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ARTIGOS DE OPINIÃO

Antes, felicitar o autor, por mais esta obra. Gostaria de dividir a minha apresentação em 4 tópicos, sem necessariamente fechar outras possibilidades interpretativas que ela oferece. Afinal, a função de um apresentador é de despertar o interesse dos outros leitores e não de inviabilizá-lo como muitas vezes acontece. Espero, muito honestamente, que este não seja o caso.

O primeiro tópico: para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
O segundo tópico é sobre a autoria: quem é o autor desta obra? Musumbuluku Nhuvu? Narciso Matos? Ou Cisito? (Devido à sua profunda e incontornável interligação, alguns dos aspectos que afloro nesta apresentação incluem também elementos retirados da obra anterior Ndangu Wa Txindi na Musumbuluku (2022));
O terceiro tópico incide sobre algumas daquelas que considero as grandes questões levantadas por Mishu;
Finalmente, o quarto tópico: a quem esta narrativa é dirigida?

1) Para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
A biografia, à partida, é um espaço de ambiguidade, em termos de género e de pertença: é ou não literatura? Apesar de ser uma narrativa, até que ponto pode ser assumida como ficção? Nos casos em que temos biografias ficcionalizadas, hoje fala-se muito em autoficção, e onde a imaginação do autor prevalece, fica, aparentemente, tudo mais fácil. Por outro lado, toda a biografia, ou autobiografia, levanta, de uma ou de outra forma, suspeição: devemos assumir como verdade tudo o que ali nos é revelado? Onde reside, afinal, a especificidade deste género? E o que o faz oscilar entre o fascínio, por um lado, e a desconfiança, por outro, que provoca em diferentes pessoas?
Freud não hesitou, por exemplo, em afirmar que “Para ser biógrafo é preciso enredar-se em mentiras, dissimulações, hipocrisias”, (carta a Arnold Zweig, em 1936). Por sua vez, o renomado escritor norte-americano, George Orwell, autor das emblemáticas obras-primas, Animal Farm (O Triunfo dos Porcos) e 1984, observou, um dia, referindo-se à autobiografia, que “só se pode confiar nela quando revela algo vergonhoso”. Não tendo, pelo menos na minha leitura, achado nada de indecoroso em Mishu de Musumbuluku, podemos, ou não, confiar nesta autobiografia, seguindo o entendimento provocador de Orwell?
Uma das razões que justifica esta suspeição, diria mesmo retracção, em relação aos escritos biográficos, mais concretamente à autobiografia, é o facto de esta, em particular, ter como principal suporte a memória do autor, portanto, a sua própria subjectividade. E o grande mérito de Mishu reside, para mim, na forma inteligente como o autor (questão que irei abordar adiante), não só ter recorrido ao pseudónimo, melhor, ao seu nome tradicional – como sabemos estes nomes foram negados pelo sistema colonial -, mas também ter evitado, ao longo da obra, cair no fácil apelo à emoção. Além do mais, foi também extremamente cauteloso na revelação de qualquer forma de intimidade, facto que é sublinhado pelas precauções tomadas no distanciamento calculado do narrador em relação ao protagonista, no fundo, ele próprio. E, de imediato, nos interrogamos: qual o efeito sobre o leitor desta afectividade controlada, deste intimismo mitigado?
E, regresso, à questão de fundo: afinal, para que serve uma autobiografia? Muitas são as respostas possíveis:
a) preservação de uma determinada memória individual e colectiva;
b) função pedagógica: deixar uma lição de vida a partir da história contada;
c) necessidade de legitimação de um passado ou de um percurso;
d) reivindicação de um legado pessoal, familiar, sociocultural, histórico;
e) partilha, de forma despretensiosa, de uma história que lavra dentro de cada um de nós e que nos pede para sair;
f) preocupações apologéticas, em relação a um ideal ou a si próprio (casos cada mais comuns de puro pedantismo ou auto-exibicionismo);
g) partilha de inquietações existenciais: afinal, quem sou eu e de onde venho?
h) uma função desmistificadora: um dos grandes exemplos é Conversations with myself (2010), um texto intimista de Nelson Mandela, em que ele próprio confessa que escreveu aquelas memórias para mostrar que era um ser humano como qualquer outro, e não um santo, como muitos o tentavam apresentar.

2) Quem é o autor desta obra?
Já nos referimos ao facto de, em Mishu, estarmos diante de um caso desafiador em termos de autoria. O autor empírico (o de carne e osso que está aqui connosco e que todos conhecemos como Narciso Matos) recorre ao seu alter ego (neste caso, que é mais do que um pseudónimo), seu nome tradicional, que assume, nesta obra, um triplo papel: primeiro, o de autor textual, portanto, que dá o nome à autoria da obra, bem expressa na capa; segundo, o de narrador: quantas vezes ao longo do texto se refere a si próprio como o narrador; e finalmente, o de protagonista. Protagonista que, nas primeiras páginas, é apenas tratado por “menino”, até que, na entrevista para iniciar as aulas no ensino oficial, na escola pública, em pleno período colonial, ao lhe ser perguntado o nome, o menino responde, sendo obrigado a repetir perante a perplexidade dos professores: Musumbukuku Nhuvu.
Como sabemos, vivemos tempos extremamente conturbados e desconcertantes, em que assistimos, um pouco por todo o lado, ao desfile interminável de egos inflamados (há quem fale na hipertrofia do ego), tal é a desmesurada exposição do nome e da própria imagem, numa compulsiva e despudorada demonstração de soberba e de pretensa autoconsagração. Contrariando esta tendência, ocorrem-me duas experiências bem contemporâneas: uma, a de Banksy, artista de rua e o mais famoso grafitista britânico; outra, a da escritora italiana Elena Ferrante, autora de A Amiga Genial, recentemente considerado, pelo New York Times, o melhor romance do século XXI. Ninguém sabe quem eles são efectivamente, isto é, qual a verdadeira identidade de Banksy e de Ferrante. A ideia do pseudónimo, aqui, como cobertura do nome e da real identidade dos autores, adquire com estes dois casos, uma dimensão verdadeiramente edificante e transcendente.
Entretanto, no caso particular de Musumbuluku Nhuvu, a questão adquire outra complexidade, pois estamos assumidamente diante de uma busca, de uma aparente tentativa de recuperação de uma identidade transviada, ou roubada. Numa altura em que tanto se fala de reparações dos danos coloniais, Musumbuluku, através do nome que assume e deste exercício memorialista, mais não faz, e de forma honesta, modesta e simbólica, do que procurar reaver o que lhe foi negado. Daí outra hipótese de título: Musumbuluku Nhuvu: em busca da identidade usurpada.

3) Algumas das grandes questões levantadas por esta obra
Já vimos que uma das principais questões levantadas por Mishu e a obra que a antecede passa pela questão da autoria, que se prende com o problema moderno do sujeito. Ou não deveríamos dizer, o problema do sujeito moderno. Afinal, quem somos nós, enquanto sujeitos produtos da colonização? Na p. 11, encontramos esta passagem elucidativa:
Os filhos e filhas de moçambicanos aderiam a esta acção civilizadora. Viam que os seus filhos, feitos catequistas enfermeiros nas missões, ou intérpretes nas administrações coloniais ascendiam, de facto, a um estatuto mais elevado. Calçavam sapatos, vestiam fatos e usavam chapéus ocidentalizados, diziam-se afastados das crenças e costumes (embora os praticassem no segredo por todos conhecido), construíam casas melhoradas, plantavam árvores de fruta, construíam moageiras e furos de água, enfim, assemelhavam-se, passo a passo, mais aos colonizadores do que aos seus. A sua vida melhorava. Eram a prova viva de que a educação e a fé (do colonizador) eram a escada da vida.

Esta é uma discussão incandescente num campo de estudos, hoje em voga, mas de uma riqueza teórica inquestionável: os post-colonial studies, onde se procura, entre outros aspectos, perceber os sujeitos problemáticos, complexos e contraditórios emergentes da longa noite colonial, enquanto produtos de dois ou mais mundos. A propósito, o tunisino Albert Memmi escreveria um dia: um homem a cavalo sobre duas culturas, raramente estará bem montado.
Associada à questão do sujeito, temos a da própria memória: privada e colectiva, em contraponto às inquietantes e cada vez mais frequentes manifestações de amnésia, de descaso com o passado ou, mesmo da sua manipulação, de que o nosso tempo é tão fértil. Destacando-se, cada vez mais, como uma sociedade do esquecimento, percebe-se porque é tão precário e tão volátil o quadro de referências que nos guia, e de um modo ostensivamente imoral. São muitas as evidências de que está a ser promovida no país, há já vários anos, de forma deliberada e sistemática, uma cultura do esquecimento. Para todos os efeitos, a memória é a suprema ordenadora das nossas consciências, sejam elas privadas, sejam elas colectivas. Daí que o “dever de memória” como o antropólogo francês, Marc Augé, um dia definiu, nunca se tornou tão imperativo como agora, num contexto em que a amnésia colectiva e uma espécie de demissão em relação a essa mesma memória se tornaram tão pronunciados.
Muito a propósito, socorro-me de um provérbio africano que reza: Trate bem a terra. Ela não lhe foi doada por seus pais. Ela foi-lhe emprestada pelos seus filhos. E a pergunta que assoma: afinal, que terra, dada a forma como todos dias pontapeamos a memória, vamos, pois, devolver aos nossos filhos? Não resisto, aqui, a invocar o que se passou no Chile, em que milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e mortas, e para que perdurasse na memória de todos a trágica experiência da ditadura de Pinochet, decidiram colocar uma faixa no Estádio Nacional, em Santiago, que se mantém até hoje e onde se lê: um povo sem memória é um povo sem futuro.
Parece inegável que a memória é, eventualmente, o tema transversal, das duas obras de Musumbuluku (Ndangu Wa Txindi Na Musumbuluku e Mishu), sem que se percam de vista os seus fundamentos: as distantes origens familiares, a infância, as vivências (urbanas e suburbanas; o campo é residual), os choques culturais, a questão linguística, os processos assimilatórios, a arquitectura das alianças das famílias do sul de Moçambique, sobretudo, nos subúrbios e arredores de Lourenço Marques. Neste particular, pode ser um exercício interessante cruzar as duas obras com outras obras, como, por exemplo, Memórias (1989) de Raul Bernardo Honwana; Zedequias Manganhela, (org. Teresa Cruz e Silva); Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade (2018), de Nely Nyaka; A Cadeira de Caniço, Daniel Gabriel Tembe, Geração da Transição, de Iolanda Macamo (2023), entre outras.
Alinhada com a questão do sujeito e da memória, temos igualmente, o próprio título, Mishu, que quer dizer manhã, alvorada, em ronga, que nos remete para a ideia do despertar, neste caso, de uma consciência colectiva, sobretudo entre os jovens assimilados, que o pós-25 de Abril iria provocar (pp. 87, 88):

As campanhas de alfabetização e educação de adultos nos bairros suburbanos de Lourenço Marques revelaram a Musumbuluku e a muitos outros jovens universitários e estudantes de escolas secundárias […] a face nua da exclusão e das carências económicas e sociais criadas pelo colonialismo. Fê-los ver, de perto, com olhos novos e em primeira mão…Viram a pobreza e o abandono em que viviam milhares de crianças….Viram os índices elevadíssimos de analfabetismo nos subúrbios….Viram a quase ausência de postos e de cuidados de saúde primários….Viram as casas de caniço cobertas de zinco, e os seus maus serviços sanitários e incerto abastecimento de água…

Esta é uma passagem que nos prova que o colonialismo, com todos os seus mecanismos ao serviço da conquista e da submissão, tinha conseguido normalizar o que não deveria ser normalizável, ao conduzir os próprios africanos, sobretudo os jovens, a um estado de alienação e cegueira estrutural em relação à precariedade do seu próprio quotidiano e da realidade circundante, como se se tratasse da ordem natural das coisas. Temos, a propósito, que prestar atenção à incidência na visão, traduzida na repetição do pretérito do verbo ver: viram.
Daí, esta ideia de despertar, talvez mesmo de renascimento, que a revolução iria perseguir. Por outro lado, podemos, a partir daqui, registar o importante facto de como as biografias, mesmo privilegiando o percurso de um indivíduo, ou de uma família, nos permitem retratos amplos de uma época, com parte significativa das suas dinâmicas sociais, políticas, económicas e culturais.

Quem são os destinatários desta narrativa, isto é, o leitor ideal de Mishu?
Tendo em conta o que atrás dissemos, em relação àquelas que consideramos as questões-charneira desta autobiografia (autoria, memória, despertar da consciência colectiva), podemos afirmar que são vários os possíveis destinatários desta obra:
Contemporâneos do autor/narrador/protagonista: como se a obra nos dissesse: não vamos esquecer o tempo que passou. Como muitos de nós estamos lembrados, esta era uma das canções preferidas do Presidente Samora Machel. Hoje, percebemos não só porque insistia tanto com esta canção, como também a quem ele a direccionava;
Os jovens de hoje e os de amanhã: afinal, eles sabem de onde vieram? Alguém lhes tem explicado isso? Existe um passado histórico, antropológico e social que nos continua a interpelar e que está ancorado, por mais que o neguemos, nos nossos destinos individuais e colectivos. Repito: Um povo sem memória é um povo sem futuro. Para que isso faça algum sentido, tentemos socorrer-nos de experiências de países um pouco por esse mundo fora, como, por outro lado, e a título privado, tentar conduzir uma viatura sem nenhum espelho retrovisor. É muito provável que cheguemos ao nosso destino incólumes, mas o exercício será simplesmente devastador. Para nós e para os outros.
Termino saudando, uma vez mais o autor, este doublé de Narciso e Musumbuluku, que mostra, nesta segunda obra, um assinalável salto qualitativo, ao mesmo tempo auspicioso, e como promessa não declarada de que a próxima obra poderá ser a confirmação de uma veia que o próprio deveria desconhecer.

Maputo, 6 de Agosto de 2024

Na imensidão do cosmos, onde cada estrela carrega um segredo e cada constelação desenha um caminho, as mãos humanas actuam como pincéis, unindo essas partículas em um conjunto harmônico.

Às vezes, o pincel vai além da beleza visível, transformando-se em uma ferramenta que desvela os mistérios mais íntimos da existência. Nessas manifestações artísticas, somos convidados a explorar as profundezas do inconsciente colectivo e a emergir revitalizados.
Foi sob este signo de revelação e transformação que um encontro singular aconteceu, no sábado último (31/08/2024), na Casa do Professor, na Matola, onde vozes de diversas esferas do saber e da criação se uniram em torno de uma visão comum: desenhar novas narrativas para Moçambique.

Neste ambiente, onde o diálogo entre a palavra e a imagem se faz tão natural quanto a respiração, destacou-se a obra de Marcos Mpfuka, um artista cuja visão atravessa o visível para tocar o intangível, revelando verdades universais por meio de cores e formas enigmáticas.

Neste contexto, a obra exposta por Mpfuka não se limita a ser contemplada, com efeito, se oferece como uma chave para decifrar o presente, para reinterpretar os símbolos e os mitos que moldam o espírito de uma nação. Assim, ao examinarmos as subtilezas das cores e das texturas, somos chamados a refletir sobre a intersecção entre arte e realidade, e a questionar: Como podemos, através da arte, tecer os fios do futuro de Moçambique?

Logo à primeira vista, a obra cativa pela vivacidade de suas cores e pela riqueza de suas texturas, oferecendo uma imersão sensorial que demanda uma apreciação prolongada.

A composição do quadro é dominada por formas abstratas, que evocam tanto o movimento quanto a tensão. As linhas que se mesclam e se dobram parecem representar caminhos ou jornadas que, apesar de tortuosas, encontram um ponto de convergência. Este traço sugere uma analogia potente sobre a necessidade de encontrar unidade na diversidade, de reconectar peças dispersas em uma narrativa coerente para o país.

O vermelho e o preto dominam a paleta de cores, destacando uma oposição que pode ser interpretada de várias maneiras. Ora, o vermelho, por um lado, pode ser visto como uma cor de vitalidade, paixão e até de sacrifício, ou seja, aspectos que são centrais na história e cultura moçambicana.

Por outro lado, o preto adiciona uma potência que parece puxar o espectador para dentro do quadro, sugerindo tanto o mistério quanto o luto. Esse jogo de cores pode ser lido como uma representação do passado doloroso do país, mas também como um impulso vital para superar essas sombras e criar novas narrativas.

A textura da pintura é sólida e refinada, quase palpável, o que confere à obra uma tridimensionalidade que chama a atenção.

No entanto, a maneira como a tinta foi aplicada, em camadas espessas, por vezes com traços que parecem rasgos, evidentemente, reforça a ideia de um tecido desgastado, que precisa ser remendado. Isso pode ser interpretado como uma crítica às feridas ainda abertas na sociedade moçambicana, que requerem cura e atenção para que se possa avançar.

Ademais, bem no centro da obra, há uma sugestão de formas que podem ser decifradas como mãos ou figuras envoltas em movimento. Esta ambiguidade é, na verdade, uma força do quadro, pois permite múltiplas interpretações. As mãos, que são frequentemente sinais de trabalho e criação, poderiam representar o esforço colectivo necessário para construir novas narrativas para Moçambique.

Ao mesmo tempo, essas formas em movimento podem simbolizar a fluidez e a incerteza dos tempos actuais, um lembrete de que o futuro é moldado pela acção no presente, “em nome dos povos hoje nós gritamos, liberdade”, como ressoa na música da Iveth Mafundza & Hot Blaze, intitulada “Leave no one behind”.

Dessa forma, o Sarau na Casa do Professor revelou a arte como um meio de transformação impactante. E a obra de Marcos Mpfuka, com suas cores intensas e texturas marcantes, não se limita a uma simples exibição, mas serve como uma ponte para novas interpretações e reflexões sobre o futuro de Moçambique. Como bem observa a escritora Virgília Ferrão, “O facto de poder partilhar a escrita com o leitor é motivador”, efectivamente, este sentimento se aplica igualmente à arte. Portanto, compartilhar a visão artística de Mpfuka com o público é como lançar sementes em solo fértil, que podem germinar em novas ideias e inspirações. O evento demonstrou que a arte tem o poder de envolver e desafiar, incentivando todos a tornarem-se co-autores de uma nova narrativa para o país.

“Eu vos digo que o não sentir os poetas é uma das maneiras mais baixas de ser pobre”
in: Giovanni Papini

 

A poesia se estrutura através da fragmentação da vida, espaços, pedaços, estilhaços. O poeta, para construir a sua realidade, precisa eliminar a realidade que o antecede, destruir e reconstruir. Entretanto, Léo Cote, ao invés de destruir a realidade que o antecede, prefere agregar, incorporar, e, com isso, cria camadas de percepções que fazem de cada poema um universo misterioso e encantador.

Na sua obra literária, instalação do corpo, lançada no Camões, em Maputo, o olhar de vários poetas mencionados no livro percorrem caminhos não lineares onde as partes e o todo se reencontram na poesia.

Em anatomia, um corpo é o conjunto das várias partes que compõem um animal. A palavra, instalação é, frequentemente, usada nas ciências exactas, construção civil, refere a uma das primeiras providências tomadas para que uma obra [casa ou edifício], possa iniciar, como a demarcação do canteiro de trabalho ou a construção do depósito, por exemplo: abrange o conjunto das instalações eléctricas, hidráulicas, de gás ou de ar condicionado.

Segundo Priberam, dicionário online de língua portuguesa, a palavra instalação é junção de duas palavras, instalar + acção, é um substantivo feminino, que, no sentido literal, quer dizer “Acção de instalar, se estabelecer algo ou alguém em determinado lugar”. Assim sendo, este livro propõe uma reflexão profunda sobre a existência, o amor, a poesia e um lugar chamado “Ilha”.

Como diria Mia Couto, em “Venenos de Deus, Remédios do Diabo”, “Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.”

Na presente obra, em diferentes poemas, é possível sentir esta vontade do poeta de devolver o riso, recuperar o mundo sobretudo no poema da página 11: “comer pulgas é um divertimento inteligente. Uma bolha de inteligência que migra”.

Ora, quem come pulgas? Se por ventura alguém comesse, este acto seria inteligente? Afinal, a que pulgas o poeta se refere?

Tudo, aqui, conspira na busca incessante de uma reflexão sobre o dia-a-dia, situações aparentemente antagónicas. Relatando alguns poemas de passado, mas com uma mensagem actual. Ademais, o passado, para Cote, é a ferramenta que projecta o futuro. Por isso, a sua escrita abraça e acaricia todos poetas, entre os vivos e mortos.

Cote escreve o mundo e concilia a clareza modernista com a atenção e ironia típica das artes e suas derivações definem a escrita contemporânea. Pela generosidade, humildade e clareza no processo criativo dos seus textos, versos e estrofes, “ no livro”, o poeta, ressuscita vozes emblemáticas na literatura, poesia moçambicana, como Virgílio de Lemos; Rui Knopfli; Luís Carlos Patraquim, Sangare Okapi. Desta forma, torna-se referência obrigatória no cenário poético de Moçambique.

O poeta explora o corpo como um espaço de experiências e emoções, uma instalação, uma obra de arte. Transformando-o num ponto de partida para reflexões sobre a condição humana, como demonstra nos cadernos “Mitografia” e “A Geografia do Afecto”.

“Instalação do corpo” é uma obra misteriosa e mágica que revela o que temos de mais belo e encantador em Moçambique: a capacidade de amar e sonhar. Por isso, engana-se quem pensa que o gás, o carvão, rubins, a madeira são as maiores riquezas desta terra.

A poesia moçambicana, ao longo dos anos, reverberou a complexa existência humana. Em nome dessa tradição, silenciosamente, Léo Cote e um pequeno grupo de escritores permaneceram fiel à sua própria história, consciente da fundamental importância da prática de espalhar o quotidiano na poesia.

É possível verificar esta vontade incessante de espelhar o quotidiano na seguinte passagem: “Bargalha para três e moelas para dois como um poema pós-moderno…”. In: Poema “vocábulo das chaves”, p. 12.

A escrita de Cote ilumina toda uma geração de poetas e define o futuro da nossa literatura. Na poesia, Léo e Álvaro Taruma são, hoje, ícones do nosso tempo e do território. Reencontrá-lo é sempre um reencontro com o que temos de melhor. Como se pode ver na capa, a obra “Instalação do corpo” é um farol e a sua luz ilumina a noite e silencia o dia.

Agora, na vertente semiológica, temos primeridade e secundidade. Na imagem em análise, a Primeridade é o título do texto, visto que, em tamanho, está mais destacado quando comparado com os demais elementos da capa.

Como secundidade, nesta temos a cor azul claro, a lua, quatro sombras e ondas do mar que anunciam a tentativa de um poeta, Léo Cote, instalar a poesia no corpo humano.

A capa apresenta uma imagem mista, que é junção da linguagem verbal e não verbal.

Desfigurando a linguagem verbal, aquela que é feita de forma oral e também de forma escrita, na capa pode-se encontrar os seguintes elementos: Léo Cote; Instalação do corpo; Gala-gala edições.

Para o primeiro ponto, “Léo Cote”, é possível perceber que se trata de nome do autor da obra, é uma forma de informar do imediato ao leitor, apreciador sobre o autor do livro. Por isso fica no topo e centralizado.

A segunda descrição “Instalação do corpo”, serve para preparar o leitor sobre o conteúdo a ser abordado. Também, através do título, é possível perceber que é um livro de poesia.

De seguida, está patente uma linguagem não verbal, aquela que é feita por meio de sinais e gestos. E, na capa, pode-se ver a lua, o mar, e quatro sombras de pessoas carregando e segurando alguns objectos. A lua entre as nuvens, surge como um sinal de esperança, uma possível vontade de clarear a vida e despertar o amor no leitor. Às sombras dos quatro homens à beira-mar transmite uma ideia de tristeza.

Também é possível buscar compreender o próprio significado das corres que predominam na imagem [a cor de fundo da capa] azul claro e azul escuro, onde podemos entender que o azul claro vem junto com a espiritualidade de tranquilidade e harmonia e nos remete a um futuro de esperança, enquanto que o azul escuro faz-nos perceber sobre as dificuldades que habitam nos nossos corações.

Na vertente semiótica, quanto ao tipo de linguagem, vamos ver que ela trás consigo uma linguagem figurada porque nem todos têm o mesmo entendimento sobre a mesma coisa [imagem, capa do livro].

Apesar do grande crescimento dos adeptos à leitura em dispositivos digitais, ainda existem muitas pessoas que não dispensam o prazer de pegar no livro impresso, sentir o cheirinho do papel e folhear as páginas. Por isso, é preciso ter em mente que o tipo de papel usado para impressão, nas tiragens, ganhou muito mais importância nos últimos anos.

É preciso levar em conta que, se a apresentação do livro não for bem-feita, com acabamentos e papéis de boa qualidade, o leitor de hoje tem a opção de comprar a versão digital. O que o leva a comprar a versão impressa é o capricho que a torna especial.

O mais importante para impressão do miolo de um livro é a sua gramatura, já que dela dependerá a facilidade do manuseio. No livro “instalação do corpo” foi usado papel “creamy bulk de 70 gramas”, foi bem acertada, por ser um tipo de papel que não recebe ácido para seu branqueamento. Por isso, não reflecte a luz, o que torna a leitura muito mais confortável e o leitor dificilmente vai sentir a sensação de coceira nos olhos durante a leitura.

Agora, escrevo com reservas porque não sei ao certo a quem coube a função da escolha do tipo de papel para o livro, mas, o cheiro do papel é convidativo e tem um aroma agradável e doce de se sentir.

“Instalação do corpo” tem cerca de 100 páginas e é composto por três cadernos: Mitografia; O Ciclo da Ilha e A Geografia do Afecto. Mitografia contém 14 poemas, ciclo da Ilha 15 e A geografia do afecto 35.

 

 

Entre o silêncio das paredes e o som das memórias,
a arte revela o entrelaço do passado e do presente.

 

Ao cruzar o limiar da Galeria Kulungwana da Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, este espaço, tradicionalmente dedicado ao movimento incessante dos passageiros, transforma-se em um palco onde as obras se tornam compassos de uma sinfonia visual e funcionam como trilhos para uma jornada sensorial, em que o passado e o presente se encontram e a arte se torna um veículo para explorar novas dimensões da experiência humana.

A exposição “Nanquim Preto sobre Fundo Branco”, curadoria de Natxo Checa (Portugal) e Alda Costa (Moçambique), é uma retrospectiva que destaca a relevância histórica e artística do pintor no contexto do modernismo em Moçambique.

João Ayres, com seu domínio sobre o traço e o uso deliberado da monocromia, nos convida a uma reflexão sobre a condição humana e os cenários socioeconómicos.

Como diria Jean-Paul Sartre, “a existência precede a essência”. De facto, as obras revelam como a existência com suas lutas e experiências molda a essência da identidade e do ser, criando uma narrativa que desafia a simplicidade visual para revelar as nuances da condição humana.

Através de suas pinturas, propõe-nos um diálogo com as correntes intercontinentais vigentes na época, como o neorrealismo, concretismo e expressionismo.

Ao observar as quatro obras, somos apresentados uma paisagem que transita entre o movimento colectivo e a introspecção individual. A escolha do preto sobre o fundo branco traça um contraste que acentua a dualidade entre a luz e sombra, presença e ausência, vida e vazio.
Em termos técnicos, a preferência do nanquim sobre fundo branco é particularmente significativa. Diante desse cenário, a austeridade e a pureza do fundo branco discrepam de forma evidente com as linhas escuras do nanquim, enfatizando as emoções e as tensões presentes nas figuras retratadas.

Essa técnica minimalista, mas ao mesmo tempo dominante, retém a essência dos temas abordados por Ayres: o esforço humano, a opressão e a busca por identidade num mundo em constante transformação.

Naturalmente, a primeira imagem, acima, à esquerda, sugere uma procissão ou uma marcha, em que a massa de figuras parece avançar para além dos limites do quadro. Este movimento colectivo pode ser interpretado como uma alusão à história de resistência e às jornadas de luta que marcam o povo moçambicano.

Há uma sensação de anonimato entre as figuras, que, apesar de estarem unidas, mantêm suas individualidades ocultas pelo jogo de luz e sombra, algo que mostra as dificuldades das interacções sociais em contextos de servidão e aspiração.

Sob outro ângulo, o quadro acima, à direita, desvia-se substancialmente dos outros, ao apresentar um cenário mais vazio, possivelmente uma paisagem ou um espaço natural desprovido de figuras humanas.

Este espaço, que parece ser um momento de pausa ou reflexão, rompe com a concentração das outras obras e nos convida a contemplar a vastidão e o silêncio. Este vazio pode ser visto como uma metáfora para os momentos de solidão ou perda, ou talvez a vastidão de possibilidades e incertezas que permeiam a vida.

Surpreendentemente, as duas imagens, no quadro, em baixo, voltam a introduzir figuras humanas, mas em contextos que sugerem cenas de vida cotidiana.

Na imagem à esquerda, em baixo, as figuras parecem estar envolvidas em algum tipo de actividade comunitária, talvez um mercado ou uma reunião social, onde os corpos se cruzam e se conectam, criando um dinamismo que contrasta com o isolamento da obra em cima, à direita.

A luz desses factos, na imagem à direita, em cima, a intimidade entre as figuras sugere uma cena de cuidado ou ensinamento, onde a transmissão de saberes ou afectos é central. Aqui, o pintor comentava sobre a importância dos laços familiares e comunitários na construção da identidade e na resistência cultural.

O traço de Ayres, solto e expressivo, suporta um peso emocional que transcende a simples representação visual.

Há uma crueza e uma urgência em suas pinceladas, que dialogam com a história de Moçambique, marcada por lutas de libertação e processos de reconstrução nacional.

As obras não documentam apenas, também questionam e subvertem as narrativas dominantes, oferecendo uma visão que é ao mesmo tempo universal e consideravelmente enraizada no moçambicano.

Além disso, a exposição resgata séries de pinturas e desenhos neo-expressionistas dos anos 50, criados para serem exibidos em importantes instituições de arte, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a galeria do Ministério de Educação e Cultura do Rio de Janeiro.

O resgate proporciona ao público de Maputo a oportunidade de redescobrir uma obra que, por muitos anos, esteve esquecida e distanciada de sua terra de origem.

A apresentação das obras, apesar de cuidadosa, pode deixar a desejar em termos de contextualização histórica. Algumas peças carecem de explicações mais detalhadas que ajudem o público a compreender melhor o contexto em que foram criadas e como se relacionam com o momento social e político de Moçambique à época.

Contudo, o carácter de “regresso a casa” desta exposição é, portanto, um marco essencial na preservação do património artístico moçambicano, demonstrando o poder da arte em suscitar autoanálises e críticas sobre nossa identidade colectiva.

Como Vladimir Maiakovski observou, “A arte não é um espelho para reflectir o mundo, mas um martelo para moldá-lo.” Esta mostra, aberta ao público na galeria de artes Kulungwana, até o dia 27 de Setembro, oferece uma oportunidade única para explorar o legado singular de um dos grandes precursores do modernismo em Moçambique, revelando, como disse Albert Camus, “A resposta ao absurdo da condição humana.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Hoje olho para trás, vejo a fila de milhares de homens que passaram pelas minhas camas, e daria a alma para ter ficado com um, mesmo que fosse o pior”
in Memórias de minhas putas tristes, Gabriel Garcia Márquez.

 

Hoje, decidi reflectir sobre a música mais bonita, emotiva, profunda e dolorida que a História de Moçambique já registou: a música de Mingas, intitulada “Mamana”.
A letra foi composta por Zeca Tcheco, o grande baterista da Banda RM, o pai do cantor Denny OG. O baterista compôs a música e ofereceu a Mingas, que a interpretou.
A música tem duas personagens, a mãe e a sua filha. Não se sabe ao certo como tudo começa [a conversa], mas o certo é: a música inicia com a filha chorando.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, Andante-moderado, rock-solo, mas não muito agitada. A tonalidade está na escala de Fá. Escutando a música, é possível perceber que, para a produção do instrumental, usou-se bateria, piano e duas guitarras.

Na música, o piano serve como um instrumento de base. Para além de criar harmonia entre os instrumentos, também auxilia a bateria na marcação do compasso, o rufar das baquetas sobre a caixa de Ré, um dos instrumentos que compõem a bateria, em diferentes momentos na música, serve para enfatizar o sentido da mensagem cantada, bem como gerar pausas melódicas, a fim de proporcionar um bom “Groove”.

A primeira guitarra faz solo. A que tem som mais agudo e a outra toca baixo, som mais grave, e juntas produzem uma melodia muito rica, que serve de base para a voz principal. A guitarra baixo também cria contratempos na instrumental, gerando um ritmo mais rico sob ponto de vista acústico.

O que é incrível, nesta música, na história da música moçambicana, todas as canções que falam sobre a mãe [mamana] tecem rasgados elogios às mães, que o diga Pedro Bene na música “mamana”, que o diga também o João Cabaço na música “mamana wanga”. São músicas muito bonitas e profundas, que falam sobre as mães, desde já recomendo que escutem.

As músicas acima mencionadas tecem elogios as mães, hora, nesta música, a Mingas faz o contrário. Trata-se de uma música que não é para tecer elogios à mãe, mas, sim, é para afrontar a mãe, encostar a mãe à parede. é isto que é incrível nesta canção.

“Por mais que eu veja alguém que me encante, alegre meu coração, o coração bate forte só de lembrar a ti, mamã”. Portanto, trata-se de uma experiência amarga do passado. Uma experiência muito dolorosa. Dá uma impressão de que, no passado, terá ocorrido uma situação de a jovem se envolver com alguém e a mãe tomar uma posição no sentido de afastar a filha do seu parceiro ou pretendente.

A certa altura, a filha afirma: “Lava hinkwavo valanguiwike hi mbilu yanga Akwaku ava lunganga mamana”, isto é, “todos aqueles que foram eleitos pelo meu coração, para ti, não prestam, e lá está o grito: “Oh hiyo io io io io”.

Num dos momentos, na música, talvez o momento mais alto, sobe de tom para questionar: “o que você quer de mim, mamã? Essa maneira de empurrar-me como se de um plástico eu me tratasse, essa maneira de entregar-me como se eu me tratasse de papel, até vendes-me como se de roupa, eu me tratasse”.

Na citação acima, a cantora usa figuras de estilos, comparação, para enfatizar a mensagem. Segundo Infopédia, dicionário online da Porto Editora, comparação é uma figura de linguagem caracterizada pela analogia explícita entre termos de um enunciado. E, para expressar a dor da desvalorização pela mãe, a artista faz perfeitamente uso da comparação entre a jovem, o papel e a roupa.

Num tom de ousadia, a personagem, com toda coragem do mundo, diz: “Nili vona hi wene mamana”, como quem diz, mãe, se põe no meu lugar.

O que é mais incrível na canção é o direito de contraditório da mãe. A mãe não se pronuncia sobre esse grito, a afronta da filha. Depois da mãe ter ouvido as reclamações da filha, simplesmente cai em lágrimas. Cai em lágrimas e de joelhos chora.

Esta música não é para simplesmente ouvir, mas, sim, escutar, sentir e meditar. Na verdade, esta canção fala da vida de muitos jovens que estão em idade de lar, mas, constantemente estão em casa das suas mães ou vivem sozinhas em casas de renda e a sociedade lá aponta o dedo, certamente não sabem qual é a história destas pessoas.

O nível de divórcio que se assiste, hoje em dia, em Moçambique, do modo particular em Maputo, não será resultado de casamentos por encomenda feito pelos pais? E as jovens que vivem sozinhas, não será que em algum momento é fruto dessa dor de certos constrangimentos, de serem “chavissadas” pelos seus progenitores? Provavelmente, a saudosa cantora Elsa Mangue tenha razão: “ sortudas são às pessoas que se casam e conseguem manter o casamento”.

Não é tarefa dos pais definir com quem os filhos devem ficar. O papel dos pais é um papel paternal, isto é, de aconselhar e não decidir.

A Mingas está de parabéns pela belíssima canção, parabéns também para o Zeca Tcheco, pela belíssima composição, e o saxofonista, pelo sopro de rasgar o coração e massagear a mente. Ele deixa a música mais bonita e profunda, faz com que a música ganhe uma certa melancolia e gere um ambiente propício para uma bela reflexão.

 

Artista: Mingas
Título: Mamana

 

Pente é um objecto usado para alisar e organizar o cabelo, de modo a ter uma apresentação agradável. Quanto mais fino o pente é, mais rigorosa é a sua organização aos fios de cabelo. Este objecto de beleza é usado, igualmente, para elaborar diversidade de tranças e penteados, sobretudo quando se trata do cabelo de homens e mulheres negras.

” A pente fino” foi a metáfora que Filipe Branquinho encontrou para nomear a sua mais recente exposição no Centro Cultural Franco-Moçambicano, inaugurada no dia 20 de Agosto e que pode ser apreciada até 5 de Outubro.

Filipe Branquinho, com a clara intenção de passar um pente fino nos olhos da sociedade, trouxe duas séries da mesma exposição: In gold we trust e B(l)ack, a série que aqui nos interessa tratar.

B(l)ack é uma homenagem estética e estilística ao cabelo natural crespo como há muito não se contemplava. O quadro Black XXX é apresentado ao observador essencialmente com um fundo branco e um padrão verde claro que faz a base do quadro. As laterais do quadro são caracterizadas por colagens de várias figuras ilustradas, dentre as quais: bandeiras, um soldado, uma máquina e dactilografar.

Na figura central do quadro, está uma beldade negra, preta de ébano, com cabelo crespo, bem trançado, uma trança longa, que desce pelas suas costas adentro.

As linhas do quadro são finas e regulares, uma vez que representam figuras reais. As formas das figuras são essencialmente humanas, soltando um olhar, ou um sorriso desenfteado que carrega um forte simbolismo na retrospectiva que o autor pretende trazer.

A forte presença de símbolos, como bandeira, foto de soldado em tempo colonial, traz ao quadro um regresso ao tempo socialista. Aliás, a série B(l)ack, como escreve o autor, com o L entre parêntesis, pode ser lida Back to Black, o que em português seria: de volta ao preto, ou, figuradamente, de volta à cultura preta.

As cores foram estetizadas como um halo, que usurpa a atenção do espectador para o centro do quadro e, depois, para as laterais. As cores ao fundo do quadro acendem o seu brilho, porém, deixando máximo protagonismo para a cor preta e laranja, que são o sol do quadro.

O preto carregado, que ilustra a mulher no centro, tem uma função narrativa inequívoca, de que o autor se dirige a este grupo de mulheres em especial, a trança tecida caprichadamente a cor de laranja cintila no quadro como uma gaveta de memórias que diz: Ainda lembras te como eras bela naturalmente? Ou já te esqueceste?

Os contornos da mulher negra no quadro, incluindo do cabelo, não só sensibilizam para a diversidade de usos ao cabelo natural, mas fazem um forte apelo ao bem-estar, a auto estima, ao sorriso da mulher negra. Apesar de estar de costas, ela está em overdose de beleza no quadro, uma pintada no mamilo esquerdo, acrescentou-lhe um toque de voluptuosidade.

