O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

O homem é o único animal capaz de rir, como bem observou Aristóteles, mas tanto a comédia como a tragédia afectam todos os animais. Os sentimentos de alegria e tristeza causados pela comédia e tragédia existem em todos os animais, diferindo somente em suas manifestações. Enquanto o homem abre a boca e mostra os dentes, fazendo-se ouvir uma voz afável, o cão saltita, abana a cauda, põe fora a língua como forma de manifestar a sua alegria. O homem chora, mas os outros animais não o fazem, embora todos sejam domados do mesmo sentimento trágico. Isto nos impele a uma nova inferência de que o choro à semelhança do riso é uma manifestação unicamente dos homens por natureza, mas a dor é para todos.

Todavia, a tragédia e comédia aos olhos dos humanos, às vezes, confundem-se e tornam-se relativas. O que me é trágico pode se te afigurar cômico dependendo da distância espiritual a que te pões a observar. Um adultério motivado pela insatisfação sexual é trágico para o marido e pode ser irrisório para o vizinho ou amante. Mas o riso sobre coisas trágicas é um modo indisciplinado de suportar a dor tanto nossa quanto alheia. Quando nos rimos da nossa própria tragédia, somos tolos. E quando o fazemos pela tragédia de outro, merecemos ser chamados sarcásticos. Estas manifestações irônicas são dignas de serem censuradas, pois denotam a pobreza do espírito sob o ponto de vista mais alto da moral. Atendendo a definição aristotélica da educação que é ensinar as pessoas a sentir dor em coisas que causam dor e prazer em coisas que causam prazer devia ser condenável a comédia em tempos de crise, pois ela visa-nos fazer suportar os males que nos afligem. E, neste caso, suportar equivale a adaptar-se, alegrar-se ou conformar-se com uma situação desconfortável e, no pior caso, tentar esquecer.

Esta disposição espiritual é por excelência a característica dos povos pobres em espírito e em bens materiais. Quando uma nação está em crise moral ou económica e o povo, ao invés de indignar-se com o estado das coisas, entretém-se em transformar o censurável em hilariante, é legítimo afirmar-se que o mundo está perante uma nação com atraso mental. A comédia em tempos de crise é o mais vivo sinal da existência de uma educação defeituosa que faz os cidadãos falhar pensar e tomar decisões convenientes para mudança de uma situação crítica. O excesso de entretenimento dentro de uma nação em forma de desporto, telenovelas, pornografia, programas de diversão serve de combate ao sentido de vergonha sem ao menos esmiuçar os preconceitos. Ou seja, quanto mais comédia se oferece ao povo, de modo abusivo, menos capacidade de reflexão ele ganha, pois o entretenimento, não obstante ajude a catapultar a imaginação, carrega consigo o poder de distração.

Dizia François Lyotard que o desenvolvimento humanitário dentro de um país também pode medir-se pela qualidade de informação que circula na esfera pública. Em países com democracias de grande sucesso, o nível de informação que circula entre cidadãos é relativamente de grande importância comparado à informação dos países pobres com democracia precária. Isto se deve, em grande medida, ao comprometimento que o Estado e órgãos de informação pública têm com a educação social. Enquanto maior parte de jovens de alguns países ricos em espírito e matéria serve-se das redes sociais para debater ideias sobre a situação do país ao nível de sistema político, da arte, religião, ciência e oportunidades, no outro lado do mundo, verifica-se uma massa de jovens que se entretém com assuntos sérios, de maneira leviana.

Somente a seriedade em tempos de crise tem o poder de mover a sociedade a insurgir-se dos males que a enfermam. A seriedade como um estado de espírito que revela interesse em determinado objeto é um elemento eficaz para impor responsabilidade dentro do Estado. Satirizar o que é grave emite impressão de não se importar e de desprezo. Há necessidade de a sociedade mostrar-se séria, em assuntos sérios, de tal sorte a ganhar legitimidade de ser tratada como adulta pelo seu Estado.  E, até em assuntos lúdicos, o Estado deve ver-se obrigado a manter o compromisso com a educação do seu povo. A regeneração deve ser sempre a meta do logos da polis.

MZENO WA MELEKWANE

Sem Ítaca não terias saído do caminho.
Mas já nada tem para te dar.

E se um tanto pobre a encontrares, Ítaca não te enganou.
Sábio como te tornaste, com tanta experiência,
já consegues compreender o que significam Ítacas.
*Konstandinos Kavafis

A Luís Loforte e Dino Foi!

O repórter Carvão Arde Molhado divulga nesta edição uma entrevista concedida pelo famoso ADVOGADO DE INHASSUNGE. A esta personalidade, tão multifacetada que é assenta-lhe bem o cognome pau-para-toda-a-obra.

 Carvão Arde Molhado (C.A.M.) – Saudações, ilustre. O senhor é que é o Advogado de Inhassunge?

O Advogado de Inhassunge (O.A.I.) – Pois, claro. Sou o próprio. Outro é Dubai, digamos falso! Alguma dúvida?

CAM. – Não. Só queria ter certeza, meu senhor.

O.A.I. – Obrigado!

CAM. – O senhor sabia que há, precisamente 17 anos, a sua vida foi retratada e publicada em livro?

O.A.I. – O senhor está a insinuar que sou analfabeto? Pensa que não leio livros?

C.A.M. – Longe de mim pretender criar mau juízo sobre si, meu senhor.

Mas então se o senhor leu o livro tem uma opinião a respeito. Pode partilhar connosco?

O.A.I. – (Em silêncio, pensativo. O advogado não diz palavra)

C.A.M. -De que nos fala este seu texto, meu senhor?

