Começar por saudar o inconformismo e perseverança dos dois autores que, mesmo que colocados na periferia de quase tudo – talvez, muitos não tenham a devida dimensão do que significa existir e procurar afirmar-se fora de Maputo – muito têm feito, não só enquanto poetas e ficcionistas, mas muito particularmente através do seu activismo cultural e intelectual, na Associação Xitende.
“Ars Poetica” é um dos poemas mais conhecidos do poeta norte-americano, Archibald MaCleish que termina com dois dos versos mais invocados na literatura moderna:
A poem should not mean
But be
À medida que lia a obra Metamiserismo, Uma nova escola literária foram os versos acima que me vieram à mente, e curiosamente, por uma parte significativa dos arremedos poéticos de Deusa d’África e D. Midó das Dores caminhar no sentido contrário do que nos é proposto no poema de MacLeish. Isto é, o que o exercício de escrita da obra que temos agora nas mãos mais faz é procurar mostrar, significar, interpelar como se de um texto-manifesto se tratasse, à imagem dos manifestos futuristas das primeiras décadas do século XX.
A ideia de manifesto é, aliás, reforçada com a afirmação categórica, talvez provocadora, de que estamos, com esta obra, a inaugurar uma nova escola literária que significa, na óptica dos autores, que a “arte metamiserista se constitui como algo que deve ir para além da diversão e da informação, devendo ser um acto de atormentamento das verdades falsas que a sociedade foi criando ou aceitando” (Prólogo, p. 12).
Só a leitura da obra e das que, eventualmente, lhe seguirão nos permitirá aferir até ponto esta pretensão é válida e efectiva. O que realmente a obra propõe, em termos estéticos, estruturais e semióticos, para se considerar o que o subtítulo, por exemplo, reivindica: uma nova escola literária? E a questão que fica subentendida é que existe uma velha escola. O que não se consegue discernir é: o que a caracteriza?
Metamiserismo, uma nova escola literária é uma obra de dupla autoria, porém traduzindo duas sensibilidades e duas formulações estéticas distintas, mas que convergem na intencionalidade de mostrar, dizer e significar. Ou não será, ressignificar? Se o primeiro, Dom Midó se atém a uma escrita dominantemente provocativa, a segunda, Deusa de África, sem deixar de ser interpelativa e aguerrida, esteia o seu verbo num assumido investimento formal e estético, como podemos observar num poema como, por exemplo, “Poesia é fechadura”:
Poesia é fechadura
com a autenticidade da chave
de dentro para fora (p. 58),
Ou, em “Texto”
À mesa serve-se em bandejas o quente e
olente texto
delicioso manjar com diversidade de iguarias
verbais (p. 62).
Sintomaticamente, percebemos que existe, aqui, uma indisfarçável consciência do labor da escrita enquanto compromisso essencial com a linguagem que se faz poesia. Mas é no compromisso com a vida vivida todos os dias que a poesia dos dois não só converge como se reveste de uma espécie de missão, como nos revela Dom Midó das Dores, em “A propósito do meu aniversário”:
mas eu já disse, não quero morrer
não quero ser o vento que passa como se
não passasse
gostava de ser o dinossauro deste e doutro
milénio
e a minha pegada continuasse firme e forte
na luta contra os tempos (p. 26)
Aliás, à partida, temos esse indicador antecipatório que a leitura de qualquer obra nos reserva: o título. Como podemos verificar, o título desta obra resulta da união programática, por um lado, do prefixo de origem grega, meta, que significa mudança, algo posterior ou transcendente, e uma palavra emprestada do espanhol, miserismo, que significa miséria. Criativamente, do antigo se formou um neologismo.
Podemos perceber aqui a centelha vanguardista desta poesia, portadora de um estandarte identificado com uma ou várias causas, entre outras, combater a miséria, a inércia, a insensibilidade, o conformismo, a degradação moral, social e política. Causas que, como sabemos, não são novidade na nossa literatura, e que desfilam aos olhos do leitor, em que assumidamente o sentido de missão se conecta com um intenso apelo da realidade envolvente. Isto é, nesse pendor, ela não faz mais do que vincar aquela que é uma das maiores vocações da arte africana: o seu profundo e estruturante diálogo com o meio de onde ela emerge. Exemplos:
é a rua parada na vida
é a estátua ferida
no poema de gás de Pande
movendo a miséria que se expande. (p. 36) (D. Midó, “A vida”)
… para que se reconheça a sua tenacidade
não se luta pelo trono como se de lixo se tra-
tasse na lixeira de Hulene vitimando um povo
que mata a sede a lágrimas de sangue. (Deusa d’África, “Fechadura”)
E naquilo que aos dois os irmana poeticamente, não se trata de deformar artisticamente a realidade, mas sim de procurar, nessa mesma realidade o que ela tem de perverso e inaceitável e, sem filtros, deixá-lo a mercê do universo de recepção dos leitores, como reiteradamente encontramos nas referências às prostitutas. Estamos, pois, diante de uma percepção utilitária e instrumental da arte, da poesia, neste caso.
