Demitam-se, não servem ao povo vocês! – concluiu o discurso o homem do fato preto.

Enquanto abandonava o púlpito, uma forte salva de palmas que tinha irrompido do seu grupo parlamentar inundava a sala. Do outro grupo parlamentar, que apoiava o governo, gritos de reprovação ecoavam. A confusão se estabelecia. O deputado tinha metido o dedo na ferida.
– Digníssimos colegas, ordem na sala! – ordenou a senhora que tinha interrompido o homem do fato preto. Bateu a mesa com um martelo de madeira e continuou – ordem, ordem!

Depois de longos cinco minutos de desordem, a sala serenou e a presidente convidou a representante da outra bancada a gozar da palavra. A senhora levantou-se do seu assento e se dirigiu ao púlpito. Desfilava, exibia as três capulanas de cores muito luminosas que lhe cobriam o corpo.  Era a chefe da bancada parlamentar do partido do governo. Os seus partidários olhavam-na expectantes. A defesa da sua honra estava naquela mulher.

– Oprigada senhora bresidente! Senhora bresidente da Assembleia da República, excelência. Senhor brimeiro-ministro, senhores ministros e vice-ministros, digníssimos mandatários do bovo, meus bares, ilustres convitatos… excelências!  Coustaria de dizer que… – as palavras continuaram a sair da boca, mas ninguém mais ouviu.  

A luz e o som sumiram sem despedir. Fugiam rumo a um lugar onde houvesse gente com tomates para pagar as dívidas. O parlamento ficou às escuras. Alguém se esqueceu de pagar a conta de luz com recorrência. O fornecedor de energia eléctrica, cansado daquela pouca vergonha, tratou a digníssima "casa do povo" como se tratam os devedores. Cortou-lhe a energia eléctrica sem palhaçadas. Finalmente chegou à "casa do povo" o que há muito o povo vivia!

 

 

“O que tu fizeste daquilo que te fizeram?”

Jean-Paul Sartre

A história somente existe para servir-nos de lição e, quando nós nos recusamos a aprender dela, propositadamente ela se nos repete. Moçambique ruma pela sexta vez a eleições gerais e, mais uma vez, o povo é chamado a renovar as suas esperanças quinquenais de um futuro melhor. Mas quando as esperanças do povo são quase as mesmas dos tempos anteriores e continuam frustradas, urge perguntarmo-nos o que tem falhado. Terá o povo votado o errado? 

Julgo que a resposta para esta inquietação seja a condição sin qua non para um voto consciente. Assim como a pior forma de celebrar a vida é brindar aniversários sem conquistas, a pior forma de hipotecar o futuro de uma nação seria dar enésimas oportunidades de governar a um partido cuja reputação é sobejamente desqualificada. Nada é tão ilógico que um povo que confia o mandato de combate à corrupção a um grupo de pessoas que enferma do mesmo problema. A democracia requer cautela e prestação de contas. Se a maioria dos eleitores que tem dado legitimidade à mesma elite de sempre para governar o país, paradoxalmente, sente-se traída nos seus interesses, há que repensar os motivos da sua fiel escolha. 

Afigura-se-me que haja dois motivos capazes de mover um povo frustrado a eleger o mesmo governo de cinco a cinco anos.  Numa primeira hipótese, pode-se avançar que apesar de o velho partido no poder manifestar-se decadente, a oposição não demonstra maturidade suficiente para governar. Dai o povo não ver uma alternativa a que recorrer. A segunda hipótese seria que o povo continua a manter um vínculo de fidelidade com o partido no poder por questões de afinidade histórica relativas à luta de libertação. Dai haver o medo de mudança da parte do povo que se confunde com a prova de resiliência. Afigura-se-me que só dentro desses parâmetros se pode compreender o comportamento de um eleitorado frustrado, mas que continua a vergar-se perante o mesmo carrasco. 

Porém, se a maioria dos eleitores frustrados com falsas promessas, de cinco a cinco anos, tem votado contra o governo do dia, mas, incrivelmente, os resultados revelam-se contraproducentes, então a única hipótese a avançar é de que o velho partido só se mantem no poder por meio de fraudes eleitorais. Se este for o caso, a questão mais urgente a ser resolvida é que mecanismos podem ser acionados para impedir-se um processo eleitoral fraudulento?

Enquanto não se resolver a problemática das fraudes eleitorais, haverá sempre garantias suficientes de que o partido no poder perpetue-se à revelia da vontade popular. E assim as eleições não serão nada além de um meio irônico e burlesco de o partido no poder usurpar a legitimidade. Se a sociedade civil e especialmente a oposição mostram-se incapazes de impor a justiça eleitoral, então de modo algum se pode esperar a queda do partido no poder por meio das eleições. Sendo assim, para conquistar o poder, a oposição devia entregar-se à hibernação de trabalhos intensivos de justiça eleitoral, ou dedicar-se à revolução ou ao golpe do Estado – as duas últimas alternativas são menos recomendadas, excepto em Estados autoritários onde as eleições não expressam a vontade da maioria. 

Este espectro de um povo frustrado, mas que continua incapaz de afastar o partido corrupto do poder vislumbra-se em Moçambique. O descrédito da FRELIMO, o velho partido no poder, tornou-se exponencial, desde a revelação pública das dívidas ocultas em 2014, as quais mergulharam o país na pior crise económica da sua história. Do partido libertador e servidor público, a FRELIMO passou a ser vista popularmente como um grupo da máfia que vendeu a pátria por conta da ganância de alguns. E perante este golpe bilionário contra o Estado, todos os membros frelimistas deviam ser considerados no mínimo coniventes, pelo facto de eles nunca terem adoptado uma posição clara e firme sobre a necessidade de haver uma investigação transparente seguida de uma responsabilização exemplar sobre o caso de dívidas ocultas. Todos os camaradas activos e passivos tomam parte da culpa desta fraude financeira, excepto aqueles que desde início se mostraram publicamente indignados pela contratação destas dívidas ocultas que pouco depois foram tornadas soberanas – para este caso, Sérgio Vieira é digno de alusão como um frelimista contestatário. 

Entretanto, quanto mais se esperava que a FRELIMO somasse grandes derrotas nas eleições autárquicas de 2018 por conta dos seus escândalos de corrupção, o tiro voltou a sair pela culatra, dando-nos a desconfiar que o povo eleitor tenha memória curta sobre um passado tão presente no nosso dia-a-dia. Embora a oposição parlamentar se tenha mostrado desorganizada para gerir assuntos internos, tais como a sucessão do falecido líder da RENAMO, Afonso Dlhakama, e as deserções inesperadas das cabeças do MDM, num momento tão crucial para ela conquistar o eleitorado frustrado com o partido no poder, ainda assim se torna difícil justificar as vitórias municipais da FRELIMO sem causar estranheza, após a sua conexão com o fenômeno das dívidas ocultas que ameaça varrer quaisquer esperanças de um futuro próspero em Moçambique. 

Há três dados fundamentais que jogaram a favor da vitória do velho partido no poder. O primeiro tem a ver com o que parece ser o eterno agradecimento pela luta de libertação. Ou seja, uma parte do povo moçambicano ainda assume a mentalidade de que qualquer partido no poder que não seja a FRELIMO, o partido libertador, só pode ser uma traição à história de Moçambique. O lema de que a FRELIMO é que fez, a FRELIMO é que faz, para milhões de pessoas, ainda  constitui uma meta-justificação de que este governo do dia é o melhor, uma vez que nunca houve outro com o qual se possa comparar. 

O segundo aspecto é a própria oposição em Moçambique que ainda é fraca e intrinsecamente fragmentada. É inconcebível que passado cinco anos desde a revelação das dívidas ocultas associadas ao partido no poder, nenhum partido da oposição se tenha esforçado em criar uma agenda política e pragmática com objetivo de pressionar a justiça e lucrar popularmente com este escândalo monetário. Cinco anos depois, a oposição nem sequer moveu uma moção de censura contra o governo nem tampouco se dispôs a mobilizar as massas visivelmente frustradas para ao menos protestarem, exigindo o fim da impunidade neste país e a separação efectiva dos poderes. As dívidas ocultas foram e continuam a ser um campo suficientemente fértil para a oposição prosperar em detrimento do partido no poder. Mas incrivelmente pouco foi feito tanto pela RENAMO quanto pelo MDM que limitaram a sua acção em criticar e dar vaias à FRELIMO nas sessões plenárias. Esta oposição de Moçambique afigura-se-nos mais feliz com o seu papel de opor-se do que com o desejo de governar. Parece-nos que os seus membros preferem manter os seus cargos políticos com salários gordos a mobilizar as massas a uma marcha intensiva sobre problemas sérios que afligem a sociedade moçambicana já há décadas. 