O. A.I. – Como pode depreender, este texto só fala perante quem o lê.

CAM. – Leu ou não, senhor Advogado de Inhassunge?

O.A.I.- O que te parece? O senhor que não me falte ao respeito.

O senhor é jornalista, ou não é? Sabe quais são as suas obrigações neste contexto. Sabe dizer-me?

C.A.M. – Como é que o senhor se sente depois de a sua vida ter sido retratada em livro. E já foi lido quase em todo mundo?

O.A.I. –Muito feliz! Sou um advogado de sucesso. E como vocês jornalistas andam por aí a dizer, sou um verdadeiro empreendedor na minha área de trabalho.

C.A.M. – O senhor está orgulhoso de saber que despreza a sua mulher e filhos?

O.A.I. –(Mudo e calado, frio e quente. O Advogado não reage de imediato. Explode instantes mais tarde, escandalizado) – Onde você viu isso?

C.A.M. –No livro.

O.A.I. -(Envergonhado, mas não derrotado) – Bem. Aquilo não foi  propriamente o que pode afigurar-se como uma envolvente de destrato ou desprezo como senhor jornalista pensa e diz. Sucede, meu senhor que eu estava, por assim dizer com parceiros, investidores, confrades. Era uma oportunidade soberana minha para sair do chão e prosperar. E as minhas infantas, sem aviso prévio da minha senhora, não se fizeram ao banho atempadamente. Foi daí que aconteceu o imbróglio, o meu desagrado, a minha zanga perante, a figura da mãe das minhas filhas.

C.A.M. – E a propósito, o que é que o senhor faz por Inhassunge?

O.A.I. – Muita coisa, meu caro. Muita coisa. Estou agora envolvido em projectos e parcerias diversas. A breve trecho vou pronunciar-me.

C.A.M. – Não sei se o senhor Advogado sabe. Temos um antepassado comum. O meu avó manterno, o doutor Pescoço nasceu e cresceu em Inhassunge. Ele influenciou e muito a minha personalidade. Este meu espírito comunicador e entusiasta das coisas da nossa grande Zambézia, aquele terra maravilhosa deve-se muito ao que aprendi com aquela biblioteca.

O.A.I. – Muito gosto, muito feliz em saber-te meu conterrâneo e grande entusiasta das nossas gentes (O Advogado levanta-se e abraça o jornalista Carvão).

C.A.M – Tio, será que com a ponte Maputo–Catembe, já na fase final e, a ser inaugurada em breve já ocorreu ao senhor solicitar os serviços da transmarítima? Por exemplo transferindo um ferry-boat para Inhassunge?

O.A.I. – Como é que você leu os meus pensamentos, filho! Isso faz parte dos pilares que sustentam o meu projecto em vigor, o petróleo da minha motivação pessoal. Ora nem mais.

C. A. M. – Mas qual deles prefere, ilustre? O Bagamoyo ou Mpfumo?

O.A.I. – Isso é cá comigo, filho. Vou criar uma comissão mista de avaliação desta empreitada. Não tenhas dúvida.

C.A.M. – Voltando às minhas leituras. O livro, seu homónino constitue um marco na literatura moçambicana. Quer comentar.

O.A.I. – Oh, meu caro. Não quero puxar a brasa à minha sardinha. Devo salientar que uma vida exemplar ilumina grandes Homens. E esse escritor é um felizardo. Gostaria de dedicar –lhe uma canção da terra. Vou falar sobre esse propósito com os músicos que sabem do ofício. Não perca por esperar.

C.A.M. –Uma vez mais fica provado que o senhor é porta-voz da sua terra natal.

O.A.I. – Não vou concordar consigo, meu caro. Vocês é que são a vanguarda desta geração estão na linha da frente para receber de nós o testemunho. Aliás, já receberam. Divulguem a nossa literatura nos jornais, nas escolas e, por que não no campo, a toda hora e circunstância, meus senhores.

C.A.M. – Anotado, ilustre. Mas voltando ao livro. Só mais duas questões, para fechar a entrevista.

O.A.I. – Julgo que falamos o suficiente, amigo. Acabo de receber uma convocatória para uma reunião importante das águas grandes. Não me posso atrasar. Foi um prazer!

Caros leitores,

Ficou o essencial. Continuação de boas leituras!

Celso Muianga

* Texto inspirado na obra O ADVOGADO DE INHASSUNGE, Luís Loforte, Quetzal, Lisboa 2001

 

 

 

 

Não tenho muito para dar aos que comigo caminham. Tenho tido poucos caminhos, muitos passos e destinos incertos. Com os meus companheiros sempre terminamos em pequenas missas nas barracas onde o dízimo da cerveja é barato. A única bênção que nos surge e alegra-nos é acordar e o bolso denunciar uma moeda que se escondeu nas contas não pagas. Podíamos falar muito com os meus companheiros, mas nossas bocas tem mais facilidade para rasgar sorrisos e entornar gargalhadas que ateiam lágrimas nos olhos. De barraca em barraca reinventamos a nossa amizade.

Tenho muitos amigos. Tantos amigos que por vezes perco-me neles e não me encontro com facilidade. O exercício de procurar-me em meus companheiros é normal e habitual. Procuro-me em todos amigos, quando me sinto longe de mim. Faço isso como uma mãe que procura o filho ao fim da tarde em ruas onde miúdos jogam futebol. Bato na porta de todos e pergunto: “que tal! O Sérgio está contigo?”. E às vezes escondem-me neles próprios. Dizem que não me viram e não sabem de mim.