Se a mulher negra é bela,nauralmente, sem betumes ou perucas, como ilustra a exposição, porquê, então, ela importa beleza ocidental e oriental? Possivelmente, o autor deseja que cada mulher consiga responder para si o porquê da importação de beleza estrangeira?

Além fronteiras, no Brasil, outros cantos do mundo, em filmes de Holywood, sobretudo históricos, a mulher negra é distinguida pelo cabelo crespo natural, tranças e afro.

Mais que um manifesto, o quadro Black XXX é uma busca cultural de valores e princípios. É um exercício de regresso no tempo, para ir buscar o que éramos e trazer ao quotidiano.

A máquina de dactilografar, as colagens sobre desporto, o rosto negro ao estilo dos anos 80 no canto supeior direito, e os dois casais de dança que figuram abaixo do seio da mulher, mostram que o autor conduz aos espectadores, a um resgate de valores, princípios e práticas que existiam e nos tornavam seres felizes na simplicidade, hoje, práticas esquecidas.

Olhando para a nossa actualidade, a mulher negra tem sido escrava da indústria estética ocidental, e quase do vestuário também. Quando nos perdemos pelo caminho, precisamos regressar ao ponto de partida para nos encontrarmos. Com esta exposição,série “B(l)ack”, Filipe Branquinho faz uma intervenção social pertinente, ao mesmo tempo que “A pente fino” alisa o seu talento e diáloga profundamente com a sociedade.

B(l)ack é um grito profundo de chamada de atenção à sociedade, sobretudo à mulher negra em relação à beleza estética importada. Se a mulher negra moçambicana esteve “cega” à sua beleza natural, nesta exposição, com certeza, encontrará a luz que precisa para cintilar essa beleza e cabelo natural.

O quadro Black XXX é uma obra em aguarela, acrílico, colagem, caneta fineliner e posca sobre impressão a jacto de tinta em papel breathing color, Elegance Velvet, 300 GSM, 100% cotton rag, Bright white matte 110 X 90cm.

 

a revolta

“amada
a revolta é um poema escangalhado
alojado na boca do medo”.

[MBATE, 2009: 44]

 

“No Fundo dos Olhos” é o título do segundo livro da poetisa Águida Tumbo Alexandre. Lembre-se que esta poetisa se estreou com “Mar de Sentimentos”, em Junho de 2022.

Este livro tem 46 poemas. A temática predominante é a de intervenção social. Mas também, trabalha outros temas como, por exemplo, os que abordam o valor da mulher; textos que salientam a sua beleza física, as suas alegrias, a sua simplicidade, SENHORA NATURAL: “Muito bem cedo/ Exibe o seu sorriso de mulala [ênfase acrescentada]/ lábios vermelhos pintados com mulala [idem]// A tornam especial e única […]”. A mulala é uma raiz que é usada para a higienização oral. Pinta os lábios, deixando-os purpúreos. A mulher africana, particularmente, a mulher moçambicana, encontra um lugar de relevo na poesia de Águida Tumbo Alexandre. A sua beleza, a sua originalidade: “[…] com seus cabelos crespos/ Faz tranças de xindlandlalatani/ Sua pele natural e macia/ Inspira olhares da natureza”. Na terceira estância deste poema, a autora introduz novos elementos de carácter e de axiologia: simplicidade, auto-estima: “Com seus pés nas sabrinas/ Sente-se grande rainha/ Com seu corpo sem alterações/ Alegra-se pelo seu ser natural”. A autora seleciona, cuidadosamente, as palavras; sabe dar-lhes o seu sentido real: natural que combina, perfeitamente, com a expressão corpo sem alterações; estas duas expressões soam como um elogio, por um lado e, como uma crítica – por outro – à própria mulher que, vezes sem conta, desvaloriza-se; deita abaixo a sua beleza natural, em detrimento de aplicação de diversos produtos cosméticos para alterar a sua pele, estranhamente. E a palavra sabrinas, nome de calçado feminino, geralmente, de material de napa fina, todavia, é este calçado que o nosso sujeito poético – feminino – calça. Atenta a este verso: “Sente-se grande rainha”. É, exactamente, neste verso em que o sujeito poético exalta a auto-estima da mulher. Não se rebaixa perante a sua condição social. As sabrinas podem ser uma marca de carência. Mas também, de simplicidade. Esta desigualdade social é visível, em AMOR RARO, em que se descreve a situação de uma senhorita nascida numa família rica, entretanto, esta apaixona-se por um rapaz pobre e analfabeto: “[…] sou uma senhorita distinta/ a minha vida está no tapete vermelho/ não tenho identidade fora da passarela/ Fui concebida no ouro puro/ gerada no berço de ouro/ amo desesperadamente um analfabeto/ o empregado da casa/ é o amor da minha vida”. Nos dois poemas, nota-se: menina que calça as sabrinas [versus] senhorita concebida no ouro; sou senhorita distinta [versus] ele é uma poeira no meu salto; e é impressionante o seguinte verso: sou igual a um peixe/ que fora da água não vive; é uma metáfora, aqui, a autora faz alusão à riqueza – uma vida abastada – e à pobreza – uma vida de extrema carência.

Outras temáticas desenvolvidas, na poesia de Tumbo, são: sofrimento que traduz a dor, angústia, visível, também, em LÁGRIMA SECA, aliás, neste poema, a autora continua com o uso de contrastes, vistos nos poemas anteriores: frio e sol agressivos: “Na tarde de muita chuva/ O frio agredia as pernas/ O sol agressivo em meio a chuva/ O chão quente rachava as pernas// Meu corpo inchado pela dor/ A pele soltando fumaça de dor/ Alma minha desfalecida pela dor/ Coxeando nos cantos sem suor// No rosto da lágrima seca/ Ouvia-se grito sem voz/ Um som desafinado/ Sem voz”.

Neste texto, a autora pretende evidenciar o sofrimento. O desemprego. A ausência de suor, simbolizando a falta de emprego, (a partir de uma prática coloquial comum). E, recorrendo ao contraste: “Ouvia-se grito sem voz […]”, para trazer a grande contestação e aborrecimento, senão mesmo a manifestação da revolta, mas também, pode revelar-se uma agonia; o cansaço, não um cansaço físico, mas psicológico; a desesperança. Há, neste verso, a criação de uma imagem que se vai vislumbrar, na imaginação do leitor, de uma forma subtil.

O sujeito poético, na poesia de Águida Tumbo Alexandre, é um sujeito activo, que observa, que questiona, que clama pela justiça; uma justiça que – existindo – tal como ele a anseia, projectá-lo-á para a felicidade plena: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […] por que atropelam o meu futuro? […]// deixem-me sonhar com um castelo!” Aqui, o sujeito poético indaga, aflito, preocupado; e faz um apelo, na esperança de que seja ouvido. É condenação aos casamentos prematuros. No verso: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […]”. A palavra crescer revela, exactamente, uma roptura abrupta da sua idade pueril para assumir – entre aspas – uma responsabilidade de uma mãe. Responsável pelo lar. Ele começa, tão cedo e, forçosamente, a cuidar dos seus filhos. A palavra castelo trazida, no verso acima, não será nada mais que uma metáfora; não se trata dessas construções fortificadas e muito grande da Idade Média e que serviam de residência real ou feudal. Os castelos serviam de protecção e não de um lugar glamoroso como os palácios. Ora, o castelo a que se refere o nosso sujeito poético é, sem dúvida, a escola, o crescer com saúde, a sua formação; a formação é a chave de tudo. É este castelo que alvitra que não se lhe destrua.

Este poema tem alguma relação de significado com os seguintes: SONO INTERROMPIDO (pág.: 12) e MINHA INFÂNCIA (pág.: 35). Os versos como: “[…] o seu sexo tesouro/ Deus guardou como seguro”. Também se fala da formação e da protecção. Na verdade, a autora trabalha nesta perspectiva, cruzando os versos, fazendo o paralelismo, quer temático, quer estrutural, quer semântico. Um outro exemplo que o posso trazer, aqui, é o dos poemas SOU MOÇAMBICANA: “[…] Dizem que sou moçambicana/ nem sequer conheço o meu país/ também não conheço a História do meu país/ confundo sempre os meus líderes […]”, e estes versos do poema A ESTRANGEIRA: “[…] Sou turista/ da minha terra/ terra que me viu nascer/ a mesma viu-me a crescer […]”.
Nos dois poemas, a autora levanta uma questão ligada à falta da educação patriótica, a perda de valores; a autora não procura o culpado; ela, simplesmente, levanta o problema, cabendo a outras entidades a sua consideração/ponderação.

Em MINHA INFÂNCIA: “[…] roubada/ agredida/ sequestrada […]// queria muito saber ler/ e tinha que buscar água no poço// Muita roupa para as mãozinhas […]”; aborda a temática da intervenção social: a denúncia e o trabalho infantil. Aliás, esta temática é continuada em DENTRO DE MIM, em que retrata casos de violência, agressão, solidão, fome.

Se a poesia é considerada, também, um instrumento de luta, de revendição, de revolta, como é a poesia de José Craveirinha, de Noémia de Sousa, de Rui de Noronha, os textos de João Dias, entre outros que retratavam o que a dominação colonial portuguesa fazia aos negros; sim, a poesia de Águida Tumbo Alexandre resgata essa intencionalidade poética desse período histórico, para gritar, lutar, revindicar pelo bem-estar das raparigas e das crianças órfãs. É esta a temática tónica que marca a poesia, claro, não deixar de lado a do amor; um amor demonstrado pela mãe para um filho, poema QUERO SER CRIANÇA.

“No Fundo dos Olhos” projecta-nos para uma temática diversificada, isto, já, tinha sido dito. De entre ela, a que está ligada à família, a família como centro onde se adquire os valores, como se lê em A FAMÍLIA: “É a nossa identidade/ É a nossa originalidade/ É a nossa tradição […]// […] é o amor com o próximo/ É convívio e união/ É um grande propósito de Deus// […]”.
Estes valores são os que constroem uma sociedade sã e educada.

Em poemas, MÃE, a autora faz uma homenagem à mãe, o que José Craveirinha chamá-la-ia de Hino às mães,

– a descrição da dor:
[…] nesta vida
das entranhas em que se move
um embrião de gritos
nascem-te os filhos com renúncias
sangue e dor a mistura
Mãe! […]
(CRAVEIRINHA, 1974: 134)

– e, nestes versos, a descrição física de uma mulher em estado de gravidez e, por entre linhas, a irmandade:

[…] Ah!
mas desde o idílio
ao gâmetas fecundo
e da seiva plasma do mesmo sangue
ao primeiro beijo na face da menina que nasceu
salve-mulher da ternura que se não vende
o arfar do teu inchado ventre liso
curva inestética de beleza única
ao ângulo inobsceno das coxas
na invenção do nono mês
que ficou da primeira vida
na fêmea transformada
na técnica de nos fazer vivos. […]
(idem)

Águida Tumbo Alexandre explora versos livres. Os seus textos não apresentam vocábulos rebuscados. É o seu estilo. A sua poesia é incisiva na temática. Aborda a temática que tem que ver com a dor, morte, agressão, violência, amor: “[…] Despertou sorriso resplandecente/ com o seu olhar fascinante/ sempre despia e beijava mesmo distante”; mas também, ciúme: “[…] é veneno da alma/ sangra e chora sem motivo/ grita e briga por nenhum motivo// é uma arma fatal/ é uma poeira que entupe os ouvidos/ cega os olhos com tolice […]”; guerra: “[…] nesse derramamento de sangue/ no coração de Moça e Mbique/ terrível e violenta maldade/ ensanguentou Cabo Delgado, eternamente”.

Este livro que tem nas suas mãos, depois de tanto sofrimento, a autora abraça-nos com a alguma esperança, como que para fazer jus à temática de crença em Deus, a religiosidade, também, trabalhadas pela autora nesta obra. A esperança alivia a dor, o sofrimento. Dá-nos a confiança para enfrentarmos novos horizontes. Encararmos a vida com fé de que tudo muda.
Em FLORES, parece patente esta belíssima visão da poetisa “[…] Transmitem confiança/ Alimentam esperança/ Produzem a paciência/ desenvolvem a tolerância// O dia é lindo sempre com as flores […]”.

À guisa de conclusão:

“No Fundo dos Olhos” é um apelo ao leitor para fazer um exercício de (re)buscar a verdade, a honestidade, a sinceridade, a certeza, etc., etc., etc., nos olhos de cada um de nós. Os olhos são espelho do nosso interior.

Tudo isto vai resumir-se a uma única palavra: amor com o próximo.

Ferroviário, 8 de Julho de 2023

**ensaísta literário e escritor.

 

 

 

 

 

*Prefácio ao livro da Aguda Tumbo Alexandre; o livro foi publicado, no dia 8 de Agosto de 2024, na sala nobre da Associação do Escritores Moçambicanos, AEMO, e apresentada por Natércia Manhenje, ensaísta, docente universitária e linguista.

Titos Pelembe aventurou-se pelo mundo das artes, como um astronauta que se aventura pelo espaço. É artista, curador e pesquisador no campo das artes visuais. A busca de significados existenciais, e simbolismos sociais profundos, dão corpo à sua última exposição, intitulada Fragmentos da vida II.

E como um artista visual em diálogo psicossocial, através duma instalação, de moldagem em pasta de papel, com variadas dimensões, apresentou “A captura do Estado”.
Uma parede esbranquiçada, com figuras de distintas dimensões, os corpos mais humanos contrastando com algumas cabeças animalescas, traduzem a leitura visual da instalação “A captura do estado”.

Um Estado é uma maquina, constituida por um grupo de pessoas, regras e decisões que tem impacto na vida do cidadão comum.

A captura do estado remete-nos à ideia de quebra do poder estatal, e de tudo a isso conectado.

O autor parece propor que as figuras da instalação são representantes desse mesmo Estado capturado. Os reflexos e as posições emitidas por essas figuras são enigmáticas e misteriosas. Parecem gritar sem nada dizer, parecem fugir sem mudar de lugar, e parecem estar presas, sem algemas nas mãos.

A percepção de movimento é dominante, sobretudo devido às sombras das figuras, e as diferentes direcções em que elas estão posicionadas. As figuras parecem vir dum passado comum, mais ameno, no entanto algo obrigou a sua fuga e dispersão – a “captura”.

A captura do Estado é simbolizada pelo único elemento comum em todas as figuras, a corrente que prende cada representante do Estado.

As correntes são o centro das metáforas da instalação. Podem representar as leis do Estado, que são ignoradas, as regras de trânsito, pontapeadas quotidianamente, a postura urbana, vendida ao preço do desmazelo, o descredito, que é ter uma boa lei, mas que não funciona, devido à mesma captura do Estado.

As correntes podem também personificar a grande corrupção, que, de uma forma geral, captura o Estado nos diversos sectores: Na saúde, na educação e nos serviços públicos, locais onde, particularmente, se encontram estes representantes do Estado.

As figuras da instalação apresentam vários perfis de servidores públicos. Nota-se, por exemplo, uma figura de homem, com face de tigre, que pode simbolizar um mau servidor público, que, como um caçador, se serve do Estado com uma ganância animal, olhando apenas para interesses individuais.

A figura central da exposição também faz parte da instalação, assemelha-se a um líder corpulento, em posição de liderança no Estado, com a cabeça recheada de dois chifres, que, simbolicamente, traduz que está a ser traido, ou feito de parvo, pelos seus colegas de trabalho, ou por interesses obscuros provenientes do estrangeiro, que o obrigam a trocar ouro por ferro.

Uma outra figura apresenta-se vestida de roupa executiva e palitó. Com forte perfil dum especialista financeiro, tem as mãos estendidas para cima, no entanto, a sua cabeça está endada. A figura pode representar um alto funcionário do Estado, tentando estabilizar as finanças públicas da nação, mas sem controlo dos esquemas, dos branqueamentos de capital, do roubo institucional, e, por isso, apresenta-se de cabeça vendada, pois não pode controlar todo o sistema, ou então não tem poder para travar a máfia que capturou o Estado.

A instalação de Pelembe transmite mais do que a captura do Estado, consegue, visualmente, captar algumas consequências de um Estado capturado, um dos figurantes na instalação por exemplo, é achado completamente em queda e de rastos, que pode significar mais um funcionário com seis meses de atraso salarial. E desta forma, o Estado perde o seu poder e a sua capacidade operativa.
A captura do Estado é visivel no nosso quotidiano, pela incapacidade de se pagar salários aos funcionários públicos, professores, médicos, polícias, e etc, a incapacidade da polícia de controlar os raptos, a morosidade recorde dos tribunais e o turismo frequente dos infractores.

Como impedir que o Estado seja capturado? Esta é uma pergunta que a instalação de Pelembe deixa para a sociedade, num ano eleitoral.

A captura do Estado é uma instalação que faz parte da exposição Fragmentos da vida II, de Titos Pelembe, patente na Fundação Fernando Leite Couto até 31 deste mês de Agosto.

Sou Filomena Matusse, nasci em Moçambique, sendo assim, moçambicana e negra, com a pele muito escura, marcada pelo sol cuja intensidade aumenta a cada dia. A exposição solar é inevitável, agravando a minha negritude, uma vez que tenho de ficar exposta a ele para garantir sustento para a minha família; e não posso arcar com os custos dos protectores solares, que já ouvi falar por aí, pois são caros demais para o nível em que me encontro, pois, minha situação financeira não é boa.

Nasci em meio à pobreza, um facto que procuro aceitar diariamente, mas que não me impede de sonhar com um futuro diferente. Entretanto, não quero falar no momento da minha pobreza, pois não é culpa minha ter nascido nesta condição, quero falar de outra questão que me inquieta e é ainda pior que a pobreza a mau ver…

Desde jovem, fui testemunha da pressão imposta às mulheres da minha comunidade, província e país, que tentam clarear a pele. Eu própria, num determinado momento, sucumbi a essa tendência, utilizando cremes clareadores acessíveis, disponíveis inclusive nos mercados locais por 100 meticais. Inicialmente, julgava e condenava essas práticas, pois não compreendia a motivação por trás delas. Contudo, após reflexões e experiências pessoais, a minha visão mudou.

Moçambique é um país africano e a raça que predomina é a negra, entretanto não tenho paz na minha própria terra onde tenho o direito de ser negra e deveria viver à vontade…

Uma experiência dolorosa foi a de uma gestora sénior negra de certa empresa, que, embora competente, foi substituída por uma colega de pele branca, revelando uma hierarquia baseada na cor da pele. Estas situações evidenciam a desigualdade e discriminação persistentes, influenciando até mesmo o crescimento profissional e pessoal. Passo a expor: Uma jovem altamente capacitada foi contratada por empresários asiáticos em Moçambique para actuar como gestora sénior na sua empresa, onde os funcionários eram maioritariamente moçambicanos e negros. A convivência inicial entre todos era harmoniosa e produtiva. Todavia, tudo mudou quando o chefe da jovem decidiu contratar duas raparigas também asiáticas para a mesma empresa. Embora as novas funcionárias fossem fluentes em português e simpáticas, o chefe começou a introduzir divisões entre os colaboradores, separando-os pela cor da pele. Ele instituiu regras segregacionistas, tais como direccionar os negros para um lado e os brancos para outro, inclusive designando utensílios diferentes para uso de acordo com a cor da pele. Esta atitude discriminatória gerou desconforto no ambiente de trabalho.

A gestora, injustamente, foi removida do cargo sem motivo aparente para que uma das novas funcionárias brancas assumisse a posição, embora a gestora negra fosse mais competente. Esta era responsável por treinar as novas funcionárias e ensinar o sistema de contabilidade e gestão da empresa, inclusive as duas raparigas asiáticas foram instruídas por ela. Esta situação levou a jovem negra a concluir que, infelizmente, naquele contexto, a cor da pele parecia determinar a hierarquização e as oportunidades de trabalho, acima das qualificações e competências académicas. Este triste desfecho levanta a questão de como as desigualdades e preconceitos raciais ainda influenciam significativamente o ambiente profissional, mostrando que, para algumas pessoas, a pigmentação da pele pode influenciar injustamente as suas carreiras e oportunidades.

Este foi apenas um relato de muitos que poderíamos trazer, porque a discriminação racial é uma realidade na nossa sociedade, é fácil de ver as varias manifestações no nosso dia a dia, desde o acesso às oportunidades, até as suas formas mais graves.

O preconceito baseados na cor da pele e a discriminação geram divisões e desigualdades profundas na sociedade. Observa-se que, mesmo dentro da comunidade negra, a tonalidade da pele frequentemente determina a hierarquia e o tratamento recebido, perpetuando padrões de opressão. Estas experiências reflectem a complexidade e as feridas causadas pela discriminação racial, questionando se a opressão vivenciada resulta, em alguns casos, na perpetuação do ciclo de discriminação e divisão entre os próprios indivíduos de uma mesma comunidade.

A discriminação racial é uma realidade insidiosa que permeia a sociedade de forma profunda, criando divisões e desigualdades que prejudicam a todos. É imperioso reconhecer e confrontar activamente o racismo em todas as suas formas, desde os actos mais evidentes até as estruturas institucionais que perpetuam a injustiça. Apenas com consciência, empatia e acção conjunta podemos construir um mundo mais justo e inclusivo, onde a cor da pele não determine o valor ou as oportunidades de um indivíduo. Façamos a nossa parte para promover a igualdade e a diversidade e lutemos juntos contra o racismo em todas as suas manifestações!

“O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe” (Jean-Jacques Rousseau). 

É assim que decidimos iniciar a crónica de hoje, trazendo à tona o célebre pensamento de um dos filósofos mais renomados do Iluminismo. Nessa linha, urge-lhe um convite de reflexão sobre a bondade natural do ser humano e como as estruturas sociais podem corromper essa essência. Vale ressaltar que qualquer semelhança com factos reais é, de certeza, pura coincidência.

Vemo-nos em um mundo onde a posse material é mais valorizada do que o valor moral da sociedade. Aqui, as pessoas não reclamam pela injustiça, mas sim pelo que os outros ganham, sentindo-se prejudicadas por isso. Até parece que não sabemos o que, realmente, queremos ou precisamos. Parece até que o que desejamos é que os outros não desfrutem de seus momentos. Queremos que eles sejam meros espectadores do nosso sucesso, pois acreditamos que só nós merecemos ter oportunidades, quantas vezes forem possíveis, mas apenas as nossas oportunidades. Nunca as dos outros.

Mas aí vem a questão: de que sociedade estamos a tratar quando falamos “normal”? Aquela que vive de novos talentos? “One, Two, Three, Let’s go!”? Ou o que mais importa é acreditarmos ser o que pensamos ser e descontarmos o que realmente nos interessa devido às dificuldades de circunstâncias? Não há condições para uma sanidade mental. Então, conformemo-nos e pronto. Vamos normalizar o que temos, por mais podre e doentio que seja. 

Alguns dos poucos analistas e intelectuais que temos dentro destas quatro paredes da pátria defendem, com seus A’s + B’s, que é a sociedade que está corrompida por ser aliada do sistema, e, portanto, a culpada pela existência de todo o mal na face da Terra. E mais, os legisladores saem dela. Mas quem quer ser bom num mundo onde a pobreza afia suas unhas e garras? Então, dizem que é daqui que se origina o ciclo de vez-vez.

É de admirar como, em tempos de fome e necessidade, os bons samaritanos se destacam como nobres santos da Idade Média. Nesses momentos, a humildade torna-se uma virtude sagrada, elevando o espírito humano a um patamar quase intocável, onde até uma mosca não pode ser morta.

Aqui, estamos naquele tempo em que muitos ainda se apresentam de uma maneira em palavras, mas suas acções revelam outra verdade. Vivemos uma era de dissonância entre o discurso e a prática, onde a retórica de bondade e integridade é frequentemente desmentida por comportamentos que contradizem essas virtudes.

O que dizer sobre a corrupção? Todos os dias, as pessoas reclamam, são vigilantes e críticos da moral alheia, mas, quando são promovidas, esquecem que antes eram aquelas que sofreram e sonhavam com uma sociedade justa. Quando assumem posições de poder, acabam também se envolvendo em práticas corruptas. O que é mais lamentável é que poucos realmente pensam no bem comum.

‟Phoole-phoole”, há muito que se anda em contra-mão, pisca-se para a esquerda e segue-se para a direita. Agora, o lema é “vano timi”. Chegou a minha vez.

Está doente, muito doente,
O meu país,
Acamado às costas
Das terras e perlíferas águas do Índico!

Quando peguei o livro mais recente do Bucuane a que decidiu dar-lhe um nome sugestivo: Celebrar a Vida, Poemas de recesso e de esperança, tinha a plena certeza daquilo que me esperava, isto é, antes de folheá-lo, muito antes de ler os poemas que o compõe, sabia que estava perante escritos que pretendiam exaltar a vida. Não me enganei. Tal como acontece na vida, em cada folha, em cada página, chorei, ri, fiquei triste, fiquei com saudades, fiquei com nostalgia, alegrei-me, a minha vontade de viver e de amar renovou-se. Morri e ressuscitei quão segunda chance de voltar a ver o sol e sorrir todos os sorrisos que desperdiçara na outra vida, na outra encarnação.

Não é de admirar, Bucuane, o poeta depois de enfrentar o grande flagelo que foi Corona Vírus. Depois de com ele lutar. Sobreviver pegou na caneta e deixou o coração derramar no papel todas as lágrimas choradas pela perda de familiares, amigos, vizinhos, pela morte de compatriotas, pela morte de muitas pessoas ao longo do Mundo cujos números faziam questão de invadir o silêncio e o desassossego dos nossos isolamentos. A contrastar com o fica em casa, as notícias levavam-nos para viver o luto em terras distantes, numa altura em que nem podíamos enterrar os nossos entes queridos.

Bucuane derramou no papel também as lágrimas choradas por toda a prosperidade frustrada por causa da clausura geral roubando emprego de muitos, inviabilizando negócios de outros. Com a sua caneta, Bucuane vingava a morte daqueles que não tiveram a mesma sorte. Daqueles que morreram e ainda morriam. Enquanto essa desgraça se propagava por todos os lados, Juvenal Bucuane, como forma de enfrentar esse pesadelo, escrevia poemas sobre aquilo que estava a acontecer. E como alguém muito bem o disse, trata-se de: “Poemas escritos com dor advinda de muitas incertezas, que de crescendo em crescendo se iam alteando no retiro forçado a que a humanidade estava sujeita: em quarentenas uns, em convalescença outros, e ainda outros, apropriados pelo avassalador medo.” Quando a desgraça terminou o livro já estava pronto.

No meio dessa dor e, como não podia deixar de ser, Bucuane também deixou o seu coração transbordar uma ode à vida, kulunguela a vida por ele mesmo ter sobrevivido e por todos aqueles que como ele venceram a doença e convida-nos a perceber a doçura de reaprender a apertar a mão, a dar um abraço, a deketar, a dar dois beijinhos, a celebrar a vida, solidarizando-nos, na alegria e na tristeza. A amarmo-nos. É isso que eu aprendi, reaprendi.

Hoje, agora e aqui,
Corre,
Neste corpo físico
Que nos faz presentes,
A vida,
A vida que quer ser celebrada,
A vida que deve ser celebrada!

Com uma obra bastante extensa, o poeta não deixa de nos surpreender com a sua vitalidade e publicações regulares, o que nos leva a concluir que para o Bucuane, escrever não é apenas um acto de afirmação, mas sim, de militância, duma afeição pelas palavras, dessa quase obsessiva vontade de estar presente, de intervir, de utilizar a poesia como sua forma de expressão e, sobretudo, de contribuição no meio social onde ele se encontra inserido. E fá-lo com essa elegância narrativa que sempre o caracterizou, sem ser demasiadamente eclético e também sem entrar numa escrita simplória ou simplista. Confesso que em algum momento me senti perdido, sem saber se estava a ler uma crónica ou um poema despretensioso. Não sabia situar estes textos do Bucuane, não sabia como designa-los sentia-me a ler, simultaneamente, uma crónica, uma saga do Corona Vírus e poemas sobre o verdeiro valor da vida.

Enfim, concordo com as palavras da ensaísta Luísa Fresta no interessante posfácio dedicado ao livro Celebrar a Vida, quando afirma que estamos diante de textos que “oscilam entre a prosa poética, o poema em prosa e o verso livre”, sendo que, no seu ponto de vista, esses textos não carecem necessariamente de rótulos; eles existem e reverberam no leitor tanto pelo seu conteúdo quanto pela forma – uma escrita escorreita, objectiva e aberta – sem que com isso prescinda de uma estética muito cara ao autor, sempre indexada à clareza da expressão e à sua visão límpida das coisas deste mundo.

A verdade é que Bucuane, com as suas abordagens suaves e poéticas, sobreviveu, talvez com uma energia renovada, pronto para continuar a viver, a escrever, a celebrar a vida. Talvez seja por esta razão que Celebrar a Vida, de acordo com a posfaciadora deste livro, Luísa Fresta, o Bucuane” deixa transparecer uma postura de integridade, responsabilidade e fé, plasmadas em cada texto e em cada uma das ideias explanadas com coerência e habilidade. Como se o autor e o sujeito poético tivessem uma convicção inabalável num futuro melhor, mais sereno, com mais fraternidade e soluções para os problemas da espécie humana.”

Apesar do seu cronicar, da sua clareza em nos descrever a ocorrência dos factos covidianos, o livro que temos nas nossas mãos não deixa de ser um poemário onde nos cruzamos com a morte, o medo, o espectro do nada, a rendição, a trombose económica, a revolta, a luz, a esperança, a “celebração da vida”. E é exactamente esta que Juvenal Bucuane, afinal, vem celebrando. Desde sempre. Em cada livro que escreveu, Bucuane glorifica a vida. Desde “A Raiz e o Canto”, passando pela obra “Meu Mar”, até os livros mais recentes, Bucuane celebra a vida, com essa turbulenta vontade de falar sobre as coisas, de contar, de explicar, de justificar, de fazer poesia. E para isso Juvenal, independentemente de qualquer influência ou experiências que possa ter, atrevo-me a afirmar, que Bucuane, é ele próprio, tem uma identidade, uma linha própria, única, inconfundível, caracterizada pela espontaneidade da linguagem e pela pureza que facilmente se evidencia.

Chamou-me sempre atenção a forma como Bucuane milita a palavra, ou seja, o modo como ele a cristaliza, o modo como ele não a subverte e não a torna inatingível. Ele sabe que tem um objectivo a alcançar, sabe que tem leitores que esperam por uma mensagem que lhes seja perceptível, que lhes possa interessar e mostrar outros caminhos. Estamos, pois, a falar da forma. E assim sendo, talvez importe recordar as palavras do sociólogo e poeta Filimone Meigos, ao explicar que “ao falarmos de forma na literatura, referimo-nos à maneira como se diz, como se escreve, como se veicula o discurso. Tal forma não é isenta, ela revela uma certa maneira de estar, ética e estética. Na verdade, a forma do discurso revela uma certa forma de pensar, agir e sentir”. Já que estamos aqui, talvez possa aproveitar a oportunidade que o texto me oferece para dizer que sempre me chamou atenção a forma declaradamente saudável de Juvenal Bucuane estar na literatura, que se aproxima, sem dúvida nenhuma, à forma como o poeta se movimenta na vida.

Juvenal Bucuane é um poeta de todas circunstâncias. É um cidadão atento aos acontecimentos do seu país. Nada se lhe escapa, o que significa, por outras palavras, que os seus livros (um acervo de mais de vinte livros em poesia e prosa), que o fazem ser um dos escritores mais profícuos desta pátria amada acompanharam o crescimento do país e da própria sociedade. Os tempos da pandemia fizeram-no compreender que estamos no Mundo por pouco tempo, por esta razão são desnecessárias as guerras que movemos uns contra os outros. Precisamos de modificar tudo. De entrar no “novo normal”.

É quase tudo mudar,
Ser outra coisa
Sendo o mesmo ser!
……………………………
É uma nova forma
De ser e estar
Sem o desvio do que se é
Na essência!

A poesia do Juvenal Bucuane que aqui encontro não se restringe apenas ao vírus, ela se espalha para outras direcções com a abordagem de temas universais que constituem a preocupação da nossa sociedade. Bucuane fala de muitas coisas. Do medo “de algo que não vemos”, mas cuja dimensão destrutiva é assustadora. Faz apelo aos deuses de África para que estes “lancem sobre nós todos os fumos que se libertam dos grandes potes onde, nas florestas sagradas em que habitam cozinham os remédios que ora nos faltam”. Fala da chuva, para que ao cair sobre a terra e os homens aconteça o milagre da purificação. Fala também da terapia da luz do sol. Da nova ordem mundial. Do valor da solidariedade. Mas que este não venha a qualquer preço, por isso o poeta não se esquece de recordar: Ajudem-nos, sim, mas deixem-nos ser quem somos, “África, da cabeça aos pés”.

Estamos na corrida
da salvação do mundo
temos uma palavra a dizer!
Não somos animais no redil
à espera de engorda
para abate
somos participantes do jogo global.

Num momento particularmente difícil, quando o vírus devastava por todos os lados e tudo parecia perdido, a voz do poeta se erguia e dizia que ainda havia um caminho de esperança a percorrer. Num dos poemas mais eloquentes do livro Bucuane indica uma rota para os que pretendem sobreviver. Para ele a única possível: A caminhada para o mar. Para a purificação. Para a eternidade. E por essa razão escreveria o poeta Juvenal Bucuane:

Somos água,
Que toma a forma do seu curso,
Líquidos…
Corremos dentro de um leito,
Ganhando a sua forma,
À procura do nosso destino.

Nestes poemas de recesso e de esperança, Juvenal Bucuane foi buscar os traços do pintor Noel Langa, seu contemporâneo e ilustre habitante do Bairro Indígena, para ilustrar a capa do livro. A escolha não podia ter sido melhor, Noel Langa trouxe as suas cores vivas, luminosas, vibrantes, trouxe a solidariedade e amizade que os dois comungam desde tempos remotos e dessa lembrança que ainda os faz prisioneiros desses tempos inesquecíveis do Bairro indígena.

O livro está aqui e a sua mensagem é clara: não nos esqueçamos de celebrar a vida! Para juvenal Bucuane “estes poemas de Recesso e de Esperança tentam sugerir a quem os lê, a Celebrar a Vida constante e convictamente, como elemento útil das mudanças que a sobrevivência colectiva nos exige.”
E é tudo.

Maputo, 13 de Agosto, 2024

Desde a primeira alvorada de terça-feira, quando ouvi o comentário de Isidro Amade sobre a falta de fundos para viabilizar a participação da selecção nacional de basquetebol sénior feminino no torneio de pré-qualificação para o Mundial, senti que o dia não ia terminar bem!

Estamo-nos a focar no desporto, mas a conjuntura estrutural do país, em todas as vertentes, está em colapso. Desde os juízes, médicos e passando pelos professores que reclamam por melhores condições de trabalho e salários. Vou, no caso particular, cingir-me apenas no desporto sem, no entanto, elencar se é basquetebol, boxe ou mesmo atletismo.

No desporto, pecamos pela falta de apoio do sector privado e, por outro lado, de uma fraca intervenção do Estado, aliado a má gestão ou uma gestao que é feita em função das “lombrigas” que lhes roem os estomâgos. Elenco, a seguir, alguns pontos:

1.Financiamento Insuficiente

Sem o apoio do sector privado, muitas instituições desportivas e atletas não conseguem obter o financiamento necessário para treinamento e competições. Isso pode levar à deterioração das infraestruturas e à falta de equipamentos adequados. A pergunta que faço é: qual o investimento de relevo que foi feito ao nível desportivo? Como esperar resultados diferentes se não apostas e não investes? É como plantar milho e esperar colher cajú…

2 .Falta de programas de formação:

A ausência de investimento pode resultar na falta de programas de formação e desenvolvimento para os jovens atletas, o que limita o processo de surgimento de novos talentos. No basquetebol, os treinadores consagrados são os mesmos de há 20 anos, com a excepção de Leonel Manhique (Mabê) que “rasgou o véu” e uma nova lava de treinadores jovens que se destacam. Na verdade, isto mostra que nada mais evoluiu e paramos no tempo. É preciso reconhecer e olhar para base.

 

3. Menos oportunidades para os atletas:

Atletas que dependem de patrocínios podem encontrar dificuldades em competir em níveis mais altos, o que pode impactar o desempenho do país em competições internacionais. Rimos do atleta Steven Sabino pela falsa partida na segunda série da primeira eliminatória dos 100 metros inserida no torneio de atletismo dos Jogos Olímpicos 2024 ao invés de o acarinhar, um comportamento que mostra quão pequenos somos. Fazemos barulho, mas somos todos cobardes e merecemos os governantes que temos.

 

4. Perda de talentos:

Sem o suporte necessário, muitos atletas podem optar por abandonar o desporto em busca de oportunidades em outras áreas, resultando em uma perda significativa de talentos. Vamos continuar a naturalizar jogadores velhos. Não pensamos a longo prazo.

 

5. Desigualdade nas oportunidades:

A falta de apoio pode acentuar a desigualdade, onde apenas atletas de classes sociais mais altas conseguem acesso às melhores condições de treinamento e competições. A selecção nacional de Tang Soo Do é presença constante nos mundiais que se realizam em todos quadrantes do Mundo, e os atletas trazem resultados positivos para o país. Mas, diga-se, não se enganem porque é tudo custeado com fundos proprios. É um valor que vem do bolso dos pais e encarregados de educação. Por isso, o Tang Soo Do ainda é uma modalidade elite apesar de ser aberta a todos.

 

6. Diminuição do Interesse público:

Sem o investimento e o apoio do Estado, as iniciativas desportivas podem se tornar menos atraentes, levando a uma diminuição do interesse do público. Quem se vai interessar em apoiar o nosso desporto com as “lutas de comadres” que se propala nos bastidores. A única boa excepção à esta regra é a nova direcção da Comissão de Gestão da Associação de Basquetebol da Cidade de Maputo, agremiação que é dirigida por jovens que mostra(r)am que, com interesse e vontade, pode-se resgatar a modalidade porque o desporto tem valor. O desporto tem brilho. O que precisamos é de profissionalismo e comprometimento. Mais velhos, saiam e deixem os jovens trabalhar.

 

7. Dificuldade em oganizar eventos:

A falta de apoio financeiro e logístico pode dificultar a organização de eventos desportivos, que são importantes tanto para o desenvolvimento do desporto quanto para a promoção turística. Os Jogos Desportivos Escolares que deviam ser uma montra acontecem e, depois, o que é feito dessas estrelas que nascem no evento? Porque não se pensar em parcerias com os clubes e devolver a formação de algumas modalidades para as escolas? Seria interessante adoptar modelos como o “Basket Show” e desafios entre escolas. “Ops”, esqueci que nas escolas públicas as horas dedicadas à educação fisica diminuíram…

 

8. Impacto na saúde pública:

A falta de apoio ao desporto pode levar a um estilo de vida menos activo na população, aumentando problemas de saúde relacionados com sedentarismo.

Num caos social em que estamos a viver, queremos legalizar o consumo da suruma. Essa cortina de fumo que nos querem impingir é mesmo para levar Moçambique ao abismo.

A combinação entre o sector privado e do Estado é crucial para promover um ambiente desportivo saudável e sustentável, que beneficie tanto os atletas quanto a comunidade em geral.