Todavia, na política assim como no amor, há vezes em que os indivíduos optam por trair o seu parceiro, não porque o amante seja superior, mas devido as fraquezas ou maus tratos do amado. A declaração de que prefiro votar a oposição a votar a FRELIMO corrupta, teria sido uma das justificações séria daqueles eleitores que decidiram trocar o partido no poder pela oposição. É irrefutável que nas eleições de 2018, a FRELIMO tenha perdido um número considerável dos eleitores, mas isso não significa que a oposição tenha feito algo para conquista-los. Muitos eleitores que passaram para as fileiras da RENAMO, MDM ou outro partido da oposição não o fizeram pelo facto de eles verem os seus interesses contemplados pela oposição, mas simplesmente pelo facto de não mais simpatizar com o modus operandi da nova FRELIMO. Entretanto, se este partido continua a controlar o poder é devido à sua forte estrutura de unidade e as suas artimanhas em épocas eleitorais. O caso fraudulento das eleições na Matola em 2018 é um exemplo sobre o quão ardilosa pode a FRELIMO ser, quando se trata do poder. O seu ex-líder Armando Guebuza já dissera que o poder não se conquista, mas se arranca. Não há dúvidas que houve irregularidades tão sérias no escrutínio da Matola que exigiam pelo menos a repetição das eleições, mas porque os resultados problemáticos davam vitória ao partido no poder, a justiça foi amordaçada. Mas perante estes casos fraudulentos do escrutínio da Matola denunciados até pelo Votar Moçambique – plataforma de observação eleitoral formada por sete organizações da sociedade civil – até aonde a RENAMO que se diz injustiçada terá ido para repor a justiça? Logo que recebeu um “não” do Conselho Constitucional, a RENAMO prontamente se recolheu e voltou a sua rotina penosa de lamentação. Mas se este maior partido da oposição se mostra tão flácido para reclamar a justiça, mesmo dispondo de fortes evidências, como se pode esperar que a FRELIMO, dispondo de facilidades para cometer fraude, não o faça novamente para ganhar o poder?!

É por estas e outras razões que julgo que não vai ser em Outubro que a FRELIMO vai perder o poder, embora tenhamos de admitir que as actuais condições socioeconômicas estejam ao seu desfavor. Querendo, a FRELIMO pode manipular o processo eleitoral ao seu favor, que nada lhe acontecerá e facilmente a oposição se resignará como em outros âmbitos tem o feito. A meta-questão para eleições de Outubro não é “o que acontecerá ao país, se a oposição vencer?” – isso é provável, mas impossível de suceder. A meta-questão é “o que a oposição fará de novo perante casos de fraudes eleitorais?” De qualquer forma, as eleições de Outubro, em função do passado histórico de fraudes eleitorais não resolvidos, já estão fadadas a ser uma piada de mau gosto. E a nação devia rir até chorar ao antever que os 14.6 bilhões de meticais gastos num processo eleitoral condenado a não ser transparente poderiam ter sido investidos na educação e saúde das suas crianças. 

Hélder Augusto
O Inconvencional

 

A recente visita, do Presidente da Republica, Filipe Nyusi, a província de Tete, trouxe a público revelações pouco abonatórias em relação ao DDR, no quadro do diálogo entre o Governo e a Renamo. Os populares, no comício popular no posto administrativo de Zobue, terão informado ao Chefe do Estado sobre a circulação de homens armados nos distritos de Moatize e Barué, nas províncias de Tete e Manica respetivamente, impedindo a livre circulação das pessoas e respectivos bens.

O facto é que, o próprio Chefe do Estado reconheceu, ao afirmar que “abordou o assunto com o Presidente da Renamo em Chimoio” tendo, o Presidente da Renamo mostrado completo desconhecimento do caso, o que a ser verdade, pode revelar aquilo que muitos receavam, o fracionamento da ala militar da Renamo, com o desaparecimento físico do seu Líder, Afonso Dhlakama.

Todos sabemos que, desde a assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma, Itália a 04 de Outubro de 1992, os homens armados da Renamo viriam a retomar disparos em 2013 com o reacender das hostilidades militares sob o comando do próprio Dhlakama que, depois das conversações, foi assinado o Acordo de Cessação de Hostilidades Militares a 05 de Setembro de 2014, permitindo a realização das eleições Gerais, que levaram Filipe Nyusi a Presidência da Republica.

Por falta do cumprimento da parte de desmobilização e, porque a Renamo e Afonso Dhlakama não aceitaram os resultados eleitorais, esse Acordo de Cessação das Hostilidades durou pouco tempo, pois, em Setembro de 2015, depois de duas tentativas de assassinato de Afonso Dhlakama e seguida de acto de retirada compulsiva de armas, as hostilidades seriam retomadas a partir de Gorongosa, notar que, o AGP foi assinado entre o Presidente da Republica de Moçambique, na altura Joaquim Alberto Chissano e a Cessação das Hostilidades com o Presidente Armando Emílio Guebuza, ambos com Afonso Dhlakama.

Ou seja, Afonso Dhlakama, sempre teve um domínio completo sobre os homens armados da Renamo, com Afonso Dhlakama, sempre demostraram disciplina apurada e cumprimento do comando centrado no seu líder Afonso Dhlakama, os relatos sobre a existência destes a perturbarem a ordem e tranquilidades publicas constitui novidade desde os Acordos de Roma, sobretudo, quando Ossufo Momade manifesta desconhecimento, alias, relatos das populações falavam inclusive de recrutamento de jovens para a Renamo na província de Manca que, oficialmente, nunca foi confirmado e nem desmentido.

Ossufo Momade é desafiado a mostrar que, efetivamente, é o presidente da Renamo e que, as conversações que tem tido com o Presidente da Republica Filipe Nyusi visam colocar o ponto final as atuais hostilidades militares e politicas no nosso pais, Ossufo Momade, caso não mostre essa sua via de comando, ira cair em um total e completo descredito na sociedade Moçambicana, o pais não pode lidar com dissidentes da Renamo e os insurgentes em Cabo Delgado em simultâneo, exige-se o comprometimento da Renamo nesta causa nacional, que é a Paz.

Para já, fica a sensação de algo mal esclarecido, não é aceitável que, homens que sempre mostraram um alto sentido de disciplina e respeito ao comando centralizado, apareçam hoje, como um grupo de “bandos” por conta e risco próprio, quer crer que, Ossufo Momade, o mais rapidamente possível, deve vir a publico esclarecer isto, a bem da Renamo, da sociedade e dele próprio, salvo se a escolha tenha sido um erro!
 

 

Na esteira de quem, à luz da Lei do Desporto, não pactua com presidentes de federações ou associações desportivas com mandatos expirados, o  Conselho Nacional do Desporto  (CND) deu um “prazo” de três meses para que o basquetebol, natação e ténis realizassem eleições.

Ok, tudo bonitinho porque fazia-se cumprir com o artigo 48 na sua alínea 2 da Lei de Desporto que  refere que os “titulares dos órgãos sociais das federações e associações desportivas provinciais e distritais só podem recandidatar-se uma vez”,  sendo que o mesmo  artigo na sua alínea 1 sublinha que a “duração dos mandatos deve ser de apenas 4 anos”, dando “Ko”  a todos aqueles que teimam em perpetuar os seus mandatos. Para fins inconfessáveis.

Não demorou muito para que a recomendação caísse em saco roto. Para que o CND assobiasse para cima. Pelo menos no basquetebol, até porque o ténis e natação escolhem os novos presidentes este mês de Junho.

Com falso argumento de que “estamos em período de competições internacionais e é preciso prepará-las com atenções redobradas”, as autoridades desportivas estenderam o tapete vermelho ao presidente da Federação Moçambicana de Basquetebol, Francisco Mabjaia, para que continue até Dezembro de 2019.  Qual quê?  Atropelamos a lei que criámos com falácias dispensáveis. E o resultado é a desgraça e falta de respeito para com os atletas que temos estado a assistir. Isto é  “tipo” a  série “Show me a Hero”, na qual  David Simon narra  a história  de  Nick Wasicsko, político de Nova Iorque considerado herói trágico.

Não podemos, e nem devemos por questões morais, ignorar a banalização da selecção nacional de basquetebol sub-19 que prepara a sua participação inédita no Campeonato do Mundo da categoria, em Bangekok, na Tailândia.

O frio das madrugadas arrasta, penosamente, as atletas para um campo aberto (Ferroviário de Maputo) onde estão expostas a doenças neste tempo de inverno.
Porque estudantes, e no artifício da defesa da pátria, treinam bem cedinho (5h00) para ganharem tempo para cumprir com os seus compromissos académicos.

Sem direito a um transporte providenciado pela Federação Moçambicana de Basquetebol, algumas  atletas têm que se desenrascar fintado o perigo iminente nos becos dos  bairros para chegarem ao local de treinos.

No lugar de pensar na estratégia para vencer os seus adversários, o seleccionador nacional, Leonel Manhique, faz de motorista. É isso mesmo: é forçado a transportar algumas atletas na sua viatura particular para o local de treinos. Vê se pode!

Esvaziadas de condições básicas, as atletas não tinham até quarta-feira passada lanches. Nem isso conseguimos dar a quem, muitas vezes, sai bem cedinho de casa e depois vai às aulas.