Cai a noite e cada um deles é uma casa sempre aberta para me acolher. Há um algo tão íntimo que nos une para além da amizade. O que nos une é algo tão valioso que desafia todas formas de união. Aliás, nós nunca nos unimos; dissolvemo-nos em um apenas. Transformamo-nos em uma língua que fala as mesmas palavras, em uma boca que fermenta a mesma saliva, em mesmas mãos que se abraçam e fecham o zipper depois de regar, com urina, a árvore da esquina.

É incrível como me encontro em cada atitude dos meus companheiros; dos meus irmãos que neste carnaval chamado vida fantasiam-se de amigos. Pequenos detalhes seus fazem-me reconhecer que uma parte de mim faz a eles e assim somos um apenas. O corte bem acertado que um faz sinto-o na minha cabeça, a alegria que um agita dentro de si transborda para o meu sangue, o beijo que um dá fica-me a marca nos lábios e a oração que um faz sinto o milagre em mim. Meus amigos são tão pequenos que ninguém lhes dá interesse. São essas criaturas tão pequenas que vivem na piedade de Deus que me tornam grande. Vês o “estilar” de Pelaginho que carrega um metro e pouco, a perna de Matchine que não está muito longe do ombro: é quase tudo igual. Mas, são meus porque a humildade talvez seja coisa que só cabe em pessoas baixas. São meus companheiros porque sabem a medida da amizade sincera: imensurável.

Não tenho muito para dar aos que comigo caminham. Vou sempre repetir isto porque há amigos que caminham comigo e querem o muito de mim. Eu não tenho muito para dar porque os meus companheiros sabem que nós não nos damos nada; porque tudo pertence-nos. Somos um apenas. Tomamos o mesmo vinho porque é nosso e não porque alguém de nós comprou. Escrevo isto num momento em que o meu contador de CREDELEC avisa-me que está sem energia suficiente. Vou continuar a escrever no escuro, mas isso pouco importa porque não é sobre a luz eléctrica que quero escrever; é sobre os meus companheiros verdadeiros que quero iluminar esta crónica.

Escrevo esta noite porque ontem não tive tempo de escrever este texto. Ontem vivi este texto e hoje o escrevo. Um bar de Magoanine, uma sentada na sombra de Nkobe, um blues no bar de Matchine, uma cerveja bem gelada com Mestre Tchaka e um soro poético servido em copo com Bonde é matéria suficiente para uma espécie de reinvenção existencial em mim, em nós e em nós-um. Se “Guatarri” decide fazer um assalto não anunciado, em minha casa, em forma de visita e “Zicks” faz-me esperar a sua visita que nunca mais acontece é isso que me importa. Importa-me porque sei que tenho amigos que vigiam a minha presença. Ainda vem Zaidely molhado de humildade que só as artes marciais ensinam; vem Mbeve preencher o banco reservado aos acólitos da estupidez. Não tenho muito para dar aos que comigo caminham. Tenho tido poucos caminhos, muitos passos e destinos incertos. Eu tenho apenas batinas para acólitos da estupidez como eu.

Era uma dessas tardes melancólicas, inevitavelmente pungentes, dadas ao recolhimento, ao ensimesmamento, com a chuva diante de mim, que batia as portas de vidro e escorria pelo chão da varanda, ocultando o mar e a paisagem índica e impressiva, quando sobrevieram as belas vozes de Sarah Vaughan (“Misty”), Ella Fitzegerald (“Someone to wash over me”), Dinah Washington (“Mad about the Boy”), Billie Holiday (“Stormy weather” – tinha muito a ver), Nina Simone (“Don´t explain”). A poesia parecia-me o melhor refúgio. Anotações de uma tarde de sábado:

Julius Kazembe: “quisera ter as mãos que tem a água/ para quando vertido sobre ti/ te permear até ao último favo/ contigo trançar um cesto de vime”. Belos versos do poema “Adiemos os brindes para mais tarde.” O meu dilecto amigo Julius Kazembe é um extraordinário poeta. Não publicou em livro. Foi jornalista, foi tradutor. Trabalhou numa agência das Nações Unidas. Viveu no Zimbabwe, nos Estados Unidos. Vive, ao que sei, na África do Sul. “Changara”, outro belíssimo texto, começa assim: “Engoliram luas as crianças de Changara.” Gosto de quase tudo o que ele escreveu e que publicou. Gosto de o ouvir a dizer o poema “A Musa Prostituída”, dedicado ao Luís Carlos Patraquim.

Luís Carlos Patraquim: “afasto as cortinas da tarde/ porque te desejo inteira/ no poema.” É dos mais belos poemas do livro Monção: “E passas de capulana/ teu corpo como as dunas/ plantadas de pinheiros/ rumorejando perto.” O Luís Carlos publicou depois muitos outros belos livros, mas este é notável. O poema termina: “a fúria das ondas/ caindo brandas/ no meu gesto.” Um grande poeta! No mesmo livro, “A Metamorfose”, dedicada a José Craveirinha: “quando o medo puxava lustro à cidade/ eu era pequeno/ vê lá que nem casaco tinha/ nem sentimento do mundo grave/ ou lido Carlos Drummond de Andrade.” Tenho saudades das minhas tertúlias com o Patraquim. Passam mais de 30 anos! Ele foi para Lisboa em 1986. Faz tempo que não o vejo. Convivemos ao longo destes anos em Lisboa, no Bairro Alto, na ronda dos bares. Com o José Craveirinha ou o Rui Nogar, quando ninguém estava morto.