Ergueram-se vozes atordoadas de mulheres que ousaram viver, e na sua jornada, beijaram várias formas de morte, morte sentimental, morte espiritual, morte de esperança e morte até de um pouco de suas vidas, mas como ainda as possuiam, juntaram os seus gritos de coragem fazendo “Ecos”.

Ecos é o docudrama que traz a vista depoimentos corajosos de mulheres que foram vítimas de violência baseada no género, incluindo a física, económica, e psicológica.

O roteiro tem o merito de seleccionar um grupo de mulheres das quais a sociedade quase desconhece, e pouco vê, as reclusas. Na primeira voz, as reclusas fazem-se conhecer, e expressam o que tem de mais forte para a sociedade, os seus sentimentos, suas marcas profundas.

O documentário inicia com uma narração sobre o papel que a sociedade reserva a mulher, o de cuidar do lar. Quitéria Guirrengane, activista dos direitos humanos, participa questionando a representatividade, de que forma mulheres em posições de liderança podem ser actores sérios na defesa dos direitos humanos e na prevenção da violência baseada no género. Reflecte-se, portanto, sobre a vulnerabilidade socioeconómica a que a mulher está sujeita, o dificil acesso às oportunidades, e o facto de a violência ser maioritariamente cometida por membros da sua própria familia.

A trilha sonora inicia com a música da rapper Iveth Mafundza, com um verso apelativo que cita: “Tudo começou com a maçã do Eden”, referindo-se ao início do tormento feminino, a música em causa é também uma introspecção sobre a realidade social da mulher. Os sons dramáticos e de suspense harmonizaram com as cenas sombrias retratadas.

A fotografia é executada na cadeia civil, local onde os gritos femininos se cruzam, gritos de mães, filhas, tias, gritos de mulheres que suportaram as bofetadas da vida. A fotografia torna-se dramática, colorindo a imagem daqueles depoimentos atormentados. O espectador é transportado para um submundo de horrores e terrores vividos pelas reclusas.

O nível de violência vivido por estas mulheres é do exponencial ao infinito das suas almas, desde Odete Caetano, que flagrou o seu esposo com sua irmã adolescente na cama, e, por conseguinte, recebeu uma proposta de casamento poligâmico, onde a segunda esposa seria sua irmã mais nova outrora violada por seu esposo. Que estado psicológico teria esta menor para assumir um lar?
Intrigante também foi o testemunho de Joaquina Niquice, que tinha de pedir dinheiro todos os dias para a escola dos seus filhos e estava proibida de pôr mexas, devido ao ciúme do esposo. O mais intrigante não era o ciúme, nem as pernas partidas pela violência, eram as próprias mexas, que eram arrancadas da sua cabeça, uma por uma, deixando cicatrizes e dor.

A partir deste documentário, é possivel radiografar fragilidades sociais, por exemplo: a deficiente preparação da rapariga, a cumplicidade dos familiares, o desconhecimento de linhas de denúncia.
Olga Muthambe, activista dos direitos humanos, acrescenta outras formas de violência contra a mulher: No acesso ao emprego, no acesso à terra. A violência baseada no género afecta as mulheres, sobretudo na perda de património, basta lembrar quantas mulheres são despejadas das suas casas quando o seu marido perde a vida. A decisão de permitir que adolescentes de 13, 14 anos estudem de noite, é um factor que aumenta a vulnerabilidade da rapariga a violência.

As vítimas são muitas vezes crianças e adolescentes, aterrorizadas pelos pais, irmãos e tios com quem vivem, o silêncio e medo das vítimas só favorece aos predadores sexuais.

No caso de Nompulelo Mpulampula, ainda em idade escolar, sua família era um exemplo local de uma família feliz, até sua irmã mais velha ser estuprada pelo seu pai, a ponto de engravidar, e ter filho. Tempos depois tornou se a família dos segredos, sua irmã engravidava quase todos os anos dentro de casa, e perdeu-se a conta do número de abortos que cometeu.

E porque filho de peixe aprende a nadar, seu irmão reproduziu a experiência consigo. Esta violência subverteu o seu carácter, tornou-a uma menina confusa na escola, que não podia ser tocada. Passou a odiar os homens, a sua casa era uma prisão de horrores sexuais de tal modo que já não suportava viver na sua família, sendo vítima. As ruas eram seu único lugar de liberdade, e foi lá onde libertou-se, e fugiu em busca de refúgio com apenas 17 anos de idade.

E que dizer da mulher que pariu um filho surdo e mudo, e foi culpada por ter parido um macaco?

Porventura teria feito o “macaco” sozinha? Culpada por ter nascido um filho com deficiência, Lafissa levou porrada e teve que abandonar o lar com o seu filho às costas.

Que dizer duma criança com pai branco, que não foi criada pela sua mãe por ser mulata, pois sua mãe negra não podia criar bebé mulato no bairro? Nontombi Victória foi vítima de racismo, um dia após seu nascimento, foi deixada em Kwazulu Natal pela sua mãe, para ser criada por pessoas estranhas. Cresceu sem o amor da mãe, sem ser amamentada, mas conheceu cedo o carinho animal dos dois irmãos do padrasto, que lhe estupravam quase todos os dias.

São várias atrocidades vividas por estas mulheres, cujo nível de crueldade, apenas o documentário pode revelar, levando-nos a concluir que a mulher é vista como objecto de prazer, e as suas aspirações são ignoradas, numa sociedade que está doente e precisa de cura.

Ecos desafia-nos a contemplar nas vítimas os estragos da violência baseada no género, e as consequências dessa violência na sociedade. Após muita exposição, a violência, as vítimas podem se tornar protagonistas da mesma. O documentário convida-nos igualmente a pensar na impunidade dos predadores, na prevenção da violência e na educação da rapariga de hoje.

A educação precária da rapariga, a falta de informação, a exposição de adolescentes ao horário nocturno, a falta de procedimentos de detecção e resolução destes conflitos nas escolas primárias e secundárias, são vulnerabilidades gritantes que o filme nos intima a prestar atenção.

Ecos é uma obra cinematografica em formato de documentário, escrito e dirigido por Gigliola Zacara, com a duração de 81 minutos, lançado em 2023 no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

Passaram-se várias estações: aquela em que o sol brilha intensamente, trazendo alegria e esperança; a que se segue, em que o sol se esconde e o frio penetra até às entranhas; e ainda aquela em que as folhas caem no quintal, dançando ao sabor do vento. No entanto, as dúvidas que pairavam na minha mente não me deixavam em paz.

Sempre observei a forma enigmática como vivia aquela menina da minha idade no bairro. Sim, a menina linda, baixinha, com a pele negra como carvão e olhos tão escuros que pareciam poços profundos, que nunca refletiam emoção. Para ser honesta, posso afirmar categoricamente que nunca vi a cor dos dentes dela — se é que os tem!

Só sei que tem 14 anos, pois a minha mãe mencionou que era da mesma faixa etária que eu. E quando questionei uma vizinha mais próxima sobre ela, obtive apenas uma resposta evasiva, mas o que realmente me intrigava era por que ela não se juntava a nós nas nossas brincadeiras de rua.

Essa curiosidade despertava em mim uma vontade crescente de conhecê-la, de entender o que se passava na mente daquela menina tão distante. O contraste entre a nossa alegria e o seu aparente isolamento tornava-se cada vez mais angustiante.

Ficávamos tão empolgados durante os feriados e as férias, fazendo tanto barulho que até quem não queria brincar acabava por se juntar a nós, atraído pelos nossos gritos alegres que ecoavam pelo bairro. No entanto, aquela menina parecia viver num mundo à parte, imune à nossa alegria. Sempre que perguntei à minha mãe sobre ela, a resposta era a mesma: “Deixa-a em paz, minha filha. Brinca com quem quer brincar.” Mas como faria isso se a angústia não me deixava a mim? percebi que, mesmo de longe, ela nos espionava por um buraquinho entre o murro da sua casa, e eu poderia jurar que o seu coração pulsava de vontade de se juntar a nós, mas não sabia o que a impedia…

Decidi que queria entender mais sobre a sua vida e por que ela parecia tão distante. Na minha mente, vestia-me como uma detective e comecei a investigar a origem daquela menina que chegara recentemente ao nosso bairro. Contaram-me que ela vivia com o tio que a adotara como filha — à parte da sua família biológica, estava no distrito de Molevala, na província da Zambézia, cá mesmo em Moçambique. O que me intrigava era saber onde estava a mãe dela e se estava realmente doente, como me disseram — esse vazio só aumentava as minhas perguntas. O que teria acontecido à sua família? Como era a vida dela antes de vir para cà?

Mais intrusiva do que teria previsto, comecei a espreitar pelo buraco que ela usava para nos observar quando brincávamos na rua. Numa das minhas investigações, vi algo que me gelou o sangue: a cena brutal em que o seu tio a agredia fisicamente… a cada golpe parecia que também atingia o meu coração. Escutei os gritos desesperados dela, implorando por misericórdia, e a impotência tomou conta de mim. Ninguém fazia nada! 

Os vizinhos ouviam, mas permaneciam em silêncio, como se a dor dela não fosse a dor deles. Voltei para casa em prantos, contando à minha mãe o que vi, esperando que ela pudesse agir de alguma maneira. Porém, em vez disso, a raiva surgiu nela — zangou-se comigo por estar a ‘espiar’ a vida alheia. E eu? Também ficava zangada, porque não era a espionagem que me preocupava, mas sim a brutalidade do que acontecia diante dos meus olhos.

A cada dia, o meu desejo de ajudar aquela menina aumentava, mesmo após o seu tio ter sido o terror da sua vida. Decidi espreitar pelo buraquinho para ver como a minha amiga estava, e, para minha surpresa, percebi que o amor que ela sentia pelo seu irmãozinho de 1 ano de idade era profundo, quase avassalador. Para ela, ele não era apenas um irmão; era como uma das suas bonecas, à qual dedicava todo o carinho que possuía. Às vezes, via-a brincar com ele de forma ternurenta, oferecendo-lhe o peito para mamar, e ele aceitava o gesto com a naturalidade de um pequeno que confia incondicionalmente. A cena era ao mesmo tempo doce e dolorosa; a inocência daquela brincadeira contrastava com as sombras da sua realidade.

Pelo menos, fiquei aliviada ao ver que, de alguma forma, a menina encontrava alegria nas suas brincadeiras de amamentar o irmãozinho (como eu fazia com as minhas bonecas… ah, quem me dera também ter um irmãozinho para brincar de dar de mamar), mesmo que a vida lhe tivesse imposto fardos tão pesados. 

O que me deixava inquieta era a suspeita de que ela tinha descoberto que eu andava a espioná-la, mas, estranhamente, parecia não se importar com isso. E, pela primeira vez, vi um sorriso genuíno iluminar o seu rosto. Era um sorriso lindo, com dentes branquíssimos que pareciam brilhar à luz do dia, um sorriso tão contagiante que me fez acreditar que talvez, só talvez, ela estivesse a começar a gostar de mim também como amiga.

Aquela reação positiva trouxe um misto de esperança e emoção ao meu coração, como se, naquelas pequenas interações, estivéssemos a desbravar um caminho para a verdadeira amizade, apesar das barreiras que nos separavam. Entretanto, os dias foram passando e a sombra do seu tio continuava a pairar como um lobo à espreita. A forma como ela reagia na presença dele mudava drasticamente; havia um medo que a fazia encolher. Pedi-lhe certa vez para me abrir a porta, mas a resposta foi diferente daquela que obtinha antes, e a certeza de que ela não desejava falar veio como um golpe. Os meus instintos diziam que o homem não era pai nem tio, e o mistério permaneceu. Mas foi através de uma conversa reveladora que finalmente soube a verdade: aquele homem era o seu marido e não seu tio ou pai.

Fiquei paralisada. Como poderia aquilo ser verdade? Ele parecia mais velho que o meu próprio pai! A história que se desenrolou diante de mim foi uma mistura de horror e tristeza. Ela foi oferecida em casamento quando a sua família passava fome e, agora, além de cuidar do que presumi ser seu irmão e não era, mas sim filho, ela tornara-se a propriedade desse homem cruel. O meu coração, de alguma maneira partido por ela, questionava o mundo à minha volta, e uma raiva profunda me invadia, ela so tem 14 anos, tal como eu!

Decidi que não poderia ficar de braços cruzados. Com o desejo de ajudá-la pulsando em meu peito, procurei formas de intervir. Mas as sombras do medo e das consequências recaíam sobre nós como nuvens ominosas. Não sabia como poderia ser a resposta do mundo, nem até onde iria por uma amiga que mal conhecia, mas algo em mim gritava que não poderia ficar inerte. O que poderia fazer? O que poderia realmente ajudar?

Estas perguntas também ecoam na minha mente como assobios do vento, e a cada resposta que tento encontrar, o labirinto de dúvidas tornava-se mais profundo. Como iremos acabar com as uniões prematuras, e a violência doméstica em Moçambique? 

À medida que refletimos sobre as histórias de vidas marcadas pela dor, pelo sacrifício e pela perda, somos confrontados com a dura realidade dos casamentos prematuros e da violência doméstica. Estas não são meras estatísticas, mas diálogos íntimos e silenciosos que ecoam nas vidas de adolescentes e crianças inocentes, como a pequena menina de que relatamos, e de tantas outras meninas e mulheres que têm os seus sonhos e esperanças desfeitos por tradições que perpetuam o sofrimento.

Cada união que se celebra sem a liberdade de escolha é uma vida que se arrisca a ser dilacerada pelas garras da opressão. Cada menina levada ao altar contra a sua vontade é uma promissora vida fechada dentro de quatro paredes, onde a violência se torna uma sombra que a acompanhará, dia após dia. A realidade é cruel, e a dor que estas meninas enfrentam não pode ser subestimada.

“Azarias a fanale ku dondza, ku fana ni vapfana hinkwavhu vha lomu”
(Avó Carolina, no filme “O dia em que explodiu mabata bata ”, 2017, no minuto 18:50)

 

As obras audiovisuais sempre nos trazem algo acrescido na narrativa, coisas que não seriam trazidas numa obra literária. Por exemplo, um conto. E é nesse exemplo que nasce o filme “O dia em que explodiu mabata bata”, de 2017, realizado por Sol de Carvalho. A obra de 52 minutos foi inspirada no conto com o mesmo título de Mia Couto, cujo texto está inserido na colectânea “Vozes anoitecidas”, publicado em 1986.

Esse texto abordará as infidelidades de Sol de Carvalho, em relação ao texto original, e a infidelidade com a produção convencional dos filmes baseados na linearidade cronológica e os três actos.
O anoitecer das vozes, no texto “O dia em que explodiu Mabata Bata” nos é apresentado aqui como um destroço, um vestígio sangrento da guerra dos 16 anos, trazido à superfície pelo “Ndlati”, que abocanha tanto o Mabata Bata como o Azarias, esse, se bem observado com os olhos de Mia Couto, ganhou esse nome devido à sua sina: órfão de pai e mãe, pastor de gado “obrigado”, e negado o lápis para desenhar os seus sonhos, tendo a sua existência reduzida no forjar e acautelar do sonho alheio, nesse caso do seu tio Raul, que era de “lobolar”.

Apesar de ser adaptado do conto de Mia Couto, esse filme não foi fiel ao mesmo. Para aquele que vira espectador, simplesmente por saber que se trata de uma adaptação de um tal texto, pode terminar os minutos frustrados por conta da tamanha “infidelidade” da produção. Esse, diria, seria aquilo em que se postula como o que foi menos conseguido em toda a obra vencedora de muitos prémios em várias categorias, como melhor filme, melhor director e melhor actor na “Garden Route International Film Festival”.

As premiações não deixam enganar. A obra teve uma direcção de encher o olho, desde a produção com Sol de Carvalho, a direção de fotografia com Jorge Quintela, o som com Dinis Henriques e outros. Também teve desde actores já consagrados nas telas nacionais, como Horácio Guiamba, o tio Raul, e o Mário Mabjaia, tendo actuado como espírito, e outros actores emergentes como o Emílio Billa, o Azarias, o protagonista.

O filme começa a “trair” o texto original logo no início. Contudo, percebe-se que, no contexto cinematográfico, não se trata de algo “amais”, o que se acrescentou, deu ainda mais aspecto realístico no enredo. A primeira separação está nos inícios: Mia Couto não nos traz cá uma fase de “introdução”, onde, geralmente, se estende o contexto em que a história irá se desenvolver. Contudo, Sol de Carvalho dá-nos esse precioso contexto. Ou seja, Mia Couto vai deixando ideias de espaço e tempo de forma estilhaçada ao longo do texto, e o filme apresenta-nos quase tudo do início.

Nos primeiros dois minutos, esquecendo por hora as falas do próprio Azarias, correndo até pisar a mina (o que será analisado mais a frente), vemos a paisagem verde, o rio, o gado, uma menina carregando água na cabeça, o que nos remete inequivocamente ao campo, áreas rurais, mas também, que prol lhe faça, a direcção de arte [que] coloca lá soldados a correr. A disposição da tropa envia uma mensagem clara: momento de conflito armado. Isso se pode notar, actualmente, em Cabo Delgado, onde a forte contingência armada dos militares significa que é uma zona de conflito armado.

A fotografia, essa direcção também merece os parabéns. Não é preto e branco, mas também não é a cores. A fotografia situa-se entre essas duas cores que nos permite tecer o tempo: não é o antigamente e, também, não é o actualmente. Talvez estejamos no meio dos dois; antes do agora (que deve ser longo) e depois da independência porque, em Moçambique, quando se conta histórias, “A khali, I Khali ka Wu Koloni” (O antigamente é o tempo do colonialismo). Também a trilha sonora é excelente: a música incidental inicial remete-nos a África, aquele som, de um instrumento africano, não engana.

A obra audiovisual é complexa. Ela dá-nos impressões, às vezes confusas, de que vai narrando duas histórias em simultâneo: a do Azarias e a do Raul. Há duas histórias sendo contadas em paralelo. A primeira narrativa é a frustração do sonho de Azarias, que é de estudar como outras criança. E o que frustra esse sonho é o seu tio Raul. Paralelamente, no início do filme, dão-nos a entender que há uma outra narrativa com um fim completamente diferente da primeira, apesar de estarem entrelaçadas. Nessa outra história, Azarias, esse já morto, frustra o casamento do seu tio Raul, fazendo exigências que somente espíritos sofridos o fazem, e isso foi bem adiantado no próprio filme, “Em África, quando na família acontece uma morte violenta, qualquer acto futuro exige uma consulta aos espíritos”.

É basicamente nessa questão de confusão narrativa causada por histórias paralelas em que Juliana Milheiro (in Narrativas não lineares e a estrutura de roteiro em filmes multiplot, 2020, online) disserta e as trata por “narrativas não lineares”. Hartner (2012, citado por Juliana Milheiro), diz que são “um modo de contar histórias em que pontos de vista múltiplos, e muitas vezes discrepantes, são empregados para a apresentação e avaliação de uma história e seu mundo”. E o mundo em que se fala aqui é bantufano: em que visões distintas fazem o tecido histórico que nos compõem.

No seu livro “The 21st century screenplay” (O roteiro do século XXI), Linda Aronson (2010:167) chama isso de “Narrativas paralelas”, definindo, pela forma, que “usam várias narrativas separadas em paralelo, muitas vezes envolvendo não linearidade, saltos de tempo, grandes elenco ou todos estes.” Aqui é onde esse filme situa-se teoricamente: não se trata de uma produção convencional em que está baseada na estrutura dos três actos, que se dividem em configuração, confronto e resolução. Aronson alerta que esse tipo de produção tanto é complexa, quanto paradoxa, o que leva à incompreensão do que é narrado. Logo, se é projectado num cinema, onde a pessoa não terá oportunidade de rever, pode criar uma confusão tremenda. Contrariamente, esse tipo de narrativa é bem recebido nos livros pelo facto de sempre ser possível retornar para entender bem a história.

É nesse manto de incompreensão que urge trazer uma sinopse longe da que dei antes, apenas da narrativa na “perspectiva” de Azarias.

Raul quer casar. Esse é o seu objectivo, mas o conflito, que trava esse acontecer, é o espírito de Azarias, que, já no final do filme, faz exigências, e, supridas essas, consente o lobolo para o regozijo de todos. Entre o início, o conflito, e a resolução desse conflito, que deveria ser clímax, existe lá uma outra história que explica o conflito que Raul enfrenta. Isso é o “flashback” ou “analepse”, um recuo no tempo discursivo. Falando já em alteração da ordem temporal dos actos, o filme, bem no início, quando corre e explode o Azarias, pode ser vista como “prolepse” ou “flashforward”, avanço no tempo discursivo.

Nos diferentes tipos de flashbacks estipulados por Aronson (2010:175), o filme adequa-se no “Bookend flashback”, que seria, quando “uma cena ou sequência no presente, aparece no início e no final do filme”. No roteiro, a cena presente é o pedido aos mortos, intermediado pelos curandeiros, que está no início e no fim, quando já dançam, no tardar da lua.

Além dessa forma de produção que rompe com a forma convencional e “Hollywoodiana” de fazer filmes, a produção, como disse antes, acrescentou mais matéria que enriquece o filme. Nesse caso, estaríamos a referirmo-nos aos curandeiros, que simbolizam a tradição e folclores africanos. Trajados bem a rigor, capulanas com cores pretas e vermelhas. A primeira cor lembra-nos que os curandeiros lidam com o lado escuro da vida (no sentido de invisível) que só pode ser enxergada com os que são “iluminados”, e a segunda cor expressa, para nós, que esses lidam com a vida, nas analogias com sangue. Aqui também se felicita a Guarda roupa, que também meticulosamente vestiu o espírito da mesma roupa com a que Azariana (como é tratado no filme) é apresentado: camisa branca e calções verdes já esfarrapados. Enquanto no início do filme é difícil conectar o espírito ao Azaria, que são a mesma entidade em dimensões diferentes (um é espírito e outro é corpo físico), mas paralelas (como se compreende a existência em África), as vestimentas vão clarificando essas ambiguidades, principalmente porque os dois são apresentados de forma “não linear”, mostrando-nos o futuro de Azarias, quando já está morto e rancoroso, e antigo Azarias numa sentada (prolepse ou flashforwards).

Um dado interessante no filme, também nota-se esse intercâmbio cultural na dimensão das crenças. No mesmo instante nota-se o chamar dos curandeiros para lidar com certos assuntos, mas também vê-se a avó Carolina rezando, dentro de casa, por um “Hosi” (palavra que designa rei), que concluo ser Deus judaico-cristão. Essa ambiguidade cultural e tradicional, numa altura, já se dissipava antes dos discursos de ódio que (re)nascem entre cristãos (que apesar de serem evangélicos e protestantes têm atitudes ortodoxas) e os defensores de folclores africanos, uns diabolizando os outros, como o último caso público de Paulina Chiziane, que foi agredida por crentes de uma igreja em Maputo.
O que salta à vista nessa obra é a língua usada: Changana. A obra torna-se ainda mais original. Também, penso, possa ser uma forma de revitalização linguística, quando se usa no contexto artístico. Aliado a isso, temos a questão das falas dos personagens, que não passam despercebidas. Toda intervenção discursiva dos personagens ajuda a criar um sentido cada vez mais histórico e contextual, ora falas que reflectem o texto original ora não. É a partir das falas que se percebem questões como ‘mulher-objecto’ na sociedade, quando o pai da Helena a diz que ela está “prometida”.

No filme, nota-se Azarias, esse que tem o sonho de ir à escola, a trabalhar duro fazendo pastorícia enquanto outras crianças estudam em baixo das árvores. Aqui o realizador traz-nos o contexto completo desse tempo e lugar quando as crianças sentam-se no chão ou nas pedras para poderem estudar. Mas é a fotografia do contraste entre a realidade degradante do Azarias e das outras crianças que nos sobra na memória, fazendo-nos reflectir sobre a questão de privar as crianças de estudar e sonhar. Esse sonho frustrado é visível no semblante cabisbaixo do Azarias, profunda melancolia, que em toda história não esboça nenhum sorriso no rosto, mesmo que de mentira. Se o riso é uma língua, então diria Mia Couto que Azarias “foi perdendo [essa língua] à medida que o mundo foi deixando de ser dele”.

Na narrativa audiovisual, Azarias é apresentado mais um pouco com ares de criança, o que o texto não nos traz nunca. Isso mostra que, apesar de ser impedido de ser criança, em momentos, encontra algum descansar do tempo em que podia jogar xindire (o brinquedo que José e Azarias jogam momentos antes da vaca explodir) com o José, que não é muito bem apresentada a relação com Azarias, mas parece que é amigo. Ou mesmo para espreitar a menina, de longe, quando faz banho.

As tropas, a trilha sonora, e a fotografia revela-nos, sinto, que se trata de dos anos da guerra civil que durou aproximadamente 16 anos, desde 1977 até 1992. Numa análise mais profunda, percebe-se que além de tudo sobre o casamento, tradição e estudar, estão os destroços da guerra. A guerra, pelo que a história traz, nunca acaba quando se calam as armas. O ser órfão, os conflitos familiares que surgem das almas aterrorizadas pela mesma, os sonhos frustrados, o vazio nas famílias, a antipatia que se nutre, e os refugiados, o que sempre causa fome, são consequências profundas que ela pode trazer.

Vendo bem as consequências da guerra civil nas costas do pequeno Azarias, encontramo-nos a questionar: quantas almas vagando entre tiros e granadas em cabo delegado não vestirão, num futuro inimaginável, os andrajos com as quais é fadado a cobrir a sua infância para evitar doenças tipo escravidão infantil, orfandade, a privação da educação e, mais crónico, a privação de sonhar? Essa, talvez, seja uma questão a ter em conta quando se for a falar da guerra, mas por agora, “Em tempos de guerra, o melhor plano é acabar com ela” (fala do personagem Espírito no filme “o dia em que mabata bata explodiu”, minuto 48).

Por aqui já é notório afirmar que Sol de Carvalho cometeu várias “infidelidades” tanto com o conto como com a forma em que os filmes são, geralmente, produzidos, principalmente no Ocidente. Mas, esse é o caso em que se diz que há males que vêm para o bem, e é esse um deles, indubitavelmente.

Moçambique e o mundo enfrentam novos desafios decorrentes das mudanças que ocorrem a nível demográfico, avanços na ciência bem como das mudanças climáticas. Estas mudanças têm impacto na forma como as politicas públicas são definidas e, acima de tudo, na forma de construir os problemas e as respectivas resoluções. É lugar comum afirmar-se que as elites definem as trajectórias das organizações bem como das nações. Naquelas sociedades quando elas, as elites, se seguram a dogmas e às mesmas formas de fazer e lidar com os problemas a inovação tenderá a ser nula, a resistência à mudança poderá ser prevalecente e as oligarquias que controlam e procuraram perpetuar-se no poder irão, com facilidade, afirmar-se. As oligarquias são pequenos grupos de interesse ou lobby que controlam as políticas sociais e económicas em benefício de interesses próprios. O termo é também aplicado a grupos sociais que monopolizam o mercado económico, político e cultural de um país, mesmo sendo a democracia o sistema político vigente. No contexto moçambicano entendemos por elites políticas oligárquicas os grupos de interesse ou lobby dos partidos poliíticos que procuram controlar o poder a autoridade em benefício próprio. Tendo presente este postulado, neste artigo analiso as elites políticas em Moçambique argumento que os partidos políticos moçambicanos devem encetar um processo de reforma das suas elites políticas. A reforma das elites dos partidos políticos moçambicanos contribuirá sobremaneira para a inovação no diagnóstico dos problemas, na maneira de estruturar o poder e a autoridade e na forma como se relacionam com o povo. Sobre a necessidade de reforma das elites há autores que eleições livres e justas realizadas periodicamente são a base rudimentar para a circulação qualitativa das elites políticas e da representação dos interesses públicos mediante as políticas públicas. Para estes autores as eleições são o mecanismo de renovação das elites. Ora ao focarem-se simplesmente na eleições, estes autores, negligenciam aspectos importante como os processos institucionais para a renovação das elites,às diferenças reais sobre a inovação das elites pelo tempo e espaço e a importância da liderança inovadora.

Em Moçambique, as elites oligárquicas tendem a construir modelos patrimonialistas de poder com a afirmação de castas dominadas por famílias. Esta estruturação das elites políticas dos partidos políticos moçambicanos não contribuiu para a sua inovação ideológica. Ademais as elites oligárquicas são nocivas ao fortalecimento da democracia interna uma vez que tendem a resistir ao debate instalando no seio dos partidos práticas para amordaçá-lo, tais como oculto a personalidade, invenção de factos e narrativas dissuasores de um debate aberto, grupos internos de ataque a figuras que estruturam um pensamento diferente e controlo dos processos de eleições internas através de escolhas definidas pelo topo fazendo das bases simples legitimadores de processos previamente definidos. Nos partidos onde se instalam grupos com tendência oligárquica há centralização do poder, não há debate porque este pode pôr em causa o “status quo”. Para passar a ideia de democraticidade interna estas elites acordam em controlar o debate, estabelecendo minutos para a intervenção dos seus militantes nas reuniões ou impondo a regra de intervenção nos orgãos internos. A escolha dos dirigentes dos partidos de nivel intermédio e de base são impostos pelo nível central pondo em causa a legitimidade de livre escolha dos militantes destes partidos. Este forma de actuar modifica a base política dos partidos porque é construida à imagem destas oligarquias e não reflecte os diferentes interesses no seio dos partidos. A composição dos órgãos dos partidos não é feita em função dos diferentes interesses dentro dos partidos mas à imagem dos “chefes”, entendendo por chefes os presidentes dos partidos.

As elites que se reproduzem perpetuando-se no poder, ostensivamente ou de modo subtil, têm a tendência em disvirtuar os processos políticos conforme temos assistido ciclicamente na contestação interna que os militantes fazem dos processos eleitorais internos. Esta parece a moda em todos os partidos políticos em Moçambique pela forma como as contestações são feitas e partilhadas na esfera pública. A disvirtuação de processos políticos é feita através do estabelecimento de normas para as eleições internas feitas à medida dos interesses das elites oligárquicas. Estas elites oligárquicas não têm interesse nenhum em estabelecer ou consolidar instituições e processos impessoais que fortaleçam a democracia interna. Pelo contrário, procuram estabelecer regras e processos que estejam sob o seu controlo agindo como árbitro e jogador.

Estas elites não reformam os partidos políticos muito menos ousam reproduzir o Estado. Elas não têm interesse em reformar o Estado uma vez que vivem das “tetas” do Estado. Elas não reformam os partidos políticos ajustando-os às dinâmicas da sociedade. Elas recusam-se a dar respostas ao clamor que os militantes fazem por reformas internas de maneira a impessoalizar os processos internos reforçando a democracia. Estas elites oligárquicas ignoram o clamor da sociedade pela mudança, investindo, pelo contrário, numa práxis discursiva desfasada da realidade. Elas apropriam-se de casos singulares e os generalizam com o argumento de que os números falam por si. Elas se outorgam donas da razão. Para elas a razão é mais importante que a razoabilidade.

A experiênca de 30 anos de democracia multipartidária permitiu-nos, hoje, afirmar que é preciso que os partidos tenham processos internos transparentes de reforma das suas elites. Estes processos devem permitir que em ciclos curtos e intermédios apareçam novas elites com idéias e praxis ajustadas à conjuntura e aos desafios que o país enfrente. Elites que não se fecham no sempre fizemos assim. Elites cuja autoridade radica do facto de estarem a longo tempo no centro do poder e não nas propostas que apresentam para dar respostas aos desafios que os partidos enfrentam. Mas só faz sentido reformar as elites oligárquicas dos partidos se: os partidos intitucionalizarem debates abertos no seu seio; os sistemas de eleição interna forem reformados por militantes que não estejam em conflito de interesse, isto é, que não tenham interesse pela eleição; for limitado o número de mandatos nos orgãos centrais dos partidos permitindo refrescar os partidos do ponto de vista de idéias e propostas políticas e estabelecer regras que evitem a “monarquização” dos órgãos dos partidos políticos. Ora, só faz sentido reformarmos as elites oligárquicas se os militantes dos partidos estiverem comprometidos em contruir uma sociedade aberta que propicia inovação e uma economia do conhecimento.

A crise que os partidos políticos atravessam resulta mais da recusa das elites oligárquicas em sair da cena política e do conformismo daqueles que têm condições políticas para empreender reformas. Só se reforma com coragem e ousadia. O facto é que, em Moçambique, os partidos polítios precisam reformar as suas elites.

Não advirá nada de novo com um actor novo e com centros de tomada de decisão nas mãos de elites oligárquicas. O compromisso destas elites com Moçambique, o seu patriotismo deveria revelar-se na tomada de decisão de criar condições para que as reformas aconteçam sem a sua interferência para que se evite a repetição dos mesmos processos com resultados iguais. O país só viverá novos tempos com novas idéias, novas forma de fazer e agir empreendido por novas lideranças que produzam novas elites. Novos tempos, novas idéias e formas de fazer fazem-se com liderança comprometida com mudança e não com alternância política. Há uma tese falaciosa de que novas idéias, novas formas de fazer e agir só se produzem com alternância política.

Para que o sitema político moçambicanos funcione mais efectivamente é necessários uma transformação necessária uma transformação na composição periódica das elites, em termos não somente quantitativo, renovação, como qualitativo, inovação, com competência e responsabilidade política dos seus membros. Novos tempos exigem novas idéias, novos actores e novas formas de fazer. É possível construir uma sociedade de conhecimento que leve a reestruturação da nossa economia, melhorando a vida dos moçambicanos. tudo isso feito com cooperação mas acima de tudo contando com as nossas próprias forças e a nossa inteligentsia.

Estamos aqui para reflectir sobre Moçambique. Para começarmos, gostaria que tivéssemos uma reflexão inicial focada nas seguintes perguntas: O que significa, realmente, pensar Moçambique? O que nos vem à mente quando nos propomos a esta reflexão? Será que temos refletido de forma suficiente sobre o país que queremos ou estamos a construir?
Quero propor que pensemos em Moçambique como um país não só de esperança, mas de realizações e concretizações:

Como podemos construir um Moçambique onde a educação não exclua nem discrimine? Um país onde a qualidade da educação seja um direito universal, independente do estrato social ou localização geográfica. As condições de ensino na cidade, no campo ou no posto administrativo mais remoto devem ser iguais e exemplares. Não deveríamos exigir que todas as crianças, em qualquer parte do país, tenham acesso a escolas de qualidade, ao invés de aprenderem debaixo de árvores ou sentadas no chão? Precisamos desenhar uma educação que forme cidadãos do mundo, onde o desenvolvimento das sociedades seja alicerçado numa educação de excelência.

Mas como podemos falar de qualidade na educação quando temos turmas superlotadas e professores que mal conhecem os seus alunos? Essa realidade reflete a transformação da educação em comércio, quando, na verdade, a educação é muito mais séria do que imaginamos. Quais são as consequências de uma educação de improviso ou de arranjo? Teremos parlamentos sem cérebros, onde a competência se mede pelo maior vibrar de palmas, uma saúde que não satisfaz nem as necessidades básicas, e gestores que não alcançam os resultados desejados. Então, como estamos a pensar Moçambique, é nosso dever, como povo moçambicano, questionar: Como podemos mudar essa realidade?

Precisamos da participação visível das universidades no desenvolvimento do país. Uma universidade que ofereça ao país estudantes com competências técnicas, capacidade crítica e cidadania ativa.

Pensar Moçambique também é refletir sobre uma política de transporte eficiente. Estamos a garantir uma mobilidade pública segura e acessível? Precisamos de estradas com ciclovias, passeios e pavimentação que favoreçam o transporte de pessoas e bens, pois melhorar a transitabilidade do país promove o crescimento econômico.

Será que as nossas instituições públicas e privadas têm a capacidade técnico-científica e ética para servir Moçambique? A ética manifesta-se no comportamento e na personalidade do nosso ser. Precisamos de mentes criativas e inovadoras nas instituições, que acompanhem as mudanças tecnológicas globais. Estamos a entrar num mundo de inovação tecnológica onde o homem está a ser substituído por robôs e/ou Inteligência Artificial (IA). Estamos preparados para essa realidade?

Um país que privilegia a inteligência pode se tornar um país “certo”. Queremos pensar num país com gestão pública próxima da perfeição, onde a soberania seja plena e total, mesmo nas regiões onde empresas internacionais, como a Total, exploram os nossos recursos. Como podemos assegurar que o prazer de viver se reflita na oferta de serviços públicos e privados de qualidade? Pensar Moçambique é imaginar um auditório como este, composto por moçambicanos e cidadãos engajados que não esperam as coisas acontecer, mas participam ativamente com seu saber no desenvolvimento social do país. Podemos transformar Moçambique num exemplo de resiliência e progresso, assim como o Japão, que superou os desafios após a Segunda Guerra Mundial?

Pensar Moçambique é também valorizar a competência em detrimento da confiança baseada em amizades ou critérios étnico-tribais. Queremos um Moçambique que pensa nas futuras gerações e cria as melhores condições para elas. Um Moçambique competente, que exporta não apenas recursos, mas também conhecimento e produtos acabados. Como podemos construir um país onde os serviços públicos de saúde são de qualidade, sem doentes a dormir nos corredores, e onde a educação produz conhecimento inovador?

Pensar Moçambique é também sonhar com um país onde as teorias “Changuisianas” não têm expressão, onde as autoridades públicas priorizam educar o cidadão antes de o multar. Um país que valorize a competência, que pense nas futuras gerações e crie as condições para que estas possam prosperar. Como podemos fazer com que o conhecimento seja a nossa maior riqueza, assim como o Japão fez, apesar das adversidades geográficas?

Queremos um Moçambique que utilize as tecnologias de comunicação para o bem da humanidade, como faz o Japão, que coloca a tecnologia no centro do seu desenvolvimento.
Podemos criar um Moçambique onde o turismo seja uma verdadeira força motriz da economia? Temos o sol, as praias e os recursos naturais incomparáveis, com extensões de praias de águas mornas e longos períodos de sol. Como podemos capitalizar essas vantagens comparativas para impulsionar o desenvolvimento e fazer com que o turismo e os mega projectos contribu de forma apreciável para o PIB do país?

Para terminar, pensar Moçambique é imaginar um país onde a desnutrição não tenha lugar, graças a políticas agrárias sérias e ao aproveitamento dos nossos recursos naturais. Estamos a usar as nossas terras férteis, como os vales do Zambeze, regadio de Chókwè, e outros regadios , de forma a eliminar a fome e a promover o bem-estar? Precisamos de capitalizar os recursos que temos, como os rios que atravessam o país e que vão abraçar as águas do Oceano Índico, para o benefício integral de todo o povo.

Estamos preparados para criar um Moçambique com valores que mostrem ao mundo que o povo africano está a conquistar a sua independência econômica? Um Moçambique com uma identidade própria, onde a consciência coletiva pense no bem-estar comum, e onde não haja espaço para greves ou reivindicações nas várias profissões do país.

Queremos, juntos, pensar num Moçambique melhor de todos os tempos.
Muito obrigado

À porta de Agosto, quando o mês se apresenta como uma tela em branco, Paulina Chiziane, a celebrada escritora cujas palavras moldaram paisagens literárias, nos oferece uma nova forma de expressão: “Timbila ta mina”.