À beira do abismo. Numa modalidade em que a condição  física é determinante, as meninas não têm sequer acesso a ginásio. É preciso improvisar, na base de pneus de viaturas, um trabalho de força  para se manter e apurar forma física das atletas. E estamos a falar de uma selecção que irá representar Moçambique numa competição planetária. Não somos sérios.

A isto, junta-se a desorganização  que assistimos no processo de preparação e participação da selecção sénior masculina nas eliminatórias da zona VI para o AfroCan.

Dando largas ao improviso, a selecção nacional teve apenas uma semana para preparar esta competição. Os dois atletas do Ferroviário da Beira (Helton Ubisse e Ayad Marques) que constavam na convocatória final apenas se juntaram ao grupo de trabalho nas vésperas da viagem.

Era, claramente, dispensável que Ubisse e Marques se deslocassem a Maputo, uma vez que a selecção nacional seguiu  via-terreste ao Zimbabwe tendo passado pela  cidade da  Beira, onde os atletas podiam ser integrados e evitar-se desgaste maior.

Não faz sentido nenhum. A viagem foi desgastante, tendo naturalmente prejudicado os atletas no primeiro jogo em que Moçambique perdeu com o Zimbabwe fazendo “tremer” a qualificação. Já sabíamos destas eliminatórias há dois anos (2017), quando tivemos uma prestação mediana no “Afrobasket”  organizado conjuntamente pelo Senegal e Tunísia.

Os atletas fizeram a sua parte, qualificando o país para o AfroCan, mesmo em meio a mediocridade gigantesca que assaltou o desporto moçambicano.

Desde princípios de Maio estou como estagiário e assistente de encenação de Fernando Mora Ramos, na mais recente produção do Teatro da Rainha, na cidade das Caldas da Rainha em Portugal. O espectáculo é “A cidade dos Pássaros” de Beranard Chartreux, dramaturgo contemporâneo francês, que vai buscar em as “Aves” de Aristófanes, um dos grandes nomes do teatro grego, um bom pretexto para discutir a degradação da democracia dos nossos dias.

Evélpidos e Pistetero, dois Atenienses revoltados com a falência da democracia da sua cidade, que já não passava dum antro de corrupção, clientelismo e outras ilicitudes, atravessam o deserto à procura de Tereu Poupa, um rei transformado em pássaro pelos deuses como paga dos seus crimes conjugais. Há nesta peça permanente diálogo com personagens da mitologia grega. Chegados ao país dos pássaros livres, Pistetero ao se aperceber da inexistência de um governo (o que justificava a harmonia e liberdade vivida naquele lugar), serve-se da sua astúcia política para manipular o povo dos pássaros livres, que de ferozes inimigos dos homens passam a ser seus escravos fieis. Pistetero de imigrante passa a ser o pai da nação. Será disso que a Europa tem medo ao fechar as comportas do mediterrâneo?

A ditadura não tarda ganhar asas e envenenar o ar. Passado um bocado Homens e deuses curvam-se aos pés do imperador. O bloqueio dos fumos sacrificiais altera radicalmente a lógica do universo. Agora são os pássaros que mandam. Ou melhor é o seu imperador quem detém todo poder da terra, do ar e do céu. Homofóbico, xenófobo e bastante centrado no seu umbigo revela-se como fiel protótipo dos líderes mundiais. Facilmente nos remete a Trump ou Bolsonaro. O resto não é difícil de imaginar. O nosso quotidiano é deveras esclarecedor.

Trabalhar nesta peça para além de servir de extensão para o meu aprendizado teatral, aprofundar meus conhecimentos em relação à encenação, dramaturgia e produção de espectáculos. Tem sido um momento de grande reflexão sobre questões políticas e sociais com as quais o nosso país se debate actualmente, por me possibilitar um olhar exterior e consequentemente mais lúcido. Diz-se que o caos só pode ser percebido melhor à distância, pois quanto mais perto estivermos mais risco corremos de nos confundir com ele. Nunca compreendi tão bem Moçambique, quanto agora. Eis a vantagem dos estrangeiros.

Nos ensaios, os olhos de águia de Fernando Mora Ramos atiram-se contra a acena como uma picareta na caça das pedras preciosas. A cada dia uma nova descoberta. Vão ficando cada vez mais significativas as falas, os gestos e movimentações dos actores que projectam no espaço a narrativa dramática. Para melhor conduzir as acções dos actores, o encenador faz questão de nomear cada estado de espírito das personagens, assim como o sentido das situações. Por exemplo chama de vocação da vénia a atitude do Arauto, – uma personagem que rompe a cena cheia de salamaleques para entregar ao novo tirano do universo, Pistetero, uma coroa enviada pelos Homens, em reconhecimento do seu poder.

Apesar de, no decorrer da peça existirem muitas cenas que satirizam e põem a nu o teatro obsceno da política, principalmente no que diz respeito à manipulação e opressão das massas. Evoco aqui a cena do Arauto por ser uma boa demostração do lambe botismo, que assaltou o nosso país. Pela sua massificação e aprimoramento arisco-me a dizer que há quem nasça com tal vocação. Não é novidade para ninguém que há gente que ganha a vida engraxando com a língua as botas imundas dos chefes. Suas excelências estão sempre certas, mesmo quando há provas claras de que empurram o país para o precipício. Com a ficha do pensamento crítico desligada dizem sim, senhor, a tudo. Como pode haver democracia num país de seguidismo?

O mais grave é a juventude que quando não se deixa embriagar pela infinita promoção da cerveja, engravata-se, acerca o chefe e de joelhos esmera-se para que lhe seja reconhecida a vocação da vénia. Faz vista grossa aos escândalos de corrupção envolvendo figuras graúdas do nosso governo. Ignora a antiga doença dos transportes e das estradas. O salário mínimo nunca chega para encher o saco no dumbanengue, muito menos para pagar água e luz, mas não faz mal. O chefe tem dado o melhor de si, merece hurras e kulungwanas. Eis o que se chama vocação da vénia!

– Ah ah ah… – com a gargalhada, desclassificou as palavras  do amigo –, mentira! – esticou  o “i" quando disse “mentira", para acrescer quilates ao vocábulo. Sequer parou de trabalhar: deu gás ao pedal da máquina de coser que acelerou como uma locomotiva endiabrada.

– Juro! – insistiu o amigo, magoado pelo descrédito (percebia-se pela testa franzida), enquanto endireitava o caqui do colete com branding duma operadora de telefonia –, eu também  não  acreditei – acentuou o sotaque da terra de vastos palmares e muito coco para a economia.

– Ah ah ah… Você conta muita estória, muitos filmes – não parava de pedalar a máquina, o alfaiate de esquina, mas começou a ponderar porque, sabia, quando um machuabo põe sotaque na voz está  sério, o que, ainda assim, ainda não garantia que fosse verdade.
– Juro! Falaram na STV.

A máquina de coser freou. As bielas abrandaram como uma locomotiva surpreendida com uma estação repentina, quando o machuabo se referiu à tv popular, como um selo para sua verdade.

– Sim, STV – reforçou com malícia, percebendo que apunhalara o amigo com o argumento e ganhara espaço na discussão. Endireitou, vitorioso, o colete da cor da empresa de telefonia e deixou-se estar, sorridente, a acariciar as recargas de telefone, com o aquele tique batoteiro de antigos jogadores de cartas.
O alfaiate demorou a reorganizar ideias. Desviou o olhar da máquina e deixou-o no chão, de modo que, com a visão periférica,  pudesse ver o amigo e descodificar-lhe a linguagem gestual.

– É possível isso? É possível um morto regressar?
– Eu também me pergunto. Mas está aí – respondeu, organizando o baralho de recargas no bolso do colete.
– Será que deus abriu os portões e autorizou o morto a voltar?
– Quem disse que ele estava com Deus? Pode ter encontrado as portas do céu fechadas, não lhe abriram porque não lhe querem lá.
– Então por que lhe mandaram para aqui. É inferno aqui?
– Do jeito que isto anda difícil, as crises… o custo de vida… a corrupção… é possível.
– E o dinheiro? Será que o gajo trouxe de volta o dinheiro que gamou? Ou Deus reteve?

Ficaram ali os dois calados, o alfaiate a olhar para o chão, para o nada e o outro para cima, entre o céu e a linha tortuosa da copa das árvores que lhe trazia lembranças dos cílios irrequietos dos palmares a fazerem cocegas às nuvens.

Devagar, a locomotiva de coser voltava a si, ganhava vapor e dava golpes progressivos ao silêncio. O vendedor de recargas, embalado pela música de coser, o som delicado da agulha a espicaçar timbilas no tecido, meteu o dedo no nariz, enquanto selecionava pela espessura, a caca, que enrolava numa bolinha e depois fazia uma catapulta com os dedos, indicador tenso sob o polegar, e arremessava  para longe, fazendo pontaria ao nada.

– As tantas todos aqueles comparsas dele são mortos que voltaram para nos atazanar. A corrupção deve ser uma praga…
– E se aqui for inferno?
– Então nós estaríamos mortos
– E estamos vivos?