Billie Holiday canta “Come rain or come shine.” Parece que a chuva abrandou. Leio José Craveirinha. Poema “Lustro”: “Velha quizumba/ de olhos raiados de sangue/serve-me os rins da angústia/ e a dentes de nojo/ carnívora rói-me a medula infracturável do sonho.” Moçambique tem, no século XX, notáveis poetas. Craveirinha, Noémia, Knopfli, Nogar, Alba, Patraquim, White, eu sei lá! Penso, enquanto Dinah Washington canta “Cry me a river.” Leio este poema em diálogo intertextual com o Patraquim. Versos finais do poema “Lustro”: “os jacarandás ao menos ainda choram flores/ mas de joelhos o medo/ puxa lustro à cidade.” Está no livro Cela 1.

Sucedem-se Peggy Lee (“They can´t take away from me”), Doroth Dandrive (“The old feeling”), Anita O´Day (“Tenderly”) e eu leio “Quando o José pensa na América”: “Na Mafalala quando o José pensa bem na América/ velhas lágrimas de Spiritual salgam os encardidos/ asfaltos de água do grande Mississipi com muitas recordações.” Leio “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi morar em “Robben Island.” Recordo-me do Tomás Viera Mário dizendo este poema, ali no Tunduru, nos longínquos anos 80. (Ontem, 18 de Julho, Nelson Mandela fez 100 anos. Digo que fez porque um homem da estatura do Mandela não morre. Anoto isto quando revejo este texto, no qual aludo e saúdo poetas meus amigos.) Ou lembro, ao ler “As Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, a voz do Gulamo Khan, no mesmo Tunduru, há mais de trinta anos. O poema, o poeta dedicou-o ao Gulamo sacrificado em Mbuzini.

Vi o Gulamo, pela última vez, sentado num banco do Tunduru, com jat lag, acabara de regressar, com o Presidente, de uma viagem ao Japão. Passaram mais de 3 décadas. Uma vida passa num instante. Ainda estou diante do Gulamo ali no Tunduru e parece que foi ontem. Trinta e dois anos depois. Estarei melancólico? – Interrogo-me. Patti Page canta “I didn´t know about you”. Leio: “céleres as águas /zambezeiam pela memória/ das almadias do silêncio.” O título do poema “Moçambicanto”, como seria o título do livro póstumo do Khan. Gulamo Khan amava e dizia a poesia do Craveirinha, amava e dizia a poesia da Nóemia de Sousa. Quantas vezes o ouvi dizer “Deixa Passar o meu Povo”? – “Oh, Let My People Go!”

Noémia de Sousa: “Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. /Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines, / viemos do outro lado da cidade/ com nossos olhos espantados, / nossas almas trancadas, / nossos corpos submissos escancarados.” Foi assim que eu conheci Noémia – eu tinha 15 anos – e a amaria para sempre. Este poema colou-se-me à pele. Diana Krall canta: “I´ve got you under my skin.” Andávamos de mãos dadas, ao largo do Tejo, em Lisboa, andávamos de mãos dadas em Londres, andávamos de mãos dadas em Maputo. Ando agora de mãos dadas com a Noémia de Sousa, na memória e na solidão habitada e exultada de seus versos.

O Rui Nogar também era um excelente declamador e vejo-o a dizer: “eu bebeu suruma/ dos teus ólho Ana Maria. / eu bebeu suruma/ e ficou mesmo maluco.” São raros os poetas que sabem dizer poesia. O Julius Kazembe, já o referi, dizia magnificamente, mas também o Eduardo White. O White dizia extraordinariamente, para além de ser um grande poeta, o mais importante da minha geração. Silje Nergaard: “Every time we say goodbye.” Leio enquanto oiço estas vozes longínquas. Leio: “tratávamos o silêncio por tu/ dormíamos na mesma cama/ acordávamos do mesmo sono.” Do Rui Nogar e do poema “Da fruição do silêncio”, que vem no livro Silêncio Escancarado.

Por falar em Rui, sou indefectível do Knopfli. Toda a gente o sabe. “Nunca Mais é Sábado:” um poema soberbo. Pilhei-o para título de uma antologia. O Luís Carlos Patraquim escreveu “Elegia de Sábado”, um aceno intertextual. Encima o presente texto uma referência encomiástica ao Sábado. Não disfarço a sua origem. No caso, elogio, panegírico, aplauso a estes belíssimos poetas da minha terra. Apetece-me transcrever todo o poema do Rui Knopfli. Receio que seja bastante longo. Deixo-me, no entanto, levitar na voz de Ruth Cameron: “Something cool”. Rui Knopfli: “Nós os humildes e os humilhados, / os que não temos rosto próprio porque somos/ o rosto da multidão.” “Da escada de serviço e do elevador/ para o prédio, do prédio para a rua, / da rua para a praça, da praça para a cidade, / da cidade para o subúrbio, onde crescem/ a doença, o medo, a fome e o futuro, / – nunca, nunca mais é sábado.”

Dee Dee Bridgewater canta “Angels eyes” e toca o telefone. No facetime, irrompe o meu filho Irati. Liga-me de Brighton e resgata-me desta melancolia de sábado. Debutei no jazz em Londres no tempo em que o Rui Knopfli lá vivia e fui hóspede dele. Sempre que lá vou, quando vou visitar o meu filho, lembro-me do “escriba acocorado.” Com ele também aprendi o muito do pouco que sei do ofício. Durante anos eu declamei o poema “Adeus Xico.” Uma pungente elegia. Ou o poema “Winds of change:” “De facto como é mansa e boa/ a Polana/ nas suas ruas, túneis de frescura/ atapetados de veludo vermelho. / Tudo joga tão certo, tudo está/ tão bem/ como num filme tecnicolorido. / Passam. Passam/ e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de nada.” A voz poderosíssima de Abbey Lincoln – “Say don´t remember” -, diz ela na música “Brother, can you spare a dime?”. Apaixonei-me por Abbey através desta música.