Não interessa o que ela é, como defende MacLeish, mas o que ela faz ou pode fazer. Isto é, a legitimação da poesia decorre de uma função na qual ela é deliberadamente investida. Neste caso, alinhada com uma determinada ideia ou causa, de combater os vícios da sociedade, o que, de uma ou de outra forma, esteve sempre presente na literatura, seja ela nacional, africana ou universal. E, como sabemos, são variadas as funções que a arte pode assumir, incluindo uma função política. Só que, como nos ensina o filósofo alemão, Walter Benjamin, uma obra de arte só é politicamente se for esteticamente correcta.
Não é nenhuma novidade, na literatura, o recurso e a reiteração da obscenidade, da linguagem desbocada e indecorosa, como estratégias de afirmação, de irreverência ou de questionamento de uma determinada ordem instituída. O que, talvez, seja questionável, do nosso ponto de vista, é se a ênfase, a recorrência e o excesso, nesse sentido, são garantia de qualquer eficácia do que se pretende atingir. Sobretudo, em termos estéticos.
A estética do feio, segundo Umberto Eco, ou a carnavalização do grotesco, do mal, do imoral, do obsceno, do decadente, da indecência, nunca deverão eximir-se do serviço que prestam à própria poesia. Afinal, o que é a poesia, a literatura? Esta é uma questão que atravessa a história multissecular da literatura. No nosso modesto e redutor entendimento, trata-se simplesmente de um recurso da linguagem, de expressão e de comunicação, que nos permite dizer e nomear o que só desse modo podemos nomear, exprimir e comunicar. Sem banalizações nem reducionismos, cruzando sensibilidade, razão e emoção. E sobretudo uma ânsia inesgotável de transcendência dos nossos limites pessoais.
Este tem sido, aliás, um dos grandes desafios da história da arte: como tornar estético, espaço de fruição e de sublimação o que é imoral, horrível, feio, trágico e monstruoso? O que faz, por exemplo, da “Guernica”, de Pablo Picasso, uma obra sublime? O que faz de Babalaze das Hienas, de José Craveirinha, uma das maiores realizações poéticas da nossa literatura? Ou o aterrador “Saturno devorando seu filho” do também espanhol, Francisco de Goya?
Até que ponto o excesso da causa não pode concorrer para a escassez do verbo, do estético? Craveirinha, nos longínquos anos 60, em “Uma cantiga em 3 tempos” deixara já o mote: “A dificuldade / da verdadeira poesia não são as ideias. São as palavras”.
Se com o poema “A propósito do meu aniversário”, Dom Midó das Dores percebe o quanto esta sugestão do Poeta da Mafalala se institui como lei fundamental do fazer poético, Deusa de África mostra já uma apreciável destreza e maturidade na forma como a sua escrita se impõe em poemas como “Poesia é fechadura”, “Ai”, “Quantas vezes morremos, meu amor”, “Coro na Catedral”, “Céu nublado”, “Vinho na Toalha de Mesa” ou “Nada”.
Afinal, o dizer da poesia não é, por mais bem-intencionada que ela seja, a interpelação directa, é sem dúvida a sugestão, como muito bem nos mostra Deusa d’África”, em “Coro na Catedral”. Seria interessante explorar, nesta autora, a sua relação poderosamente ambígua com a religião, entre uma espécie de fascínio, por um lado, e a dessacralização, por outro, dos símbolos e dos rituais do cristianismo. É, pois, muito respaldados na arte da sugestão que encontramos:
pulsa dolorosamente o coração do que se
perde
ganha-se a desgraça humana no mundo
imundo
ardente a canção que ecoa a dor incendiada
pelo infortúnio
parte sem destino a moção ardente de um
país em alto mar… (Deusa, “Coro na Catedral”, p. 63)
A poesia, afinal, é muito mais do que a arrumação de palavras numa determinada disposição e com uma intencionalidade que a trespassa. Ela é uma disponibilidade interior sem limites. Que nos preenche e que nos faz invadir os espaços dos que estão distantes de nós, isto é, os que nos vão ler. Ela é, afinal, o reino infinito do espírito, como explicava Hegel.
Talvez eu seja alguém petrificado no tempo, prisioneiro, ainda, de uma percepção eventualmente ultrapassada, anacrónica e bolorenta da literatura, por ainda acreditar, idealisticamente, que a arte, a literatura, em particular, é um espaço de elevação, de edificação intelectual, de sofisticação da linguagem que se faz ambiguidade, sugestão, e que, em última instância, desafia a sensibilidade e a inteligência do leitor. Mesmo, ou sobretudo, quando há um combate em curso, cada vez mais incontornável, de corrigir as enfermidades da sociedade, de melhorar a condição humana e de transformar o mundo.
Termino, felicitando os dois autores re-irmanados em Metamiserismo, uma nova escola literária e incentivando-os a que não desarmem quer no sacerdócio da poesia quer nas causas que os movem. O país, a poesia, a literatura e a arte agradecem.
Maputo, 8 Agosto 2024