O alfaiate não teve resposta. Deu uma lambidela na linha. Afinou as pestanas para ajustar a visão. Enfiou a ponta da linha na agulha… armou a máquina acelerou coseduras violentas, remendando os panos com urgência de quem se imagina a remendar uma nação.

 

Reconstruo esta memória, sentado a comer amendoim torrado que me chegou de Maputo, num dos assentos do metro de Lisboa. O metro tem como destino a Baixa-Chiado, lá onde todos se juntam e tudo acontece.

Todas as vezes que embarco numa viagem no metro desta cidade, onde todos os mundos se encontram, lembro-me das vozes, dos cheiros e dos apertos dos chapas de Maputo. Este acto de retecer andanças e lembranças nunca me ocorreu tão forte quanto nesta viagem. Cada amendoim engolido é mais um quinino que atiça a memória a revisitar de modo profundo as viagens da rota Zona Verde-Baixa, que em tempos passados eu fizera nos chapas de Maputo. 

O silêncio é o som que mais se ouve nesta e em todas as viagens que faço neste comboio subterrâneo. De quando em vez o mesmo é interrompido por um abrir ou fechar de portas quando chegamos à estação seguinte ou pelos incontidos galanteios que as rodas fazem aos carris. Cada pessoa entra, senta, namora o silêncio e chegado seu destino levanta e se vai embora sem a quem dizer um singelo tchau.

Para quem já andou de chapa, à primeira vista, a realidade revela-se uma patranha deveras estranha.

Faço contínuo requerimento à memória para que ela me conceda o obséquio de visitar uma viagem em que o silêncio fez morada nos chapas de Maputo e em jeito de indeferimento tudo que ouço é "Baixooô, Baixa, Baixooô" que um jovem que se apoia na porta de uma viatura de marca Toyota Hiace grita como se de uma música se tratasse. Em seguida, como que seduzidos por tal cantar vejo gente em catadupa correndo para aquela viatura. Depois de uma forte luta vejo-a cheia de alguns dos que há instantes trocavam empurrões para nela garantir o seu assento. Estão sossegados e prontos para assistir o concerto clássico que terá lugar no seu interior. A lotação da viatura é de quinze lugares, contudo quando me esforço para contar vejo um pouco mais de vinte e cinco pessoas, umas sentadas e outras que nos próximos minutos, quiçá horas, permanecerão de pé. Não tarda para se acomodarem naquele desconforto e a viatura começar a ganhar movimento.

As imagens e os sons que a memória me faz revisitar tornam-se opacos quando paro para tirar a casca do pouco amendoim que me sobra.

Deglutido o amendoim tudo volta a ganhar luz. No fundo ouve-se "Massinguitane" de Mr. Bow e este é abafado por uma cacofonia de vozes, algumas discutem política, outras se queixam do preço da couve que subiu, outras narram com tanto orgulho as proezas conjugais que protagonizaram na noite passada. Contudo, o que mais me chama atenção é um jovem que se encontra no seu melhor, a paquerar uma rapariga. Diz ele à rapariga "U xonguile wene", que significa tu és bonita. A rapariga como um girassol galanteado por aquela luz incandescente que ilumina os dias de Maputo deixa o sorriso escapar-se-lhe pela boca.

Junto à porta do chapa protagonizam uma cena menos romântica duas senhoras que a falta de assento e o ardente desejo de seguir viagem as obrigou a embarcar naquela viatura onde tudo se mistura. 

– Senhora não me pisa! – grita uma delas.
– Não te pisei, te encostei mamã! – responde a outra com um tom jocoso.
– Me pisaste sim! Sabe o que é encostar alguém? – responde a ofendida num tom de voz que denota que o céu está nublado e nos próximos minutos terá lugar uma tempestade se as coisas continuarem no mesmo estado.

Segundo findo tudo fica escuro, Lisboa e Maputo partilham o mesmo espaço.  Num rodopiar sem legenda, noite e dia se confundem. Desta vez as lembranças não se tornam opacas, mas sim se esvanecem por completo. Dou-me conta que acabei o amendoim que minha querida mãe enviara, e o metro acabara de parar numa estação com o nome Baixa-Chiado. É o meu destino, penso.  Com as lembranças mais vivas que nunca, o meu semblante fica enrubescido e abandono este comboio subterrâneo sem alguém a quem dizer um simples adeus, tal como muitos que por aqui passam. 

 

Introdução

Sobre literatura

A literatura moçambicana teve e tem vários estudiosos e teóricos. Por questão de economia de tempo, apenas destacarei Fátima Mendonça, docente da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane.

No seu livro intitulado: Literatura moçambicana – a história e as escritas, publicado pela Faculdade de Letras e Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, em 1989, periodiza a Literatura Moçambicana, desde os primórdios até à proclamação da independência, emprestando-lhe marcos descritivo das diferentes épocas que ela foi atravessando ao longo do tempo, para sua melhor compreensão.

Sobre cultura

A cultura moçambicana não é mais nem menos que uma associação de diversas subculturas autóctones, cada uma no seu espaço geográfico, num território vasto, cuja superfície atinge cerca de 800 000 km². Outros aspectos sobre este assunto veremos num outro desenvolvimento, mais adiante.

Periodização da Literatura Moçambicana

Assim, a Literatura Moçambicana está dividida em três grandes períodos históricos:

O primeiro período vai de 1925 a 1945/47:

Este período marca o surgimento, em Moçambique, de uma literatura da língua portuguesa com carácter sistemático, determinado pela política de assimilação e pela política educacional do estado colonial. Corriam os anos 20. Este surgimento contrapunha-se àquilo que era a expressão popular veiculada por meio de fábulas, lendas, mitos, narrativas de carácter oral, que, por questões de sistematização académica se veio a denominar de oralidade, oratura ou, simplesmente literatura oral, portanto, sem qualquer registo escrito e cuja produção era local, étnica ou regional, transmitida de geração para geração, profícua, mas volitiva. Urgia que se passasse da oralidade à escrita.

O segundo período vai desde 1945 a 1964:

Avulta-se uma nova literatura em Moçambique, cujo marco importante, é 8 de Novembro de 1947, em que, um homem chamado Augusto dos Santos Abranches, dinamiza, numa acção individual que se veio a mostrar transitória, a eclosão de um dos mais dinâmicos momentos da história literária, antes da independência.

O terceiro período vai desde 1964 a 1975:

Verifica-se, já, uma produção literária que revela uma forte complexidade deste período. Quebra-se a relativa homogeneidade dos dois períodos anteriores. O surgimento e a acção do Movimento de Libertação Nacional, faz emergirem três grandes vectores ou linhas de força:

  • A literatura produzida nas zonas libertadas incluindo

a clandestinidade nas cidades.

  • A literatura produzida nas cidades por intelectuais

que, em geral, assumem posições ideológicas de distanciamento do poder colonial.

  • A literatura produzida para afirmar a ideologia

colonial na sua expressão luso-tropicalista.

Proclamada a independência de Moçambique, continua-se com as influências do 3º período, já com um leme distintivo a guiá-las – a Revolução Moçambicana, que levava a uma literatura de cariz marcadamente panfletário político.

Actualidade da Literatura Moçambicana

Pretensamente, arriscar-me-ia, por conta própria, a aventar um quarto período que vai de 1975 a esta parte, perpassando pela criação da AEMO, em 1982. Teve o seu auge entre 1984 e 1987, envolvendo jovens que, com a sua visão utópica tiveram a ousadia de enveredar pela reinvenção da literatura moçambicana e quebrar os paradigmas prevalecentes do tempo já derrubado. Um feito cujos reflexos, ainda perduram, à força da grande mudança operada, e da vontade da juventude se afirmar interventiva.

Em Moçambique, a literatura ganhou contornos inusitados, cerca de uma década depois da proclamação da independência, com o surgimento de um grupo de jovens, na Associação dos Escritores Moçambicanos, cujas práticas, romperam com as formas anteriores, baseadas na luta de resistência à ocupação colonial e na Luta de Libertação Nacional. A ocupação, o luso-tropicalismo e a guerra colonial já eram águas passadas, importava era renovar o tecido literário moçambicano, sair da opressão para a liberdade Intelectual. Sair da censura institucional, para a liberdade de expressão ou seja, os escritores e poetas passaram, eles próprios, a exercer uma autocensura dos seus textos, de acordo com a sua consciência perante os novos valores trazidos pela Revolução. Esse grupo fundou, em 1984, a Revista Literária e o Movimento Charrua, um marco importante na história contemporânea da Literatura Moçambicana.

Nos tempos que correm, assiste-se ao surgimento de muitos escritores e poetas jovens reunidos em grupos culturais multifacetados, numa acção multidisciplinar que, consciente ou inconscientemente se guindam sobre a plataforma criada por aquele movimento.