Num cenário onde a timbila, com o seu murmúrio ancestral, entrelaça-se com a introspecção emocional, Chiziane transforma sua prosa em uma sinfonia de dor e descoberta. Esta obra não é apenas uma canção, mas uma travessia poética, onde o som da timbila se torna o pincel que pinta o retrato da condição humana com tonalidades de tristeza e esperança.

A música que se insere no género marrabenta, combina elementos visuais e sonoros que transportam uma carga significativa que, naturalmente, é preenchida de um ambiente sombrio.

A dança da mulher de um rosto coberto de pintura tribal, vestida com elementos típicos dos curandeiros, não é apenas uma performance, mas uma fusão entre o antigo e o novo, reflectindo as dificuldades da continuidade cultural.

O cenário ritualístico estabelece um contraste profundo com o lamento pessoal expresso na música, criando um diálogo entre a tradição e a experiência individual.

Formando um espaço de intimidade e comunhão, Chiziane posiciona-se ao redor de uma fogueira com uma jovem no seu colo, ambas descalças, um detalhe que simboliza uma conexão directa com a terra e a essência da tradição.

Em meio a isso, um homem toca a timbila (Cheny wa Gune), enfatizando a importância da tradição como um meio de expressão e resistência face à dor.

A letra, cantada em changana, é um grito visceral de sofrimento e alienação. Frases como “A minha timbila é de tristeza” e “A minha existência é de sofrimento” são repetidas com uma intensidade que sublinha a persistência da agonia. Nesse contexto, diria Armando Guebuza,“É preciso refletir-se sobre o que somos e o que queremos ser”.

A imagem de um homem revirando um contentor de lixo em busca de alimento, esse acto de buscar comida entre resíduos, representa a desigualdade e a degradação que afectam os mais vulneráveis.

Efectivamente, a cena não evidencia apenas a miséria, não obstante, destaca também a luta desesperada de indivíduos que, confrontados com a indiferente opulência ao seu redor, buscam qualquer forma de sustento. Portanto, a representação do acto na música serve como uma crítica incisiva, ou por outra, a invocação a Deus e o lamento pela rejeição dos “homens de bem” acrescentam uma esfera espiritual e social, entretanto, sugerindo uma crítica às atitudes da sociedade em relação aos marginalizados. Como diria Said Augusto “Estamos em um país onde todos são iguais, mas vivemos submergidos em total desigualdade social”.

Apesar do envolvimento afectivo e valor cultural, “Timbila ta mina” pode ser vista como excessivamente sombria e introspectiva para alguns. A ênfase no sofrimento e na dor, embora autêntica, pode limitar o apelo da música para aqueles que buscam uma abordagem mais equilibrada.

Além disso, a pujança dos elementos visuais e a intensa conotação simbólica podem tornar a interpretação da música desafiadora para alguns, que podem sentir dificuldade em conectar-se com a narrativa. A escolha predominante de tons e imagens sombrias pode também fazer com que a música seja percebida como um lamento contínuo, sem oferecer momentos de alívio ou esperança.
À medida em que Moçambique se prepara para as eleições presidenciais, “Timbila ta mina” emerge como um espelho das aspirações e frustrações do país. A música, com suas nuances de dor e introspecção, ressoa como uma premonição das lutas que transcendem o simples acto de votar.

Cada nota da timbila e cada lamento na letra ecoam a voz de um povo que, como o homem que busca comida entre o lixo, se vê à margem das promessas e expectativas. A jornada entre o sofrimento e a esperança na música reflecte a tensão entre a necessidade de mudança e o desafio de encontrar um alívio real.

Assim, a música, em sua forma actual, serve como um poderoso espelho das aspirações e frustrações de Moçambique, reflectindo a complexidade das lutas sociais e culturais, mas também revela a necessidade de um equilíbrio entre lamento e esperança para alcançar um impacto mais universal e duradouro.

 

Artista – Paulina Chiziane
Título – Timbila ta mina
Género – Marrabenta
Lançamento- 2024

 

 

 

 

 

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma.

in A insustentável leveza do ser, Milan Kundera.

Há uns anos, publiquei um artigo no qual defendi que O menino que odiava números, de Celso Cossa, foi o melhor livro publicado em Moçambique, em 2019. Lembro-me que nesse mesmo texto manifestei o desejo de continuar a ser amigo do Celso, pois, no ano anterior, um artigo similar quase me custou amizade com Álvaro Taruma. Cortando etapas, o poeta não reagiu muito bem ao artigo em que indiquei o seu Matéria para um grito como a principal proposta para vencer o Prémio BCI de Literatura. Com alguma razão, pois teve de suportar sozinho a acusação (de outros autores) de que eu fazia uma propaganda gratuita a seu favor. Como se eu fosse um lobista…

Talvez por ser ficcionista, Celso Cossa não ficou nada constrangido com o meu artigo. Pelo contrário, sem demora, enviou-me um SMS a dizer-me que tinha gostado imenso do texto e a garantir-me que a nossa amizade estava completamente salva. Aliás, algumas semanas mais tarde, o nosso escritor convidou-me a apresentar O menino que odiava números, na Escola Portuguesa. Sem pormenores (Celso, agora ficas a saber a verdade), inventei uma viagem qualquer e assim evitei apresentar aos leitores uma história muito bem elaborada.

Só uma nota de rodapé: nem foi por maldade que menti ao Celso, coitado. Apenas julguei que, sobre o seu infanto-juvenil, que, na altura, me valeu umas conversas muito animadas com vários escritores, estava tudo dito. Inclusivamente, no dia seguinte à publicação do meu artigo, O menino que odiava números foi considerado Prémio BCI de Literatura, isto é, melhor livro do ano publicado no país em 2019. E eu agora pergunto-te, ó Celso: já imaginaste quantos porcento poderias ter-me pago, se eu fosse um nhoguista?

Como na crítica não há nhongas, e com a amizade manifestamente fortalecida, cinco anos depois, Celso Cossa volta a convidar-me para apresentar um livro. No caso, este A greve das palavras. Desta vez, não tive argumentos contrários, até porque o nosso escritor teve o cuidado de ir lá a casa oferecer-me um exemplar, logo num domingo de manhã, em que tanto se sacrificou ao trocar um copo de cerveja por outro de água que o ofereci.

Não podendo resistir ao privilégio de apresentar o novo livro do Celso, aceitei satisfeito o convite, convicto de que tinha em mãos um excelente livro juvenil. E não me enganei. A greve das palavras é um exercício literário interessantíssimo, quer do ponto de vista temático, quer em termos de abordagem estética. Quando o li, a primeira questão que me ocorreu captar é “A infância como ponto de partida” para a escrita. Quer dizer, o nosso escritor, ao fazer jus a esse substantivo, realiza uma viagem anacrónica para a sua própria meninice, da qual, como fazem os grandes escritores deste e do outro século, recupera um conjunto de ocorrências prolíferas para a ficção. Há-de ser por isso que as histórias deste livro encerram perspectivas sugestivas na definição do espaço, enquanto categoria da narrativa onde as personagens se movem e sofrem acções suficientemente robustas para moldar comportamentos humanos.

O espaço de A greve das palavras, tendencialmente agreste, no entanto, longe daquele registo paisagístico (feito de colinas, árvores e aves), recorrente em imensos infanto-juvenis, é coerente e complementa-se com o tempo. Mas não há aqui um tempo concreto. Nos seus contos, Celso Celestino Cossa explora um tempo indeterminado, porém possível, o que faz com que as histórias possam ser referentes a um instante do passado e até do futuro. Nesse aspecto, este livro juvenil é uma espécie de pêndulo, sem fronteiras fixas entre o possível e o imaginário. Contribui, para esse cenário, a destreza do escritor na manipulação dos estatutos do narrador. Em alguns casos, participando no enredo como protagonistas e, noutros, como enunciadores do discurso apenas. Seja qual for a situação, vale a pena observar o investimento que o nosso autor faz, mais do que no final, no princípio da narração. Vejamos, por exemplo, o primeiro conto, designado “O livro desaparecido”:

 

O detective contratado para encontrar o livro desaparecido passeou os olhos pelas prateleiras da biblioteca, retirou os livros que lhe pareciam suspeitos e, com a minúcia de quem procura uma agulha num palheiro, inspeccionou as lombadas, as orelhas, as capas e as contracapas, antes de folhear as páginas e constatar que o objecto de leitura ali não se encontrava (p. 9).

 

Aparentemente simples, o excerto revela uma capacidade descritiva acrescida. Num só período, repare-se, inicial, o narrador consegue apresentar uma personagem (detective), uma missão (encontrar o livro desaparecido), um espaço (biblioteca), uma acção (retirou os livros que lhe pareciam suspeitos) e, enfim, introduzir uma bela história de uma forma sublime. Num só período, o nosso escritor introduz a história de modo a gerar encanto e expectativa, explorando até alguns recursos estilísticos no exercício da sua linguagem.

Outro aspecto que me chamou atenção, durante a leitura deste livro, é o que considero “A desconstrução de um paradigma” no conto “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Primeiro, a narrativa de Celso Celestino Cossa fez-me regressar à época em que dei aulas numa escola primária em Tete. Lembro-me que em 2008 e 2009 tive alunas que, mal passavam do sétimo para o oitavo ano de escolaridade, tinham de cancelar os estudos porque, de acordo com a vontade dos pais, tinham de se casar mal vissem a menarca.

Em geral, a situação das minhas alunas é ficcionada em “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Esta é um conto sobre uma menina inteligente, que, por isso, ganha uma bolsa de estudo, surpreendendo a comunidade escolar e as autoridades locais por ser a primeira do sexo feminino a atingir tal realização. Entretanto, quando o pai toma conhecimento do êxito da filha, imediatamente vocifera:

 

Não quero ouvir nada sobre este assunto advertiu meu pai. A nossa filha já completou a 7ª Classe. Isso é mais do que suficiente para uma mulher! Agora, ela deve, mais é, ficar a cuidar da casa e dos seus irmãozinhos, até que eu lhe arranje um marido (p. 20).  

 

Triste e inconformada com a decisão do pai, Dandiwa confessa, quase num monólogo silencioso:

 

Não cabia na minha cabeça que a mulher somente nasce para cuidar do lar, do marido e dos filhos (p. 21).  

 

E mais adiante:

 

Para provar que em certas sociedades é mais fácil desenterrar as raízes profundas de um embondeiro a deixar que as mulheres corram atrás dos seus próprios sonhos, alguns dias depois o meu pai reuniu na nossa casa todos membros da família e anunciou que já me tinha arranjado um marido. Aquele que eu tinha para marido era o homem mais próspero da nossa aldeia. Para além de uma população inestimável de gado, extensas áreas de cultivo e vários fontenários, a maioria da população da nossa aldeia trabalhava para ele, o que fazia dele o melhor partido para qualquer pai casar uma filha” (p. 21).

 

Com a protagonista desta história, inevitavelmente, também sofremos, quando lemos. E, no enredo, o sofrimento é bom, porque nos purifica e nos situa na nossa realidade e na nossa condição de moçambicanos. Muitas vezes, quem nunca viveu no interior no país, corre o risco de julgar que certos hábitos e costumes estão ultrapassados. Ficciona-los, com efeito, contribui para a arte literária afirmar-se como elemento essencial e imprescindível na construção de uma cidadania condizente com a nossa contemporaneidade. Afinal, o futuro das nossas filhas, sobrinhas ou irmãzinhas importa na mesma proporção que o futuro dos nossos filhos, sobrinhos e irmãozinhos.

Além da forte possibilidade de nos ligar ao nosso contexto, “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos” apresenta uma intrínseca intertextualidade com o conto “A mulher sobressalente”, de Dany Wambire. Neste último caso, há uma menina que, impedida de estudar, foge de casa, da sua aldeia, e vai trabalhar para cidade como empregada doméstica. Pressionada pelo pai da pequena, entretanto, a mãe vai convencê-la a regressar a casa, de modo a salvar o casamento da irmã mais velha, que, segundo uma percepção machista, só gera meninas, quando o marido almeja um herdeiro.

À semelhança de “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos”, “A mulher sobressalente” apresenta um pai interesseiro, com uma visão do mundo redutora, injustificável na opressão da rapariga. A diferença encontra-se, sobretudo, no fim das histórias. Enquanto em Cossa a justiça impera no lançamento do destino da protagonista, em Wambire essa justiça é adiada irreversivelmente. Todavia, em todos os casos, a proximidade entre as duas histórias é tão particular que, a certa altura, questionei-me: Será que o Celso, pretendendo publicar um livro pela Editorial Fundza, pôs-se a escrever um conto que dialogasse com o do seu editor? Bem, o Celso é adulto e terá a oportunidade de responder a esta pergunta, se julgar conveniente.

Com ou sem resposta, levanto mais um aspecto que me interessou durante a leitura do livro, designadamente, “A perspectiva do outro”. Muitas vezes, nós julgamos e tomamos decisões  apenas em função do nosso ponto de vista, sem nos preocuparmos em ouvir ou compreender a outra parte num eventual conflito. Nesses casos, geralmente, falhamos e perdemos claras oportunidades de construir algo comum e duradouro.

Ora, o grande exemplo da relevância de nos colocarmos na “perspectiva do outro” é o conto “Zumbido de pernilongo”. Esta é uma história engraçada e dramática. A certa altura, um ser humano fere gravemente um mosquito. Já no leito da morte, o insecto conta à filha mais velha o que lhe aconteceu e esta jura vingança mal perde a mãe mosquito. A história é tão bem contada na perspectiva das vítimas que, ao longo da leitura, questionei-me várias vezes sobre quão injustos temos sido por nos julgarmos o centro do mundo, se preferirem, os donos da razão. Celso Cossa, na verdade, confronta os nossos juízos de valor numa narrativa aparentemente banal, mas carregada de uma intensidade e originalidade.

“Zumbido de pernilongo” é uma história sobre a empatia ao invés de ressentimento. Por isso mesmo, quando o mosquito localiza o homem culpado pela morte da mãe, no momento em que ele brincava com o seu filho, pergunta-se se seria justo deixar o menino órfão de pai na sequência da sua vingança. Quer dizer, antes de qualquer sentença, o insecto coloca-se no lugar do outro (ainda que esse outro seja um ser vivo de outra espécie), imagina e capta as possíveis dores do menino. Só depois disso o insecto vingador toma a decisão que torna o conto ainda mais sugestivo em abordagem. Como é óbvio, não vou contar qual foi essa decisão porque sabe melhor quando lemos em silêncio.

O grande problema de “Zumbido de pernilongo”, entretanto, é que de há algum tempo a esta parte eu já não consigo matar um mosquito. Sempre que um insecto voador passa por mim, penso que pode ser um zumbido de pernilongo. E reparem. Eu vivo em Infulene, na Matola, e lá o que temos demais são mosquitos. Então, não me vai admirar nada se daqui a algum tempo, ó Celso, seres acusado de contribuir para o aumento de casos de malária. Quem manda escrever tão bem uma história que nos faz reflectir sobre a importância de todo tipo de vida?

É bom que se lhe diga. Celso Cossa tanto sabe escrever sobre a abstracção do afecto quanto sobre o “Contexto crítico”. Motivado ou não pela nossa actualidade política e social, o escritor traz-nos “A greve das palavras”, conto que empresta o título ao livro. Apesar de o autor não tocar categoricamente em aspectos contextuais, na leitura, é difícil não relacionarmos as greves que colocam em xeque as instituições do nosso país. Sem ser explícito, mas sugerindo, o conto consegue atravessar um tempo e uma realidade, claro está, dando-nos a possibilidade de escolher a melhor interpretação para cada evento.

A mim, em particular, “A greve das palavras” fez-me lembrar da escrita do meu amigo Mélio Tinga, no que se refere ao investimento discursivo dos narradores e das personagens em detrimento do enredo. Esse último de seis contos é, principalmente, um exercício sobre a linguagem literária, sobre a susceptibilidade do nosso escritor criar sempre, tendo os mais novos como a razão e finalidade da escrita.

A propósito dos mais novos, em Levantando do chão (salvo o erro), Saramago escreve uma frase como a seguinte: “As crianças são a melhor coisa do mundo. Sobretudo quando precisamos de uma rima para danças”. Eu não sei se o Celso leu aquele romance do único autor de língua portuguesa a vencer o Nobel. Seja como for, abusado como é, contraria o escritor português quando nos sugere que a criança não é uma rima para coisa nenhuma, pelo contrário, é o poema inteiro. E, como nos sugere o narrador do conto “O rato e o dicionário”, as histórias deste livro tanto valem por si como também valem pelo perfil de quem as conta. Neste universo imaginário, com efeito, “conhecer as palavras é sinónimo de resolver quase todos os problemas” (p. 57).

Para terminar, que esta apresentação já vai longa, Celso, deixo-te mais uma pergunta. Sinceramente, espero que respondas: já reparaste que te estás a tornar uma das grandes referências do infanto-juvenil em Moçambique?

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro A greve das palavras, de Celso Cossa, no Camões Centro Cultural Português em Maputo, no dia 25 de Julho de 2024.

Por: Sara Nhabau

 

A menina da Ronil. Assim dizem, quando relatam a minha história. Afinal, quem é a menina que assombra o bairro? É a Leonor. Esta é a minha história. Aos meus 15 anos, saí às ruas de Lourenço Marques. Estava um dia lindo e as acácias traziam cor à cidade. Não sabia eu que era a última vez que via a estrada cheia de viaturas de marcas e jovens desfilando os seus estudos. Atravessava para junto aos outros esperar transporte para regressar à casa, quando um condutor, sob efeito de álcool, bateu-me. No momento perdi consciência. O meu corpo ficou estatelado no passeio e cheio de vinho que das veias escorria. A minha perna não se mexia. O condutor viu a minha condição e preferiu colocar-se em fuga. Na hora, fiquei sem forças. Pedi ajuda, mas ninguém se aproximava. Então, vi os meus antepassados. Era a morte!

Fechei os olhos. O meu coração parou de bombear sangue e a minha alma deixou o corpo. Haaa, a ambulância chegou. Aliás, o coveiro veio tirar-me. Aí começou o terror. A minha família teve informação. Rapidamente, vieram reconhecer o meu cadáver. No dia seguinte, procederam com o meu funeral. E pronto. Abandonaram-me. Não houve oitavo dia, nem seis meses, mal esperei pela missa de um ano.

O condutor, este tinha um filho cinco anos mais velho do que eu. Nele recaíram os males do pai, para todo caso há um acaso. O jovem, já com 25 anos, fez-se às ruas da cidade, justamente na Ronil. A minha alma amargurada pelo abandono após o acidente e após a morte, decidiu assombrar os vivos. Num vestido cor da noite, com um sorriso e toda deslumbrante, fiz-me ao local onde Armindo, filho do condutor, estava, humildemente. Saudei-lhe. Ele foi gentil que a conversa alongou-se até que saímos para uma barraca onde bebemos até a madrugada, mal imaginava que estivesse com uma alma morta. O passeio foi agradável até que o meu filme começou.

Disse-lhe que sentia muito frio e era asmática. Gentilmente, emprestou-me seu casaco. Levou-me ao portão da minha casa e despediu-me com a promessa de nos vermos mais logo. Chegado a sua casa, com o sorriso no auge, relatou o sucedido à sua família que alegremente felicitaram-no pois nunca havia saído para passear com uma jovem. Às 16 horas, preparou-se e foi à casa que lhe tinha apresentado como minha. Chegado lá, bateu e minha mãe atendeu.

Quem é? – perguntou minha mãe.

Sou Armindo, amigo da Leonor. – respondeu o jovem.

Em quê posso ser útil? – perguntou novamente minha mãe.

Venho ter com ela, pode chamá-la? – perguntou o jovem.

Minha mãe ficou espantada e em simultâneo ficou triste porque achou que o jovem estivesse ali para tirar sarro dela. O jovem não entendeu o motivo da repentina mudança do semblante da minha mãe, dona Judite.

Ela morreu, passam cinco anos. – disse minha mãe.

Não é possível, estive com ela ontem, a mesma levou-me até aqui e ficou com o meu casaco porque sentia muito frio, alegando que é asmática. – relatou o jovem.

Sim, ela era asmática e morreu num acidente, inclusive fez cinco anos ontem. – explanou minha mãe.

Não, não é verdade. – Armindo recusou-se a acreditar.

É, sim. – afirmou dona Judite.

Minha mãe convocou todos os que estavam em casa: senhor Nguluve, meu pai e meus dois irmãos, Alfredo e Zaina, estes também confirmaram o que a minha mãe antes dissera. O jovem não acreditava, então, levaram-no à minha campa. Quase caía por trás, quando viu o seu casaco estendido no meu sepulcro. Foi aí que a minha família percebeu que o jovem falava a verdade.

Depois de presenciar aquele cenário, o jovem voltou à casa abatido, e mais uma vez relatou o sucedido à família, deixando assim o pai a transpirar, acreditando que a menina vinha se vingar. Dia seguinte, a família de Armindo foi à casa de Nguluve, conversaram e decidiram que deviam fazer missa.

Passado um mês, fizeram o decidido e todos passaram a ter uma vida normal. Armindo, com os seus 27 anos, já tinha a sua família, mas nunca mais passou da Ronil. A minha família e do condutor já havia recebido o meu perdão pelo abandono sepulcral.

A minha história até os dias actuais é narrada em Maputo, cidade das acácias e antiga Lourenço Marques.

04 de Maio de 2024

Muita da pintura abstracta é, de facto, pintura literária, a expressão de ideias.

in Um mundo de estranhos, Nadine Gordimer.

 

Os artistas plásticos têm a particularidade de exprimir em imagens o que, eventualmente, é redutor em palavras. Nos movimentos tácitos do pincel, o pintor esmera-se em alcançar uma harmonia demiúrgica, geralmente, a condizer com um estado emotivo: pretendido ou sugerido. Com efeito, entre o vazio e o absoluto, a ideia e a finalidade, denota-se, no campo visual, a representação pessoal das condições do inconsciente expresso simbolicamente, o que em Jung se resume a uma palavra: sonho.

No universo das cores esteticamente concebidas, parafraseando Adler, as funções primordiais do sonho incluem pensamento e sensação, claro está, transbordando sentidos como analogia da vida. Quer dizer, ao contrário do que Freud diria, o sonho não é absolutamente egoísta, mas profunda partilha (às vezes) experimentalista do estado da alma. Categoricamente, é nessa concepção que Languana situa a sua oficina, enquanto dimensão intangível do corpo e do mensurável.

Na sua mais recente individual de pintura, exposta na Galeria da Fundação Fernando Leite Couto, o artista realça que o seu “jardim dos caminhos que se bifurcam é a imagem incompleta, mas não falsa”* da existência. Na verdade, o jardim languaniano é a metonímia inversa de um mundo em convulsão, um lugar de pretensas animosidades políticas, ideológicas, económicas e culturais. Tendo em consideração um contexto adverso, depois da individual Conversando com o silêncio, novamente, Languana pinta, mais ou menos como Génesis procede com o Éden, uma dimensão degradante, mas subvertendo-a de conteúdo.

Nas suas representações, esquivando-se do horror e de todos níveis de indecência, da miséria, da leviandade e da consternação, o autor elege o Homem e a geográfica como fragmentos de uma narrativa escassa: na forma e no procedimento.

Dito de outro modo, Languana põe a rosa no lugar da arma, a sensualidade na ganância, a nudez na imperfeição e a infância no caos, até porque Nadine Gordimer prevê: “os psicólogos dizem que as brincadeiras das crianças são um longo ensaio para a vida”.

A partir dos seus Jardins de sonhos, o artista fixa projectos sintécticos sobre as coisas que realmente importam, intersectando, em geral, a abstracção das suas aguarelas sobre papel e a realidade envolvente. No seu conjunto, telas como “Esmola”, “Encontro de compadres”, “Todos de costas voltadas” e “A cadeira de leite e mel” reflectem o misticismo de um povo tradicional-animista, que encara a razão e a crença no mesmo nível de complementaridade.

Não obstante as frivolidades de algumas molduras, nas escolhas técnicas do tipo de material e nos acabamentos, às vezes com o papel mal esticado, Jardins de sonhos apresenta um autor sensível à configuração de um ecossistema suportado pelos distintos anseios do Homem. Com a excepção dos jogos de equilíbrio igualmente sustentados pelo carácter narrativo das telas, em Languana nada é total. Ao artista importa mais sugerir, com a coerência daí resultante, do que definir. Quiçá por isso, em algumas ocasiões, nota-se uma vaga de substâncias que, aparentemente, se consolida com tinta-da-china e com técnica mista. Nesses casos, a cor, enquanto elemento vibrante, desaparece. Há-de ser por essa razão que as telas “Cão de guia”, “Apocalipse”, “Brincadeira de criança” instauram uma atmosfera melancólica, em que a incerteza relativamente ao futuro das figurações é dominante. Naquelas três telas a preto e banco, Languana, como Amin Maalouf, parece subscrever que “o homem é tão vulnerável perante o Destino que mais não pode do que ligar-se a objectos rodeados de mistério”.

Finalmente, nas suas variadas estruturas e proporções, com ou sem mistérios, as obras de Languana são bifurcações do ser colectivo, a textura de um fiel jardineiro que, em silêncio, encontra nas artes plásticas a particularidade de intervir no seu território físico. Para o efeito, o artista inventa flores, fragmenta e distorce, recria e modifica, propondo, assim, uma realidade consentida e inadiável.

 

Título da exposição: Jardins de sonhos

Autor: Languana

Galeria: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 17

 

* Título e excerto original de Jorge Luís Borges, in Ficções.

Numa sociedade marcada pela tensão entre a preservação das tradições e a pressão da modernidade, “Lagartos de Madeira e Zinco” se destaca como um retrato vívido e crítico das complexidades da vida em Moçambique, capturando a luta pela identidade e a resistência diante das desigualdades.

A narrativa de Hélio Nguane mergulha profundamente nas adversidades enfrentadas por indivíduos que, em meio a uma realidade brutal, buscam dignidade e sentido.

Com uma combinação de lirismo e realismo, a obra expõe o impacto das transformações sociais e culturais sobre as vidas cotidianas, revelando as fissuras e as tensões que moldam a experiência de seus personagens.

Nguane utiliza uma linguagem imersiva e evocativa para retratar a luta pela sobrevivência e pela dignidade num contexto marcado pela precariedade. Desta forma, a crónica não só expõe as duras realidades da vida em Moçambique, mas também provoca uma reflexão mais ampla sobre o impacto da modernidade nas tradições culturais e nas relações sociais. Como diz Fernando Pessoa, “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”.

A linguagem, ainda que bela, no entanto, pode apresentar desafios, com palavras e expressões menos comuns que se desdobram pela narrativa, dificultando a compreensão para alguns.

De facto, através de personagens como João Matandza, o autor explora a luta diária pela sobrevivência. O vínculo com a ancestralidade e as raízes culturais é um tema recorrente, ressaltado por referências a locais significativos como Massinga e a presença constante de influências urbanas corruptoras.

A obra é permeada por conceitos e representações que provocam uma reflexão sobre a natureza humana e os conflitos sociais. Aliás, a descrição das roupas gastas e dos pés rachados de João Matandza não é apenas um detalhe físico, mas uma representação visceral de sua trajectória difícil e da aspereza do ambiente que o cerca.

“Quem com pés descalços conhece seu destino, com calos conta como foi dura a sua caminhada”, escreveu Josias Doba, e essa dualidade ressoa fortemente na luta e na esperança presentes na narrativa de Nguane. Cada passo que João dá com os seus chinelos, que “raspam a entrada, roçam a areia”, é uma metáfora para a árdua caminhada da vida. A caixa que ele carrega, destinada a conter 48 ovos cozidos, sal e o dinheiro da receita, evidencia responsabilidade e esperança, ainda que frágil, contrastando com seu estado físico debilitado.

Embora a construção dos personagens seja sólida, o desenvolvimento do enredo poderia ser aprimorado com uma estrutura narrativa mais clara e objectiva, o que potencializaria a dinâmica da história, tornando-a mais acessível e impactante.

Efectivamente, a interacção dos personagens com o ambiente urbano também é notável. Nguane descreve a presença do pregador no transporte colectivo como um reflexo da persistência da espiritualidade, num contexto de indiferença e rotina exaustivo.

Por um lado, a crónica apresenta várias passagens ambíguas. Aliás, a falta de clareza sobre os sentimentos e pensamentos internos de João, durante as interacções com as profissionais do sexo, pode dificultar a compreensão completa de suas motivações e reacções.

Por outro lado, a obra permanece intrinsecamente envolvente. As descrições minuciosas das adversidades diárias, como o caos no transporte colectivo e a necessidade de lidar com a violência e a coação, evidenciam as dificuldades enfrentadas pelos moçambicanos em busca de dignidade e estabilidade.

Ora, enquanto os atletas olímpicos se tornam heróis luminosos num palco mundial, a crónica de Nguane ilumina as sombras que persistem nas vidas das pessoas comuns, lembrando que, para muitos, a verdadeira vitória é encontrada nas batalhas silenciosas da vida cotidiana.

No capítulo intitulado “Ontem foi o meu aniversário”, o autor aborda a temática do tempo e da memória de maneira pessoal e introspectiva. Utilizando a celebração de um aniversário como pano de fundo para explorar reflexões mais profundas sobre a vida, as mudanças e as permanências.

A rotina matinal descrita pelo narrador, que envolve um olhar para a mãe no espelho do vaso e repetição acções cotidianas, contrasta com a reflexão interna sobre mudanças.

Nguane manipula o tempo narrativo de forma eficaz, demonstrando habilidade em transformar o ordinário em algo extraordinário. A menção ao aniversário serve como um ponto de ancoragem para reflexões mais amplas sobre o que mudou e o que permaneceu inalterado na sua vida.

Mais adiante, em “Perdi a minha melhor crónica”, o autor oferece uma narrativa que nos leva ao âmago da frustração criativa, enquanto também nos faz refletir sobre a dependência tecnológica e os desafios inerentes à escrita. Este capítulo é uma montanha-russa emocional que revela tanto os pontos fortes quanto as limitações da obra.

A falha do computador não é apenas um contratempo, mas uma metáfora para a fragilidade do trabalho digital. A tecnologia, que deveria ser uma aliada na criação, revela-se um campo minado, onde um simples erro pode destruir dias de esforço e inspiração.

Nguane compartilha uma experiência pessoal e íntima, conferindo uma sensação de realidade que ressoa profundamente com qualquer pessoa que já tenha enfrentado uma perda criativa. A inclusão de detalhes específicos, como a tentativa desesperada de recuperação e a oração final, reforça a veracidade e a proximidade da narrativa.

A narrativa, embora emocionalmente rica, sofre de previsibilidade. A ideia de uma falha tecnológica, causando a perda de um trabalho, é uma situação familiar e esperada. Isso diminui o impacto da história, que poderia se beneficiar de reviravoltas mais inesperadas ou de uma complexidade maior no enredo.

O capítulo toca em temas cruciais como a inspiração súbita e a dependência tecnológica, mas a exploração desses temas é superficial. Uma análise mais profunda sobre a natureza efémera da criatividade ou a luta dos escritores contra as limitações técnicas teria adicionado maior profundidade à narrativa.

“Lagartos de Madeira e Zinco” oferece um retrato imprescindível e evocativo, lembrando que, mesmo em meio à brutalidade da realidade, há uma beleza resiliente na luta pela identidade e pela justiça. Ao fim, a crónica nos exorta a valorizar as pequenas vitórias do cotidiano e a manter viva a chama da esperança e da resistência frente às transformações implacáveis do mundo moderno.

“Chókwè é um verdadeiro paraíso para negócio ilícito,[ porque], todo o mundo vê, as autoridades vêem, mas ninguém se preocupa. O enriquecimento ilícito não assusta a ninguém.”

In: Almeida Cumbane. “Ilusão à Primeira Vista”. 2.ed. 2016, p.75

Esta citação nos faz viajar para Ndaveni, em Mabunguanine, província de Gaza, distrito de Chibuto, para reflectir em torno do enriquecimento ilícito, tema abordado por meio da música.
Na década de 80, Moçambique foi surpreendido com uma belíssima canção intitulada “Metical”, do músico e compositor Alexandre Langa, na qual “Jossefa Mukombo”, uma personagem, andava sempre cheio de dinheiro e bêbado, mas desempregado. A música pertence ao género Marrabenta, tem apenas duas personagens, uma que é estranha e a outra chamada Jossefa Mukombo.

Na mitologia moçambicana, a marrabenta, nos seus primeiros anos de configuração como género musical, usava guitarras manufacturadas. Por isso, as cordas rebentavam com muita facilidade, daí que surge a palavra marrabenta, que, Segundo INFOPÉDIA, dicionário online da Porto Editora, vem do verbo “rebentar” (“arrebentar”, em vernáculo local), em uma provável referência às fracas cordas em guitarras de latas usadas na altura. As letras das canções deste género versam sobre temas como: a injustiça, o amor; a vida quotidiana; a história de Moçambique.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, alegre-moderado. Uma marrabenta, mas não agitada, tem um ritmo suave e fácil de acompanhar porque não precisa se mexer muito para dançar, a tonalidade está na escala de sol maior, uma escala muito bem seleccionada por ser uma música de carácter vivo e alegre, com ritmo característico da zona Sul do país.
Escutando a música é possível perceber que para a produção do instrumental foi usado: uma bateria e três guitarras.

A primeira guitarra faz solo, a que tem som mais agudo. A segunda produz ritmo, e a terceira faz baixo, som mais grave e juntas produzem uma melodia muito rica, porque para além de servirem de base para o corro também ornamentam a música através de ritmos repetitivos que preenchem perfeitamente os espaços vazios que a voz do corro não consegue cobrir.

Do modo particular, a guitarra baixo, fora marcar o andamento da música, função principal deste instrumento, também cria groove, permite com que quem escuta possa sentir ou ter vontade de dançar. A marcação do tempo da guitarra baixo coincide com os batimentos do coração e, por isso, aos ouvidos de quem escuta automaticamente gera movimentos involuntários sobretudo o abanar da cabeça para quem está de pé ou o chocar repetido do pé com o chão para quem escuta a música sentado.

Na projecção da ideia central, o músico monta um cenário de um silogismo, segundo a qual apenas os trabalhadores têm dinheiro. Logo, todo aquele que não trabalha não têm dinheiro. Mas o que é absurdo, escândalo nesta canção, acontece que, Jossefa Mukombo não trabalha, no entanto, tem dinheiro.

O facto de um desempregado ter dinheiro escandaliza a voz de enunciação, que quer saber onde Jossefa arranja tanto dinheiro mesmo não sendo trabalhador.

O momento mais alto deste diálogo trazido em forma de marrabenta é quando a personagem sem nome questiona J. Mukombo: “Metical pega quem trabalha. Você não trabalha. Onde encontra tanto dinheiro?”. Por sua vez, este cala, não diz nada. Porquê Mukombo não disse a proveniência do seu dinheiro? Será que era ilícito?

De referir que esta música é gravada nos tempos em que o país usava a música como uma via para persuasão e educação da moral social, diferente da música actual, que é mais uma simples contribuição para a idiotização da sociedade, sobretudo dos adolescentes.

A música de Langa é uma bússola na actualidade. Pós, o país encontra-se mergulhado nesta realidade de pessoas que não trabalham e meia volta aparecem ostentando carros de luxo, telemóveis caríssimos nas redes sociais. Os pais, na actualidade, são desafiados a ir buscar a coragem do músico e questionarem aos seus filhos a origem dos Ractis, IPhone 14 pro Max trazidos para casa diariamente por filhos que não trabalham e não produzem.

O que é incrível, nos dias de hoje, os pais fazem festas, abrem garrafas de champanhe para comemorar junto dos filhos bens de proveniência duvidosa.

Cada vez mais, a sociedade está de forma impávida a assistir a degradação da moral social. O eu lírico da canção é que diferente dos pais da actualidade. O compositor não corre para festejar, mas, sim, para questionar.

É difícil para, os pais, perguntarem onde uma rapariga de 14 anos encontra dinheiro para comprar IPhone 14? Um aparelho avaliado em um pouco mais de 2 mil dólares, o correspondente a 126 mil meticais. Sem falar dos cabelos de somas incalculáveis até aos olhos de um trabalhador que recebe salário mínimo,4.941 MT, quanto mais para uma pessoa que não trabalha!

Em Maputo, sobretudo nas zonas periféricas da cidade, até 2005, quando uma criança ia à escola, levava consigo, no ombro, uma pasta plástica, doada pela UNICEF, devido às cheias de 2000. No regresso da escola, os pais, sobretudo as mães, tinham o hábito de revistar a pasta no regresso da criança para se verificar se, por engano, não teria pego um livro, um caderno, um lápis, uma borracha que não fosse dela. Bastava encontrar algo impróprio ou que a mãe não reconhecesse, a criança tinha de devolver de imediato. Onde foi parar este hábito?

Como mencionado no livro o “Vagabundo da pátria”, do escritor Marcelo Panguana, “depois da independência, o país quando parou de vigiar. Logo do imediato, começou a produzir putas, ladrões e xiconhocas”.

O mérito da música de Alexandre Langa reside no facto dela educar a sociedade e ressaltar os valores. O músico nos lembra sobre a importância de questionar e não aceitar receber dentro de casa coisas de origem duvidosa. “Metical” é uma tentativa de resgatar os valores de uma sociedade que cada vez mais tende a tornar-se menos vigilante.

 

 

Artista: Alexandre Langa
Título da Música: Metical
Gênero: Marrabenta
Duração: 4’:54”

 

 

 

À medida que nos aproximamos do fim de um ciclo governativo de uma década e nos preparamos para um período eleitoral que inaugura outro ciclo, surge uma agitação crescente em relação ao futuro. As expectativas ampliam-se e as propostas para a próxima fase de governação começam a emergir como fundamentos essenciais para orientar o país nos anos seguintes. Nesse contexto, é imprescindível avaliar o papel e a importância da literatura moçambicana como um elemento vital no panorama do desenvolvimento nacional. Devemos questionar-nos qual será o papel que esta arte pode desempenhar neste próximo decénio.

É crucial lembrar que a literatura moçambicana, como um sistema, é relativamente jovem, com menos de 100 anos de existência, e a sua base na escrita representa um desafio significativo num contexto em que mais de 40% da população ainda é analfabeta. Além disso, enfrentamos contínuas e visíveis dificuldades no processo de ensino e assimilação da língua portuguesa, que é a língua oficial em Moçambique e na qual assenta, grosso modo, toda a produção literária nacional.

Ao pensarmos sobre a literatura moçambicana nos próximos 10 anos, é fundamental considerar, em primeiro plano, a massificação da alfabetização e o acesso ao livro: é essencial investir em soluções ou programas de alfabetização para reduzir o alto índice de analfabetismo em Moçambique, tendo o livro como centro. Devemos garantir que a população tenha acesso à literatura em todas as suas formas, seja por meio de livros físicos, digitais ou recursos audiovisuais. Só para citar este último exemplo, já tivemos em Moçambique, ao nível da rádio, programas de teatro radiofónico, que serviam para criar, adaptar e difundir a literatura local através da rádio e assim levar as nossas histórias e vivências imaginadas à maioria da população. É necessário, partindo desse tipo de experiências, encontrar novas formas de levar a literatura, o livro e as histórias, e devolvê-las para quem as faz ou as vive no dia-a-dia.