Rui Knopfli escreveu dos mais belos poemas que existem sobre a ilha de Moçambique. “Ilha Dourada:” “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras.” “Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, /Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento.A Ilha de Próspero é um belíssimo livro: “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente.” Diana Krall, reincidente, canta “Why should I care.” A Ilha também. Agora na voz de Alberto de Lacerda, que lá nasceu: “Ó festa de luz de mar tranquilo/ De casas brancas dum branco rosa/ Dum tempo que aqui ficou.” Isto no belíssimo livro Exílio. O poema homónimo: “O exílio é isto e não mais/ Na sua forma mais perfeita: / Hoje na terra de meus pais/ Somente a luz não é suspeita.” (Acabo de adquirir Labareda, uma bela antologia de Lacerda, que faria 90 anos em Setembro – nasceu a 20 como Noémia de Sousa.) Patraquim cantou a Ilha em “Muhipiti”: “É onde somos inúteis.” Leio isto e oiço Shirley Horn: “I got lost in his arms.” “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos/ e marulham as vozes.”

Eduardo White: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado. Em tudo habita ainda a tua imagem, o m´siro purificado da tua beleza e das tuas sedas, a rosa-dos-ventos, o sextante dos tempos, em tudo acordas de repente como se ardesses naus, garças, águas, ouros, pratas, vagas, escravos ausentes, tudo o que esta Ilha que sou a Norte, nos pode lembrar. Deito-me, assim, sobre o Sol com a praia funda em meu pensamento” (In Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza).

Outra vez Ruth Cameron. Agora, “One for my Baby.” Ela canta: “One more for the road.” Comecei a ler estes poetas, como forma de fugir à tristeza. White diria que eu o fiz como um “desafio à tristeza.” Chovia. O dia estava escuro. Eu sentia-me só. A poesia acudiu-me. Estas belas vozes do jazz. “Why are you doing the rest of my life,” canta Laura Fygi. Já não chove e o mar acolhe placidamente a noite. Eu deixo-me aqui ao som destas vozes: Diane Schuur (“The man I love”) e Helen Merril: “Baby ain´t good to you.” A chamada do Irati trouxe-me alento. Ouvi-lo foi maravilhoso. Estas poderosas vozes e estes belíssimos poetas idem.

Entre os humanos há-os que dizem: Cremos em Deus e no Dia do Juízo Final. Contudo, não são crentes. Pretendem enganar a Deus e aos crentes quando só engam a si mesmos, sem se aperceberem disso.

in Alcorão

A arte continua sendo uma dimensão importante na problematização da realidade. No contexto moçambicano, o conto, a novela, o romance e os filmes sempre foram lugares profícuos na recriação de certas peripécias quotidianas. E este é o caso de Entre eu e Deus, documentário cuja essência da história é uma viagem para um lugar distante, no qual se desbrava sonhos, tradições e, algo extremamente grave: a crença, enquanto bênção feita de sinceridade.

O documentário de Yara Costa tem na Karen, jovem cujos atributos não defraudam a fama das muthiyana de Nampula, o centro. Logo, a partir daquela personagem, a história lança uma discussão sobre o que o islão representa e deve representar num território em que muito antes de conhecer as cores do cristianismo já tinha no alcorão uma bússola para o paraíso. Por lidar com a fé há muito enraizada sobretudo no litoral do Norte do país, Entre eu e Deus leva-nos à Ilha de Moçambique, o berço de um país e de uma religião que mantém firme os seus pilares na construção de um projecto de país. De facto, no filme realizado pela moçambicana Yara Costa há uma tendência de se pensar a nação como um espaço de co-existências religiosas, com e sem tolerância, mas sempre à procura de um relativismo cultural elementar, possível na urgência de se aceitar a diferença como parte de algo que nos deve eternamente completar.

Roçando o islão na mira de uma mulher ainda a conhecer-se, determinada a alcançar o resultado que daí pode advir, este documentário mostra-nos que o conceito do “bem” é relativo e que o choque entre culturas também resulta da incapacidade de se aceitar essa abordagem. Aliás, no próprio filme, é evidente: certas personagens são apologistas de um islão, digamos, “puro” – embora não saibamos bem o que isso é –, com origem na “fonte” – outra confusão, afinal, sempre pensamos que a fonte é Deus, e não um espaço. Outras, representadas, por exemplo, nas convicções de uma makhuwa adulta, que aparece no enredo a colorir o semblante à base de muciro, entendem que o islão, na Ilha de próspero, está implicado às tradições locais. Diante desta situação, Karen aconselha-se, quase que de forma infantil, aparentemente ingénua, num sujeito cujos voos da sua experiência passam por Arábia Saudita. Essa é uma das passagens mais importantes do filme, porque, logo se nota, é em conversas como aquelas que se define o futuro de um muçulmano em formação. Na verdade, aquele momento é muito semelhante com o descrito na obra de José Rodrigues dos Santos, Fúria divina, romance em que um menino chamado Ahmed, ao ser confrontado com “dois tipos” de islão, acima diferenciados, opta pelo designado fundamentalista, pelas respostas que foi colhendo na interpretação rija da sharia. Dando-nos este panorama, em que se questiona o que é certo e o que é errado e não em como o certo e o errado podem ser as duas faces do mesmo propósito; ao revelar os preconceitos à volta de certas preferências islâmicas por parte de crentes de outras seitas, Yara Costa desenterra a raiz de um conflito que, caso não fique resolvido urgentemente, pode ser muito bem aproveitado para fomentar outras coisas além da forma de ser e de estar dos muçulmanos em Moçambique.