Estou, apenas a tentar dizer que, para se falar de literatura, seja qual for o seu domicílio ou quadrante originário, deve-se, em primeiro lugar, situar em quê é que ela se funda. A literatura moçambicana teve quem, inicialmente a abraçasse e desenvolvesse. Nós, seus continuadores, recebemos essa valiosa herança, e temos a missão de a preservar, aperfeiçoar, de acordo com a nossa realidade objectiva e expandir, cada vez mais, como uma das nossas marcas identitárias,

Hoje, a literatura em Moçambique, evolui, a olhos vistos, em moldes sem precedentes, os seus praticantes ou participantes, como se queira, são, maioritariamente jovens que não obscuram as velhas gerações, para se aconselharem. Paulatinamente, a Língua portuguesa, de L2 ou estrangeira, vai-se tornando L1 ou materna, para uma considerável franja da população moçambicana, sobretudo a urbana. Hoje, neste país, a literatura em língua portuguesa, é livre e dinâmica, e preocupada com a estética linguística, em conformidade com a realidade quotidiana da sociedade.

 

Enquadramento da língua portuguesa em Moçambique

 

A língua portuguesa é o principal vector de comunicação do povo moçambicano. Assim sendo, é o idioma literário em Moçambique, adoptado como língua oficial deste país, nascido da independência nacional, proclamada a 25 de Junho de 1975. Aliás, durante a Luta de Libertação Nacional, foi proclamada Língua de Unidade Nacional. De outra forma não poderia ser, uma vez que Moçambique é um mosaico de diversas línguas autóctones, ou locais, ou étnicas, que, pela sua limitada abrangência, não permitem que todo o povo moçambicano se comunique eficazmente. Por enquanto, não se vislumbra, tanto a curto quanto a médio prazos, a adopção, pelo menos, de um idioma, de origem moçambicana, que possa servir de veículo literário ou de comunicação global.

Foram selecionadas, a nível do ensino primário, algumas línguas para fins de ensino bilingue, em conexão com o Português, em escolas primárias rurais, para que evoluindo em moldes comparativos, as crianças, facilmente se possam apropriar da Língua Oficial.

No nosso país, está entranhado o pé gigante de Aquiles, precisamos de acertar a nossa flecha no seu calcanhar para podermos avançar. Em todos os períodos anteriormente mencionados, a leitura era um acto primordial para todas as idades, principalmente para os jovens, maioritariamente estudantes. A leitura era um dado adquirido, era incentivada das mais variadas formas. Até se lia, com sofreguidão, autores de países estrangeiros, traduzidos para português, alguns interditados pela administração colonial. Estes livros circulavam clandestinamente, de mão em mão. Depois de levantada a interdição, a leitura continuou a ser um costume salutar e prazeroso. O surgimento da Revista Literária Charrua e do Movimento do mesmo nome, ajudou a incrementar o gosto pela leitura. No entanto, contrariando este entusiasmo, notou-se uma fuga paulatina, ao contacto com o livro, pouco mais de dez anos depois da independência, justificada por diversos factores sociopolíticos, económicos e culturais que levaram à adopção de outras prioridades mais imediatas na vida das pessoas, e o fenómeno evoluiu até ao estado em que hoje nos encontramos. Pouca gente a ler, o que influi bastante na política editorial; poucas tiragens e, por isso, o livro muito caro e, daí, a afugentar-se os leitores, gente de baixa renda para enfrentar o alto custo de vida dos tempos actuais. Consequentemente, muitos estudantes secundários chegam à universidade, sem sequer, ter lido, ainda, um livro literário. Existem estudantes com tremendo deficit cognitivo, o que não ajuda em nada para o desenvolvimento do país.

Actualidade

Estamos, presentemente, envolvidos num esforço tendente a fomentar a política de Mobilidade e Circulação do Livro e dos Escritores, no contexto da criação artística, dentro da CPLP, aglutinando múltiplas sensibilidades, numa comunidade interpretativa, ou seja, os autores literários e artísticos, de um modo geral, e os leitores e apreciadores da arte, em volta da obra criada, num pleno exercício interpretativo denominado Estética da Recepção.

Há duas semanas, realizou-se em Maputo, sob a égide da Editora Cavalo do Mar, de 7 a 9 do mês corrente, o Festival Internacional de Literatura denominado: Resiliência 3, envolvendo escritores, académicos, editores e personalidades destacadas em outras actividades intelectuais afins, oriundos dos países integrantes da CPLP, cujo mote foi a situação actual das literaturas desses países. Naquele encontro discutiu-se a mobilidade dos autores desses países, a circulação das suas obras, no sentido de se reduzir distâncias culturais. Penso que esse tipo de realizações é salutar para o desenvolvimento que se deseja no seio desta comunidade. A literatura, sobretudo, é veículo muito importante para ajudar no alcance dos seus propósitos. É necessário que nos conheçamos profundamente, primeiro, dentro das nossas fronteiras nacionais, para depois podermos ter capacidade de fazer que os outros nos reconheçam! É caso para se dizer: Limpemos bem a nossa casa, para que as visitas nos admirem e nos acolham, sem reservas, e na igualdade, no seu próprio meio!

Em Moçambique temos, como tivemos no passado, talentosos escritores e poetas, mas uma comunidade leitora, quase inexistente; os escritores e poetas, são marinheiros prontos para grandes viagens, mas falta-lhes mar para lançarem os seus barcos. A ausência assustadora da leitura condiciona o nosso desenvolvimento! A Educação, desde tenra idade, envolvendo principalmente a intervenção dos núcleos familiares, deve ser o nosso primordial desafio, por enfrentar. 

Sobre a cultura moçambicana

A cultura moçambicana é um grande legado geracional que foi atravessando os tempos, espartilhado etnicamente, por via da dominação colonial, ou seja, os grupos étnicos, então denominados de grupos folclóricos, estavam acantonados nas suas regiões e se desenvolviam culturalmente, em moldes locais. Estes grupos serviam, no seio da administração colonial, como cartões de visitas para abrilhantar recepções de destacadas personalidades da administração colonial, nos aeroportos e noutros locais eleitos para a demonstração do poder colonial. Assim foi ao longo de muitas gerações. Até que os ventos da mudança começaram a soprar, vindos do Norte, onde um grupo de jovens decidiu juntar-se numa frente contra o sistema colonial. O grupo aglutinava gente ida de quase todas as regiões de Moçambique. Os que iam chegando, traziam consigo o frenesim da sua origem. E, a pouco-e-pouco, os microcosmos foram confluindo num imensurável movimento de libertação. Era o despertar de uma cultura rica de nuanças, em que cada grupo étnico constituinte se sentia integrado num povo – o povo moçambicano.

A nossa bandeira, a língua oficial que adoptamos e o nosso hino nacional, simbolizam a nossa unidade nacional. Vivemos uma impressionante miscigenação étnica, mas também rácica, em razão de gentes de origens diferentes no mundo, escolherem este país para a prossecução da sua vida.

Vários grupos de canto e dança despontam de tudo o que é canto em Moçambique, e enriquecem o património cultural, na sua materialidade e na sua intangibilidade; enaltecem a identidade moçambicana.

Bienalmente, sob a égide do Governo Moçambicano, representado pelo Ministério do pelouro cultural, são realizados festivais culturais provinciais de apuramento, envolvendo variadíssimas modalidades culturais moçambicanas. Nestas manifestações são apurados grupos que vão representar as suas províncias no Festival Nacional de Cultura, numa província cooptada no festival nacional anterior, o que mostra o carácter rotativo do evento.

Nesta manifestação, celebra-se, verdadeiramente, a diversidade cultural em que, adolescentes, jovens e adultos, de ambos os sexos e sem qualquer tipo de descriminação, juntam-se em festa, para a celebração maior da identidade moçambicana. Lembrando a lapidar inspiração de Samora Machel: "A cultura é um sol que nunca desce!"

É uma cultura vibrante, que enaltece, com as suas cores diversas, as cores do Arco-Íris, a existência de um povo que, orgulhosamente, é parte integrante do tecido das nações que fazem o mundo.

O Grupo Cultural de Canto e Dança, de Moçambique, que integra, no seu vasto reportório, números representativos de todas as regiões moçambicanas, é a expressão mais eloquente, sublime das manifestações culturais no nosso país. Neste grupo exprimem-se: o canto, os movimentos corporais ou coreográficos, a declamação poética, a dramaturgia e o traje marcadamente africano, em evocação da ancestralidade do nosso país.

A cultura, seja ela qual for, é uma expressão profunda da identidade de um povo. Este identifica-se através dos diferentes aspectos que exprimem os sentimentos das comunidades que serve. Por isso diz-se: "Não há povo sem cultura ou seja, um povo é o que é, porque moldado pela sua matriz cultural.

Conclusão

Concluo dizendo que o entrosamento da literatura escrita na cultura moçambicana, trata-se, como se vê, de uma engenharia de restruturação ambiental sobre a preexistência colonial que foi sofrendo uma profunda reinvenção, ao longo do curso do tempo, em relação ao que era negativo e ofensivo. Sobre a oralidade secular que torna efêmera a nossa história, nasce a escrita que perpetua as marcas da nossa existência como povo.                                                                                                                    

De toda a maneira, os moçambicanos continuarão a beber do melhor que o passado lhes legou, para alicerçarem o presente e perspectivarem o futuro.                                                                                                                                                                                                                     

Maputo/Lisboa, 28 de Maio de 2019

 

 

 

Ao Cremildo Nota e Romeu Artur, Tete também é nosso lugar.