Em segundo lugar, devemos preocupar-nos com a inovação literária: a nossa literatura precisa continuar a inovar e explorar novas formas de expressão que reflictam as complexidades da sociedade contemporânea e abordem questões urgentes, como as mudanças climáticas, a vida urbana e rural, as desigualdades sociais e os direitos humanos. É preciso encontrar novas formas e modelos temático-narrativos que nos coloquem lado a lado com outras literaturas e preocupações que permeiam o mundo, partindo sempre da nossa experiência e dos nossos saberes locais.

Um terceiro aspecto, não menos importante, é a educação literária: necessitamos de voltar a investir na educação literária nas escolas, algo que a minha geração e as que a precederam assimilaram, mas que está descontinuado neste novo modelo de educação. Estimular as crianças ao livro é essencial para cultivar o amor pela leitura desde cedo, desenvolver habilidades críticas e analíticas e promover uma compreensão mais profunda da identidade moçambicana e da diversidade cultural. Isso passa, por um lado, por expor as crianças às histórias e aos escritores, ainda mais cedo.

Em último, e aqui, puxando a sardinha para a minha brasa, falo de uma melhor integração do escritor na cadeia de valores da indústria cultural e criativa: é necessário reconhecer o escritor como um profissional e fornecer-lhe todo o suporte necessário para que seja valorizado e ressarcido adequadamente pelo seu trabalho. Isso implica considerar a dimensão social do trabalho literário e apoiar toda uma indústria cultural emergente.

Outro factor que me leva a reflectir sobre os desafios enfrentados pelo sector literário é que, enquanto a produção literária cresceu nos últimos anos, as estruturas de suporte, como livrarias e editoras, sofreram com o fecho de muitos estabelecimentos e a falência de várias editoras. Além disso, os prémios literários, que muito motivavam o escritor, entre os iniciantes e os consagrados, e o compensavam, às vezes, das vendas incipientes que caracterizam o mercado livreiro nacional, foram fechados ou estão no limbo, caso de célebres prémios como o BCI de Literatura, o prémio TDM, o prémio 10 de Novembro, para mencionar alguns. É essencial resgatar e valorizar os verdadeiros talentos da literatura moçambicana, reconhecendo os precursores e os contemporâneos que têm contribuído significativamente para enriquecer o cenário literário do país.

Além disso, a literatura pode ter um impacto económico positivo, através da criação de empregos na indústria editorial, promoção do turismo cultural e geração de renda para escritores, editores e outros profissionais do sector. O investimento nas economias criativas e na literatura, em particular, pode proporcionar imensos ganhos e fortalecer a nossa cultura, condição indispensável para a consolidação da democracia. Uma literatura de qualidade, por exemplo, é condição para um cinema e televisão mais abrangentes e fortes, um teatro mais criativo e dinâmico e uma música mais capaz de narrar e poetizar histórias maduras e de qualidade.

Investir na literatura moçambicana no próximo decénio é essencial para garantir um desenvolvimento integral e sustentável do país, que promova a cultura, a educação e a economia, proporcionando um futuro mais promissor para todos os moçambicanos.

Para terminar, lanço aqui uma pergunta provocatória: quais são os últimos livros de literatura moçambicana que estão ou estiveram a ler os até então três candidatos à presidência da República?

 

Aproveitando-se da ausência do Estado, das normas emanadas pelos órgãos oficiais e da sua própria ausência nas estatísticas daquele, instalou-se aqui um Estado paralelo. Os seus limites geográficos vão para além dos parques e paragens de semicolectivos, as suas fronteiras são abstratas, mas bem consolidadas e não são porosas.

Exerce-se aqui um verdadeiro poder político. Ninguém dentro do povo que constitui este Estado ousa desobedecer ou pôr em causa qualquer norma. Este governo autoproclamado, consequência do caos da inexistência de quem deveria dar protecção e fiscalização, instituiu-se para pôr ordem à sua própria (des)ordem.

Ao cair da madrugada e o prenúncio do novo amanhecer, os sons dos pássaros e os estalidos dos seus bicos e pernas, que, augurando um bom dia de nova caçada, se vão misturando às vozes e cantos melodiosos que vêm dos “chapeiros”: Xiqueleneeeee, Baixa, Baixa, Xipamanineeee, em coros e dicção afinados e perfeitos para publicitar o destino.

Em contraste, vai o desejo de ninguém chegar ao destino, pois as paradas intermédias são as mais desejadas, porque é aqui onde se encontra o verdadeiro passageiro.

O que vai até o destino final, é mercadoria, é pedra ou acompanhante do “xiguiane”. Aqui só se deseja passageiro, o fugaz, o famoso sobe e desce.

Neste território, a soberania não reside no povo. Este é apenas um mero instrumento de garantia de receita. O passageiro aqui não escolhe o seu próprio destino, é-lhe imposto.

Constituem órgãos de soberania deste Estado:

I) O chefe de Estado – o “modjeiro”;

II) O Governo (constituído por dois ministros – o cobrador e o motorista).

“Modjeiro” – figura emblemática, é o chefe de Estado, o órgão máximo, tem concentrado para si todos os poderes:
a) o poder legislativo, é ele que emana todas as normas que funcionam no território deste estado, a Assembleia da República é ele mesmo, as suas regras vinculam a todos, o motorista, o cobrador, o passageiro, todos os outros “chapas” e, por vezes, a própria Polícia Municipal. As suas normas são de cumprimento obrigatório para todos, não passam pela fiscalização prévia da inconstitucionalidade, aliás nunca são declaradas inconstitucionais, porque o modjeiro é também o próprio conselho constitucional. Ninguém entra ou sai do carro sem obedecer a estas normas.

O modjeiro detém também:

b) o poder executivo, ele é quem determina o que o cobrador e o motorista devem fazer, em que local devem estacionar, quem deve entrar e sair da viatura, infeliz quem não cair nas graças deste. Os seus critérios de selecção dependem das suas necessidades momentâneas, humor, estado de espírito e o seu nível de lucidez. Não interessa a beleza do passageiro, seu sorriso contagiante, seus atributos físicos, sua indumentária, o tamanho da sua gravata, o preço do seu cabelo, seu diploma universitário, nem é dissuasor o seu destino.

—Vou à Faculdade moço, posso entrar?

— Aqui não funciona Faculdade, está bem!? – Vai saindo assim a ordem de Estado, numa voz arrogante, com algum boçalismo à mistura, numa demarcação clara e inequívoca de quem detém o poder naquele local.

É preciso cair nas graças dos modjeiros, para embarcar em qualquer odisseia nesta nave espacial supersónica mas sem espaço interior, são levados todos à sardinhada.

Todos viram mendigos e prestam vassalagem ao chefe para conseguir um bilhete de embarque no minúsculo espaço que sobra.

É nesta figura que está também descrito c) o poder judicial e judiciário, pois é ele quem dirime qualquer litígio e contenda que ali surgir, lavrando a sentença executória, transitada em julgado, em um processo sumaríssimo, que ele próprio fez diligências de prova, é testemunha, advogado e Ministério Público.

O direito à defesa, ao contraditório e o princípio “in dubio pro réu” aqui não existem. Ele Indica o tribunal: “vai para outro chapa”, “vai queixar onde quiser”, “vai ter com o motorista”.

O modjeiro profere e executa a sentença no momento, contra todos os que desobedecerem às suas normas. Tem o poder de emanar uma providência cautelar de “embargo de carregamento novo” contra qualquer outro carro que ousar efectuar carregamento antes do tempo e fora da fila, executando ele mesmo o encerramento da porta para impossibilitar a violação do direito do legítimo transportador.

É um verdadeiro justiceiro.

O chefe deste Estado [o modjeiro] é astuto, focado e objectivo, cumpre todas as suas missões com zelo e determinação, não se distrai do objectivo. Um verdadeiro Luís XIV, num autêntico “l’Estat c’est moi”. Exerce um poder absoluto, mas não é absolutista, escolhe o sistema e o governo do dia por conveniência, quando lhe convém, é democrata:

— “Só tenho 10, cobrador.”

— “Pode entrar.”

Escolhe a teocracia às vezes, “só carrego minhas manas da igreja”, “graças a Deus mana, conseguiste entrar”.

Por vezes é um monarca, só carrega o seu clã: “vem cá entrar, meu puto”, “para onde vais, tia Anabela?”, “hei, esse lugar reservei para a minha mãe, aí ninguém senta”.
Quando lhe é conveniente, é um oligarca… “Ei, bro, vais para onde? ah entra, meu babo” “não paga nada, mais logo chutas um bond para mim”, “teu chapa está onde babo?” “não jobas hoje?”.

Por vezes, é um tirano e déspota: “desce lá! Apanha táxi, aqui não vais subir”.

A ascensão do modjeiro ao poder foi minuciosa e calculada como a de qualquer ditador. Aproveitando-se da inoperância, luxúria, soberba e apatia do seu antigo patrão – [o cobrador], o modjeiro foi aos poucos caindo nas graças do grande público que consigo fazia negociatas para “furar” a fila. Foi acreditando no seu potencial de negociador e deu golpe de Estado palaciano ao cobrador, substituindo-se ele mesmo aos antigos atributos daquele, hoje tem o seu poder consolidado.

O cobrador – membro do governo, ministro das Finanças, outrora arrogante, boçal, exemplo de mau carácter, pouco apuro de glamour e higiene. Enamorado pelas belezas que transporta, decidiu dar um “upgrade” no seu “look” e estatuto, autopromoveu-se, passando ele mesmo à figura de “patrão” contratando seu subordinado. Virou um boémio, distraído pelos prazeres da vida, abandonou o leme, sentiu-se galã, era já um sedutor, um “Dom Juan”, traído pela libido, o “bon viven” Hoje golpeado pelo seu antigo empregado, agora seu chefe.

Pouco se diga desta figura, que lhe foi reduzida a extensão e dimensão do cargo “cobrador”, hoje exerce papel restrito, sobrando para ele apenas a colecta de receitas, ja pré-definidas e pré-negociadas pelo seu actual chefe (o ex-empregado), em perfeita semântica do seu nome (cobrar apenas).

O motorista – é a figura aparentemente mais calma e parca deste executivo, mas só durante a vigência das ordens do chefe modjeiro, pois, a partir do momento em que se faz a rodovia, é o piloto no cockpit do supersónico, liberta pelo escape, os gases da combustão na fuselagem. Contudo, há aqui, pelo menos, justiça social, este ministro pode-se confundir com o proletariado, é quem mais trabalha e de forma justa, o que mais ordenado recebe. Tem poder discricionário sobre os colegas, mas as suas ordens podem encontrar oposição por parte do modjeiro, quando este as julgar ilegais e furtar-se ao cumprimento. Este é o ministério dos transportes por excelência.

Este é um Estado, montado longe dos holofotes e escrutínio dos que ao conforto das suas viaturas se locomovem, não sentem o ar empoeirado que vitima os que àqueles parques se fazem para nutrir a sua necessidade obrigatória e diária de mobilidade. Aquele não é um caos, é um verdadeiro estado organizado, onde as normas são cumpridas na íntegra e a presença de ordem após o caos é materialmente sentida.

O modjeiro tomou de assalto aquele território para o organizar à sua imagem, está no pleno exercício de uma cidadania activa.

Não é nenhum Estado paralelo, aquele é o verdadeiro Estado!

A noite descia vagarosamente sobre a terra e precipitava o seu amadurecimento. O Wimbe chamava por mim na voz que abria a janela do Hotel Raphaels. Vestida de um robe de chambre branco, se me espreitavam a alma, os meninos de Faulkner no lodo, e das águas do mar soprava o Som e a Fúria. Haviam muralhas entre a morte e o medo e o mar fruía as feições de uma onça.

Pelos corredores de Nautilis, outro paraíso que detém a minha alma, cruzei-me com um ferido dentre tantos outros militares sul-africanos, sangrava pelo braço direito e com todo o seu corpo gigante apoiava-se com seu peso sobre os ombros de um outro coitado. Para Sartre (2004, p.19) “a prosa é antes de mais nada uma atitude do espírito…há prosa quando nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. E ainda hoje, o meu olhar atravessa o homem ferido no braço direito que continua passando pelo corredor das minhas lentes de longo alcance e o seu sangue que goteja pelo braço tinge ininterruptamente a capulana que cobre a terra que move tantos outros coitados.

Num mapa conceptual criei os meus personagens. Pessoas do quotidiano, com quem me cruzei amiúde na terra e no céu e outras imaginárias.

Steiner (1994, p.36) diz o seguinte: nunca me ha parecido que existan diferencias entre poesía y filosofía, entre música y matemáticas. Move-me este pensamento porque em mim nunca encontrei a fronteira entre os números e a literatura. A paixão que me move enquanto contabilista é a mesma que me move intensamente como escritora. Escrevo como analiso os números. A literatura é um conjunto de equações solúveis e insolúveis e nessas equações busco por via de caminhos individuais diversificados, uma resolução que me conduza à solução conjunta ou mesmo à epistemologia de enigmas que são os imbróglios que assombram o quotidino. A alteridade caracteriza o mistério com que se resolve uma função matemática.

Em “uma onça na cidade”, quebro o paradigma de se pensar a contemporaneidade como sacrossanta, e busco a hodiernidade, porque o passado cheira à mofo e a minha rinite não mais me aquiesce fuçar as narinas no pó, quero embrenhar os fluxos de consciência, os monólogos interiores e diálogos no contentor depositado agora, porque este é o meu tempo e tenho os meus olhos fixos na tela do tempo presente.

Penso na batata-reno que açoita a sociedade que procura por mesas para nelas pousar suas moscas, mesmo quando o seu preço tem função linear de assímptota vertical.
Uma calcinha que tira o sono de um homem de 1.90m é o plano estratégico de uma nação que pensa em morar eternamente dentro duma calcinha. Exercita-se a constuição de memórias dos tempos de autocarros que rasgavam as estradas das cidades até ao interior e hoje essas estradas rasgam o interior das paredes das cidades forradas de raptos e mortes.
Neste livro, escrevo sobre o polícia-ladrão, as leis de silêncio e silenciamento e os jornais fodidos pelas perseguições no exercício de suas funções de comunicar. Confesso-vos, que hoje tenho muito mais medo de polícia fardado que qualquer outro cidadão. Escrevo sobre a fuga da meritocracia nos ambientes de trabalho, o assédio sexual e nepotismo, que tornam a sociedade indigente.
Escrevo sobre mulheres fodidas pelo desemprego que desesperadas submetem seu curriculum e manifestam pedido de emprego depositando a sua candidatura na cama de um chefe em Matalane e Munguine, no serviço militar obrigatório, e o chefe despacha todos os pedidos dentro dos lençóis das camas adentro, ele defende a pátria, defende as mulheres desprotegidas engravidando-as e dando-as HIV, ele assegura a nação para que as mulheres tenham tranquilidade, emprego e amor, entram em Matalane e Munguine desempregadas e saem ocupando o posto de amantes do chefe e assim reduz a taxa de desemprego no país.

Todas as lágrimas que não cabem nos Homens cabem no Wimbe. Analiso a minha escrita como produção da consciência autoral que reside na terra: um idioma, uma etnia, uma religião e uma cultura.

E a Joaneta?

Joaneta, somos todos nós a quem apenas resta um orificio e não nos restam membros. Todos somos Joanetas, corpo decapitado, corpo de errante que vaga sem membros. Resta-nos apenas um orifício para que sejamos homens e mulheres. Todos nós somos Joaneta. A violência contra os homens, as mulheres e crianças, torna-se uma arte em escolas, igrejas e outras infra-estruturas públicas esfaceladas pelos al-shabaabs.

Entre a descrença e as imprecisões, há ainda serpentes que sobrevivem comutadas em humanos que alimentam-se de outros humanos. Ah, esses são Homens desta época, mitos da contemporaneidade.

O país não tem mais cabeça. Como se pensa sem cabeça? O país não tem mais olhos para contemplar a sua miopia. Tem uma sexualidade indefinida. Ao fim todo orificio serve para o alívio de quem está no aperto.

Na perspectiva de Guillermo Cabrera Infante (2012, pag. 232), “a única literatura possível estava escrita nos muros’’. Nesta reflexão reverberam-se sentimentos contrastivos que norteam a sociedade redefinida entre novíssimos muros edificados entre a ética e anti-ética, entre os ricos que fazem fronteira com os pobres e ainda que perfaçam diferentes estruturas sociais, continuam a respirar o mesmo ar que escreve a literatura nas paredes do quotidiano descrito em “uma onça na cidade”.

A arte é comunhão. O escritor entrega quando se dá à sua sociedade. Dá-se gratuitamente porque o verdadeiro amor não está no Mercado do Peixe e nem sequer no Zimpeto.

Na translineação estrutural do texto, em “uma onça na cidade” deparamo-nos com as rondas de negociação da paz, no Centro de Conferências Joaquim Chissano. A paz negociada em mesas e poltronas, um bem tão sonhado que habitou nossas casas em telas televisivas e jornais por via das pessoas que a negociavam. Destarte, ainda que durmamos em travesseiros de catanas e cubramos lencóis de medo, continuamos expectantes em ver os paletós sorrirem abraçando o corpo de dois homens de extremos diferentes, mesmo sabendo que hoje somos apenas beatas, dum cigarro que fora um mero projecto de um fumante.

A galeria da Fundação Fernando Leite Couto acolheu, no passado dia 3 de Julho, uma exposição individual, do artista plástico Aldino Dinis Languana, intitulada “Jardins de sonho”.

Dentre os quadros patentes na exposição, encontra-se “a cadeira de leite e mel”, obra aprimorada com recurso à técnica de pintura com aguarela sobre tela. A obra possui as dimensões 54x65cm, e foi criada em 2024.

O título “a cadeira de leite e mel” oferece-nos a ideia de um espaço confortável, um pedaço de lar, de aconchego, onde podemos sentar e sossegar. O quadro apresenta um homem sentado sobre um banco no meio de alguma rua, no alvorecer ou ensurdecer do dia, tendo uma possível zaragata, com três homens que se encontram em pé, sob o olhar impávido de um cachorro cinzento, provavelmente vadio como os homens, e um mamífero no canto inferior direito não tanto distinguível.

As linhas do desenho são finas e curvadas, criando uma sensação de suavidade e leveza, mas também são semi irregulares e acrescentam a percepção de estarmos perante um esboço de um desenho que ainda vem a seguir.

O ponto central da imagem assalta a atenção do observador, devido à ilusão de movimento, causada também pela sobreposição das figuras humanas, onde observamos os três homens praticamente tocando no peito ou ombro da figura sentada no banco, provavelmente desenfreando um assunto quotidiano.

As formas das figuras são humanas e animalescas mais próximas da realidade, permitindo maior envolvimento e interpretação do observador em relação à obra.

As cores modelam-se na passarela da tela, complementando-se e harmonizando entre si, com a variação entre o azul, amarelo, cinzento e tons diversos do laranja, que em cada canto da tela encontram o seu brilho. O castanho, ainda que camuflado, confraterniza em menos espaço com outras cores que, em uníssono, cintilam na tela.

Languana faz da sua tela um ambiente natural, provavelmente um jardim, ou uma rua sem movimento, onde as figuras interagem em busca da sua cadeira de leite e mel.
Mas porque três homens procurariam uma cadeira já ocupada num lugar público? Porque provavelmente não têm um lar. A presença de um cão próximo ao banco e aos homens indica, claramente, que se trata de uma praça pública ou de um lugar frequentado por pessoas sem lar.

A obra pode estar a convidar-nos para reflectir em torno das pessoas desfavorecidas que vivem na rua, sem lar e assistência. Em Moçambique, temos um extenso número de pessoas, inclusive de crianças que vivem na rua, sem esperança de ter um lar, um aconchego onde possam ter uma vida digna. Quanto de acção social ou solidariedade temos doado a este grupo social? Esta pode ser uma pergunta do autor.

Outro debate pertinente que o autor pode estar a omitir por trás das pinceladas é a disfunção familiar actual. Os homens não nascem em jardins, nem em praças públicas, eles vão lá parar por várias circunstâncias, conflitos, muitos deles envolvendo suas famílias vulneráveis financeiramente, onde não se pratica o amor, respeito e tolerância, resultam em disfuncionalidade e fragmentação.

Mas também se pode concluir, com este retrato, que Languana quer debater sobre a  economia do País, que está em queda, gerando a pobreza e miséria, e, por sua vez, a pobreza, gerando moradores de rua e mendigos que não têm rentabilidade para se susterem a si próprios.

Languana, ao colorir a obra “cadeira de leite e mel”, colore também o seu talento e a sua opinião sobre flagelos sociais no país, convidando o espectador a fazer parte do seu debate.

Nota: “a cadeira de leite e mel” é uma obra de Languana, que integra a individual “Jardins de sonho”, na galeria da Fundação Leite Couto. A exposição com curadoria pode ser visitada até 3 de Agosto.

A galeria da Fundação Fernando Leite Couto acolheu, no passado dia 3 de Julho, uma exposição individual, do artista plástico Aldino Dinis Languana, intitulada “Jardins de sonho”.
Dentre os quadros patentes na exposição, encontra-se “a cadeira de leite e mel”, obra aprimorada com recurso à técnica de pintura com aguarela sobre tela. A obra possui as dimensões 54x65cm, e foi criada em 2024.

O título “a cadeira de leite e mel” oferece-nos a ideia de um espaço confortável, um pedaço de lar, de aconchego, onde podemos sentar e sossegar. O quadro apresenta um homem sentado sobre um banco no meio de alguma rua, no alvorecer ou ensurdecer do dia, tendo uma possível zaragata, com três homens que se encontram em pé, sob o olhar impávido de um cachoro cinzento, provavelmente vadio como os homens, e um mamífero no canto inferior direito não tanto distinguível.

As linhas do desenho são finas e curvadas, criando uma sensação de suavidade e leveza, mas também são semi irregulares e acrescentam a percepção de estarmos perante um esboço de um desenho que ainda vem a seguir.

O ponto central da imagem assalta a atenção do observador, devido à ilusão de movimento, causada também pela sobreposição das figuras humanas, onde observamos os três homens praticamente tocando no peito ou ombro da figura sentada no banco, provavelmente desenfreando um assunto quotidiano.

As formas das figuras são humanas e animalescas mais próximas da realidade, permitindo maior envolvimento e interpretação do observador em relação à obra.

As cores modelam-se na passarela da tela, complementando-se e harmonizando entre si, com a variação entre o azul, amarelo, cinzento e tons diversos do laranja, que em cada canto da tela encontram o seu brilho. O castanho, ainda que camuflado, confraterniza em menos espaço com outras cores que, em uníssono, cintilam na tela.

Languana faz da sua tela um ambiente natural, provavelmente um jardim, ou uma rua sem movimento, onde as figuras interagem em busca da sua cadeira de leite e mel.

Mas por que três homens procurariam uma cadeira já ocupada num lugar público? Porque provavelmente não têm um lar. A presença de um cão próximo ao banco e aos homens indica, claramente, que se trata de uma praça pública ou de um lugar frequentado por pessoas sem lar.

A obra pode estar a convidar-nos para reflectir em torno das pessoas desfavorecidas que vivem na rua, sem lar e assistência. Em Moçambique, temos um extenso número de pessoas, inclusive de crianças que vivem na rua, sem esperança de ter um lar, um aconchego onde possam ter uma vida digna. Quanto de acção social ou solidariedade temos doado a este grupo social? Esta pode ser uma pergunta do autor.

Outro debate pertinente que o autor pode estar a omitir por trás das pinceladas é a disfunção familiar actual. Os homens não nascem em jardins, nem em praças públicas, eles vão lá parar por várias circunstâncias, conflitos, muitos deles envolvendo suas famílias vulneráveis financeiramente, onde não se pratica o amor, respeito e tolerância, resultam em disfuncionalidade e fragmentação.

Mas também pode-se concluir, com este retrato, que Languana quer debater sobre a economia do País, que está em queda, gerando a pobreza e miséria, e, por sua vez, a pobreza, gerando moradores de rua e mendigos que não têm rentabilidade para se susterem a si próprios.

Languana, ao colorir a obra “cadeira de leite e mel”, colore também o seu talento e a sua opinião sobre flagelos sociais no país, convidando o espectador a fazer parte do seu debate.

Nota: “a cadeira de leite e mel” é uma obra de Languana, que integrta a individual “Jardins de sonho”, na galeria da Fundação Leite Couto. A exposição com curadoria pode ser visitada até 3 de Agosto.

Sou Filomena Matusse, nasci em Moçambique, sendo assim, moçambicana e negra, com a pele muito escura, marcada pelo sol cuja intensidade aumenta a cada dia. A exposição solar é inevitável, agravando a minha negritude, uma vez que tenho de ficar exposta a ele para garantir sustento para a minha família; e não posso arcar com os custos dos protetores solares, que já ouvi falar por ai, pois são caros demais para o nível em que me encontro, pois, minha situação financeira não é boa.

Nasci em meio à pobreza, um facto que procuro aceitar diariamente, mas que não me impede de sonhar com um futuro diferente. Entretanto,  não quero falar no momento da minha pobreza, pois não é culpa minha ter nascido nesta condição, quero falar de outra questão que inquieta-me e  é ainda pior que a pobreza a mau ver…

Desde jovem, fui testemunha da pressão imposta às mulheres da minha comunidade, província e país, que tentam clarear a pele. Eu própria, num determinado momento, sucumbi a essa tendência, utilizando cremes clareadores acessíveis, disponíveis inclusive nos mercados locais por 100 meticais. Inicialmente, julgava e condenava essas práticas, pois não compreendia a motivação por trás delas. Contudo, após reflexões e experiências pessoais, a minha visão mudou.

Moçambique é um país africano e a raça que predomina é a negra, entretanto não tenho paz na minha própria terra onde tenho o direito de ser negra e deveria viver a vontade…

Uma  experiência dolorosa foi a de uma gestora sénior negra de certa empresa, que, embora competente, foi substituída por uma colega  de pele branca, revelando uma hierarquia baseada na cor da pele. Estas situações evidenciam a desigualdade e discriminação persistentes, influenciando até mesmo o crescimento profissional e pessoal. Passo a expor: Uma jovem altamente capacitada foi contratada por empresários asiáticos em Moçambique para actuar como gestora sénior  na sua empresa, onde os funcionários eram maioritariamente moçambicanos e negros. A convivência inicial entre todos era harmoniosa e produtiva. Todavia, tudo mudou quando o chefe da jovem decidiu contratar duas raparigas também asiáticas para a mesma empresa. Embora as novas funcionárias fossem fluentes em português e simpáticas, o chefe começou a introduzir divisões entre os colaboradores, separando-os pela cor da pele. Ele instituiu regras segregacionistas, tais como direcionar os negros para um lado e os brancos para outro, inclusive designando utensílios diferentes para uso de acordo com a cor da pele. Esta atitude discriminatória gerou desconforto no ambiente de trabalho.

A gestora, injustamente, foi removida do cargo sem motivo aparente para que uma das novas funcionárias brancas assumisse a posição, embora a gestora negra fosse mais competente. Esta era responsável por treinar as novas funcionárias e ensinar o sistema de contabilidade e gestão da empresa, inclusive as duas raparigas asiáticas foram instruídas por ela. Esta situação levou a jovem negra a concluir que, infelizmente, naquele contexto, a cor da pele parecia determinar a hierarquização e as oportunidades de trabalho, acima das qualificações e competências académicas. Este triste desfecho levanta a questão de como as desigualdades e preconceitos raciais ainda influenciam significativamente o ambiente profissional, mostrando que, para algumas pessoas, a pigmentação da pele pode influenciar injustamente as suas carreiras e oportunidades.

Este foi apenas um relato de muitos que poderíamos trazer, porque a discriminação racial é uma realidade na nossa sociedade, é fácil de ver as varias manifestações no nosso dia a dia, desde o acesso as oportunidades, até as suas formas mais graves. 

O preconceito baseados na cor da pele e a discriminação geram divisões e desigualdades profundas na sociedade. Observa-se que, mesmo dentro da comunidade negra, a tonalidade da pele frequentemente determina a hierarquia e o tratamento recebido, perpetuando padrões de opressão. Estas experiências refletem a complexidade e as feridas causadas pela discriminação racial, questionando se a opressão vivenciada resulta, em alguns casos, na perpetuação do ciclo de discriminação e divisão entre os próprios indivíduos de uma mesma comunidade.

A discriminação racial é uma realidade insidiosa que permeia a sociedade de forma profunda, criando divisões e desigualdades que prejudicam a todos. É imperioso reconhecer e confrontar activamente o racismo em todas as suas formas, desde os actos mais evidentes até as estruturas institucionais que perpetuam a injustiça. Apenas com consciência, empatia e acção conjunta podemos construir um mundo mais justo e inclusivo, onde a cor da pele não determine o valor ou as oportunidades de um indivíduo. Façamos a nossa parte para promover a igualdade e a diversidade e lutemos juntos contra o racismo em todas as suas manifestações!

Numa manhã que fazia sol, chuva, vento forte e brando, céu azul, cinzento e nublado, numa manhã comum de atmosfera corriqueira como aquela que cobre os dias mais ordinários das nossas vidas, não sabendo eu o que presentear as minhas sete filhas, todas aniversariantes do dia, decidi então proporcioná-las o que de mais valioso e prazeroso havia na vida: a felicidade.

Quem buscasse pela felicidade, precisava apenas de ir à pequena mercearia que se situa no centro da na nossa aldeia. A mercearia chamava-se sociedade. Então disse eu à minha filha, vá até à sociedade e traz-me felicidade conforme o teu desejo. Não precisa ser muita e nem pouca, basta apenas que seja suficiente para uma vida. Eu poderia ir lá buscar a felicidade dá-las de presente, seria até uma óptima surpresa, mas não seria a felicidade delas, seria a minha felicidade. Ela percebeu. Arrumou-se e lá se foi, a minha filha, para a sociedade, à busca da felicidade, da sua felicidade.

– O que buscas? – questionaram-lhe, os agentes da felicidade.

– A felicidade – respondeu ela, inocente.

Olharam-na. De soslaio, de frente, de trás, de cima, de baixo. Fizeram uma radiografia da sua imagem.

– Para ti não temos – sentenciaram os agentes, aquele que, lá na sociedade, cambiavam a felicidade.

– Como assim? – questionou, atónita, a minha filha.

– Olha para ti. Baixinha, pele escura, lábios e calcanhares rachados, dentes desalinhados, mãos ásperas, mal cuidadas e cheias de calos e esse corpo cheio de cicatrizes. Nem pareces uma mulher. Fazes o quê da vida? És uma adestradora de animais selvagens?

Não acreditei quando a minha filha narrou-me este infortúnio episódio. Pedi a segunda para que ela fosse até a sociedade buscar a felicidade e, curiosamente, a esta também lhe foi recusada.

– Não te podemos dar. Tão fina, comprida e com esse pé de colossal tamanho que mais parece de um soldado que de uma princesa. E essa tua cara? toda cheia de botões vermelhos e escuros? Deves ser uma doente.

Revoltado, pedi à minha terceira filha que fosse também a busca da felicidade, que igualmente lhe foi recusada. Disseram-lhe que não sabiam diferenciar se, entre ela e um elefante, quem era mais pesada. Sugeriram que ela aprendesse a fechar a boca antes de buscar pela felicidade. Disseram-lhe isso, lá na sociedade, na mercearia onde trafica-se a felicidade.

Foi a minha outra filha, a quarta. Riram-se dela e nem se deram o trabalho de ocultar o riso. Ordenaram-lhe que fosse primeiro buscar a pigmentação da sua pele e só depois disso poderia retornar e buscar pela felicidade.

À minha quinta filha, a sorte não lhe foi diferente.

– Toda vaidosa, com esses produtos coloridos nos teus lábios, essa face toda rebocada de químicos artificiais. Serás tu uma funcionária de uma fábrica de cimento? Ou terás deixado a tua face cair numa forma gigante de preparação de cimento e absorveste cimento suficiente para rebocar um edifício? E essa tua saia curta? Não te ensinaram a vestir em casa? ou pensas que és a única com ancas? Deves ser uma mulher de todos e de ninguém. És tu quem destrói os nossos casamentos e retiras a paz dos nossos lares. Não há nada para ti aqui – disseram isso, à minha filha, lá na sociedade, na mercearia onde ela foi a busca da felicidade.

Foi a minha sexta-filha, revoltada, aquela que tinha mais estudos, a busca da felicidade. À esta, foram contundentes com as palavras: – vá primeiro buscar um marido, sua bocuda. Os teus diplomas, aqui de nada valem. Se não tens um homem que dê sentido a tua vida, não és mulher suficiente para adquirir a felicidade aqui na nossa mercearia. São as solteironas como tu que atentam contra os bons valores das nossas famílias.

Foi a minha sétima filha, a minha última esperança. Pele clarinha, corpo esguio, cabelos longos, pele macia e movimentava-se suavemente. Chegou à sociedade, na mercearia onde vende-se a felicidade. Olharam-na, falaram-lhe cordialmente e disseram-na que o seu pedido seria atendido com a maior das honras que lhe são devidas. Mas antes, sarcasticamente, perguntaram-lhe:

– E a fatura? Enviamos para qual dos pais dos teus filhos? Sim… porque cada um dos teus filhos tem um pai diferente e não sabemos qual deles paga as tuas contas.

Era demais. Nenhuma das minhas filhas tinha direito à felicidade. A sociedade, aquela mercearia responsável pela felicidade, recusava-a, a todas elas. Decidi ir lá ter com esse agente da mercearia, esse homem que era o atalaia da felicidade, que decidia a quem dar e a quem não dar a felicidade. Esse homem teria de me explicar olhando nos meus olhos por que é que as minhas filhas, todas diferentes e perfeitas, não tinham direito a felicidade?

E as minhas filhas, em uníssono, disseram:

– Não foi um homem quem nos falou, foi uma mulher.

 

 

Por definição, a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) considera refugiado “qualquer pessoa, que (…) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade (…) e não quer voltar a ele”. Se prestarmos atenção, a definição não incorpora a dimensão das alterações climáticas, ou seja, os “refugiados climáticos” não têm o direito de pedir asilo à luz do Direito Humanitário Internacional. Talvez seja razoável interpretar que outrora a questão não estivesse em voga. Dessa forma, gostaríamos que ficasse patente, à priori, que o conceito de “refugiado” é diferente do “deslocado interno”, dado que às vezes se utilizam os termos como sinónimos. Nesta reflexão, cingimo-nos sobre os refugiados.

A partir dos anos 80 o assunto ganhou novo rumo, cujo precursor foi o Professor El-Hinnawi (1985) tendo cunhado o termo “refugiados ambientais” como sendo “aquelas pessoas que foram forçadas a abandonar o seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, devido a uma perturbação ambiental acentuada (natural e/ou desencadeada pelas pessoas) que pôs em perigo a sua existência e/ou afetou gravemente a qualidade de sua vida”. Nos dias que correm, o debate sobre as alterações climáticas tornou-se bastante mediático. Boeno and Ferrão (2016), chegaram a ponto de considerar que as alterações climáticas são um risco sistémico mais crítico do que os outros socialmente muito reconhecidos, tais como os ataques terroristas, as pandemias ou crises financeiras.

Se nos basearmos nos Relatórios da World Meteorological Organization (WMO, 2022), constatamos que, em relação ao período pré-industrial, a temperatura média global aumentou cerca de 1°C. As emissões de CO2, em resultado do uso de combustíveis fósseis, aumentaram 1% globalmente em 2022 em comparação com 2021. Os últimos oito anos, 2015 a 2022, foram os mais quentes já registados e a chance de pelo menos um ano exceder o ano mais quente já registado nos próximos cinco anos é de 98% (WMO, 2023). O nível médio global do mar atingiu um novo recorde em 2021, aumentando 4,5 mm por ano durante o período entre 2013-2021 (WMO, 2022). Em termos de danos, 50% de todos os desastres, 45% das mortes e 74% das perdas económicas à escala global nos últimos 50 anos foram relacionados aos eventos atmosféricos, clima e ao risco hídrico (WMO, 2021), sendo que mais de 90% das mortes e 60% das perdas económicas ocorreram em países em desenvolvimento (WMO, 2021, 2023).

Por sua vez, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC, 2022) reporta que, entre 2010 e 2020, a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis, em comparação com regiões de baixa vulnerabilidade. A região do Corno de África, por exemplo, está mergulhada na seca mais longa e severa já registada e contabilizam-se mais de 180 000 refugiados da Somália e do Sudão do Sul para países como Quénia e Etiópia, também fustigados pelo mesmo fenómeno (ACNUR, 2023). Em 2022, cerca de 2500 moçambicanos refugiaram-se para o distrito de Nsanje, em Malawi, vítimas das inundações, em resultado da ocorrência da Tempestade Tropical Ana (VOA, 2022). Estes, em emergência, infelizmente não puderam ter assistência humanitária internacional, pelo facto de não terem, na época, protecção legal.

Dados do IPCC (2022) indicam que até 2030 o número de pessoas que vivem em extrema pobreza aumentará em 122 milhões dos actuais cerca de 700 milhões. Ademais, cerca de 10% da superfície terrestre está sob condições de seca severa ou extrema (WMO, 2023) e o aumento na frequência, intensidade e gravidade de secas, inundações e ondas de calor e o aumento contínuo do nível do mar aumentarão os riscos à segurança alimentar em regiões vulneráveis. No mesmo diapasão, as Nações Unidas (2018) admitem que embora não sejam em si as causas dos movimentos de refugiados, o clima, a degradação ambiental e os desastres de origem natural interagem cada vez mais como motores dos movimentos de refugiados no período contemporâneo. No geral, exorta-se que o mundo reduza pela metade, anualmente, as emissões de Gases com Efeito de Estufa nos próximos oito anos, para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais (United Nations Environment Programme [UNEP], 2021).

Chegados aqui, podemos admitir que os efeitos das alterações climáticas são hoje uma questão de Direitos Humanos, de crise humanitária global, que requerem uma resposta imediata, em função das circunstâncias e contextos sociais. Busquemos o exemplo crítico de Kiribati, onde as projecções indicam que nos próximos 15 anos o país, composto por mais de 30 ilhas, corre o risco de desaparecer, devido ao aumento do nível médio das águas do mar em consequência das alterações climáticas. Aliás, face à realidade, em 2020 o Comité de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas reconheceu o cidadão Ioane Teitiota como um “Refugiado Climático”, depois de uma longa batalha que travou, a pedir asilo na Nova Zelândia, onde havia se refugiado. Provavelmente seja o primeiro na história a se beneficiar deste tratamento. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR, 2020) congratulou o acto e insta para que “pessoas fugindo de efeitos adversos das mudanças climáticas e o impacto de desastres repentinos e de início lento (como secas) podem ter reivindicações válidas para obterem status da condição de refugiado sob a Convenção de 1951 ou acordos regionais sobre refugiados”.