Este Entre eu e Deus, que deveria ser Entre mim e Deus – que, esta quinta, às 18h, volta a ser projectado no Franco – é um alerta à moderação, bem como uma janela aberta para podermos ver o que se passa com os moçambicanos fora do quintal de casa ou, movimento inverso, o que se passa com os nossos vizinhos no nosso quintal. 

Título: Entre eu e Deus

Autor: Yara Costa

Produtora: YC Films

Classificação: 14

Diágolo captado numa tarde de jogo-grande na Rússia…
– O penálti contra a Colômbia foi justo? Não sabes? Não acompanhas o Mundial? Então és matreco!
A resposta/provocação: e quem vai vencer o Moçambola?
– Isso é Terceira Divisão. Não perco o meu tempo. Prefiro atacar as médias, relaxadamente!
Esta troca de mimos aconteceu durante a prova-maior do futebol mundial e na essência replicou-se pelo país, o que simboliza o quanto o Mundial fez arrefecer nos moçambicanos, o já interesse reduzido no nosso Moçambola.

Em cima do muro é mais cómodo 
Se este sentimento prevalecesse apenas entre os madalas, os tais que “já fizeram a sua parte”, talvez merecesse alguma margem de tolerância. 
Mas o que torna difícil de entender é que é entre jovens, os tais a quem competeria mostrar aos compatriotas “da 3.a divisão”, que com eles em campo atingiríamos o estatuto de Messi e Ronaldo – como em tempos fizeram Eusebio, Coluna e outros – quem coloca acento tónico neste posicionamento.
Pois bem. O país e o mundo sairiam a ganhar bem mais com acções, do que com críticas “em cima do muro”. Aos desportistas no geral e à juventude em particular, o passar das intenções à prática, só poderia conferir mais saúde e prosperidade individual e colectiva.
E porque não? Porém, se os craques do sofá e da TV não se sentem com talento para tal, no mínimo não reduzam a pó as intenções e acções dos que têm o atrevimento de corporizar a nossa pobreza.

Como viver na aldeia global 

É bom, muito bom mesmo que em tempo de festa global do desporto-rei, todos nos sintamos parte dela. Se mais não seja, porque marcamos presença através dos representantes do Continente africano de que fazemos parte.
O que é, então, que nos diferencia da maior parte dos países que se sentem na fase final do Mundial, sem lá terem a sua selecção?
É a forma como lá fora, a festa-maior, longe de eliminar o fervor interno, o galvaniza, fazendo redobrar esforços para alcançar presenças em fases finais de competições futuras! É, na realidade, uma “diferençazinha”… mas que faz toda a diferença

Amo-te cidade da infância
com girassóis e casas de madeira e zinco
a dormir na neblina da memória.
Rui Knopfli

Ao Fernando Manuel, obviamente
e ao Ferdinando M. Torres

Bem vistas as coisas aquele foi o primeiro convite que recebi dos chamados jornais independentes da praça. O que me impressionou foi a saudação trocada com a voz doutro lado da linha:
–    Bom dia, sr., como está?
–    Estou bem, obrigado. E a senhora?
–    Eu estou bem, não sei a parte. O senhor Naíta Ussene precisa de falar consigo aqui no jornal. – Aceitei sem entrar em detalhes da parte…

Este episódio poderia ter acontecido num fim de tarde de um dia qualquer, mas foi numa terça-feira, precisamente.

Antes de enfrentar a redacção daquele semanário, demorei apreciando livros de um alfarrabista  expostos no chão, aplaudindo, em silêncio alguns títulos soberbos de escritores que marcam a vida literária mundial.

Antes que fosse tarde, fiz por cumprir aquela missão, usando o passeio do lado da avenida Agostinho Neto. Ao entrar na redacção deparei-me com o ilustre jornalista Fernando Manuel, como sempre o imaginara, há anos. Naquele dia pareceu-me que estava ali sentado há muitas luas, bem ao centro na sua secretária farta de munições de alto calibre: um computador, com o ecrã virado para o lado, uma chávena carregada de café, recitando alegremente umas nuvens finas de quentura, uma garrafa de whisky, democraticamente próxima do seu tutor de ocasião, uma garrafa de água mineral, um montão de papés, ao que me pareceu recém-resgatados de um funeral adiado. Enfeitiçou-me aquele sorriso magicando levemente a bonomia e a graça nos olhos de Fernando Manuel, dono e senhor de si.

Naíta Ussene, apercebendo-se daquele olhar inquiridor do FM, como quem diz «por que será que este puto olha para mim deste jeito», o poeta da luz interveio, lesto e perspicaz:
–    Fernando aquí está o rapaz. Chegaste na hora certa, Celso!
–    Como vai, mestre! – saudei!
–    Estou bem, desde que foi assinado acordo de Paz. Mas deixa-te de tretas, oh rapaz. Estou bem desde que chegaste – atirou FM.
–    Vou assumir isso como um elogio. E vindo de quem vem posso até considerar-me um eleito.
–    De certeza que não precisarás de segunda volta. Aqui tens os papéis. Podes tomar posse agora. – rematou FM, num notável gesto técnico.

As palavras de FM despertaram em mim uma emoção especial, entre surpresa e susto por não poder manter uma traço firme no verbo a conjugar pus-me a dizer coisas.
–    Obrigado, Mestre. Precisarei de algum tempo para ler estas relíquias que resgatou, a tempo, do Museu do Cairo.