 

Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar.

Bernardo Soares

 

“Como se a manhã do tempo despertasse”, “Poemas de Moatize”, “Outras fronteiras: fragmentos de narrativas” – igualmente título da obra – e “O Índico em Marrakesh”. Estas são as quatro partes que compõem o recente livro de Ana Mafalda Leite, lançado no Brasil, pela Kapulana, e em Moçambique, pela Cavalo do Mar.

Logo nos textos iniciais, a autora deste Outras fronteiras: fragmentos de narrativas apresenta um afã literário concretizado com muito afinco, daí o equilíbrio entre o saber, a vocação e o sentido sensorial sobre as coisas. A partir disso, é recorrente a entrega dos sujeitos textuais na enunciação do afecto pelos objectos e lugares (enquanto tradutores de uma atmosfera específica) com realce para as emoções consequentes. Nada disto é feito de forma linear ou absoluta. Pelo contrário, tudo sucede com recurso ao retrato fragmentado das circunstâncias e do que as mesmas significam, numa aposta quase obsessiva quanto à revisitação de contextos particulares.

Numa entrevista cedida ao jornal O País, este mês, Ana Mafalda Leite afirma que, com o seu livro, quis colocar Moatize no mapa literário. De facto, ao ler-se Outras fronteiras fica-se com esse entendimento, afinal aquele distrito de Tete aparece amiúde apresentado como a síntese do que realmente importa: a casa grande, sem número ou inumerável, o sítio de onde se parte e para onde se regressa.

Ocupando Moatize uma dimensão muito privilegiada na memória de Ana Mafalda Leite, na verdade, é apenas uma porção do que a província de Tete, com destaque para as zonas frias do norte (Macanga, Angónia, Marávia), representa para a autora que lá viveu o limiar da existência: “No princípio havia chauta (deus) e a terra parada/ um dia um relâmpago imenso desenhou nos céus/ a chuva/ que trouxe à terra o homem e todos os animais// pousaram nos planaltos da marávia e da angónia” (p. 33).

No excerto acima e noutras passagens do poema “A lenda da criação” está explícita a visão cosmogónica do sujeito poético, a quem cabe a reformulação da origem da humanidade, das suas circunstâncias, logo, da vida na terra.

Além disso, na fixação por Tete, Ana Mafalda Leite versifica elementos importantíssimos da oralidade nyungwe e nyanja, especificamente concernentes à cultura nyau (a qual implica a dança com o mesmo nome considerada Património Oral e Imaterial da Humanidade pela UNESCO), os ritos de passagem e as crenças atinentes à vida após a morte. Do mesmo modo, há aqui um trabalho sobre identidades que rompem fronteiras, espaços condicionantes da liberdade de ser e de existir. A visão da poetisa, nesse sentido, é holística ao estilo antropológico. Por isso Outras fronteiras mescla erudição vivencial com os domínios culturais, sociais, históricos e geográficos. Há-de esta a razão do livro ser rico do ponto de vista do movimento: de Moatize para Marávia, de Macanga para Angónia ou do Centro de Moçambique para o mundo.

Chegados aqui, ocorre-nos essa frase extraída de O livro do desassossego, de Bernardo Soares: “Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar”. É uma posição complexa esta de um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Aqui é invocada porque em Outras fronteiras escapa a sensação de que os homens vivem conhecendo-se mal como povo e como espécie. Então o convite não poderia ser outro, senão o de pensarmos e repensarmo-nos a partir dos lugares a que pertencemos até um domínio mais amplo. Por essa via, Ana Mafalda Leite cumpre a importância de fazer da literatura um instrumento de compreensão de especificidades locais, de modo que o todo faça mais sentido.

Título: Outras fronteiras: fragmentos de narrativas

Autora: Ana Mafalda Leite

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 15

 

O homem abriu a porta. Uma esteira de ar fresco beijou aquele ambiente colonizado pelo álcool e cigarro. O casaco cinzento que oprimia a barriga do homem não a impediu de ser a primeira a atravessar a porta. O bar já estava às moscas, apenas os bêbados de todas as horas teimavam em ficar. As marandzas mamavam apaixonadamente os bolsos daqueles homens. Tinham ficado poucas, não enchiam nem duas mãos.

– Chefe Chande! Só agora? – gritou uma voz que vinha do balcão.

Enquanto caminhava em direcção ao lugar de onde vinha aquela voz, o homem esbarrou num massopene que andava por ali.

– Estás a me gunhar e nem dizes desculpa? – perguntou irritado o massopene, enquanto seguia o homem.

O homem continuou a caminhar sem dizer uma palavra. Era como se estivesse a ser teleguiado em direcção ao balcão. A memória cuspia-lhe os factos e a preocupação o beijava.

– Grande abuso! Não dizes nada mesmo? – gritou o massopene enquanto colocava o seu corpo esquelético em frente ao do homem. A marcha do homem cessou e ficaram os dois parados no meio do bar a se fitarem. O clima ficou tenso. Os restantes bêbados viraram os olhos para aquela cena que se desenrolava.

– Vai pedir desculpa por bem ou por mal? – perguntou o massopene.

Bar sem confusão é como política sem aldrabices. O massopene estava disposto a tornar aquilo num bar como deve ser, com confusão a rebentar pelas costuras.

– Amigo, sai da frente!

– Eh afinal fala – disse o massopene com gargalhadas onduladas pelo álcool a intercalarem as palavras.

Perante a recusa do massopene, o homem afastou-se para o lado. Mais uma vez ele estava lá.

– Mas você acha que pode me gunhar e passar assim sem dizer nada?

 – O que queres afinal? Deixa-me em paz, porra!

– Já estás a gritar para quem assim? – perguntou o massopene, enquanto tirava da mesa do lado uma garrafa.  

De repente os estilhaços da garrafa coloriram o chão. Os bêbados aproximaram-se e começaram a pedir aos gritos que se enfrentassem logo. A situação estava a ficar feia. O massopene apontou o homem com a metade da garrafa que reluzia nas suas mãos e exigiu as suas desculpas.

 – Vai continuar a se fazer de desentendido ou vai pedir desculpas?

– Amigo é melhor colocar essa garrafa bem longe daqui senão vais acabar ferido!

– Eh esse gajo tem abuso pá! – o massopene irritou-se e esticou a mão com a garrafa para o pescoço do homem.

Num golpe de mestre o homem esquivou e deu um soco forte no focinho do massopene. Caiu imediatamente. O servente apareceu no lugar onde acontecia a confusão e segurou o homem. Os restantes aumentaram os gritos, pediam que o servente largasse o homem e deixasse a luta continuar.

 – Chega de confusão aqui! Vão lutar nas vossas casas – gritou o servente.

O massopene levantou-se e fez intenção de querer continuar a luta.

– Eu disse que já chega! – gritou o servente – todos a voltarem para os seus lugares –continuou, enquanto batia as palmas como quem desejava chamar à atenção.

Os ânimos serenaram. Cada um voltou para o seu lugar e o servente caminhou com o homem até ao balcão. O massopene, com o nariz a sangrar, caminhou cambaleante para a saída e disse:

– Mas tu achas que podes me gunhar e não pedir desculpas? Ainda não acabou isto, vais pagar…

Já no balcão, o homem ajeitou-se e estacionou o seu traseiro num dos banquinhos que estava ali perto.

– Você também chefe Chande, se meteu com aquele massopene mesmo?

O homem não respondeu.

 – O que vai ser? – perguntou o servente.

– Um uísque duplo, faz favor…

– Sempre que vens aqui tens algum problema! De certeza hoje também deve haver algum… O que é desta vez?

– Ando stressado – o homem fez uma pausa e suspirou antes de continuar – encarregaram-me de comandar a extradição de um tubarão para o país!

– Ah chefe Chande! Você é da velha escola…

– Não para isso pá! Nada pode falhar, é a volta daquele ministro…

– Eh então a extradição é mesmo definitiva! Mas haverá condenação?

O homem recebeu o copo que o servente o entregou e se afundou no gole.

 

 “Kumangala inga kuteta, quer dizer, meter queixa primeiro, não é julgar”, provérbio chope.

Na traquinice infantil, quando nos apercebíamos que cometemos um erro, corríamos à mamã ou ao papá para anteciparmos a queixa sobre algo que sabíamos de antemão que seria nos desfavorável, quando a mamã ou o papá procedesse ao “julgamento” e concluísse que o queixoso era o culpado e o “condenava” este chorava copiosamente, alegadamente, porque foi o primeiro a queixar, por isso não via razão para que, a mamã ou o papá desse razão ao outro, desta manifesta insatisfação, os adultos diziam “há momento de queixar e há momento de julgar”, por isso, queixar não é julgar.

Este intróito, do provérbio chope, vem a propósito da longa-metragem que é o “caso Chang” detido em Johannesburg, na África do Sul, quando estava a caminho de férias em Dezembro último, realmente, a detenção do ex-Ministro das Finanças foi a pedido das autoridades da Justiça Americanas que, inclusive tinham o programa de julgamento traçado, com datas e horas, o que viria a ser frustrado pelo intrincado processo judicial que teve de correr nos tribunais da África do Sul e, a consequente entrada de Moçambique na disputa do seu cidadão.