Para além do exemplo acima mencionado, é notório que a ocorrência dos desastres tende a aumentar em termos de frequência e intensidade. À excepção das secas, acompanhamos recentemente as cheias ou inundações que se abateram sobre alguns países, como por exemplo, Moçambique, Burundi, Tanzânia, Quénia, Brasil, Dubai, etc, a atingirem novos recordes, com impactos significativos na economia, ambiente e sociedade. Ora, face ao exposto, não seria urgente e producente que as Nações Unidas revissem os Estatutos do Refugiado, incorporando a categoria das alterações climáticas? O fenómeno cria efeitos múltiplos. O aumento do nível médio das águas do mar pode forçar a população das regiões costeiras a abandonar o seu local habitual, procurando regiões seguras. As cheias e as secas severas destroem culturas, o que pode igualmente obrigar as comunidades rurais, dedicadas à agricultura e à pecuária, a abandonarem para sempre as suas áreas tradicionais de produção e recorrendo a outros pontos alternativos, em busca de abrigo e sobrevivência. A população dos países pobres, que pouco contribui com a emissão de Gases com Efeito de Estufa, é a principal vítima desta crise global.

Por exemplo, o ciclone tropical Idai, que atingiu a cidade da Beira (Moçambique) em 2019, e a seca de 1990 na África do Sul são, conjuntamente, os dois eventos mais caros (ambos estimados em US$ 1,96 biliões) em África nos últimos 50 anos (WMO, 2021). Enquanto os países são desafiados a pautarem por um “Desenvolvimento Sustentável”, em várias dimensões, o Relatório da Agenda 2030 (Objectivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS], 2023), indica que é hora de soar o alarme, pois o progresso de mais de 50% das metas foi fraco e insuficiente; 30% estagnou ou retrocedeu, cujas metas importantes tem que ver com a pobreza, fome e alterações climáticas.

Assim, entendemos que travar os desastres climáticos constitui um quesito que se pode considerar problema de resolução complexa, dependente de múltiplos factores, mas há um conjunto de acções individuais e colectivas que podem ser tomadas em conta, que não caberiam mencionadas nesta reflexão. Tal como escreveu Spencer (2009), especialista da NASA, o clima vai alterar, com ou sem a intervenção antrópica (utilização de combustíveis fósseis, por exemplo, o carvão, o petróleo e o gás; o desflorestamento, a prática de agricultura, a industrialização, etc). Assim, a melhor forma de isolar os pobres dos riscos ou perigos ambientais é ajudá-los a suplantar a pobreza. Ou seja, se os pobres vivem numa zona costeira, que é ameaçada por ciclones, a resposta não é apenas aprovar leis sobre as alterações climáticas, pois estas não poderão reduzir as velocidades médias dos ciclones, mas sim oferecer meios ou condições para que as vítimas consigam fugir e ter acolhimento assim que o perigo for a chegar. É assim que se poderá impedir os maiores desastres, salvando vidas e aliviar o sofrimento das pessoas nos países pobres.

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra) de 1951 foi proposta e aprovada num contexto pós II Guerra Mundial, visando salvaguardar os direitos dos refugiados vítimas de perseguições (que apenas ocorreram antes de 1 de Janeiro de 1951). Sucede, porém, que a conjuntura geradora de crises humanitárias hoje ganhou novas dimensões, já não são apenas as guerras que estão em causa. Facto positivo é que o próprio dispositivo legal fornece mecanismo para uma proposta de revisão. Assim, havendo interesse e fazendo-se o uso da prerrogativa dos números 1 e 2, respetivamente, do artigo 45 da Convenção, “Qualquer Estado Contratante poderá, a qualquer tempo, por uma notificação dirigida ao secretário-geral das Nações Unidas, pedir a revisão desta Convenção. A Assembleia Geral das Nações Unidas recomendará as medidas a serem tomadas, se for o caso, a propósito de tal pedido.”

Ora, perante vários cenários críticos acima expostos, apresentamos as seguintes indagações: será que nenhum Estado, até ao momento, terá manifestado tal vontade? Se a resposta for negativa, porque não fazê-lo, é inoportuno? Será que o silêncio reflecte a falta de interesse por parte do secretariado-geral das Nações Unidas em discutir sobre esta matéria? Enquanto as respostas às perguntas colocadas ficam ao critério de cada um, em última análise, no nosso entender, é fulcral que as Academias, Juristas, Organizações da Sociedade Civil e outras partes interessadas, mormente os países em desenvolvimento, que se configuram como as principais vítimas das alterações climáticas, se mobilizem a nível internacional, criem lobby e reflictam sobre a necessidade premente da revisão do Tratado; com intuito de que os “Refugiados Climáticos” sejam reconhecidos e protegidos à luz do Direito Humanitário Internacional, à semelhança das perseguições raciais, políticas ou religiosas.

“Nhinguitimo”, que significa vento forte que vem do Sul, ou tempestade, é uma produção cinematográfica da Ébano Multimédia e Mahla filmes, a partir da adaptação de um conto de Luís Bernardo Honwana, que nos mostra como a união e liderança podem ser um divisor de águas.
A trama do filme de Licínio Azevedo se desenrola na Vila de Goana, num período de opressão colonial, em Moçambique, em que os nativos eram privados de direitos básicos, como liberdade, educação e salário digno.

O personagem principal é Alexandre Vírgula Oito Massinga, que, à semelhança de Maguiguana e Matchumbutana, seus colegas, trabalha como empregados do Sr. Rodrigues, um colono e proprietário de uma cantina com seu nome.

Vírgula Oito tem um ideal: tornar-se um patrão, produzir em larga escala, ser independente, e, mais tarde, casar-se com a jovem donzela Nteasse, que é a mulher dos seus sonhos com que ambiciona ser feliz. Porém, a classe burguesista, constituida pelo senhor Rodrigues e o Administrador, tem a ambição de aumentar o capital e explorar ainda mais as terras dos nativos, por isso oferece aos oprimidos apenas uma opção: serem empregados obedientes.

O roteiro do filme faz jus à realidade colonial, em que vários cidadãos ousaram sonhar um futuro melhor mesmo estando sob um regime de opressão. A figura de um jovem, Vírgula OPito, aliado ao desejo de mudança, tem um paralelismo com a realidade, pois os jovens é que mais buscam mudanças numa sociedade. Afinal, ser jovem e não ser revolucionário, é uma contradição genética (Guevara, 2017).

A fotografia a preto e branco estabelece uma autenticidade e longevidade ao tempo retratado, bem como a emoção e o carácter humilde das personagens vigentes nesse tempo.
Senhor Rodrigues, que recebe o Senhor Aministrador no seu bar, decide apelar-lhe, para, arbitrariamente, usurpar as terras dos indígenas, que são férteis do que as suas, pois planeia duplicar a sua produção sob alegação de que os nativos são incapazes ou não merecedores de terras férteis.

Coincidentemente, Vírgula Oito, entusiasmado, irrompe pelo bar onde encontra Maguiguana e Machumbutana e os conta sobre a grande produção na sua machamba e os seus planos futuros, que incluem efectuar uma mega produção, deixar de trabalhar para o Lodrica (Sr Rodrigues) e comprar um tractor. O som de suspense passeia pelo bar nesse momento, acompanhando à entrada do Senhor Rodrigues, dando a entender que Massinga deseja algo perigoso que o pode meter em sarilhos. Os seus colegas, que são mais velhos, e mais experientes, dão-lhe uma advertência, de que os brancos não iriam permitir que um indígena fosse tão abastado quanto eles, e isso traria problemas a todos. E concluem: Melhor seria continuar a trabalhar para o Lodrica e receber pouco, mantendo o emprego.

Em outras palavras, Maguiguana e Machumbutana são “House Negroes”.

Segundo (Malcom X, 1963), na história da escravatura, haviam dois tipos de negros: os “House negroes”, em português negros de casa, e os “Field negroes”, negros do campo.

Os “house negroes” vivem próximos do seu senhor, vestem suas roupas de segunda mão e comem alimentos que o seu senhor deixa na mesa. Quando o senhor diz: Temos boa comida, o “house negroe” diz: Sim temos boa comida. Quando o senhor diz: Estou doente. O “house negroe” diz: O que se passa, chefe, estamos doentes? Porém, o negro do campo, é aquele que vive longe do seu senhor e próximo das plantações. Estes são a maioria. Quando alguem diz: vamos nos revoltar, ele diz: vamos, mesmo não sabendo como.

Numa passagem de “Nhinguitimo”, vê-se Maguiguana e Machumbutana a serem servidos vinho à mesa, pelo seu senhor Rodrigues, e estes, quando ouvem as motivações de Vírgula Oito, demonstraram um conformismo absoluto, que os torna autênticos “house negroes”.

Aquele é precisamente o momento decisivo da narrativa, pois Vírgula Oito tem a causa, tem o objectivo, e tem recursos humanos que o podem apoiar, porém o seu foco, como agente de mudança, está limitado na perspectiva individual, inclusive os beneficios também.

O Administrador consulta Vírgula Oito sobre a produtividade das terras e, este, ingenuamente, entrega-lhe as cordas que os iam amarrar a posterior.

A trilha sonora do filme rima com os diversos momentos da película, sobretudo com o momento da ilustração das terras de Massinga, sua colheita e seu momento romântico com Nteasse. É um momento esteticamente belo, que narra a poesia dos sonhos de Massinga com precisão. Em oposição, durante o trabalho na machamba, Massinga é confrontado com uma cruel realidade: Os burgueses tomaram todas as terras dos indígenas, inclusive a sua. Massinga se insurge e mostra aos colegas que é momento de defender a libertação das suas terras.

No regresso ao trabalho, Vírgula Oito faz um último apelo aos companheiros, sobretudo Maguiguana e Machumbutana, que podem ajudar a mudar o paradigma, porém, nenhum deles deseja ouvir ou seguir a causa, impossibilitando a união.

Há um dualismo filosófico no final de “Nhinguitimo”, a tempestade propriamente dita e a tempestade do conflito presente, em que os nativos evadem-se covardemente, abandonando Massinga sozinho. Nesse sentido, à semelhança do que propõe Malcom X, “House negroes” são escravos que desistiram de sonhar, não crêem na liberdade, identificam-se com os seus senhores mais do que com os seus irmãos. Por isso, Maguiguana e outros servos antigos não abraçaram a causa da libertação das terras, pois estão em prisão mental. Maguiguana permance ao lado do seu senhor diante de um iminente assassinato de um amigo/colega.

“House negroes”, actualmente, podem ser os que, em Moçambique, num cenário de carências e misérias, servem interesses estrangeiros, com negociatas que não beneficiam a nação.
Com o filme, Licínio Azevedo quiz, provavelmente, nos mostrar que não se pode libertar os homens, as terras, sem primeiro libertar as mentes ou, se quisermos, os “house negroes”.

Nos meados do mês de Junho, na cidade suíça de Bürgenstock, realizou-se a chamada cimeira sobre a paz na Ucrânia. Em Kiev e nas capitais ocidentais, aplicaram-se todos os esforços para a apresentar como um acontecimento de proporções quase universais.

No entanto, na realidade, este desejo acabou por ser um fiasco completo. Contrariamente às tentativas de Zelensky e dos seus mestres, quase metade dos 160 convidados recusou-se a praticar o “turismo político”. A aposta em maximizar o envolvimento do Sul Global não resultou. Muitos países, apesar da chantagem, das ameaças e dos esquemas fraudulentos, mostraram resiliência, não sucumbiram a pressões duras e ignoraram os insistentes pedidos para irem aos Alpes.

O fracasso das “conversas” suíças era previsível. Não poderia ter acontecido de outra forma, uma vez que o regime nazi de Kiev e os seus marionetistas ocidentais não tinham, desde o início, qualquer intenção de procurar uma solução pacífica para a crise ucraniana. Não estão interessados na paz na Ucrânia; querem mais confrontos, uma escalada e um aumento das hostilidades, a fim de concretizarem o seu sonho irrealista de infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. Porquê? – Porque a Rússia se vê como um dos principais obstáculos no caminho do neocolonialismo e hegemonia global.

O resultado nulo da “reunião” alpina é também confirmado pela falta de unanimidade entre os seus participantes. Nem todos concordaram em apoiar o comunicado final, que tem um carácter manifestamente anti-russo. Inicialmente, 12 delegações recusaram-se a fazê-lo, mas depois da reunião o seu número subiu para 14. Entre elas, encontravam-se a Índia, a Indonésia, o Iraque, a Jordânia, o México, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, a Tailândia, a África do Sul e outros Estados com autoridade. Tornou-se claro que a maioria do mundo não aceita as receitas ocidentais de Kiev para resolver a crise ucraniana, vê a sua essência belicosa e não quer seguir as instruções dos Estados Unidos da América e dos seus satélites.

Atrás da fachada puramente pacífica do evento criada pelos media, sabe-se ao certo que, em Bürgenstock, o chefe de gabinete de Zelensky, Andrey Yermak, estava a negociar com delegações estrangeiras o aumento do fornecimento de armas às Forças Armadas da Ucrânia. Os acontecimentos subsequentes provaram mais uma vez para que fins servem estas armas… Cada dia ocorrem ataques contra povoações civis nas regiões de Belgorod, Kursk, Donetsk e Lugansk, deixando muitos feridos, casas e infra-estruturas destruídas. A 14 de Junho, um golpe terrível foi desferido em Shebekino, na região de Belgorod. Na sequência da utilização de um míssil Tochka-U pelos militantes ucranianos, a entrada de um edifício de cinco andares ruiu. Um mês atrás, a 12 de Maio, um ataque de míssil do mesmo tipo a um prédio residencial matou 17 civis e mais de 30 pessoas foram feridas. A 23 de Junho, em pleno domingo, as Forças Armadas ucranianas atacaram a cidade de Sebastopol, em Crimeia, utilizando cinco mísseis ATACMS com ogivas de fragmentação, cuja selecção de alvos e atribuição de tarefas de voo é efectuada por especialistas militares dos EUA. O resultado – 4 mortos, incluindo duas crianças, mais de 150 feridos. Esta tragédia eliminou as últimas dúvidas de que a Ucrânia é usada pelo Ocidente colectivo como um estado-tampão na guerra híbrida contra a Rússia.

A cimeira suíça, bem como várias outras iniciativas ocidentais ditas “pacíficas”, revelou-se mais uma tentativa de camuflar as suas intenções agressivas sob a “fórmula Zelensky”, que os seus autores estão a tentar apresentar como supostamente a única base para uma solução e estão a impor intrusivamente à comunidade internacional, sem ter em conta a opinião ou o desejo da maioria global de dar o seu próprio contributo para a resolução da crise. Esta fórmula desde já não implica quaisquer compromissos, alternativas. De facto, nas circunstâncias de proibição por decreto de Zelensky de manter quaisquer negociações com a Rússia, é um conjunto de ultimatos, que se reduzem ao único objectivo ilusório de castigar militarmente a Rússia.

Gritando sobre a urgência de paz, o Ocidente fechou os olhos a uma iniciativa do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, que propôs um caminho real e verdadeiro para uma resolução sustentável da crise. Os seus elementos-chave são a retirada das formações armadas ucranianas das Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk e das regiões de Zaporizhzhia e Kherson; o estatuto neutro, não-alinhado e não nuclear da Ucrânia, a sua desmilitarização e desnazificação. Além disso, prevê a garantia dos plenos direitos, liberdades e interesses dos cidadãos de língua russa na Ucrânia, consolidação de novas realidades territoriais – o estatuto da Crimeia, de Sebastopol, das regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye como partes integrantes da Federação da Rússia, cuja população, através de referendos, exerceu o seu direito à autodeterminação consagrado na Carta das Nações Unidas – no contexto da guerra desencadeada por Kiev contra eles.

No plano de Putin, não se fala da derrota de qualquer das partes, mas da satisfação das pretensões legítimas da Rússia na esfera de segurança e do reconhecimento das mudanças territoriais ocorridas de acordo com o direito internacional. O sinal mais importante, neste contexto, são as palavras do chefe de Estado russo de que Moscovo compreende a sua responsabilidade pela estabilidade mundial e reafirma a sua disponibilidade para dialogar com todos os países.

O Ocidente e Kiev têm de deixar de enganar a comunidade internacional, ao trocarem a causa e o efeito da crise ucraniana. Têm de compreender que não existe qualquer alternativa razoável às propostas russas. Quanto mais cedo se aperceberem deste facto, mais cedo se iniciará o processo de resolução real e o fim das hostilidades. A pergunta neste contexto é, portanto, se eles querem ou não uma paz, ou preferem tirar proveito da Ucrânia, expandindo a sua indústria militar à custa de vidas humanas.

Eventos como a “reunião” em Bürgenstock não são capazes de criar as condições e servir de plataforma para um diálogo verdadeiramente sério sobre a obtenção de uma paz verdadeiramente abrangente, sustentável e justa. É uma mera imitação do processo pacífico para servir a vontade e os interesses egoístas de alguns países que se consideram “árbitros globais”. A solução da crise requer uma conversa séria e pormenorizada sobre toda a gama de questões de segurança mundial.

 

Embaixada da Rússia em Moçambique

O saudosismo não é de todo mau! Quando uma nação pretende perspectivar o futuro, é necessário não perder de vista o seu ponto de partida, o seu percurso, os seus “achievements”, os seus pontos fracos e os seus erros.

Não é possível corrigir o que não se sabe e muito menos corrigir só por mera praxe, senão estragamos. Para corrigir, é preciso ver o quê, como, quando e quem o deve fazer…

Agarrar-se às boas práticas do passado, alguns chamam a isso saudosismo, com uma conotação negativa, como se tudo o que passou devesse cair ao esquecimento e nunca ser rebuscado.

No meu país, os fazedores da política e de políticas públicas parecem não ter feito parte do passado comum desta nação. Há um vício incessante de corrigir (estragar).

A correcção deve ter em vista a melhoria. Quando isso não ocorre, parar e recuar não é uma desinteligência. Muitos aprenderam de Jacques Derrida a ideia da desconstrução.

A desconstrução, para Derrida, é um termo positivo, que se insere numa ideia de reinventar a roda quando esta não está a girar como deve ser, desconstruir conceitos, lógicas, éticas sociais em busca de resolver os males da sociedade como uma colectividade.

Esta desconstrução tem como fim último trazer alento, novos conceitos, novas lógicas na forma de encarar e buscar o bem comum. Nesta desconstrução, não se deve deitar por completo o que está bem.

A desconstrução referida neste contexto é, muitas vezes, confundida quer por distração quer por vontade maléfica dos actores do processo ou por mera incúria.

O termo escangalhar foi normalizado e até visto numa perspectiva positiva nas hostes da política nacional.

Ora, desconstruir não é sinónimo de escangalhar. Podemos até tentar dar sentido positivo ao termo, mas não são sinónimos.

Na implantação da Primeira República (1975–1990), o termo escangalhar derivava de duas situações: a primeira situação, o abandono de toda a máquina colonial que assegurava a administração pública e todo o funcionamento da província ultramarina, que era Moçambique, deixando tudo à deriva, com necessidade de se dar um “reset” ao país e nação recém-criados. Aqui o sujeito era o outro, o que está a abandonar;

A segunda situação, que é da perspectiva de quem ficou, os novos “donos” do país no caso, era a de quebrar qualquer vínculo com o colonizador. Qualquer tradição e práticas coloniais tinham de ser abandonadas, criar o que é novo, até o homem. Perspectivava-se a criação do novo.

A educação foi encontrada nesta encruzilhada, tendo sobrado para ela a segunda opção, aqui entrava em cena o termo escangalhar com vista a criar nova coisa que se pretende boa para a sociedade, até porque há novos valores a implantar, há nova história a ensinar, há o rebuscar da cultura outrora marginalizada, etc…

Criou-se o famoso SNE, Sistema Nacional de Educação, Moçambique foi um exemplo e pioneiro na região.

Como em todos os processos, este também teve prós e contras, mas o que ressaltava, aqui, é que havia e se sentia vontade de criar algo sólido, com bases e objectivos claros.

Os envolvidos na altura, parece que tinham a intenção de desconstruir ou mesmo escangalhar com vista à melhoria. Podiam até fracassar, mas há sensação de que havia preocupação em construir um sistema que se pretendia sólido.

Havia honestidade intelectual. Pedagogos como Paulo Freire foram convidados para ajudar a melhorar de alguma forma este “bebé” recém-nascido.

Estavam bem definidas as competências básicas, requeridas por cada classe, o porquê daqueles conteúdos, o que visam alcançar… havia uma atenção especial para a educação, o foco no professor (embora ainda não fosse o desejável) como um dos pilares do processo de ensino-aprendizagem. Esta atenção perdurou um pouco para além da implantação da segunda República (1990).

Foi neste sistema implantado por Samora Machel, que perdurou até finais dos anos 90 e início do novo milénio, que uma boa parte da geração jovem decisora do país estudou, incluindo-me a mim, autor deste artigo. Arrisco-me a dizer que 90% (estatísticas não confirmadas) da geração de 1975 a 1990 estudou em escolas públicas e os estudantes das pouquíssimas escolas privadas existentes eram ostracizados e, infelizmente, discriminados devido à qualidade de ensino que se presumia existente lá. (Mas isso é o saudosismo puro meu).

A educação deve ser um espaço comum de uma nação que se preze. Deve ser lá, onde estão espelhados os valores mais sublimes de um povo. É lá onde se forja e se lapida o protótipo de sociedade, por isso a falha na implantação de políticas certas leva toda uma geração ao descalabro.
O que se pode construir em dez (10) anos, pode destruir-se num ápice, e o que se destrói em 10 anos pode levar uma eternidade a corrigir. A educação é um sector produtivo, sim.

Se por um lado é saudosismo falar das boas práticas sociais do passado viradas à educação, que perduraram até ao Governo do PR Joaquim Chissano, como o passe escolar, lanche escolar, os quadros de honra, os simpósios académicos, os exames orais (as famosas provas orais), as redacções, as resoluções faseadas das operações físicas, matemáticas e outras ciências (substituídas por multichoice), as olimpíadas académicas, o jornalismo escolar, a rigidez e a permanência dos curricula, entre outras práticas, deve ser também saudosismo referir que o estudante moçambicano era competitivo, era admitido “de caras” a qualquer universidade do mundo e ombreava com qualquer estudante de outras proveniências.

Não estamos a defender que a educação deve ser estática, parada no tempo. Não é esta a visão nem opinião que se procura passar. Ela deve, sim, ser dinâmica, evoluir e acompanhar os desafios dos novos tempos, mas sem abdicar das suas boas conquistas, nem deve ser vítima do seu dinamismo.

Os últimos 20 anos, foram de tentativas e experiências de curta duração neste sector, muitas delas sem se perceber a sua “ratio”, (é verdade que muitas delas foram impostas pelas políticas do Banco Mundial e outras organizações) experiências abolicionistas, mudanças só porque as devemos fazer, sendo que maior parte delas tem como alvo principal o professor.

Num ataque desenfreado, em que não interessa o dano colateral criado ao aluno desde que se atinja o suposto corrupto, o professor.

Isto não é fazer políticas públicas de um Estado, é preciso alto sentido de Estado, elevado senso de responsabilidade e de consequência.

Em Direito, diz-se que ao emanar-se uma norma/lei, é preciso a sua “ratio legis”, então qualquer norma, para além das suas razões históricas, deve definir o problema que esta norma vem resolver, isto é, a sua razão de ser, a “ratio legis”.

É difícil buscar as razões de ser de muitas normas emanadas ultimamente pelo MINEDH, dentre elas a
– Introdução da 7ª classe no ensino secundário;
– A eliminação das famosas provas orais – ainda não vislumbro, o que pretendiam acrescentar à educação!?
– A introdução de testes e exames 100% múltipla escolha – ainda não vejo os efeitos;
– A eliminação das dispensas dos alunos, factor que impulsionava a competitividade;
– A introdução do teste provincial – fomentou mais fuga de enunciados nas vésperas dos testes;
– A redução da carga horária em disciplinas de ciências e outras;
– A eliminação do exame de Desenho.

Mais caricato, houve anos em que o estudante escolhia que exames ele pretendia fazer, onde tinha a opção de escolher substituir o exame de Matemática pelo de Filosofia, totalizando cinco exames à sua escolha.

Ora, respeito de igual maneira as duas cadeiras, mas não acho que uma possa excluir a outra, não vejo a “ratio” disso. (ainda bem que se recuou com essa prática).

Todo o mundo fala da educação, fala do professor, mas ninguém fala com o professor. A sua participação no processo de elaboração dos curricula é insipiente e quase inexistente.

A educação não deve ser um lugar de sucessivos testes e experimentos mal concebidos, uma política educativa. Os curricula, os instrumentos e a atenção virados à educação devem ser construídos sobre bases sólidas, com alto sentido de Estado, com projectos bem definidos do que se pretende alcançar.

Uma nova política, directivas e curricula no sector da educação devem ser experimentados durante um período mínimo de cinco anos ou mais. Não se pode, a cada dia que nasce, lançar apenas ordens e alterações só porque o devemos fazer. É necessário existir a “ratio” destas novas normas emanadas.

O meu pai comprava-me os livros da 7ª classe, eu ainda na terceira classe, porque era uma certeza de que eu os ia usar.

Um simples estudante sabia o que lhe esperava quando chegasse à classe seguinte, quais os requisitos de admissão, dispensa, exclusão de todas as classes, ciclo, etc… Quais as matérias ministradas em todas as classes subsequentes e matérias examinadas, porque o sistema era sólido e com alguma previsibilidade.

Hoje, entristece-me que, para além do aluno, é também o professor que não sabe como e quais são os requisitos para admitir ou excluir o seu aluno quando chegar o fim do ano, porque só nas vésperas do exame é que as ordens superiores vão definir a nota mínima e as constantes ordens “vão todos ao exame”, o brilhante, o medíocre, o faltoso, o ausente e o inexistente.

Entristece-me ainda a falta de giz, material didático, energia, água, em escolas da cidade em pleno século XXI, entristece me que o aluno hoje não saiba retirar os dados, a fórmula resolvente e demonstrar os caminhos usados para a solução numa operação matemática simples, porque hoje já não é preciso, o estudante só tem de dizer se A, B, C ou D.

Moçambique deve ser exemplo único no mundo, onde passados alguns anos, quando regressamos para visitar as escolas que frequentámos, não registamos avanços, apenas retrocesso, escolas destruídas, tecto revirado… o que existia deixou de existir, o brilho esmoreceu… apenas nostalgia.

O professor está desanimado, debate-se com problemas básicos, do tipo dinheiro de transporte… toda uma classe desmoralizada. O professor que outrora era exemplo já deixou de ser, o pontual já não é, o motivado já desistiu.
É caso para uma reflexão profunda como sociedade, se o fruto da educação dos últimos 15-20 anos não estará hoje a tomar lugares de decisão em sectores nevrálgicos do nosso Estado.

Mais ainda, é a ausência da sociedade na fiscalização, monitoria, crítica, apoio à educação, que se vai destruindo perante o olhar impávido e cúmplice de todos nós.

Não existe um jornalismo investigativo na área da educação, não existe uma ONG de defesa da educação, as que existem são amigas da educação, amigas desta educação!

Assiste-se, nos últimos dias, ao encerramento de escolas por falta de pagamento de horas extras aos professores, sem nenhuma reacção enérgica da imprensa, da sociedade, dos escribas, dos pensadores, dos supostos académicos. Parece que ninguém se incomoda com a situação destes jovens todos atirados à sua sorte, a que se retirou um direito fundamental básico, que é também um direito humano plasmado na DUDH.

Se não são os livros que tardam a chegar, é o salário dos professores e as suas horas extras. Tudo isso contribui para o fraco desempenho no sector da educação.

Ignorar todos estes factores é uma desinteligência e inconsequência. Podemos reduzir as consequências de estar a atirar toda uma geração à ignorância colectiva, pelo simples facto de colocar os nossos filhos no ensino privado e de ter uma condição social confortável aqui e acolá, mas isso, para além de sugerir a imoralidade, é, também, um tremendo erro de cálculo.

Esta geração a que se está a dar uma educação deficitária e atirada à ignorância é a maioria da população deste país.

De que vale prover a melhor educação para o seu filho, enquanto amanhã vai coabitar com jovens frustrados por lhes ter negado esse direito básico?

Por mais condições e meios que tenha o filho da escola privada, mas a ter de usar as mesmas ruas onde vai cruzar com a nudez, a frustração, a intolerância, sim a intolerância, porque a educação tem, também, a grande missão de formar bons cidadãos, pois um indivíduo de diligência média, com uma instrução aceitável, tem mais apetência e predisposição a ser tolerante, cauto e consequente.

Como sociedade devemos, também, questionar se a juventude que temos hoje é a juventude que a nação moçambicana merece. É essa juventude fruto da educação da independência?

Juventude que não questiona, não participa no desenho de políticas públicas sérias e futuristas deste país, juventude que não distingue dignidade, integridade da imoralidade, juventude que senta em cada palmo e meio das grandes cidades nas barracas e bares e debater “nonsense”, a discutir qual nova estratégia de adulação ao novo chefe, de que forma bajulou ontem o fulano e o beltrano, de que forma vendeu a sua dignidade por uma caixa de charutos, roupa de griffe e aquele par de benesses fáceis, e por este e aquele cargo público, de que forma vai usar o Estado para a próxima bolada.

Não será fruto da educação dos últimos 20 + (“plus”) anos…???

Não deixemos a educação cair na desgraça. É papel e tarefa de todos nós abraçar. Vamos participar, este é um grito de apelo à responsabilidade de todos nós.

Intervir e fiscalizar a educação é um dever patriótico, não é apenas papel do Estado, nem do novo timoneiro da Ponta Vermelha, é responsabilidade nossa, como nação e sociedade.

É caso para dizer “Pátria Amada, quo Vadis?”

Numa era em que a modernidade, frequentemente, obscurece as raízes culturais, “O pastor mazione”, de Aldino Languana, uma das obras da exposição individual “Jardins de sonho”, inaugurada a 03 de Julho, na Fundação Fernando Leite Couto, emerge como um farol de resistência e introspecção, convidando o observador a um mundo onírico, onde a espiritualidade e a tradição se cruzam.
A técnica da aguarela, com a capacidade de criar transições suaves e atmosferas etéreas, é utilizada por Languana para capturar a essência visualmente envolvente.

A escolha de uma moldura discreta é eficaz, pois, permite que o observador se concentre inteiramente nas complexidades da pintura em si. Por conseguinte, o vidro protector adiciona um elemento estético e preserva a integridade da aguarela.

O uso de cores vivas e contrastantes pode ser visto como uma metáfora para a diversidade cultural e para a riqueza espiritual presentes na prática dos maziones. O laranja brilhante e os tons de azul e amarelo não só retêm a atenção, mas também exprimem a paisagem natural e a vivacidade da vida comunitária.

Os traços abstratos e as figuras sobrepostas conferem à peça uma sensação de transcendência, possivelmente reflectindo a espiritualidade e as práticas rituais associadas aos maziones, ou seja, a presença de um rosto em destaque, com olhos fechados, pode representar um estado meditativo ou de transe, comum em práticas espirituais. O outro rosto, mais subtilmente inserido, complementa a narrativa visual, representando talvez a presença de espíritos ou entidades que fazem parte das práticas rituais.

Os rostos, com as suas expressões serenas e contemplativas, são pontes entre o material e o imaterial, convidando o visitante da exposição a mergulhar na riqueza simbólica e cultural que a obra retrata. Entretanto, a especificidade do tema, centrado nas práticas culturais moçambicanas, pode limitar a compreensão e apreciação por parte de um público global. Quer dizer, a falta de familiaridade com as tradições representadas pode reduzir a conexão emocional do público de outras origens culturais.

Embora o estilo abstrato contribua para a atmosfera etérea da pintura, também pode ser uma barreira para aqueles que preferem representações mais realistas. A subjectividade necessária para interpretar a obra pode afastar os observadores que buscam uma conexão mais directa e imediata.

Com efeito, “O pastor mazione” dialoga com a nova série de notas do metical. Tanto a obra de arte quanto as novas notas do metical buscam explorar e celebrar elementos culturais profundamente enraizados na identidade moçambicana. Enquanto o quadro de Languana capta a essência espiritual e as práticas rituais, as novas notas do metical incorporam motivos e símbolos que reflectem a diversidade cultural e a riqueza histórica de Moçambique, oferecendo uma representação visualmente rica e simbolicamente poderosa da herança cultural do país. Em ambos os casos, destaca-se a importância de preservar e valorizar tradições locais, ao mesmo tempo em que promovem uma apreciação contemporânea e artística dessas práticas e símbolos ancestrais.

O quadro de Languana retrata, também, os preconceitos que os maziones enfrentam durante suas práticas religiosas que se assemelham a dos curandeiros.

A discriminação manifesta-se tanto na esfera social quanto institucional, em que os membros da igreja “Mazione” são vistos com desconfiança e desrespeito, rotulados como supersticiosos. Esta marginalização não só mina a dignidade e os direitos destes indivíduos, mas também dificulta a preservação e a valorização das suas tradições culturais e espirituais.

Ora, na realidade moçambicana, onde muitos enfrentam desafios socioeconómicos, “O Pastor mazione” emerge como uma figura de esperança, em que a transcendência se manifesta como a busca e a conexão com o divino, especialmente diante das adversidades do mundo real. Portanto, a peça ensina que, num mundo em constante mudança, as nossas raízes culturais e espirituais são fundamentais para manter a nossa identidade e encontrar equilíbrio interior, “porque o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim” (NIETZSCHE, 1883, p. 48). Assim, “O pastor mazione” não é apenas uma obra de arte, mas um convite à introspecção e ao reconhecimento da riqueza cultural que nos define.

 

Título – O pastor mazione
Autor: Aldino Languana
Técnica – Aguarela sobre papel
Dimensões – 111 x 103 cm
Ano – 2023

Nota do editor: A exposição “Janelas de sonhos”, de Aldino Languana, é constituida por 22 peças e pode ser visitada na Galeria da Fundação Fernando Leite Couto, na Cidade de Maputo, até 3 de Agosto.

Os inimigos não são só os que pegam em armas.
São também os que nos impedem de sonhar
e de caminhar de cabeça erguida.

(autor desconhecido)

 

Em uma realidade marcada pela opressão colonial, em um contexto de luta pela terra e preservação cultural, surge uma narrativa ressonante na cinematografia moçambicana: “Nhinguitimo”.

Interpretada em português, changanam e ronga, a curta-metragem, carregada de autenticidade e identidade própria, é uma adaptação do conto homónimo do livro “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana, no entanto, dirigida por Licínio Azevedo. O realizador decidiu , com efeito, contar a história de Alexandre Vírgula Oito Massinga, um jovem agricultor moçambicano, cuja luta pela sobrevivência e justiça se desenrola sob o peso da exploração colonial. O filme, através de sua estética visual e detalhamento cuidadoso, transporta o telespectador para um tempo em que a terra e a dignidade dos moçambicanos eram constantemente ameaçadas pela ganância dos colonos portugueses.

O uso de imagens em preto e branco é uma escolha artística que adiciona profundidade e gravidade à narrativa, evocando a austeridade e a dureza da vida sob o colonialismo, mas também acentua a divisão entre o mundo dos colonizadores e dos nativos. As vestimentas de Massinga e as suas caminhadas, descalço, contrastam com a opulência e a arrogância dos colonizadores, simbolizando a dicotomia de poder e resistência.

A trama de “Nhinguitimo” é impregnada de simbolismo e metáforas. O sentido do título (ventos fortes que antecedem o verão) representa as mudanças inevitáveis e tumultuadas que trazem desconforto, mas também a esperança de uma nova estação. A pequena machamba de Massinga, situada estrategicamente para escapar dos ventos destrutivos, evidencia a resiliência e a esperança de um futuro próspero.

A certa altura, Vírgula Oito chega ao Bar de Rodrigues, destacando-se pelo seu carácter forte. Apesar da sua determinação e sonhos de prosperidade, acentuados pelo crescente sucesso da sua produção agrícola, revela uma falta de atenção e respeito pelos outros, particularmente pelas mulheres que não considera essenciais para sua ambição imediata.

Ao entrar no bar, ansioso para compartilhar as novidades com os seus amigos Machumbutana e Maguiguana, Vírgula Oito, acidentalmente, empurra uma mulher sem ao menos notar a sua presença ou se preocupar com seu bem-estar. A mulher, que poderia ter caído e se ferido, é tratada com desdém, em contraste directo com a reverência e admiração que Vírgula Oito reserva para N’teasse, a mulher com qual sonha casar. A cena não apenas sublinha a obsessão de Massinga por seu próprio sucesso e seus desejos românticos, mas também evidencia a forma como desconsidera as necessidades e a dignidade de outras pessoas ao seu redor. A falta de atenção para com a mulher que empurra, entretanto, contrasta fortemente com a dedicação que pretende oferecer à sua futura esposa, revelando uma complexidade e um paradoxo no seu comportamento, o que enriquece a narrativa cinematográfica.

“Nhiguintimo” apresenta uma complexa teia de interacções sociais e culturais, expondo as dificuldades enfrentadas por Massinga, ao tentar navegar entre os seus sonhos de prosperidade e a realidade opressiva que enfrenta.

 

“MULHER NENHUMA SUSPEITA O DESTINO DO FILHO QUE EMBALA NOS SEUS BRAÇOS ” (Chiziane, 2002, P. 350)

Com a ajuda de sua mãe, Vírgula Oito cultiva a sua machamba com sucesso. As cenas de colheita são retratadas com uma beleza serena, capturando a essência da conexão de Massinga com a sua terra e suas raízes culturais. Essas imagens reforçam a importância da preservação das tradições locais e a resiliência da comunidade face às adversidades.

No entanto, Machumbutana e Maguiguana, em uma conversa com Massinga, alertam-no para não expor as suas realizações e perspectivas, mostrando um entendimento pragmático das dinâmicas de poder que governam as suas vidas. A ingenuidade de Massinga, ao falar abertamente sobre os seus planos no bar do comerciante Rodrigues, revela a vulnerabilidade dos marginalizados perante aqueles que detêm o poder. Rodrigues, ouvindo a conversa, aproveita-se dessa informação para corromper o administrador e planear a desapropriação das terras.

O encontro de Massinga com o administrador destaca a injustiça e o desprezo enfrentado pelos que não falam a língua do poder. Incapaz de se comunicar efectivamente em português, Massinga é ridicularizado e subjugado, evidenciando a marginalização linguística e cultural. Este encontro sublinha a desconexão entre os administradores coloniais e a população local, exacerbada pela barreira linguística e pela falta de respeito pela identidade.

O filme de Licínio Azevedo ascende à amargura da realidade. As machambas, rotuladas como “reserva indígena”, simbolizam a segregação e a desigualdade impostas pelos colonizadores. Essa separação entre os que têm boas condições e os que não têm reforça a divisão social e a contínua opressão das comunidades indígenas.
“Nhiguintimo”, assim, oferece um retrato multifacetado da luta de Massinga e sua comunidade, através de belas imagens de trabalho e colheita.

Num cenário subsequente, Vírgula Oito inicia o dia com gratidão e serenidade. Após saudar à mãe, segue para o campo, onde se deita no capim, contemplando o céu. Num momento de introspecção e agradecimento a Deus, pelas bênçãos da vida, Vírgula Oito é interrompido por uma inesperada visita. Uma figura distante, percebendo-o deitado, aproxima-se com cautela.