Como que a desmentir o sossego que tentei revelar, a atmosfera desfez-se ao sabor das  gargalhadas vindas de quase uma meia centena de bocas. Aquilo foi um estrondo de bradar os céus.

Apareceu, não sei de onde um mar de gente, o Armando Nenane, a Paola Rolleta, a Flávia Gumende, o Américo Pacule, a Emília Banze, o Eduardo Conzo, o Emílio Beúla, o Abdul Sulemane e muitos outros. Naquele momento reparei demoradamente num retrato, o sorriso luminoso do big Joe Chiziane na parede, por detrás da secretária do FM.  

Até há poucos dias não tinha entendido bem que truque foi aquele, mas o Pacule revelou-me os meandros daquela confraternização. Afinal havia aterrado na redação do semanário verde um enorme material bélico, por conta de um nome sonante da praça, por sinal aniversariante paredes-meias com do Mestre FM. E como tudo isto é maningue nice desatamos todos a desejar alto e bom som, saúde e longa vida ao bom do Fernando Manuel naquele fim de tarde, ainda solarento de 23 de janeiro, três dias após FM completar 60 anos.

Tempos, mais tarde rubricaram o livro, as presenças amigos e incontornáveis, como as águas do Índico, Ana Magaia, Joana Zambéze, Sérgio Santimano, Gabriel Mondlane, Ídasse Tembe, Magoene, Lénio Ussivane, Bartolomeu Tomé, José Pinto de Sá, os filhos de FM, o Júnior e Mauro Pindula.

Há dias Fernando Manuel publicou MISSA PAGÃ, a tão esperada colectânea de crónicas dos últimos 21 anos. Em conversa com o Mestre fiquei a saber que de entre muitos leitores, existe uma senhora que guarda no baú a colecção completa das crónicas publicadas na coluna MISSA PAGÃ do Savana. Isto é obra num país como o nosso, onde escasseiam leitores consequentes. FM falou-me ainda da sua paixão pela música. Ele fez parte do grupo Rock 79, alegrando as noites do Espada,com Betinho vocalista nas letras em inglês aldrabado, Fernando Manuel vocalista nas letras em Português e também no inglês macarrónico, como apelidara Hortêncio Langa, cantando « I`ga dreams to remember». Militavam ainda Arone Nhanala no viola baixo e Bay Salimo.

A mítica Mafalala, com os temíveis Coca-Cola, Gimo Two Batata, Matasete e outros é o Macondo deste nosso Gabriel Garcia Márquez nascido há 65 anos na Maxixe que, beneficiando-se do seu inimitável talento na crónica, pode, querendo, compôr a uma manta de retalhos e, reconciliar-se com os deuses do romance, publicando o tão esperado livro de marcha-longa de um furriel miliciano de outros tempos.

Fernando Manuel, músico, escritor, jornalista, professor de ginástica, dono de um talento só visto nos eleitos.

Esta é a foto-família, que nos é legada por Naíta Ussene, celebrando, o aniversário de Fernando Manuel, ou melhor, O HOMEM SUGERIDO desta edição. Celebrar Fernando Manuel, lendo os seus livros, é o mesmo que visitar um jardim carregado de flores, com o mesmo fascínio na descoberta e inevitável nostalgia de quem recorda. Aqui está o registo a preto e branco do Poeta da luz e sombra, companheiro de todas horas de FM, Naíta Ussene.

 

 

Nelson Mandela: «Além de me dar vida, uma constituição física forte e uma ligação duradoira à casa real thembu, a única coisa que o meu pai me concedeu à nascença foi um nome, Rolihlahla. Em xhosa, Rolihlahla significa literalmente “arrancar o ramo de uma árvore”, mas o sentido coloquial seria, mais precisamente, “o que causa problemas”. Não acredito que um nome constitua um destino, ou que o meu pai de alguma forma estivesse a adivinhar o meu futuro, mas, anos mais tarde, amigos e família atribuíram ao meu nome de nascença as muitas tempestades que causei e sofri. O meu nome mais conhecido, o inglês, só meu foi dado no primeiro dia de escola. Mas estou a antecipar-me.

Nasci no dia dezoito de Julho de 1918, em Mvezo, uma vila pequenina nas margens do rio Mbashe, no distrito de Umtata, a capital do Transkei.»

Assim começa a notável autobiografia de Nelson Mandela Longo Caminho para a Liberdade, originalmente concebida na Ilha de Robben: «Como os leitores se aperceberão, este livro tem uma longa história: comecei a escrevê-lo, clandestinamente em 1974, durante o meu encarceramento em Robben Island. Sem o trabalho infatigável dos meus velhos camaradas Walter Sisulu e Ahmed Kathrada para trazerem de novo à luz do dia as minhas memórias, seria pouco provável que o manuscrito chegasse a completar-se. O exemplar que eu tinha em minha posse foi descoberto pelas autoridades e confiscado. No entanto, para além de terem dotes caligráficos únicos, os meus colegas de prisão Mac Maharaj e Isu Chiba conseguiram fazer o manuscrito original chegar ao seu destino. Voltei a dedicar-me a ele quando saí da prisão em 1990.» O escritor Richard Stengel ajudou-o a fixar o texto. Mas também teve colaboração e conselhos de Nadine Gordimer (1923-2014) e Ezekiel Mphahlele (1919-2008), ambos escritores sul-africanos renomados – Nadine foi prémio Nobel -, do fotógrafo Peter Magubane (1932, tem hoje 86 anos), ou Fatima Meer (1928-2010), escritora e activista anti-apartheid. O livro foi publicado em 1994. Um ano emblemático.

