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Um lobolo suspenso por moedas

Por aqueles lados, quando o assunto é cumprir a tradição, um pequeno detalhe pode custar um casamento. Duvidas? Não te atrapalhes, conto-te isto e verás.

Os frangos, deitados de costas naquela cama de ferro, desenhavam loucuras nas mentes de quem os olhava. Lembravam memórias barulhentas que não cabem numa só vida.  Por baixo da cama, cinco paus de pinheiro juntavam forças para produzir uma luz incandescente que beijava o metal e produziam o calor que oprimia aquelas aves. Os frangos ganhavam aos poucos uma cor torrada. Fumegavam sempre que o calor aumentasse ou quando algum suco de limão lhes pingasse. Assavam e espalhavam o seu cheiro picante. Os estômagos sonhavam e rezavam para que aquela tortura acabasse logo.

Os olhos das mulheres sofriam. A fumaça não os poupava, castigava-os. E eles expeliam aquele líquido branco que sabe a sal.  De vez em quando, parando de mexer as panelas ou de virar os frangos, as mulheres dobravam o corpo e iam até aos pés para levar a ponta da capulana que traziam amarrada em volta da cintura e limpar as lágrimas. 
O ambiente festivo sentia-se de longe. Liloca e "Tsova" denunciavam o esquema. A orquestra de aromas dos vários pratos que aquelas mulheres confeccionavam tocavam uma sinfonia inaudita. Cada elemento da orquestra exibia o seu charme. O show era em grupo, mas a estrela que morava no interior de cada um deles gritava pelo protagonismo. E lutavam entre eles pelo domínio absoluto do ar. As narinas que se arranjassem. A musa de todas as festas tornava-se mais atraente à medida que se banhava com os perfumes dos temperos. Uma coisa tenho de vos confessar, aquela feijoada reinaria os pratos quando chegasse a hora dos comes.

A tradição se cumpria. No interior da casa começava o mais importante para a família Macamo e Mondlane. A aliança entre as duas famílias se estabeleceria através daquela união matrimonial. 

Estavam todos trajados a rigor. Os homens usavam fatos e as mulheres traziam vestidas blusas de cores alegres e capulanas. Aqueles panos floridos que traziam amarrados à volta da cintura oprimiam as matsamelas e todas as carnes em volta das ruas do pecado. Naquela sala não havia nenhuma criança. Aquela primeira parte da cerimónia era coisa de adultos. 

Um dos tios do noivo, que trazia vestido um fato cor de vinho e uma gravata azul sufocando o pescoço, limpou o suor que lhe inundava a testa, tossiu e olhou para os outros. Perguntava-se por que aquilo demorava. Para ele a festa era lá fora, aquilo que se passava ali naquela sala era uma palhaçada do passado que devia ser abolida. Quando ouviu uma voz rouca a anunciar que a família do noivo podia apresentar os presentes exigidos pela família da noiva sobressaltou-se e soltou um «eishhh».  

Algumas mulheres, que tinham vindo na comitiva da família do noivo, abriram uma mala preta e retiraram o exigido. Tudo tinha de estar ali. Minutos depois viam-se, na capulana sobre a esteira que estava estendida no meio da sala, um fato, uma bengala, um frasco de rapé, um cachimbo, duas camisas, cinco capulanas, cinco lenços, dois garrafões de vinho e filas de notas avermelhadas, que traziam em cada uma delas o rosto de Samora Machel estampado. Aquelas notas somadas totalizavam cinco mil meticais, era o valor do lobolo. 

Assim que apresentaram os presentes, manifestaram o desejo de lobolar a rapariga. Parecia estar tudo reunido para que o lobolo acontecesse. As pessoas, o dinheiro e os bens pedidos pela família da noiva, os "comes e bebes". Mas aquele desejo recebeu uma resposta negativa pela família da noiva. Não haveria lobolo, não haveria casamento.

Aquela resposta negativa foi um balde de água fria para a família do noivo. O exigido para o lobolo estava ali. Sentiram as lágrimas do noivo a inundarem a cidade e começaram a murmurar. Quando lhes foi dito o motivo da recusa bufaram de alívio. Na tradição da família da noiva, qualquer dinheiro do mundo, sem o brilho de uma moeda a reluzir por cima das notas, não tinha valor.

 

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