Ao perceber a presença de alguém, Vírgula Oito levanta-se, reconhecendo imediatamente a mulher com quem sonha casar. O seu sorriso, ao vê-la, reflecte a intensidade dos seus sentimentos e das suas aspirações pessoais. Esse momento de esperança e desejo contrasta categoricamente com o desenrolar dos eventos ao redor.

Enquanto isso, o comerciante Rodrigues, em conluio com o administrador, inspeciona as férteis terras. Rodrigues, movido por ganância, convence o administrador a desapropriar essas terras, subjugando a população indígena e privanda-a dos seus meios de sustento. A injustiça protagonizada pelos dois colonos marca o ponto de virada na vida de Vírgula Oito.

Ao ver a sua terra e o seu futuro em causa, Vírgula Oito é impulsionado a agir. A perda iminente de tudo que ele e a sua comunidade construíram desperta uma profunda revolta. O despertar de resistência se torna o núcleo da narrativa de “Nhiguintimo”, ilustrando a luta contra a opressão e a luta pela preservação de suas tradições e dignidade.

A insistência de Vírgula Oito em incitar os seus companheiros à resistência é recebida com desdém e temor. Os seus apelos a Machumbutana, para que permaneça firme, resultam em fuga e incerteza. Machumbutana, aterrorizado pela perspectiva de confronto, foge, ilustrando a devastação que o medo e a traição podem infligir em uma comunidade.

“Nhiguintimo” é uma curta-metragem de 22 minutos, que consegue contar uma história emocionalmente ressonante. Produzido por Jorge Ferrão e realizado por Licínio Azevedo, o filme é uma co-produção da Ébano Multimédia e Mahla Filmes, com direcção de fotografia de Pipas Forjaz. A trilha sonora, composta por Joni Schwalbach, acompanha as imagens na tela, intensificando a atmosfera e as emoções presentes na história.

O final aberto do filme deixa o telespectador imerso em uma sensação de incerteza e tristeza, reflectindo a brutal realidade das lutas anticoloniais. A falta de resolução final não só ressalta a complexidade da situação, mas também a contínua luta pela justiça e pelos direitos da terra que muitas comunidades moçambicanas enfrentam com a expansão dos grandes projectos económicos.

Nm mundo onde as dinâmicas de poder, opressão e resistência continuam a moldar sociedades, contudo, “Nhinguitimo” emerge como um filme de vital importância para a actualidade. Através da história de Massinga e da sua luta pela justiça, o filme oferece uma reflexão profunda sobre questões que ainda são pertinentes em Moçambique: a desigualdade social, a exploração dos recursos, a preservação cultural e a resiliência diante das adversidades de vária ordem. “Nhinguitimo” não é apenas um espelho do passado colonial, mas também um farol que ilumina as contínuas lutas por dignidade e direitos humanos, inspirando novas gerações a questionar, resistir e lutar por um futuro mais justo e inclusivo.

 

 

 

 

 

Crianças de todas as cores e etnias juntaram-se no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), em Maputo, para, com os seus pais, celebrarem o Dia da Música. A festa começou pelas 10h30, no jardim do CCFM, recebendo vários petizes que se divertiram em várias actividades, como pintura facial, animações e malabarismo.

Os petizes participaram, também, de uma sessão de leitura criativa, com a actriz Sufaida Moyane, na qual jogaram e brincaram com as palavas. Aprenderam a tocar batuques, timbila e outros instrumentos, na oficina “ritmos e melodias africanas”, orientada pelo músico e instrumentista Cheny Wa Gune.

Foi a 12º edição da Festa da Música e decorreu no passado dia 22 de Junho. O espectáculo prometia, e o mestre de cerimónias foi o apresentador de televisão David Bamo.

Quando eram 14h, o som dos tambores da Orquestra da Unidade 7 ecoaram, com a aparição visual das Marionetas Gigantes de Moçambique. Sim, não eram filmes chineses, eram as Marionetas Gigantes de Moçambique, que expandiam a estética visual das crianças e daquele evento, com enormes figuras humanas circulando por aquele recinto, extravasando a curiosidade e o imaginário infantil.

De seguida, David Bamo convidou a Music Crossroads a entrar, abrindo a sessão de concertos musicais na Sala Grande do Franco. Ali, a Music Crossroads aventurou-se pelos ritmos do Norte, do Centro e Sul do país. A sua performace foi estruturada por sons africanos, cânticos corais, que encheram de espiritualidade os presentes na sala. As músicas e as danças tradicionais ecoaram na plateia com vibração.

A diversidade da cultura moçambicana estava exposta na Sala Grande e o público apreciou devidamente.

Então foi a vez dos 4D Band, que foram a segunda banda musical, constituida por cinco elementos. O palco, que estave montado por entre árvores imponentes, com um flyer enorme de festa da música por baixo, fez um casamento entre o verde e o espectáculo. A natureza estava viva naquele palco. Talvez, por isso, além de contemplar o espectáculo, era possivel também contemplar a estética da natureza.

Os 4D Band trouxeram um misto de afrojazz, música tradicional e contemporranêa. As suas composições eram vivas, os instrumentistas tinham tarimba, a banda provou que instrumentos tradicionais como mbira, timbila, harmonizam em uníssono com as guitarras, produzindo um som único e ímpar. A performace dos 4D exaltou a nossa cultura. Alcídio notabilizou-se tanto no canto como no saxofone, abusou da mbira e pariu melodias enloquentes. A timbila içou os cânticos muchopes e contemporrâneos.

Havia um “dilema” na bateria: Não se sabia ao certo se Tony Paco estava no comando da bateria ou se a bateria é que comandava Tony, porém ambos eram um só, e era dali onde saia a energia da banda.

Ana João revelou a sua voz pelos ares do palco, e mostrou que a dança é também um dos seus pontos fortes, a sua performace encantou a multidão. Um dos temas marcantes da actuação da banda foi Salamaleko.

A seguir, o Mc anunciou a entrada da Silke. Acompanhada por uma banda, a cantora iniciou a sua actuação com um bailado de neo soul. As suas composições possuiam um arranjo soul e harmonia de guitarras e piano apaixonantes. A sua voz namorava a melodia como a guitarra baixo cortejava a bateria. Silke tinha um visual afro moderno, o traje geral era preto, acompanhado de um mini vestido com cobertura de várias cores de capulana, o que autenticava a identidade africana no seu visual.

Durante a actuação, o público presente foi conduzido a um momento ímpar de alegria e música memorável aos ouvidos. A sua voz era sua maior arma para causar suspiros ao público. Um dos temas marcantes na sua actuação foi “Yesterday”, música que nos motiva a crescer por dentro, pois cada dia nos tornamos melhores do que ontem. Silke convidou o público a cantar com a sua banda, e o mesmo não se fez de rogado e soltou a voz: “We better than yesterday, we better than yesterday”…

Num segundo momento, Silke deu uma pequena pausa, e voltou transfigurada, com novo visual, saltos enormes. Uma das faixas que, de seguida, interpretou, foi enigmática, na qual a cantora juntou o canto à performace corporal. A artista simulou gestos de tiros ao alvo, deu para perceber a tensão do piano na música, e a revolta na abordagem, provavelmente debruçasse sobre alguma guerra. A cada música tocada, ecoava uma chuva de aplausos sinceros em forma de gratidão pela grandeza do espectáculo testemunhado.

A seguir foi a vez da banda Dickson Uthui, que actuou no Jardim do franco. A banda Uthui trouxe um autêntico momento de clássico Moz Jazz, uma banda jovem inteiramente habilidosa, e bem disciplinada.

Souberam namorar o público, iniciando a sua performace de forma misteriosa, e de tema a tema mostrararm o seu arsenal de qualidade de composição, execução e produção de som. Dickson era claramente o líder, posicionado ao meio do palco, com a cabeleira ao estilo Afro de Moreira Chonguiça e o Saxofone na mão. Se o público estava à procura de talento e uma nova definição de Jazz, encontrou nesta banda. Os Uthui trouxeram composições que tiraram o ar do público e os levaram ao delírio, o potencial de cada um dos membros era enorme.
Um dos momentos marcantes da sua actuação foi a colaboração com a Letícia da banda Mlaio, não só no canto, como também na declamação de um poema intitulado “Negra” ao som do jazz dos Uthui. Esta performace poética buscou ressignificar a expressão “negra”, valorizando tudo a isso relativo, como o amor à pele negra e os cabelos da mulher negra. A alegria do público fez chover aplausos da plateia.

De volta à sala, o MC, num vai e vem, anunciou energicamente a tomada do palco por João Cabral. Cabral fez-se ao palco com um visual simples e descontraido. Iniciou a sua performace serenamente.

João Cabral trouxe uma nova estética de Jazz ao espectáculo, afinou o seu domínio aos acordes, produzindo uma linha premium de Jazz, enquanto Jéssica ornamentava os acordes com seus coros suaves.

Uma das sua faixas de fusão de Jazz e Samba, obrigou o público a entrar em sintonia com a banda, dançando, assobiando e delirando.

O repertório de João Cabral era excelente, as melodias de João Cabral eram profundas, davam a sensação de se estar em um Moçambique com paz, prosperidade e harmonia total. Durante a actuação, Jéssica assumiu o canto e o encanto da sua voz. O saxofonista adolescente provou que talento não tem idade, a banda estava tecnicamente formidável. Armindo Salato e sua guitarra baixo não estavam no espectáculo, o espectáculo é que estava neles. Armindo fez um autêntico show de guitarra, manuseando ao estilo de guitarristas de hard rock como Jim Hendrix.

O show de João só subia os degraus. Entre aplausos e calor humano, João dedilhou a guitarra e mostrou intimidade com o instrumento. Era visivelmente humilde em palco, mas a sua habilidade era arrogante. A plateia entrou em transe quando João tirou da cartola um tema JazzMarrabenta. Ali foi o momento mais alto da apresentação, com o público em êxtase, gritando, invadindo o palco de João para exibir os toques de marrabenta, numa conexão total entre a banda e o público. E dizer mais para que?

Para encerrar as bandas, foi a vez da Banda Tai, no jardim. Tai, em swahili, significa Águia.

O repertório musical da Banda Tai foi diversificado entre estilos africanos, como mutimba, makossa, a variar com o Jazz e o Zouk. Banda Tai revelou alta qualidade técnica e harmónica nos seus arranjos.

Ebenezer Sengo, membro da banda, apresentou-se com um visual exótico, óculos escuros e um lenço sobre a cabeça, com uma guitarra tipo “Fender Precision” e uma performace irirquieta em palco, que fazia recordar o Steve Harris, guitarra baixo dos Iron Maiden.

A performace da banda foi excelente. O tema mais marcante foi precisamente o último, “Malhanhile ma cena”, em portugues, as coisas endoideceram. A faixa é uma critica em relação à subida do custo de vida, o preço da internet, da energia, e etc.

De seguida os Hood Brodz e Dona Saquia, tomaram conta do palco, ofertando ao público música popular. O encerramento do espectáculo coube ao DJ AD, com sons e misturas.

Deus desenhou e estabeleceu de forma perfeita o ciclo da vida, como em tudo o que Ele criou!

Todos sabemos que assim como viemos a este mundo (do pó), um dia dele sairemos. É um ciclo de perfeição. No entanto, o desconforto em não saber quando vamos partir deste mundo me preenche de agonia! 

Vivemos nossas vidas muitas vezes sem considerar a possibilidade de partir a qualquer momento, talvez porque fomos ensinados na biologia que os seres vivos “nascem, crescem, se reproduzem e morrem”, e associamos a ideia de morte a um estágio avançado da vida, quando já estamos velhos. No entanto, a realidade é ainda mais complexa, pois cada um de nós tem um processo único de vida e nunca nos acostumamos à perda dos entes queridos. É importante aproveitar ao máximo o tempo com aqueles que amamos, amar sem reservas e deixar um legado positivo que fale por nós quando já não estivermos mais aqui.

Na vida, todos enfrentamos diferentes tipos de escassez que nos fazem menosprezar o que realmente importa. Alguns sofrem com a falta de dinheiro, o que pode resultar da falta de emprego ou salários baixos, e essa preocupação pode cegá-los a ponto de não dar valor a suas próprias famílias. 

Alguns têm dinheiro, mas enfrentam dificuldades em encontrar paz e genuinidade nas relações devido às incertezas que o dinheiro pode trazer, estes podem enfrentar o desafio de não saber se os que estão a seu redor são movidos por sentimentos verdadeiros de amizade e amor ou se o dinheiro é o que os move. Às vezes, tudo o que falta é alguém em quem confiar. 

E há aqueles que lutam diariamente para obter o básico, como comida e abrigo, pois a vida lhes pesa demais para suportar.

É importante lembrar que enfrentaremos desafios ao longo da vida, fazendo parte do ciclo natural da existência. Contudo, não devemos permitir que essas dificuldades nos sobrecarreguem a ponto de tornar a vida um fardo. Devemos encontrar momentos de alívio e valorizar o que temos ao nosso redor. 

Cada um de nós tem um caminho diferente a percorrer, e devemos aceitar o facto de que fazer comparações constantes ou estabelecer metas muito “altas” pode levar nos a problemas tanto para nós mesmos quanto para nossas famílias.

Durante o processo da vida é natural que algumas pessoas nos magoem por suas atitudes e palavras, as vezes conscientemente e outras sem consciência, ora. Até mesmo nossos familiares com quem convivemos magoam nos, quem dirá no trabalho ou em qualquer outro ambiente em que podemos estar expostos! Entretanto, perdoar, apesar de difícil, é essencial para nossa saúde física e mental. Carregar ressentimentos e magoas só nos prejudica a nós, enquanto aqueles que nos feriram muitas vezes seguem sem esse peso.

 A vida é um presente precioso e devemos ser gratos por ela, valorizando cada dia, pois, não sabemos quando será nossa vez de partir, então devemos refletir sobre o legado que queremos deixar. Em especial valorizar muito nossas famílias.

Temos a oportunidade diária de construir uma nova história, de decidir o tipo de pessoa que queremos ser lembrados.

A vida é como uma tela em branco, onde todos os dias temos a oportunidade de pintar uma nova história com as cores da gratidão, amor e perdão. Cada escolha, cada ação molda não apenas nossa jornada, mas também o legado que deixamos para trás. Que possamos, a cada manhã, renovar nosso compromisso de viver de forma autêntica, valorizando cada momento, cada pessoa e cada experiência como se fossem únicas. Lembremos sempre que, ao final dessa jornada, o que verdadeiramente importa não serão os bens materiais acumulados, mas sim as marcas de amor, gentileza e compaixão que deixamos nos corações daqueles que cruzaram nosso caminho.

“O Beco onde nasci” é uma obra de arte do artista plástico João Paulo Quehá (Maputo, 1975), que está patente na galeria da Fundação Fernando Leite Couto, e pode ser apreciada até 29 de Junho. A peça é aprimorada com recurso à técnica acrílico e óleo sobre tela, com as dimensões 109x99cm, criada em 2022.

O título “O beco onde nasci” dá-nos a ideia de que o autor pretende fazer um flashback (regresso no tempo) das suas memórias prescritas, levando à obra traços e vislumbres do lugar onde existe, isto é, o beco onde nasceu, com as obscenidades ou excentricidades da sua comunidade. Assim, com efeito, estabelece um resgate da criança dentro de si através da arte.

Num primeiro olhar, o quadro de Quehá apresenta figuras animalescas. No entanto, com mais concentração, notam se vestigios de humanidade que parecem abrir interrogações profundas ao espectador.

As figuras tecidas por linhas finas, com formas ovais e curvadas, parecem co-habitar pacificamente nesse “beco”, ao mesmo tempo que buscam algo em comum, que, pelo diálogo visual, ainda não encontraram. Seria essa busca a liberdade? A solidariedade? A compaixão pelo próximo? O autor pode, aqui, estar a sugerir à sociedade para uma busca em comum. A harmonia das formas e a metamorfose das imagens revelam o seu talento refinado em projectar a sua imaginação.

Em “O Beco onde nasci”, cada figura parece estar ciente do seu espaço e a ser protagonista nas vivências de outras figuras, reforçando a ideia duma possível descoberta.

As cores da obra de Quehá são vivas, simulam uma marrabenta harmónica e exótica, onde o talento do autor também vibra na exploração de várias tonalidades de verde e azul, variando entre tons suaves de vermelho e outras pinceladas, o que causa um equilíbrio sensual de formas.

A harmonia de cores primárias e a beleza da sua execução é uma marca da obra. Ainda assim, a combinação multicolor não deixa de ter um tom misterioso e questionador no ar.

A tela de Quehá projecta, sobretudo, uma sobreposição de objectos, que recebem profundidades parciais acentuadas pelo sentido enigmático. Os objectos enfatizam a sensação de mistério, e descoberta, vão ganhando múltiplos significados em diferentes prespectivas de observação, ora lidando com meio-homens, ora com meio-animais, não excluindo o sussurro das aves à volta dessa interacção.

Na apreciação de “O Beco onde nasci”, olho do espectador é atraído, primeiro, para o canto esquerdo, devido a maior intensidade de luz e à forma figurante mais humana, constratando com outras formas mais enigmáticas. A sensação que se tem é que as figuras estão em assembleia, em torno dum propósito comum. O contorno mais ousado do mistério parece ser contemplado num braço aparentemente humano, com um olho vermelho, que pode ser a cabeça duma ave nocturna, ou do que a imaginação puder oferecer ao espectador.

“O beco onde nasci” é uma peça misteriosa tanto quanto sedutora, recheada por uma execução ímpar de cores, formas e talento. A obra parece apresentar um paradigma social, com questões profundas como esta: O que temos buscado como sociedade e o que devíamos buscar?

 

Nota do editor: A tela “O beco onde nasci” pode ser apreciada até 29 de Junho, na galeria da Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, onde está patente a colectiva de artes plásticas de Quehá e Santos Mabunda.

O texto de António Magaia foi escrito no contexto da Oficina de escrita: crítica de arte, organizada pela Fundação Fernando Leite Couto, com a pretensão de estimular a crítica artística no país.

 

 

O sorriso do Sol de Chocas Mar, visto do olho humano a partir do buraco onde papá mete a chave para abrir a porta, abraça com raios de luz as águas cristalinas deste Índico, visto desse ponto do planeta. As características únicas desse mar anunciam a surpresa do fim da madrugada e o começo da manhã, que sussurra esperança nos corações cheios de paixão pela vida.

O sentimento de paixão pelo sol laranja do Índico, que anuncia a alegria do amanhecer, irradia feixes de raios que mostram cores semelhantes às que maquiam os lábios do arco-íris depois da chuva miúda que beija suavemente a terra. A beleza do Índico se revela de forma solene, como uma orquestra que embala as ondas calmas, espreitando timidamente o rosto da areia branca como dentes de leite, e abre o dia com um som de esperança.

Este Índico, que de longe não revela o segredo do mundo marinho, oferece uma brisa que acaricia a pele da “Cabaceira”, isolada entre mangais que fazem companhia a Chocas Mar, e sorri ao contemplar o rosto da “Carrusca”, onde corações de amigos se reúnem em assembleia para discutir o prazer da vida com gestos que articulam o sabor da 2M.

A metáfora do Índico embriaga de felicidade a ansiedade de viver sem receios, pois as baleias que marcham em fila indiana ao largo da ilha dos 7 Paus revelam os segredos das maravilhas desse mar e alimentam os corações dos que as observam com o gingar das suas caudas robustas. Neste Índico, a mente esquece por um momento a única verdade certa: que a vida tem um fim, independentemente do status ou importância.

Passear com olhos atentos por este Índico mobiliza a lucidez da vida e a essência de amar a mãe natureza com consciência. Apaixonar-se pela biodiversidade do Índico é desenvolver um carinho profundo pelo planeta, nossa única casa.

O sentimento despertado por este Índico une paixões e ajuda a celebrar a vida com um sorriso, num mundo onde as consciências frequentemente se chocam com a natureza e esquecem de preservar as maravilhas deste mar. A vida ganha mais beleza quando vivida em harmonia com as leis da natureza, e o espetáculo do Índico deve ser apreciado com o máximo carinho. É verdade que o filósofo Albert Schweitzer vê o Homem passando por uma época perigosa, porque tem maior domínio sobre a natureza antes de aprender a dominar a si mesmo.

A satisfação verdadeira que o espetáculo desse Índico oferece confirma a afirmação de Sócrates: “É mais rico aquele que se contenta com o pouco, pois a satisfação é a riqueza da natureza.”

Este Índico, que na classificação dos oceanos por tamanho ou extensão ocupa o terceiro lugar, depois do Pacífico e Atlântico, revela-se com atributos únicos em suas águas mornas, que massageiam e deixam a pele macia em todas as estações do ano. O sorriso de suas águas transparentes revela conchas que o adornam, apaixonando qualquer coração sem promover ciúmes. Se houvesse uma classificação dos oceanos baseada nas maravilhas que oferecem, talvez este Índico de Chocas Mar receberia a nota máxima.

As maravilhas do Índico, que repousa no berço do horizonte de Chocas Mar, reúnem amigos e celebram milagres, apagando a tristeza indelével do passado e criando memórias que marcam a vida com o selo do prazer. Este Índico namora lealmente os que o apreciam com honestidade, e seus olhos tímidos e palavras frescas pronunciadas pela brisa leve embriagam corações de todas as idades. Este Índico me apaixona.

Na actualidade a sociedade moçambicana enfrenta diferentes patologias sociais. Há uma tese quase que partilhada de que a sociedade vive uma crise de valores. Uma crise que afecta às instituições incluindo a família. A bajulação é uma dessas patologias. É a patologia aparentemente menos evasiva, mas cujas consequências têm sido devastadoras para o país.

A bajulação, adulação, lambebotismo ou puxa-saquismo ganha campo e se afirma nos campos político, económico, social e cultural. O campo político é, sem dúvidas, aquele em que é mais facilmente observável o crescimento e afirmação deste fenómeno. Entendemos que a bajulação é como o acto de fazer excessivos e falsos elogios a outrem, normalmente alguém que dispõe de poder e/ou tem capacidade de redistribuir recursos, com o propósito de conquistar algo em troca e colocar-se em posição de vantagem para deles usufruir.

Em Moçambique a bajulação é uma patologia social que se incrustou nas instituições e que deve merecer a atenção dos decisores públicos. Este acto deve, ainda, merecer a atenção daqueles que determinam as políticas de educação e das instituições religiosas que são o pilar da moral, bons costumes e da ética nas sociedades. Só há bajulação onde há bajulados sedentos de ser adulados.

A consolidação da bajulação na esfera pública moçambicana é sintomática de que as lideranças das mais diversas esferas se confortam. Esta prática só se afirma onde as lideranças são narcisistas. Estas lideranças têm facilidade de se relacionar com esse perfil de profissionais, porque preferem o elogio à interpelação crítica, criando bolhas que as levam a viver longe da realidade.

A psicologia explica que a bajulação funciona devido a um fenómeno cerebral conhecido como “comportamento de atraso”. Sempre que um indivíduo recebe um elogio não sincero a primeira reação é de rejeição e desconsideração desse elogio.

Não obstante a rejeição, a bajulação fica registada, cria raízes e se estabelece no cérebro do indivíduo. A partir desse momento, passa a pesar subjectivamente no julgamento do elogiado que tende, com o tempo, a formar uma imagem mais positiva do bajulador. Ora, a suscetibilidade à bajulação nasce do profundo desejo do ser humano de se sentir bem consigo mesmo. Logo, a obviedade e o descaramento do elogio falso, paradoxalmente, conferem-lhe maior força. Esta explicação revela o quão dependentes da bajulação estão os líderes narcisistas. Eles não vivem e não se conseguem afirmar sem os bajuladores.

Argumentamos que os bajuladores são perniciosos para as instituições e organizações, por isso devem ser combatidos. Quaisquer que sejam as organizações, desde partidos políticos às empresas, organizações da sociedade civil, mídia e até as confissões religiosas enfrentam, na nossa sociedade actual, o perigo dos bajuladores. Estes são profissionais oportunistas que querem ganhar a simpatia de outras pessoas, normalmente detentoras de poder ou recursos, através de elogios exagerados e falsos.

Para alcançar o seu propósito, os bajuladores são capazes de distorcer a realidade, criando uma imagem falsa da realidade política, económica e social ou da pessoa. Em situações em que a sociedade não abona uma decisão surgem com narrativas desfasadas da realidade com o fito de agradar as lideranças. Os bajuladores têm falta de autenticidade e honestidade nas críticas, sendo desonestos e manipuladores.

Um bajulador não tem ética e não tem vergonha na cara. Não está preocupado com o sucesso da liderança muito menos com o da organização. Ao agradar a liderança o bajulador espera obter recompensa que pode ser em forma de promoção, ganhos financeiros ou confiança dos líderes podendo através dela manipulá-los para o alcance dos seus propósitos.

Por isso os bajuladores, normalmente, enredam as lideranças não as deixando ter contacto com narrativas diferentes da que eles apresentam. Nesse processo constroem uma tese de que todo o pensamento contrário ao seu visa fazer mal a liderança. São estes profissionais que fazem emergir e afirmar na esfera pública expressões totalitárias que fazem crer que só a uma verdade absoluta. A verdade do CHEFE. Trata-se de expressões como “antipatriotas, “vendidos ao ocidente”, “os críticos”, “doa a quem doer, “alinhamento”entre outras, todas tendentes a diabolizar quem pensa diferente.

Mais do que diabolizar, os bajuladores sedimentam uma cultura política onde sobrevive somente a visão da liderança conduzida pelas aduladores. Os bajuladores são hostis aodebate livre de ideias e fazem de tudo para criar um deserto social de ideias onde somente a narrativa do chefe é certa.

Toda a narrativa que tenta, com factos, mostrar que a visão do Chefe pode levar a organização para o caos é, imediatamente, silenciada. Há um trabalho de assassinato de carácter e de tentativa de desqualificação pública de quem ouse sair da caixa. Esse assassinato de carácter muitas vezes com recurso a devassa da vida privada. Este recurso a devassa da vida privada é porque os bajuladores são fracos no debate argumentativo.

Os bajuladores têm uma técnica e estratégia de comunicação que levam os adulados a acreditar e sentirem-se mais importantes do que realmente são, o que vezes sem conta conduz a comportamentos arrogantes e desrespeitosos.

Uma pessoa equilibrada, que tem amor-próprio, é realista sobre si mesma, aceita-se melhor e é imune à bajulação. As lideranças que se entregam ao oportunismo dos bajuladores não incentivam o trabalho em equipa, dado que procuram, a todo o custo, escamotear a sua insegurança ou incapacidade de liderar pessoas e as suas diferenças. Afirmam-se donos da verdade; fecham-se sobre si. A bajulação é a ruína da autoestima, o prejuízo da competência e a falência do profissionalismo.

Os bajuladores contribuem para o enfraquecimento da democracia. A sua actuação não permite a afirmação e consolidação de uma esfera pública onde é normal o contraditório assente no debate livre de ideias. Não permitem a afirmação da liderança democrática, pelo contrário, sedimentam uma cultura política tóxica. A proeminência dos bajuladores na esfera pública moçambicana, em particular nos partidos políticos, têm contribuído para a emergência da tirania e da intolerância política.

Na conjuntura actual, o debate livre de ideias esmoreceu nos partidos políticos. Os partidos fecharam-se sobre si, os seus debates não são expostos aqueles que no final do dia escrutinam os seus projectos de governação. A narrativa que os partidos apresentam para a sociedade é de um unanimismo Luiscatorziano. Esta forma de actuar contribuiu sobremaneira para que o modelo Luiscatorziano se consolide em todos os campos da sociedade moçambicana.

Os laivos de liderança narcisista apimentada pela bajulação são vividos desde a família, emprego e, de mansinho, se incrustam na esfera religiosa. A forma naive como os decisores políticos têm lidado com a bajulação e contribui para crise estrutural em que vive a sociedade moçambicana. As lideranças, de grosso modo, se recusam a buscar feedback honesto e construtivo para melhorar o trabalho.

Portanto, se a bajulação não contribui para o desenvolvimento de uma sociedade democrática nem para a afirmação de uma liderança democrática não faz sentido a sua promoção. Como referimos, a sua promoção é alimentada por lideranças narcisistas e hostis à crítica.

É fundamental que as lideranças políticas neste país, em particular os governantes e líderes de partidos políticos, estejam comprometidas com uma uma sociedade aberta onde se consolida o debate livre de ideias. Os partidos políticos não precisam de bajuladores.

O governo não precisa de bajuladores. Os partidos políticos e o Governo devem ser interpelados criticamente pela sociedade todos os dias para que consigam aprimorar a qualidade do seu trabalho. Mas, só faz sentido retirar o espaço proeminente aos bajuladores se as lideranças estiverem comprometidas em construir, em Moçambique, uma sociedade ética e meritocrática. Uma sociedade em que se valoriza a competência técnica, o saber local e a experiência profissional.

As sociedades onde há debate livre de ideias, promove-se o contraditório desde tenra idade há inovação, criatividade e instituições fortes. No próximo ciclo de governação as lideranças precisam ousar e criar as condições para afirmação de uma sociedade onde os seus concidadãos tenham debate livre de ideias, a ética, moral e a vergonha na cara sejam modelos a seguir a inovação e a criatividade se afirmem. Uma sociedade que não dependa de one man shows e da sua rede de bajuladores em qualquer que seja o campo.
Os Verdadeiros líderes sabem que deixar cercar-se de bajuladores é um grande risco para o desenvolvimento e fortalecimento das instituições.. Não existe conquista sem superar desafios, portanto pessoas prontas para enfrentá-los e não apenas subestimá-los vendendo imagem de um país ou pessoas ideais. Quem vende mundos ideais pode comprometer a evolução do país e das organizações bem como das suas lideranças.

O filósofo italiano Niccolò di Bernardo dei Machiavelli, na sua obra O príncipe propôs uma excelente solução ao príncipe (neste artigo entenda-se lideranças) para livrar-se dos bajuladores: “um príncipe prudente deve escolher homens sábios e somente a eles deve dar a liberdade de falar-lhe a verdade daquilo que ele pergunte e nada mais. Deve consultá-los sobre todos os assuntos e ouvir as suas opiniões; depois, deliberar por si, a seu modo, e, com estes conselhos e com cada um deles, portar-se de forma que todos compreendam que quanto mais livremente falarem, tanto mais facilmente serão aceitas suas opiniões (Maquiavel, 2008. 5.º Vol).

Para Maquiavel a única forma do príncipe, neste casos dos governantes, se protegerem da adulação é fazer com que os seus subordinados entendam que não ofendem dizendo a verdade. Mas devem dizer a verdade sem faltar a reverência.

Na mesma linha, Barack Obama defendeu que as lideranças devem livrar-se dos bajuladores e manter por perto pessoas que avisam quando erra. O desafio está colocado a todos. Moçambique precisa de líderes não narcisistas e as instituições públicas e privadas deste país precisam livrar-se dos bajuladores.

Eles, os bajuladores, são um perigo na longa marcha para a consolidação de uma sociedade democrática, ética, meritocrática e desenvolvida. Tal só será possível com lideranças comprometidas com resultados e lideranças que visem empreender mudanças na sociedade combatendo a mesmice.

Não é possível ousar gerar mudança na transformação da sociedade sem antes empreender mudanças a nível da esfera micro. Estarão os nossos governantes e lideranças dos partidos políticos preparados e dispostos viver sem os bajuladores? Estarão elas próprias para uma sociedade aberta em que há debate livre de ideias? A escolha que for feita no próximo ciclo de governação determinará o nosso futuro como Nação. Os bajuladores são seres sociais. Empreendida a mudança para uma sociedade de denate licre de ideias eles vão aprender a viver numa sociedade democrática normal.

PS; abraço amigo a todos os profissionais e quadros deste país que no espírito de bem servir a Nação foram vítimas dos bajuladores. Eduardo Chivambo Mondlane desafiou-nos a sempre, Lutar por Moçambique.

Nos últimos anos, a indústria de nova energia da China desenvolveu-se rapidamente. Os veículos elétricos, as baterias de lítio e os produtos fotovoltaicos tornaram-se os “três novos itens” para exportação da China. Além de enriquecer a oferta global e proporcionar aos consumidores opções de consumo diversificadas, deram contribuições importantes para a transformação global verde e de baixo teor de carbono, bem como o desenvolvimento sustentável.

No entanto, alguns políticos e meios de comunicação ocidentais apregoam o chamado dito de “sobrecapacidade da China choca o mercado mundial e ameaça o funcionamento normal da economia global”. Sem base e razão, esta falácia é contrária ao bom senso da economia e às verdades objetivas.

Do ponto de vista da vantagem comparativa, a grande escala das exportações de produtos de nova energia da China não pode ser tratado como o excesso de capacidade de produção. Com o aprofundamento da globalização, diferentes países têm as suas próprias vantagens comparativas na produção de diversos bens ou serviços. A divisão internacional do trabalho e a cooperação entre países com base nessas vantagens, em diferentes indústrias, é fundamental para o surgimento e desenvolvimento do comércio internacional.

Com o investimento incessante em inovação, cadeias de indústrias e de fornecimento completas e recursos humanos abundantes, a indústria da nova energia da China tem posição vantajosa na concorrência internacional, o que cumpre totalmente os princípios económicos e regras de mercado.

Do ponto de vista da procura do mercado global, o rápido crescimento da indústria de nova energia da China não é uma expansão cega, mas se baseia na necessidade urgente de redução das emissões de carbono em todo o mundo. Um relatório da Agência Internacional de Energia mostra que, a procura global de veículos de nova energia atingirá 45 milhões de unidades em 2030, mais de três vezes da cifra registrada em 2023.

De acordo com cálculos da Agência Internacional de Energia Renovável, para alcançar as metas do Acordo de Paris, a capacidade instalada cumulativa de geração de energia fotovoltaica global deve atingir pelo menos 5400 GW em 2030, o que é quase quatro vezes em relação à capacidade instalada total global em 2023. Obviamente, a capacidade de produção da indústria de nova energia da China é uma capacidade de produção avançada e, urgentemente, necessária para promover o desenvolvimento verde, em vez da chamada sobrecapacidade.

Alguns países ocidentais vão contra o bom senso da economia e as realidades dos desenvolvimentos industriais, colocando à China uma etiqueta de “sobrecapacidade”. Por um lado, pregoam a “teoria da sobrecapacidade da China” e manipulam a “teoria da ameaça da China”. Por outro lado, esforçam a proteção da indústria de nova energia dos seus países próprios e usam a sobrecapacidade como desculpa para adoptar medidas de proteção comercial. A essência disso é conter os avanços tecnológicos da China, detendo a tendência de desenvolvimento da economia chinesa.

Este tipo de comportamento não traz benefícios, e ainda prejudica a estabilidade e a fluência das cadeias de indústrias e de abastecimento globais, dificultando o crescimento económico e comercial mundial, e retardando o ritmo da transformação verde e de baixo teor de carbono da economia global. Hoje, à medida que os laços económicos entre países se tornam cada vez mais estreitos, só através do senso de abertura em termos do reforço da colaboração internacional e da promoção da construção de uma economia mundial aberta é que podemos realmente alcançar um desenvolvimento verde, de baixo teor de carbono e sustentável, melhorando o bem-estar comum dos seres humanos.

Moçambique tem uma localização geográfica vantajosa e recursos abundantes. A China e Moçambique honram a confiança política mútua de alto nível e uma grande complementaridade económica. Atualmente, em Moçambique, o desenvolvimento é forte nos domínios tais como modernização agrícola, industrialização e desenvolvimento verde. Isto proporciona novas oportunidades para a cooperação sino-moçambicana, na área de nova energia.

Olhando para o futuro, a China está disposta a seguir continuamente o conceito de verdade, efetividade, afinidade e sinceridade, bem como valores corretos de moralidade e benefício, fortalecer o alinhamento estratégico dos planos de desenvolvimento, impulsionando a cooperação pragmática China-Moçambique para o novo patamar.

Há 19 anos que expomos a nossa maior identidade: ser um jornal que se curva à verdade e faz dela o seu maior valor. Com mais de cinco mil publicações, a nossa história fez-se alicerçada neste compromisso. Mudamos de imagem, de periodicidade de publicação, mas nunca a nossa essência. A verdade está sempre em primeiro lugar.
E porquê? Num mundo inundado de conteúdos, onde navegar pela desinformação é uma possibilidade constante, actuar do lado da verdade é mais do que necessário. É um imperativo existencial para um órgão como O País. É ser uma boia de salvação da sociedade. E escolher o slogan, “a verdade como notícia” não foi estratégia de marketing, mas um compromisso com o profissionalismo. Em tempos de desinformação e fake news, é crucial que mantenhamos a integridade e a credibilidade que nos caracterizam. O nosso objectivo é continuar a ser uma referência no jornalismo moçambicano, contribuindo para uma sociedade mais informada e consciente.

Assinalamos este aniversário realçando este princípio da verdade, porque, nestas quase duas décadas de existência, muitos profissionais passaram pelo jornal e deram o seu contributo fiés a este valor. São eles uma inspiração constante para todos os que continuam a fazer a história do jornal acontecer. Por isso nos lembramos de todos com carinho e gratidão.

Agradecemos a todos os nossos parceiros, anunciantes e colaboradores que têm caminhado ao nosso lado nesta jornada, permitindo que este projecto editorial cresça. O vosso apoio é essencial para o nosso sucesso e para a concretização da nossa missão. Juntos, temos construído um jornalismo forte e independente, capaz de fazer a diferença na vida dos moçambicanos.

Aos nossos leitores, que diariamente escolhem O País como sua fonte de informação, deixamos um especial reconhecimento, pela fidelidade, que nos motiva a continuar a melhorar e inovar, garantindo que recebam sempre o melhor conteúdo jornalístico. As comemorações deste aniversário não ofuscam a nossa responsabilidade de continuar a trabalhar no aprimoramento do produto, para que a nossa oferta vá ao encontro da preferência dos leitores. A nossa razão de ser está intrinsecamente ligada à sua satisfação.

A nossa trajectória foi marcada por muitos desafios e conquistas que nos moldaram e nos fortaleceram. Por isso nos focamos em servir sem alimentar a dor das adversidades que nos procuravam afundar. Firmes, fomos sempre desempenhando um papel crucial na consolidação dos pilares democráticos em Moçambique. Através das nossas páginas, temos proporcionado uma plataforma para o debate público, a liberdade de expressão e a promoção da transparência. Acreditamos que uma imprensa livre e independente é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade democrática e justa. Neste sentido, temos trabalhado incansavelmente para que cada letra que escrevemos seja confiável e imparcial, comprometida com a verdade e a justiça.

Com o avanço da tecnologia, enfrentamos novos desafios e oportunidades. A revolução digital transformou a maneira como consumimos informação, e O País não ficou alheio a essas mudanças. Reconhecemos a importância de nos adaptarmos a esta nova realidade e, por isso, temos investido na transformação digital do nosso jornal. A transição da impressão tradicional para a publicação digital foi um passo crucial, permitindo-nos alcançar um público mais vasto e diversificado.

Estamos orgulhosos de ver o crescimento do consumo de notícias através de plataformas digitais em Moçambique. De acordo com estudos recentes, as plataformas digitais já se posicionaram como a segunda maior fonte de consumo de informação no país. Esta mudança reflecte não só a nossa capacidade de inovação, mas também a tendência global de digitalização da informação. Continuaremos a investir em tecnologia e inovação para garantir que o nosso conteúdo seja acessível, relevante e envolvente para todos os nossos leitores.