Como se sabe e é público, a República de Moçambique acabou por “ganhar” esta fase do jogo, esperando que, havendo outras fases, como se acredita que haverão, continue “imbatível”. Nos tribunais sul-africanos, ao analisarem o mérito dos pedidos de extradição, concluíram que, o ex-Ministro das Finanças, tanto poderia ser extraditado para os EUA, como poderia ser extraditado para a República de Moçambique e passou a “bola” ao executivo que, na sua análise, através do Ministro de Justiça e Assuntos Correccionais, Michael Masutha, concluiu que, para melhor servir a justiça, Manuel Chang deve ser extraditado para a República de Moçambique.

Michael Masutha, na sua análise, pesaram os seguintes factores, o facto de Manuel Chang ser cidadão Moçambicano, que a vontade do próprio arguido ser de regressar e enfrentar a Justiça do país, o delito foi cometido enquanto Ministro do Governo de Moçambique, a dívida contraída onerou a Moçambique e os interesses de Moçambique, nos termos seguintes “notei que o pedido dos EUA foi apresentado algumas semanas antes do da República de Moçambique. No entanto, tendo considerado o assunto no seu contexto completo, tendo em conta os critérios contidos no tratado de extradição EUA-SA, por um lado, e o protocolo de extradição dos Países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), por outro, bem como os factos relevantes, estou convencido de que o interesse da Justiça será melhor servido pela adesão ao pedido da República de Moçambique” decidiu Michael Masutha.

Desta decisão, o Lobby nacional, a favor de extradição, para os Estados Unidos da América, reagiu de forma enérgica, considerando que, a decisão é mais política do que de Justiça, este Lobby “esqueceu-se” do roteiro processual e a quem cabia a última palavra deste intrincado processo, alguns analistas condenam a decisão por ser tomada numa altura em que, o Governo da África do Sul está em período de gestão, porque houve eleições e que o novo Presidente, que coincide ser o mesmo, Cyril Ramaphosa, ainda não tomou posse e consequentemente, não formou o novo Governo, outros ainda evocaram a fraterna irmandade entre a Frelimo no poder, de que Manuel Chang foi Ministro e o ANC na África do Sul, também no poder, chegando ao ridículo de considerar a decisão uma autêntica “aberração”, afinal, para que servem os acordos de comunidade? As relações de amizade e de fraternidade? Em algum momento terão de ser evocados!

A oposição do Lobby nacional e juristas a favor de extradição para os Estados Unidos da América, emergem vozes autorizadas como a de Peter Gastrow, assessor sénior da Iniciativa Global contra o crime organizado transnacional, uma organização internacional da sociedade civil, que considera de nula qualquer tentativa de recurso da decisão do Ministro Michael Masutha e justifica que “não há apelo possível para o Tribunal Constitucional porque a decisão é executiva e não judicial”, para este renomado jurista, até pode se tentar, no entanto, as hipóteses de sucesso são nulas. Por seu turno, André Thomashausen, reconhecido Professor de Direito Internacional diz que, é provável que, a extradição ocorra mesmo antes do recurso dos Americanos.

É preciso recordar que, o Professor André Thomashausen, conhecido nos meios políticos nacionais como assessor do falecido Líder da Renamo Afonso Dhlakama, em tempos defendeu a ideia de que o Protocolo da SADC não seria considerado porque não tinha sido ratificado e por conseguinte, não estava em, vigor, hoje, aparece a defender a ideia de que, a extradição poderá acontecer mesmo antes do recurso entrar e, evoca o Lobby político neste intrincado processo.

Os Americanos conseguiram o que queriam, fragilizar o Governo de Moçambique.

Por outro lado, existe a ideia de que, os Estados Unidos da América terão conseguido os seus objectivos neste processo, que era de fragilizar o Estado da República de Moçambique e imiscuir-se nos seus corredores para melhor tirar proveito da exploração de Gás na Bacia do Rovuma, se estamos recordados, são as empresas norte-americanas a actuarem na Bacia do Rovuma que “aguçaram” apetites da nomenclatura Moçambicana, quando, de forma insistente, diziam que, gastavam perto de 300 milhões de USD/dia, para a segurança do pessoal e equipamento no mar, dando origem as empresas Proindicus e MAM, ora, o principal Procurador de Nova Iorque sobre as dívidas ocultas foi contratado pela ExxonMobil, trata-se de Matthew Amatruda, sabido que, o antigo CEO da mesma companhia com interesses na Bacia do Rovuma é Secretário de Estado no governo de Trump.

A este propósito, a Zitamar escreve e o Semanário Savana o cita a dizer que “houve sempre ligações próximas entre o Governo dos EUA e a ExxonMobli como foi demonstrado, com a actual administração, quando o Presidente nomeou o CEO da Exxon, Rex Tillerson, para Secretário de Estado” mais adiante diz “não seria a primeira vez que os EUA eram acusados de flexionar o seu poder jurídico internacional de uma forma que beneficia negócios Americanos no estrangeiro”, esta notícia, na minha opinião, não deixando de condenar e responsabilizar as “dívidas ilegais” merece maior reflexão sobre o interesse nacional, neste processo todo, os Americanos saem a ganhar, porque fragilizaram o nosso Governo!

O homem Um abriu a braguilha. Soltou a arma do crime. Arregaçou o capuz do prepúcio. Descontraiu os músculos da bexiga, em permissão aos líquidos rebeldes, e deu aquele suspiro profundo, de alívio. Um veículo atravessou a rua de tráfego morto àquela hora. Fiapos de luz dos faróis indiscretos reluziram no arco da urina que regava a árvore. Percebeu os salpicos sobre os sapatos e sobre as calças. Ajustou o ângulo e a pressão do jacto. Sacudiu. Recolheu.

O homem Dois, encostado à minibus escura da cor da noite, sem tirar o palito da boca, deu um trago intenso no que restava do cigarro e atirou a beata para o chão. O palito rodou na boca, de um canto para outro, em sinal de nervosismo. Dentro da minibus, o Três, o Quatro, o Cinco, o Seis, o Sete, o Oito, o Nove e o Dez embaciavam os vidros com a respiração ansiosa.

O homem Um limpou nas calças os respingos de urina que tinha nos dedos. Afastou meio rosto da sombra e espreitou, ao jeito dos clássicos policiais, para o outro lado da rua, para a porta do edifício antigo, donde se deveria dar a aparição de Fátima e então, agirem. Olhou para o Dois, depois para o pulso sem relógio e de novo para o Dois. Estava na hora de se posicionarem.

O homem Dois dobrou os dedos e deu dois toques no vidro da minibus. A porta de correr abriu-se, o homem Três saiu, lento, sem convicção nos movimentos. Ouviu as instruções mas não se mexeu.

O homem Três estava de braços cruzados, tronco curvado, pose de reivindicação. Abanava a cabeça para os lados. Às vezes soltava os braços, atirava as mãos em gestos de protesto e acariciava o indicador no polegar em sinal de dinheiro. O Dois ergueu o indicador e apontou, ameaçador. O Três manteve-se cabisbaixo mas firme. Sacudia a cabeça para os lados.

O homem Quatro saiu do carro, em reforço. Especou-se atrás do Três, enrolou os braços sobre o peito, afastou as pernas como uma árvore de raízes largas que se recusa ao derrube, e torceu o focinho. O homem Cinco não saiu do carro. Pendurava a cabeça para fora do veículo, repisava os argumentos dos outros e voltava para a toca.

O homem Seis escancarou a porta de correr para que os de dentro do carro fossem também plateia e dessem mais voz ao protesto. O Dois, acuado, fingiu iniciar um discurso e calou-se. Deixou o discurso pendente. Tirou do bolso um maço de cigarros. Pendurou um na boca. Demorou com os fósforos, ganhava tempo. De cigarro aceso, encenou estar entretido com os tragos de fumo. Disse “calma", com a palma da mão, fechou os olhos quando sentiu a fuligem da nicotina queimar-lhe as vias. Falou algo que parecia um puzzle de frases remendadas. À distância, o Um percebeu-o pronunciar palavras como “crise”… “não há dinheiro… os bosses estão a ir presos, … já não podem movimentar muito taco…

Perdia-se tempo. O homem Um ia intervir, mas era tarde. Naquele instante ouviu vozes do outro lado da rua. Uma porta rangeu e a luz, vaporosa, inundou a noite. Uma senhora saía à rua. A luz batia-lhe as costas e fazia-lhe uma aura majestosa. Era Fátima! Enquanto discutiam dava-se a aparição de Fátima.

“Senhores!”, Gritou para os supostos pastorinhos. “O alvo, senhores, o alvo está ali”. Ninguém o ouviu, entretidos nas reivindicações.
O veículo de Fátima dobrou a esquina. O homem abriu todas as comportas do desprezo na garganta, soltou todo o escarro e cuspiu, enquanto murmurava, frustrado:

“Por isso este país não avança. Por isso o crime não desenvolve”.

