Um romancista não terá, forçosamente, que depender do êxito ou fracasso dos seus livros, terá que continuar, sem desfalecimentos, no caminho que se propôs seguir.
Eduardo Paixão
“Dazanana de Araújo Simplíssimo vivia uma estranha sensação de que estava morto. Durante muitos anos cultivava em demasia a crença de que a sua vida era a morte” (p. 5). Assim inicia a história de um personagem muito particular, obstinado e comprometido com as dimensões gigantescas do seu sonho: Dazanana, do rhonga, língua falada na capital moçambicana, idiota ou palerma. Pode ser que estes dois significados encaixem no perfil do protagonista de Cemitério dos pássaros, mas apenas se se considerar à sua entrega a um propósito claramente definido: o de construir um cemitério no qual os finados da sua família reencarnariam como pássaros, alcançando, por isso, outras dimensões da existência.
Colocando a narrativa neste prisma, Adelino Timóteo, logo no princípio da diegese, questiona sobre os limites da vida na mesma proporção que minimiza a morte, afinal, a acreditarmos como Dazanana defende, nunca deixamos de viver, quando morremos. O que ocorre é um trânsito para lugares quase inimagináveis, os quais, uma vez alcançados, conferem à alma uma espécie invulgar de transcendência. Então, diante do seu maior projecto de vida, o protagonista de Cemitério dos pássaros move-se num labirinto estranho, decidido a levantar o véu dum cenário jamais desmistificado: o além. No fundo, há nessa entrega uma continuidade, a de fazer do realismo mágico uma forma de escrita. Continuidade porque esta não é a primeira vez que Timóteo atribui à existência a capacidade de vencer a morte, revelando, nessa condição, as imprecisões características.
Dazanana é o instrumento usado pelo escritor para representar a obsessão humana em prolongar a sobrevivência, não no além, que é incerto, mas neste mesmo mundo. Logo, o personagem funciona como cicerone de uma trajectória que termina em metamorfose. Não podendo permanecer eternamente no plano real, numa condição de partida, cheia de vigor juvenil, o herói timoteano, com uma fé religiosa, põe-se a sustentar a pretensão de transformar o seu cemitério num ninho, lugar predestinado para reinventar os conceitos de gestação. Na verdade, é mesmo de evolução que estamos a falar, como se a natureza fosse exageradamente generosa para permitir a humanidade permanecer num mundo que a destrói, de múltiplas maneiras.
Por via de Dazanana, o romance de Adelino Timóteo sustenta-se na susceptibilidade de mergulhar fundo nos aspectos folclóricos, se quisermos, tradicionais de uma cultura oral ainda bem enraizada no quotidiano dos moçambicanos, e, acreditamos, dos brasileiros também. Este livro inédito ora publicado pela editora Kapulana, fruto de uma imaginação absolutamente incrível, é um lugar de propagação de crenças, sem restringir-se a isso, mesclando uma ficção delicada com uma visão holística sobre o meio e as culturas. Quiçá, essa deve ser a razão de Cemitério dos pássaros ser um livro riquíssimo do ponto de vista temático. À semelhança dos títulos anteriores, por exemplo, Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz (romance) e Na aldeia dos crocodilos (infanto-juvenil considerado “Altamente recomendável” no Brasil, e, por isso, finalista do Prémio FNLIJ) este novo livro do poeta e romancista moçambicano, natural da Beira, cidade rebelde agora afamada devido aos danos do ciclone Idai, vai buscar ao Vale do Zambeze a fertilidade indispensável para uma boa narrativa, como quem reinventa as particularidades daquele espaço mitológico cheio de muitos encontros inaugurais entre povos de diversas culturas. Com o Zambeze resgata-se o passado (e a origem da miscigenação na Zambézia, província do Centro de Moçambique), eventualmente porque, como escreve Ungulani Ba Ka Khosa no seu Gungunhana, “esta terra [Moçambique] está sendo construída sem o passado. Tudo o que é passado é coisa morta”. Ou desvalorizada. Sendo que “morta” e “desvalorizada”, neste contexto, acabam sendo a mesma coisa.
A propósito, uma vez Adelino Timóteo prometeu-nos publicar três ou mais romances sobre o Zambeze. Pode ser que a promessa esteja já a ser cumprida, e, daí, um Moçambique diferente do actual esteja a ser apresentado ao mundo, na asa da escrita, onde cabe o imaginário, os hábitos e costumes no livro bem valorizados. Portanto, Cemitério dos pássaros é um romance filantrópico em que “Salvar a história, seja onde for, impõe a liberdade de escolher ser livre ou sujeitar-se ao sacrifício” (p. 46). Dazanana, tal como o seu criador, sempre escolhem a liberdade, mesmo quando o conforto está na covardia, mesmo quando a decisão de marchar em frente custa mais que suor. A liberdade de concretizar e assumir o risco disso está tão vincada em Dazanana que Maria de Lourdes Pintassilgo, a esposa, passa a ter um companheiro no lugar de um marido. Porque perseguindo o seu ideal, aquele protagonista reinventa-nos como leitores às vezes estáticos na ousadia de alcançarmos outros voos. Bem visto, esse tipo de relações amorosas que Maria de Lourdes deseja que sejam calorosas, cor-de-rosa, não têm proeminência em Adelino Timóteo. Os casais timoteanos, quase sempre desleixados às singularidades do afecto, deixam-se prender por outras obrigações. Em Cemitério dos pássaros acontece o mesmo, por exemplo, com Dona Ana, a lembrar-nos esse registo “ninfomaníaco” recorrente na narrativa do autor. Na verdade, Dona Ana é a continuidade do carácter que o romancista estampa numa outra personagem: Luíza Michaela, em Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz.
Quanto mais Adelino Timóteo vai escrevendo, traz propostas para a libertação das pessoas das amarras sociais, questionando preconceitos, tabus, e, em derradeira instância, os cânones civilizacionais, por exemplo, esses que oprimem a mulher em cada oportunidade cedida ao homem. Se Dazanana é um exemplo de coragem na luta pelo que acredita, Dona Ana pode ser entendida como esse pássaro decidido a aprender a voar na intimidade das suas sensações, desejos e fantasias. Com o sexo no centro de tudo.
À parte tudo isto, mais uma vez, a Kapulana publica – como nos lembra Eduardo Paixão no seu Tchova, tchova – um autor que não terá que depender do êxito ou fracasso dos seus romances, terá que continuar, e continua sem desfalecimentos, no caminho que se propôs seguir. Da Beira, onde vive, Adelino Timóteo projecta-se sempre com a sua obra, predisposto a reinventar a história, inovando-a, e, por consequência, a tornar os seus leitores melhores pastores da vida.
Maputo, 11 de Maio de 2019
*Texto inicialmente publicado no Brasil, pela editora Kapulana.