No contexto da evolução tecnológica, temos explorado novas formas de interagir com o nosso público. A presença nas redes sociais, o desenvolvimento de uma aplicação móvel e a constante actualização do nosso website são exemplos do nosso compromisso com a modernização. Queremos estar presentes onde quer que os nossos leitores estejam, oferecendo-lhes uma experiência de leitura enriquecedora e interactiva.

O futuro é promissor, e estamos preparados para continuar a inovar e a crescer, honrando a confiança que depositam em nós diariamente. Obrigado a todos por fazerem parte desta história. Juntos, continuaremos a construir um futuro brilhante para o jornal O País e para o jornalismo em Moçambique.

Um País tem heróis e heróis. Os primeiros são aqueles que merecem ruas, avenidas, praças, escolas e aeroportos em seu nome. Celebra-se a sua bravura. Os segundos são aqueles que passam despercebidos e, por isso, não são celebrados. Pertencem a esta segunda categoria todos aqueles que participam na construção do País pela crítica. Esta não se reduz ao simples acto de dizer o que está mal, embora isso seja importante. Tem a ver também com o simples acto de interpelar, isto é perguntar de novo se as coisas são realmente como se pensa que são.

O jornalismo faz isso muito bem. Não o faz sozinho. Fá-lo com todos aqueles que não são apenas moçambicanos, mas sentem que são também cidadãos. Um cidadão reconhece que leva consigo nos ombros o fardo de pensar o País e exigir contas a quem o governa. Esse cidadão tem no jornalismo a oportunidade de que precisa para viver a sua cidadania. É uma situação “Win-Win”. O jornalismo ganha interlocutores e o cidadão ganha um meio que permita ser ouvido. Tudo isto pressupõe, claro, a liberdade de imprensa, mas não só: também a coragem de a exigir!

Exercer a cidadania, contudo, não faz de ninguém melhor do que ninguém. Da mesma forma que não pode haver prémio para o simples facto de se ser pessoa, existindo, também não pode haver prémio para a cidadania. Cidadania é, acima de tudo, responsabilidade. O programa “Noite Informativa”, por exemplo, é um espaço de eleição para o cidadão responsável. Quando tudo está mais ou menos bem – que é quase nunca em Moçambique – o “Noite Informativa” é esse espaço de responsabilidade cívica. Quando as coisas estão mal – como agora é, infelizmente, nos últimos anos – esse espaço não é apenas de responsabilidade cívica. Torna-se um espaço de decência, uma virtude cuja falta faz muito mal ao País.

Uma violência contra o Estado, que começou pequena, ganhou proporções que a colocam acima de qualquer capacidade deste Estado de lidar com ela. E, pior, tudo o que o Estado até agora fez para abordar essa violência transformou-se em problema em si. Os mercenários contratados e que drenaram recursos públicos e as tropas estrangeiras chamadas sem consulta pública são uma faca de dois gumes. Quando têm sucesso, como foi o caso com as tropas ruandeses no início, eles mostram o desastre que nós próprios somos. Quando se vão embora, como as forças da região decidiram fazê-lo, dão-nos a forte impressão de que o problema é bem mais complicado do que temos a coragem de admitir.

Seja qual for a leitura que fizermos, o que se torna claro é que estamos entregues. Estamos entregues à prepotência dos nossos próprios governantes, diga-se. As revelações recentes sobre o envolvimento com criminosos internacionais que nos tempos livres ensaiam golpes de Estado tornam o cenário ainda mais sombrio. E quando queremos desenhar um quadro mais completo e, por isso, olhamos para os raptos, para a crise financeira do Estado aparentemente incapaz, não só de pagar aos seus funcionários, como também de honrar com compromissos financeiros com empresas do sector privado, as greves na educação e na saúde, bem como a ameaça de greve dos juízes, as três refeições por dia que continuam a manter o nosso País nos escalões internacionais mais baixos de nutrição, etc., ficamos tontos.

Mas o que estonteia mesmo até nem é a enormidade dos problemas. É a recusa dos decentes de exercerem a sua cidadania. Não é que oportunidades faltem. Quando jovens foram à rua para chorarem o desaparecimento físico do seu ídolo, o músico Azagaia, e tiveram de enfrentar gás lacrimogénio da polícia que devia proteger o seu direito de se manifestaram – e que estranhamente viu neles uma ameaça de golpe de Estado – os decentes ficaram calados. Não vieram ao socorro dos jovens para dizer que foi também pelo direito de manifestação que se lutou pela independência. Quando as eleições municipais foram marcadas por terríveis irregularidades, os decentes continuaram impávidos e serenos, alguns à espera de ganhar na lotaria da candidatura presidencial para depois se pronunciarem. E quando o maior partido do País, de forma atabalhoada, escolheu o seu candidato sem ouvir de nenhuma deles que ideias tinha para o País, essas mesmas pessoas decentes continuaram a cuidar do seu silêncio, porque, ao contrário de nós, que estamos longe do poder político, eles sabem que dez anos não são nada e, em devido tempo, isto é, em 2035, terão nova oportunidade de tentar mudar as coisas.

Os decentes encontram-se em todo o lado, não só em estruturas partidárias. Estão no aparelho do Estado, rangem os dentes como todos nós, encolhem os ombros, exasperam-se em silêncio, mas, de forma obediente, fingem que está tudo bem e que, se não estiver, vai ficar bem. Um dia. Decência é isso mesmo. Não comprometer o bom nome daquele que garante o pouco pão – que até é muito se comparado com o que o pacato cidadão consegue desenrascar – é uma virtude. Aceitar que outros sofram para não perder o que se tem é também uma virtude. A crise moral dum País revela-se nesta equação simples: quando o vício é virtude e virtude é vício.

Nestas circunstâncias, são heróis aqueles que criam oportunidades para que se discuta o País, mesmo se isso significa perturbar o sono dos decentes. O jornalismo faz isso muito bem, porque, no mundo de avesso que Moçambique se tornou, o vício da indecência pode ser uma virtude. O sono profundo em que os decentes parecem preferir estar impede-os de verem que o País está bem mal, aliás, muito mal.

Em Moçambique, é lugar comum ouvir que o país precisa de um novo rumo – ideia de que se precisa de empreender reformas políticas e económicas que conduzam ao desenvolvimento inclusivo e sustentável. Portanto, a temática em voga é a necessidade de reforma das instituições, mormente do Estado, pela sua incapacidade de interagir numa sociedade cada vez mais complexa.

O Estado moçambicano tem-se mostrado incapaz de responder às demandas cada vez maiores da sociedade. O Estado, em particular as instituições públicas, está totalmente incrustado pelas teias e tentáculos da corrupção. A corrupção põe em causa a boa governação em termos políticos e administrativos, uma vez que a consequência é que o Estado se mostra incapaz de atender aos anseios dos cidadãos. Hoje, em resultado do processo de democratização, temos uma sociedade civil forte, consolidada e organizada que luta incessantemente pelos seus direitos. Como referimos, há em toda a esfera política, económica, social e cultural na posição e na oposição uma tese de que é preciso refundar o Estado. Este clamor em alguns é manifesto e exteriorizado publicamente. Em outros é manifesto somente em grupos privados e restritos.

Um novo rumo não só é necessário como possível. O novo rumo depende da afirmação de uma liderança transformadora – entendendo liderança como habilidade de comandar pessoas e influenciá-las para trabalharem entusiasticamente visando atingir os objectivos identificados como sendo para o bem comum da organização e/ou da Nação. O nosso argumento é que o país precisa de uma liderança política transformadora, uma liderança que se concentre em criar um ambiente político, económico, social e cultural bom para a sua equipa de governação e, por via disso, para a Nação. Uma liderança que não se concentra em dar ordens e exigir que se cumpram as tarefas permanecendo no óbvio e na mesmice (sempre foi assim, por isso devemos continuar a fazer assim). Moçambique precisa de líderes, na posição e na oposição, que não se cinjam à disputa pelo poder. O poder deve ser, para esses líderes, a ferramenta necessária para empreender transformações na gestão da coisa pública. Uma liderança que se engaja, inspira e motiva os seus subordinados e concidadãos  a inovar e a contribuir para que a governação seja bem-sucedida diante dos objectivos que persegue – o desenvolvimento inclusivo e sustentável. O país precisa de uma liderança que entenda e materialize que o acto de liderar exige muito mais que ser bom gestor de pessoas e processos. É fundamental entender que há princípios de liderança que são fundamentais para empreender mudanças e mobilizar a Nação para esse desiderato, tais como propósito estabelecido, perseverança, parcerias estratégicas e inteligência emocional.

O vencedor das eleições de 9 de Outubro próximo deve definir com clareza o destino para onde pretende levar a Nação. Trata-se de apresentar com clareza onde pretende que esteja Moçambique em 2029 quando terminar o primeiro ciclo da sua governação. Quando o propósito está estabelecido com facilidade, engaja a sua equipa governamental e por via de uma liderança que inova mobiliza os moçambicanos. Os desafios estruturais e conjunturais que Moçambique vive exigem perseverança na liderança. Uma liderança que persiste diante das situações difíceis e que não se abale com as contrariedades internas e externas que o seu ciclo de governação vai enfrentar. As contrariedades e situações difíceis podem até ser internas, isto é, dentro dos partidos que se habituaram a práticas que se institucionalizaram. Toda a mudança e inovação vai ser combatida e contrariada a despeito de que sempre se fez de uma forma e essa forma foi sempre bem-sucedida, por isso não se deve alterar. Este discurso é, muitas vezes, alimentado pelas elites clientelistas que vivem das “tetas” do Estado. Essas elites vivem na base de relações sejam familiares, sejam étnicas sejam de amizades, em que a partir daí formam governos e/ou influenciam na constituição dos mesmos. Esta estratégia institucionalizou-se porque essas elites vêem na ocupação de cargos públicos uma fonte rápida para fazer negócios, alguns dos quais ilícitos. Enquanto essa situação continuar, não será possível eliminar a corrupção na gestão da coisa pública. Aquele que sair vencedor das eleições de 9 de Outubro próximo deve ter presente que necessita de competências na gestão da mudança, na resistência à pressão das expectativas e na capacidade de adaptação às novas condições que surgirem. Para isso, deve formar um Governo cuja liderança é transformática e ética. É fundamental recuperar e restaurar a esperança e  a ética na sociedade moçambicana. E não se alcança isso sem fazer parcerias estratégicas. O líder que vai gerar o Estado e a sociedade moçambicana no próximo quinquénio deve ter em si que juntos somos fortes. Trata-se de estabelecer parcerias estratégicas a todos os níveis.

A primeira parceria estratégica deve ser a nível interno do partido que o elegeu como candidato. Agregando junto do projecto de governação para Moçambique aqueles que o apoiaram e também os que estiveram em posição contrária. Trata-se de saber buscar os melhores quadros para materializar o projecto de governação que permita materializar uma independência económica de Moçambique fundamentada no uso das próprias forças e meios. A segunda é com a oposição. É fundamental estabelecer uma parceria estratégica com oposição para convergir nas questões centrais que devem mobilizar os moçambicanos para materializar a melhoria da sua condição de vida.

Este aspecto é fundamental e na sua equipa de governação deve ter experts que procurem estratégias para garantir canais que propiciem acordos com a oposição nas questões estratégicas. Ter presente que o compromisso com Moçambique e com os moçambicanos exige fazer cedências em temáticas que seja razoável fazê-las. O país clama por uma política económica de desenvolvimento séria, ética e boa governação e equidade e justiça social na redistribuição de riqueza.  Uma transformação estrutural e sistémica de Moçambique passa pela construção de uma sociedade mais aberta ao contraditório, mais democrática, mais transparente, mais participativa e mais justa.

Não tenhamos a ilusão de que basta que se afirme uma liderança transformadora na gestão do Estado para que os desafios que Moçambique enfrenta sejam resolvidos com sucesso. É fundamental que as lideranças médias e intermédias tenham o mesmo perfil e a nova cultura política se incruste na gestão da coisa política. Os meios de comunicação social são actores determinantes para a instalação de uma liderança transformadora. No dia em que este jornal celebra os seus 19 anos, auguramos que o compromisso editorial seja com um engajamento para contribuir para a mudança pela qual os moçambicanos anseiam.

Quase 50 anos de independência de Moçambique, a leitura que se pode fazer é de que falhámos a construção de um Estado capaz de perseguir o interesse da maioria. As utopias dos nossos ancestrais, daqueles que deram as suas vidas pela libertação do país ruíram, antes mesmo da sua concretização. As lutas contra os tribalismos, os regionalismos e os racismos, inimigos da unidade e do povo de Samora Machel viraram cacotopias. A maioria dos moçambicanos tornou-se retrotópica. As esperanças pelo futuro melhor goraram-se. As utopias são a nostalgia. Restaram os “se Samora Machel fosse vivo, isto não iria acontecer”, “este não é o país que Mondlane e companhia sonharam”. Um futuro sombrio carcome as mentes de quem um dia sonhou num país diferente de Moçambique de hoje. O futuro é um vudu. Ninguém quer ousar fazer prognósticos, por isso a zona de conforto é a nostalgia. Qual país de “xiconhocas” o país não se tornou!

Como se não bastassem os traumas da guerra dos 16 anos e das “tréguas tensas Governo–Renamo” que caracterizaram os momentos que se seguiram ao Acordo Geral de Paz de 1992, Cabo Delgado “partejou” o terrorismo que dilacera o Norte do país, mas já com sinais inequívocos de que, agora, não se trata apenas de um problema do Norte, mas de um problema com contornos nacionais, como os últimos eventos da República Democrática do Congo parecem querer revelar.

A Administração Pública moçambicana, em greve silenciosa, muitas vezes expressa nas cascas de amendoim fresco ou torrado nas mesas das instituições públicas e na demora no atendimento dos utentes ou ainda na indignação explícita dos professores, médicos, magistrados, profissionais de saúde, nada mais é do que a expressão da frustração de sonhos embebidos na famosa Tabela Salarial Única (TSU). Enquanto não há solução, o sonho nostálgico com a TSA (tabela salarial antiga) é imanente.

Nestes quase 50 anos de Independência Nacional, o país não conseguiu forjar um projecto de Estado sólido, embora o Governo seja do mesmo partido desde lá. Projectos estruturantes como PROAGRI I e II; Tchuma Tchato; GPZ; revolução verde; distrito como pólo de desenvolvimento; 7 milhões; computadores Dzôvo; as montadoras Matchedje; se não foram nados mortos, foram assassinados por projectos sucessores como SUSTENTA, EMPREGA, PROMEZA. Institucionalizaram-se as “boladas” no Estado circunscritas em trocas pecuniárias dúbias. Esta situação não só enferma a Administração Pública, mas também é uma prática reiterada com uma certa convicção de obrigatoriedade na administração privada. Isto tornou o espaço político não como um espaço de debate de ideias sobre que Moçambique a médio e longo prazo se quer, mas espaço de discussão de interesses egoístas (é nisto que os partidos políticos também se transformaram – compra de votos para ser deputado ou cabeça-de-lista).

A sociedade civil que se caracterizou ao longo do tempo, sobretudo com o advento da Constituição de 1990, por agendas claras de desenvolvimento e de pressão sobre os detentores do poder político parece ter-se transformado numa sociedade civil de espectáculo (de busca de likes nas redes sociais), defendendo agendas que se distanciam daquilo que a sociedade espera dela. As Universidades e alguns centros de pesquisa do Estado não têm recebido o apoio necessário para produzirem pesquisas e estudos que possam servir de alicerce para que governantes tomem decisões adequadas. Como corolário, jovens académicos (alguns talentosos), tais como os jovens de Cabo Delgado que se entregam ao grupo que aterroriza aquele ponto do país ou os jovens assassinados nos Parques do Limpopo (Moçambique) e Kurger (África do Sul) caçando furtivamente elefantes e rinocerontes, por causa da precariedade da vida e falta de condições de trabalho adequadas, facilmente são atraídos por grandes corporações ou organizações que oferecem boas condições de trabalhos e salários aliciantes ou se deixam instrumentalizar por quem detém o poder político.

O Sistema Nacional de Educação foi mutilado. Altos dirigentes deste Estado não colocam os seus filhos no ensino público. A dita classe média baixa também recorre ao sistema de educação privado. Porque será? Por sua vez, as instituições religiosas (islâmica ou cristã, etc.), as diferentes ordens, CTA e o próprio judiciário que deveriam ser últimas instituições guardiãs da moral brindam a sociedade, ano após ano, com processos inquinados, muitos deles que acabam por ser judicializados.

Não restam dúvidas: falhámos a construção do Estado moçambicano. Entretanto, existe uma solução: um Great Reset; uma grande reinicialização do país como se reinicia um computador corrompido/vírus. A questão fundamental é: de onde se partir? Há que se questionar o que se fez ou deixou de fazer para que os moçambicanos se alimentem de nostalgia. É necessário pensar-se num projecto nacional no qual todas as políticas se guiam, mesmo que, para tal, seja necessário buscar exemplos de países como Ruanda depois do genocídio ou Etiópia, que hoje são referência em termos de desenvolvimento económico e social.

E, para que se chegue a esse ponto de inflexão, é necessário convocar-se todos os segmentos da sociedade, desde académicos, intelectuais, organizações da sociedade civil, classes profissionais, etc, para que se (re)pense o país que queremos a médio e longo prazos. Um país não se constrói com planos quinquenais. Um país precisa de um projecto social que materializa as utopias de um povo. Um povo sem utopia equipara-se a um cego a andar vagamente no escuro, sem qualquer guia. O guia que se sugere é um projecto político chancelado pela Assembleia da República, que seja de difícil manipulação pelos sucessivos governos que vierem (em caso de necessidade de alteração, que seja através de um referendo com larga participação popular).

O próximo inquilino da Ponta Vermelha tem uma grande missão neste país, que é liderar o Great Reset de Moçambique.

De todos os candidatos até aqui conhecidos, Daniel Chapo tem muitas vantagens para o Great Reset que se convoca. A começar pela idade (47 anos), porque a história mostra que a revolução é feita por jovens. Aliás, “cavalo velho” não vence grandes corridas. A corrida para o Great Reset até encontra algum sentido no seu apelido, que, quando dito duas vezes, (chapo-chapo), no Sul, significa rápido.
O tempo é este, Daniel Chapo!

Em cada esquina dos bairros do meu belo Moçambique, vemos inúmeras igrejas erguendo-se. Além disso, nos últimos tempos, observamos que a predominância dessas igrejas, que atraem multidões e capturam a atenção de seus fieis, se torna cada vez mais evidente. Em alguns casos, chega a ser comum encontrar mais de duas igrejas em uma única rua, todas com seus lugares ocupados por fieis.

Para mim, o que verdadeiramente me intriga não é apenas a quantidade de igrejas, mas sim a percepção de que, à medida que novas igrejas surgem, parece aumentar a presença de maldade, egoísmo, desrespeito e falsidade, entre outros aspectos, em nosso belo Moçambique. Essa situação se apresenta como uma contradição, visto que, de acordo com o que aprendi durante minha infância, o papel das igrejas na sociedade é o de educar tanto os fieis como os cidadãos a viverem em amor e harmonia com os concidadãos, contribuindo para uma sociedade fundamentada em moral e bons costumes.

Essa contradição suscita questões fundamentais: Terá a igreja perdido sua função educativa, transformando-se em um agente distinto na sociedade? Ou será que os fieis frequentam a igreja com objetivos diferentes, alheios à busca por educação e transformação interna? Poderíamos esperar que, com o aumento de igrejas e fieis, também florescesse a bondade e o amor, resultando em uma sociedade permeada por empatia e harmonia. No entanto, o que estaria por trás dessa desconexão? Seria a liderança religiosa, os ensinamentos específicos ou a pressão social responsáveis por influenciar esse afastamento do propósito original das igrejas? 

Minha apreensão se intensifica ao observar jovens que, em vez de buscar não só o crescimento espiritual, mas também o crescimento e conhecimento educacional, decidem abrir mão desses benefícios para se dedicarem exclusivamente à igreja, em detrimento da educação que também poderia contribuir para seu futuro. Isso suscita uma questão crucial: será este o caminho correcto, desistir da educação e focar apenas no desenvolvimento espiritual?

Fico entristecida com a tendência dos jovens de se preocuparem mais em tornar-se pastores e profetas do que em buscar educação formal. A questão que surge é: poderia essa escolha ser considerada acertada, uma vez que parece um caminho mais fácil, que não demanda sacrifícios, como o estudo? Minha consternação ultrapassa o âmbito pessoal e se estende à sociedade como um todo. Surgem preocupações sobre o futuro: daqui a 20 anos, teremos uma sociedade com mais pastores do que doutores? E, nesse cenário, qual seria o benefício real para a sociedade em geral? Além disso, é importante refletir sobre como o equilíbrio entre a busca espiritual e a educação formal pode ser determinante no crescimento e desenvolvimento não apenas dos indivíduos, mas também da coletividade. Portanto, é essencial considerar as consequências a longo prazo desse direcionamento na escolha de carreiras e investimento de tempo dos jovens.

A questão essencial permanece: as igrejas ainda cumprem efetivamente seu papel na promoção de valores fundamentais e na educação moral? Uma reflexão coletiva e um diálogo aberto poderiam ser passos cruciais na busca por respostas e na construção de uma sociedade mais equilibrada e compassiva em Moçambique.

Refletir sobre a presença de milhares de igrejas em nossa sociedade, apesar da ausência de valores morais ou, pior, da propagação de ódio e ressentimento em algumas delas, levanta questões cruciais. O enfoque de abordagens que culpam diretamente indivíduos pelo insucesso de um crente, em vez de abordar o mal de forma espiritual, é altamente questionável e pode incentivar o ódio em detrimento do amor. Se essas igrejas não estão a promover o amor ao próximo, a paz e a caridade, é imperativo repensar o papel delas na sociedade. A finalidade das igrejas deveria ser nutrir valores positivos e fortalecer as relações harmoniosas entre as pessoas, contribuindo para uma sociedade mais empática e compassiva.

É essencial questionar o papel das igrejas que falham em promover esses princípios fundamentais, incentivando a reflexão sobre a necessidade de mudanças positivas em sua abordagem e ensinamentos para que possam verdadeiramente contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e amorosa.

Começo este pequeno rabisco com um trecho da música do renomado grupo moçambicano de HIPHOP – Gpro-Fam. Um clássico com mais de 20 anos, e que permanece actual pela sua forte mensagem de caris socio-político e pela futurologia que estes rapazes emprestaram ao momento.

Com o título (País da Marrabenta), a música diz logo no início: “Passe o tempo que passar, um nome ficará eternamente gravado na história de Moçambique – O Nome de Samora Moisés Machel (…)

O País da Marrabenta vai de mal a pior, mas paciência Moçambicanos tem de melhor”.

A música é uma clara alusão ao Patriotismo de Samora Machel, figura incontornável do nosso Moçambique; e também ao espírito de paciência e optimismo do povo Moçambicano.

Terminado o ciclo governativo liderado pelo Presidente Armando Guebuza, inaugurou-se um novo ciclo; ciclo este sob liderança de Filipe Jacinto Nyusi. Diga-se, um ciclo inaugurado com um tema antigo e candente, que ocupa lugar de destaque dentro e fora do país, e domina a agenda do dia – as dívidas ocultas. Dívidas estas que colocaram o país numa situação degradante e com um descrédito internacional nunca antes visto.

A já difícil vida da população da Pérola do Índico piorou exponencialmente; a retirada do apoio dos principais financiadores do Orçamento Geral do Estado colocou o país numa situação bem mais difícil, com contas por pagar e processos internacionais por gerir; a nova carga fiscal, o agravamento dos preços de produtos básicos começaram a asfixiar o bolso do cidadão ordinário que já vivia em situação contingencial.

A escolha de Filipe Jacinto Nyusi para candidato pelo partido do batuque e da maçaroca, colocou imediatamente a máquina de propaganda a trabalhar dia e noite – era importante garantir que a socialização acontecesse dentro do tempo e que a aceitação popular fosse uma certeza inequívoca.

Gerou-se uma grande expectativa em torno destes dois mandatos. Dez anos em que a popularidade chegou a ser das mais altas no início, muito por conta do seu discurso incisivo e arrebatador da tomada de posse e, pragmatismo promissor na formação do seu primeiro governo. Mas a popularidade foi se enfraquecendo a medida em que sua governação dava marcas de pouca assertividade.

A forte, audaz e inteligente a máquina de campanha do seu partido fez milhões de moçambicanos, do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico cantarem, dançarem e acreditarem que a confiança depositada brotaria em mudanças práticas e visíveis para o país, e que de facto o país tinha tudo para dar certo.

Confesso que para mim, particularmente as duas campanhas destes dois mandatos foram das mais bem conseguidas em termos de envolvimento e cadência – parecia haver uma sintonia inegável entre as músicas e as mensagens de prosperidade e de confiança. Por isso escutamos, cantamos e dançamos todos o “Eu confio em ti Nyusi”.

Nyusi chega ao poder com muita responsabilidade enquanto estadista; carrega um fardo que ele mesmo ajudou a encher enquanto Ministro da Defesa Nacional. Apresenta-se como um Presidente de ruptura com o guebuzismo, e auto proclama-se empregado do povo – para o delírio de milhões de moçambicanos que se sentiram patrões do Presidente.

Vivemos, nos últimos dez anos, dois mandatos de muita sagacidade governativa com muitas experiências para mais tarde lembrar e tirar as devidas ilações.

A meias com um fardo pesadíssimo e super delicado – das ocultas, sua governação foi também marcada pelo recrudescimento da insurgência que grassa Cabo Delgado desde 2017, pela passagem de ciclones altamente destrutivos e mortais, sofisticação do crime organizado, aprimoramento das redes de raptos e pela carestia do nível de vida no seu todo. Estes são apenas alguns dos aspectos que me ressaltam trazer em revista.

Cinco anos mais tarde, a máquina brindou o eleitorado com mais um hit forte e envolvente – “É contigo que dá certo”. É o último mandato e, era preciso corrigir e melhorar o que não correu bem no primeiro mandato. Mas entre a teoria e prática há uma distância considerável.

No ano em que mais um reinado chega ao fim, penso que como sociedade devemos lançar um debate público, sincero e honesto sobre o actual estágio do nosso país; sobre o país que queremos deixar para os nossos filhos e netos. Precisamos de um manifesto social que deve guiar todo e qualquer governante que pretenda governar e promover o desenvolvimento, a justiça social, os direitos humanos e o respeito pela dignidade da pessoa. Este manifesto deve necessariamente conter as demandas, os anseios e sonhos deste povo amordaçado, sofrido, porém resiliente.

Na hora do adeus, podemos dizer que foram dez anos em que aprendemos a adjectivar e a positivar o Estado Geral da Nação; tivemos muita melodia, muita dança e poucos resultados governativos.

No “Eu confio em ti”, o povo até chegou a confiar em ti e no seu governo Senhor Presidente. Mas no “É contigo que dá certo”, parece que deu tudo, menos certo.

A esfera pública em Moçambique viveu momentos de especulação e muita tensão à volta do processo de sucessão na FRELIMO. A história encarregar-se-à de apresentar-nos dados sobre a veracidade ou não da propalada hipótese do terceiro mandato. O tempo passava e a medida que nos aproximavamos do periodo de apresentação de candidaturas a presidente da República na Comissão Nacional de Eleições fortalecia-se a hipótese de que o actual incumbente da ponta vermelha pretendia dirigir o processo de sucessão. Em 2013 o processo também fora dirigido pelo então incumbente da ponta vermelha, mas com contornos diferentes, uma vez que o Comité Central impôs a abertura de mais candidaturas. Foi assim que Aires Ali, Luísa Diogo e Eduardo Mulembwé apresentaram as pré-candidaturas sendo que o último retirou a sua candidatura.

Ora, o processo de transição que culminou com a eleição do Daniel Francisco Chapo como candidato da FRELIMO às eleições presidenciais de 9 de Outubro próximo foi conduzido sob o príncípio “você não tem que se querer. Nós é que temos que querer que você queira”. Há nesta acepção uma idéia muito bem estruturada politicamente de que os processos de eleição interna devem ser conduzidos sob a direcção e vontade de um grupo – a Comissão Política. É este grupo que determina a vontade do membro que é apresentado como candidato e que, paralelamente, a inculca na mente dos mais de 4 milhões de membros. Os membros do partido aparecem somente como simples legitimadores da vontade do grupo. Pode-se concluir que a Comissão Política chamou a si e somente a sí a autoridade para escolher os pré-candidatos.

A alteração feita ao número 2, alínea e) do artigo 72 dos Estatutos da FRELIMO no 12º Congresso é o pilar forte do princípio “você não tem que se querer. Nós é que temos que querer que você queira”. Levanto até a hipótese de ter sido o fio condutor para a alteração feita ao princípio de eleição dos Presidentes dos Conselhos Municipais e Governadores Provinciais.

O processo de apresentação da lista de pré-candidatos foi inteligentemente dirigida pelo Presidente do Partido. Não se lhe pode nem deve retirar o mérito. De forma hábilidosa dirigiu o processo por exclusão daqueles que nunca foram sua opção para (pré) candidato(s). A sua estratégia consistiu na apresentação à Comissão Política dos nomes que nunca foram sua opção qpara que fossem liminarmente recusados por esta.

A opção do Presidente do Partido e consequentemente do Comissão Política foi a Lista apresentada na sexta-feira com três nomes, nomeadamente do Secretário – Geral, Roque Silva Samuel, Damião José e Daniel Fracisco Chapo. Apreciada a lista e todos os actos subsequentes ficou evidente até para o mais incauto cidadão quem era o candidato. E, isso o tempo comprovou quando o Damião José retitou a candidatura para não se confrontar com o seu superior hierárquico.

Durante o processo o Comité Central entendia que havia espaço para a submissão de mais candidaturas. Como referimos, de forma muito hábil e metódica o Presidente não permitiu que “os nomes dos que se queriam” fossem adicionados a lista uma vez que “eles não deviam se querer”. A lista foram adicionados dois Membros da Comissão Política, nomedamente a Presidente da Assembleia da República Esperança Bias e o Conselheiro do Presidente da República, Francisco Mucanheia.

Foi a lista de 4 que foi escrutinada e os membros do Comité Central de forma inteligente e astuta elegeram Daniel Francisco Chapo como candidato da FRELIMO as eleições presidenciais de 9 de Outubro. Fora eleito um candidato oriundo da geração que a FRELIMO revolucionária no encerramento do 3º Congresso, em 1977 cunhou “Continuadores”. Oito anos depois, precisamente a 25 de Outubro de 1985 o Presidente Samora Machel criou a “Continuadores da Revolução” da qual faz parte a geração do Daniel Chapo.

No processo de construção do Estado moçambicano tinha sido definido como determinante para o seu sucesso a criação do Homem Novo. Esta preocupação da FRELIMO foi muito bem colocada no sistema nacional de educação tendo permitido que as crianças e adolescentes da época fossem sujeitos a um processo de educação política, cívica e pátriotica feita na escola primária.

As circuntâncias politicas fizeram com que o Comité Central elege-se um “Continuador da Revulação”. A Eleição de Daniel Chapo ocorre num contexto que o país vive inúmeros desafios e onde a liderança é chamada a restaurar a esperança dos jovens, fortalecer e devolver credibilidade as instituições, consolidar a transparência na gestão da coisa pública e com responsanbilidade ousar na apresentação de políticas e medidas económicas e fiscais que atraiam investimento e investidores para Moçambique. É preciso colocar Moçambique a várias velocidades com zonas francas e/ou económicas especiais integradas que propiciem desenvolvimento endogéno e sustentável.

Um líder tem a capacidade de mobilizar uma nação, mesmo na sua diversidade ideológica, a engajar-se no projecto de restauração da esperança. Esse é sem dúvidas um dos grandes desafios que se colocam ao Daniel Chapo. A ele também se colocam duas escolhas, nomeadamente liderar ou chefiar esta nação. A escolha que tomar determinará o nosso futuro.

Tenho argumentado que nenhum líder ousará gerar transformação numa Nação sem empreender mudanças radicais na sua organização. Tal significa que colocam-se também desafios de transformação na FRELIMO. A conjuntura e a história de processos recentes demonstram que há necessidade de empreender reformas que terão implicações também na forma de gerir o Estado. Há questões sobre as quais se deve reflectir profundamente. Não disssertarei sobre elas neste artigo. Os tempos mudaram! A sociedade mudou imenso! Há um risco enorme de ser forçado a mudar com todas as consequências nefastas para a organização, desse cenário. A FRELIMO deve jazer jus ao seu slogan de Força da Mudança, engendrando mudanças profundas na sua organização e consequentemente na gestão do Estado.

Telvez seja altura de dar a César o que é de César reconhecendo que o Coronel Sérgio Vieira foi sempre razoável propondo um clube dos fundadores da FRELIMO com um estatuto especial no qual as novas lideranças se aconselhariam. Não é altura da tão propalada mas não materializada transição geracional ocorrer? Há gente que acumulou tanta experiência na gestão do Partido e do Estado que devia emprestar essa experiência como conselheiros. A opoprtunidade de reforma esta aí.

No fecho do Comité Central o Presidente Filipe Nyusi afirmou que se encerrava o longo capítulo da especulação sobre o terceiro mandato. Esperamos que se tenha aberto um novo ciclo acompanhado de profundas reformas que mobilize a esperança dos moçambicanos. O filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico de origem florentina do Renascimento Niccolò di Bernardo dei Machiavelli afirmou que o primeiro método para avaliar a inteligência de um governante é observar a qualidade dos homens que ele tem ao seu redor. A conclusão de Machiavelli é forte. No entanto, este não observou que ter homens de qualidade ao redor de um governante não era condição de uma boa governação. A boa governanção e o sucesso da liderança dependem da predisposição do governante e do líder a ouvir e ponderar sobre os conselhos e pareceres que a sua equipa de suporte apresentam bem como outros actores sociais.

Hoje, marcou-se o epílogo da jornada terrena do Mestre Moisés Manjate. Desejamos resgatar as palavras proferidas em seu centenário, como um tributo reverente à sua memória e legado.

O mês da folia, coincidência, chegou e, por arrasto, transportou consigo a celebração de uma das mais preciosas pétalas de Moisés Manjate. As risonhas 100 primaveras e o centenário de uma vida e, de outras dezenas de canções e milhares de emoções. Moisés, esse lendário e originário da família Manjate, com o vigor da sua musicalidade e a graciosidade do seu talento, recriou as geometrias da dança e dos compassos da Marrabenta, esse som urbano-rural que incorporou, sem reticências, as magias e os acordes do Xingombela, Zukuta e da Magica.

Velho Moisés, bem no estilo e no ritmo de quem procura a terra prometida, beijou o sol e o mundo, pela primeira vez, no longínquo ano de 1920. Sua terra natal, Mafalala-xilunguine, cidade que tem alterado de nomenclatura, ao longo das décadas, porém, não deixa de ser o viveiro privilegiado de músicos, artistas e escritores.

Desde cedo, como a grande parte dos músicos moçambicanos, não passou por nenhuma escola de música e, jamais, teve contacto com a partitura. A música nasce, naturalmente, nas veias e nos ouvidos dos executores. Talento puro. Bênção divina.

Decorriam os anos 50/53 e Moisés, nome bíblico, se agigantava no mundo musical. Conjunto Djambu se afirmava e criava seu espaço e pedaço. Tal como o mundo que se refazia dos efeitos da Grande Guerra, os artistas rebuscavam, na música e nas artes, o conforto para os espíritos e a paz para as suas almas. Foi momento cultural sublime e o esplendor de uma epopeia inquestionável.

Moisés Manjate cresceu e bebeu as vivências e vicissitudes de um tempo que, não sendo seu, foi de um passado que só ele sabe descrever. Um passado de pura exaltação e afirmação, um tempo de florescimento da consciência negra, da negação do que não era local e, sobretudo, de rebuscar a liberdade. Manjate não fugiu das sombras e sonhos do Craveirinha, do Samuel Dabula e da firmeza do centro associativo dos negros.

A Marrabenta estourava nos subúrbios da Mafalala, na então, Associação Beneficente Comoriana e no cabaré local, que corporizou o novo género musical e, fez dele um ritmo quente, miscigenado e arrombador. Os dançarinos e frequentadores do cabaré eram, regra geral, tidos como oriundos das Ilhas Comores. Os sons, igualmente, se recriaram na génese e na combinação do movimento migratório de Moçambique para África do Sul e vice-versa. Este foi um dos berços de ouro da nossa e nova musicalidade que, ao longo de décadas, nos orgulha e nos faz moçambicanos.

Moisés Manjate, conhecido por muitos, porém, já desconhecido por milhares, contribuiu, a seu tempo e espaço, para estilizar os ritmos e familiarizar uma nova proposta musical que navegava entre os submundos de tantos ritmos e sons. O grupo Djambu, e tantos outros, foi pilar desta corrente.

Velho Moisés Manjate, faz tempo, não frequenta palcos e nem se multiplica em entrevistas e aparições públicas. Não o faz fisicamente, porém, as letras e os hinos que ajudou a recriar continuam tão presentes e inconfundíveis nos nossos repertórios e imaginários musicais. Tão vivos e presentes, como a natureza e o tempo intermitente e irredutível. Marrabenta é essa obra tão identitária como libertadora, tão suave como fulminante, e a canção “Elisa wê gomara saia”, para citar apenas a mais cantada e recriada, do nosso património musical, elucida essa glória do tempo que insiste não passar.

Na celebração do seu centenário, parece proibido não resgatar o historial da marrabenta e fazer jus ao Mestre que, de forma exímia e majestosa, executou, com perfeição, os ritmos folclóricos que alegraram milhões de moçambicanos de diferentes gerações e raças.

A Marrabenta, mais que um ritmo, significou um movimento libertador e, um símbolo de afirmação e ideniedade. A Marrabenta perpassou a censura e à opressão, a tenacidade do colonial-fascismo e a tenebrosidade da polícia política, para se cristalizar e ganhar seu espaço e dimensão nacional e internacional. Marrabenta e Moisés Manjate, e todos que souberam defender esta proposta musical, possuem, a rigor, a mesma dimensão e estatura.

Moisés Manjate, como água de um rio, flui e move-se por vontade própria; ou será que é movido pelos instintos musicais que sempre o acompanharam. Pelos seus dedos passa a evidência de quem fez da música uma forma de permanecer imortal. Marrabenta e os seus intérpretes ancestrais são, pois, os intérpretes da natureza, aqueles que com a graciosidade de sua alma, remexeram nossos ouvidos e reconfiguraram o sentido de nossas pernas, músculos e do nosso ser.

Olhando para Moisés Manjate, hoje cadeirante e sentindo já os efeitos dessa longevidade, redescobrimos as mãos que criaram a mecânica do sonho e corporizaram esse beleza e harmonia musical. Entendemos o quanto a música preserva a beleza e elegância de quem a criou e essa obra se torna mais honrada e venerada.
Neste aniversário, que por si só merece todas as honras e glórias, não celebraremos apenas o homem e a sua música, mas a longevidade de quem apenas soube fazer bem a este país. Bem-haja Moisés Manjate, imortal e verdadeiro símbolo musical.

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