 

 

 

O dia acordou cinzento e esquivo. Uma Chuva tímida cai sob o corpo de Lisboa, daquelas que não molha a ninguém de uma só vez, mas cai o dia todo. Há mais neblina que céu, menos chuva que nuvem. A cidade, brumosa, se mostra para poucos galanteios. O sol pujante dos dias de Primavera descansa submerso num sono profundo, preferiu comprimir-se na mais recôndita das bainhas do esquecimento que aturar as chatices de uma cidade menstruada!

Eu cá também tenho minhas memórias sobre chatices de pessoas menstruadas, conversa para outra ocasião! A memória hoje não está para isso, beija-me noutros becos, nos tempos em que um tipo era muito matreco! Ris-te porque achas que não deixei de ser, nem? Não me tires a coroa, já fui mais! Quem me conhece desde os tempos do Mapswancolo que dê o seu testemunho.

Todos guardamos figuras míticas, cujos serviços todos os pais recorrem para dispersar os nossos momentos de desobediência infantil. Um dia construímos nos nossos imaginários figuras como o " bichão papão", a "cuca" ou o "senhor de saco"!  Conheci todas essas figuras, mas se existe personagem que meus irmãos, meus primos e eu mais tememos na nossa infância é Mapswancolo! O homem não só viveu no nosso imaginário, assim como pisou muitas vezes o chão da minha casa! Tinha carnes e milhões de ossos! Era alto, de pele escura, corpo forte, no seu pescoço destacava-se uma estrada de queimaduras.

A infância é a embriaguez causada por circunstâncias naturais. O medo de sermos medrosos reconhece em nós solos inférteis, o sonho nos visita constantemente e a vergonha nem nos conhece!

Quando Mapswancolo aparecesse lá em casa era sempre fim de tarde. Era enfermeiro de um dos centros de saúde da cidade da Matola. Sua pasta cheia de seringas, tesouras e comprimidos bailava nas suas mãos rechonchudas. Sempre que víssemos aquele homem corríamos quilómetros, mas aquela voz aterradora que emergia das suas cordas vocais gastas pela aguardente procurava por nós onde quer que estivéssemos e nos acendia no peito aquela faísca que esvaziava tudo, o medo.

Enganaste se pensas que o nosso medo tinha algo a ver com a sua estatura física ou com a sua voz em concreto. Isso era o de menos. Estava tudo relacionado com o que o enfermeiro Mapswancolo nos podia fazer! Todos tiravam um certo prazer e vantagem daquele nosso medo. A cantiga era sempre a mesma, nós que nos portássemos senão já sabíamos o que aconteceria. Não tinha chegado a concretização da tão anunciada ameaça, contudo, ao abrir um dia a sua mala e nos mostrar a tesoura e a seringa chegámos a cogitar que era o nosso fim. A dor que nos despiu naquele momento habitou boa parte da nossa infância. Passava sempre um longo intervalo entre aquelas visitas aterradoras do enfermeiro à nossa casa. Aquelas lembranças nos torturavam mais nos primeiros dias após cada visita. Depois adormeciam. Sempre que o víssemos novamente vivíamos tudo de novo! Mas até ele desaparecer definitivamente, a tesoura dele nunca nos tocou, a circuncisão pelas mãos de Mapswancolo não a-con-te-ceu!

Há dias lembrei-me desta figura mítica da minha infância, porque participei de um debate, em sede de uma aula de Direito Penal, sobre a recente criminalização dos maus tratos a animais de companhia que ocorreu em Portugal e a crescente proteção que vem sendo conferida aos animais em muitos países. Como em todos debates de temas sensíveis os intervenientes expondo os motivos dos prós e contras digladiaram-se sem reservas.  

A maior vantagem de sairmos dos nossos países e convivermos com pessoas de vários lugares é ganhar condições para ter uma visão um pouco mais holística do mundo. Longe de mim ser a favor dos maus tratos contra animais de companhia. Contudo, lembrei-me que, para além de tudo, Mapswancolo era um grande apreciador de carne de gatos.

Um dia o homem apareceu carregando num saco um felino morto. Aquele sorriso matreiro que nos aparece quando tiramos a sorte grande brilhava nele. Não sei como eram confeccionados os pratos, mas tudo indicava que se tratava de grandes petiscos. Sempre que nos visitasse recomendava aos meus pais que lhe arranjassem os ditos felinos, dizia ele que podiam já estar mortos que não se importava.

O debate vai quente na sala. Dentre argumentos constitucionais, humanitários e até sociológicos cada parte tenta convencer a outra de que está do lado certo da lide. A dado momento tudo se descontrola, todos já falam aos gritos e um colega exaltado diz:

– A humanidade sempre amou os animais. Eu em especial considero os gatos como os nossos melhores amigos.

Os que estão contra contestam a última intervenção. A algazarra se descontrola. O resto do que agora consigo lembrar é ouvir uma voz que soa bem alto perguntar:

-E Mapswancolo que comia gato?

 

O amor não é a coisa: é a doação

Luandino Vieira

Muery, elegia em Si maior. É o segundo título de Armando Artur lançado pela Cavalo do Mar, essa editora moçambicana que em pouco tempo muito tem feito pela arte literária. O primeiro foi A reinvenção do ser e a dor da pedra, um dos livros vencedores da última edição do Prémio BCI de Literatura. Com a nova proposta, lançada meio ano depois da anterior, o poeta volta a apresentar-se aos leitores com uma escrita suave, mesmo quando sugere enunciados pesados, a relacionar a existência fundamentalmente captada pela visão e o prazer de exprimir realidades dos objectos “inspiradores”. Neste processo, é constante a activação da memória, sempre a memória, como se a poesia fosse dita num ímpeto, de cor, num acto de combate ao olvido. Com isso, consolida-se essa aparente sugestão dos sujeitos poéticos de nos fazer senti-los exprimir-se num exercício causado por imensas contemplações virtuais, alimentadas por propósitos provavelmente pré-definidos.

Muery é um termo echuwabo e quer dizer lua. O sentido esclarecido no texto menos conseguido deste livro (p. 33) é apropriado para estar no título, afinal a poesia de Armando Artur, desta vez, situa-se entre o encanto da luz e as sombras causadas pela iluminação, o que metaforicamente pode significar um misto de emoções, alegria e melancolia causada pela perda irreversível da Muery cantada nos poemas. Quanto à elegia, esse estilo derivado da poesia épica, aqui aparece para fazer jus aos seus conhecidos sentidos: gnómico (sugeridos pelos gregos), amoroso (introduzidos pelos romanos), lamurioso, taciturno e funéreo. É como nos diz Francisco Freire de Carvalho em Lições elementares de poética nacional (Moisés, 1974: 169), “o assunto próprio da elegia são os sentimentos, especialmente dolorosos, que podem dizer-se naturais e comuns a todos entes mortais, quais, por exemplo, os despertados pela ausência, por um amor mal correspondido, pela perda da pátria, ou de quaisquer outros enlaces do coração”.

De facto, a dor manifesta em Si maior – paradoxalmente ou não, essa escala musical que permite o artista fazer-se ouvir num tom álacre – atribui ao novo título de Armando Artur um tom lastimável, sem que isso torne a obra piegas. A obsessão pela transformação da dor (já agora, atinentes aos “enlaces do coração”) em algo utilitário do ponto de vista motivacional, num contacto sempre a perder-se entre os sujeitos poéticos e as Muery, logo se nota, musas com muitos rostos, torna o livro repleto do que o poeta acredita: a escrita como catarse, mas também como liberdade, esse acto de nos juntarmos às aves: “E tu sabes que ser livre é viver na matéria, dela fazendo parte integrante, mas também é ter o poder de levantar voo, quando o livre arbítrio assim o exige” (p. 37).

Os sujeitos poéticos de Armando Artur definem o ser em função do que lhes motiva exprimir-se e em função do resultado disso. Assim, a poesia apresenta-se como mecanismo de íntimas redescobertas, purificação e partilha de determinados estados emocionais.

Em Muery, uma elegia em Si maior, igualmente, paira uma constante divinização da subentendida destinatária da mensagem dos sujeitos de enunciação, como é característico em Adelino Timóteo, com essa aposta de se fazer da imagem um recurso ao serviço do poema ou o inverso. Seja como for, nos curtos textos do livro (alguns a terminarem bruscamente, por exemplo, p. 17 e 18; com mais períodos, melhor é o efeito) Armando Artur atravessa as particularidades da lírica para se reapropriar do que lhe é tão caro: o amor, a doação que justifica esta partilha.

Título: Muery, uma elegia em Si maior

Autor: Armando Artur

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 12

 

 

 

 

 

O Homem e a cultura

Com o desenvolvimento das sociedades e a preocupação que estas sociedades vão tendo em relação à origem e ao passado do Homem, os costumes das

À PAULINA CHIZIANE

Escrevemos-te deste nosso anónimo recanto. Queríamos publicar esta missiva na mesma noite quente de Dezembro passado quando, tomados pela angústia existencial e quase em prantos,

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