No dia 18 de Julho, quarta-feira, assinala-se o centenário deste homem extraordinário. Haveria muitos motivos para evocá-lo. A sua biografia é colossal. Vou ater-me em um ou dois factos da sua longa vida. Começo por evocar a própria ilha, onde esteve encarcerado quase duas décadas. Visitar a Robben Island é imperativo, um gesto impreterível. Eu fui lá e estive à beira das lágrimas perante aquela cela: os 2 metros de exiguidade e humilhação. O vexame da esteira, do cobertor, da latrina de latão, do prato e do púcaro de alumínio. Aquela cela e aquela cadeia são indispensavelmente uma iconografia da própria liberdade. Conhecia a ilha de nome, referida sempre que se aludia ao nome ínclito de Nelson Mandela. Hoje é indeclinável a sua associação ao legendário homem que dali se tornou um mito. Conhecia a história do homem e dos seus companheiros. Das provações por que passaram. Do calor intolerável no Verão e do irrepreensível frio no Inverno. Sabia do seu labor da pedra, o labor obrigatório de partir pedra sem protecção; dos calções vestidos no Inverno; da fome ou da comida para os bantus; da falta ou proibição de jornais; das reiteradamente más notícias lá fora – a mulher presa, a mulher banida, a mulher impedida de o visitar. Das visitas escassas (só anos depois, em Pollsmoor, é que abraçaria a mulher. A descrição que faz desse encontro é pungente. Fixei uma frase contundente: «Há vinte e um anos que não tocava nem sequer na mão da minha mulher.») Sabia, ainda, da recusa das autoridades para que ele fosse enterrar a mãe, em 1968, ou o filho Thembi, no ano ulterior. Das cartas que não chegavam ao destinatário. Sabia, lera, ouvira, imaginara. Contudo, a despeito disso, não obstante, não me contive naquela cela, naqueles exíguos metros quadrados. Ali, aquele homem deixou de ser prisioneiro e libertou-se ao longo dos anos no cativeiro. Ali o homem agigantou-se, ali Mandela tornou-se Mandela. Como pode um homem viver aquele opróbrio e não ser mau? Como pode alguém suportar o insuportável e depois ter a candura e a magnificência de tratar como tratou os seus opressores? Aquele homem humilhado, aquele belo e hierático combatente pela liberdade, caminha, na minha imaginação, ainda hoje, sempre, o longo caminho da liberdade. Vejo-o solitário e obstinado. E ele fez da solidão uma poderosa arma, com inteligência e coragem. Com altruísmo e intuição. Quero falar-vos hoje da prodigiosa solidão de Nelson Mandela.

Longo Caminho para a Liberdade percorre um longo (perdoe-se-me a redundância) excurso: da infância no campo de Transkei a Joanesburgo, da actividade cívica e do nascimento do lutador pela liberdade à acusação no processo de Rivonia, dos anos sombrios da Ilha de Robben, onde permaneceu 18 dos 27 anos de prisão, aos capítulos em que ele intenta as conversas com o inimigo até à liberdade, este livro é soberbo e fascinante. Esteve preso com Walter Sisulu (1912-2003), Ahmed Kathrada (1929-2017), Govan Mbeki (1919-2001), Raymond Mhlaba (1920-2005), Andrew Mlangeni (tem hoje 93 anos, nasceu em Junho de 1925) ou Elias Motsoaledi (1924-1994), com muitos outros, com tantos outros, estes, muitos deles sentenciados a pena de prisão perpétua. Entre 1963 a 1982 ali viveu (digo-o com sarcasmo, evidentemente) Nelson Mandela, antes de ser transferido para a penitenciária de Pollsmoor, na Cidade do Cabo, e, mais tarde, em 1988, quando fez 70 anos, para a prisão de Victor Verster, perto de Paarl.

Para Pollsmoor parte, em 1982, com os seus velhos companheiros. «Comparado com Robben Island, estávamos num hotel de cinco estrelas.» A luta anti-apartheid atingia, nos anos 80, dimensões planetárias. O MK actuava com virulência. A luta armada prosseguia. O regime estava isolado. P. W. Botha fraquejava, apesar de atacar com ferocidade a maioria negra afastada nas townships, apesar de violentar os países vizinhos, como Moçambique. O nome de Mandela era motivo de uma grande campanha internacional para a sua libertação. Free Nelson Mandela – cantava-se nos palcos do mundo. Mantê-lo na Ilha de Robben era insustentável. «Para nós, a ilha tinha-se tornado o lugar da luta.» Mandela acha que, ao retirá-lo dali, o regime intentava decapitar o ANC. «A própria Robben Island estava a tornar-se um sustentáculo mítico da luta, e, eles queriam retirar-lhe alguma da sua importância simbólica através do nosso afastamento.» Nesse mesmo ano, em Agosto de 1982, o regime assassina, com carta armadilhada, Ruth First, activista anti-apartheid, mulher de Joe Slovo, em Maputo.

A minha geração viveu empolgada essa história e manifestou-se para que Nelson Mandela fosse libertado. Sonhámos com isso. Não existia nenhum retrato dele havia muitos anos e isso era também algo que nos concitava: como seria o rosto de Nelson Mandela tantos anos depois? Recordo-me das campanhas pela libertação de Mandela. Ainda me comovo com Peter Gabriel cantando, de punho cerrado, como numa fotografia de Peter Magubane, “Biko”, em honra de Steve Biko, brutalmente assassinado, aos 30 anos, em 1977. Recordo-me do Kok Nam, meu velho companheiro na vetusta Tempo, que sonhava cobrir a libertação de Mandela. Partilhávamos esse sonho. Lembro-me do belíssimo poema do José Craveirinha dito pelo Tomás Vieira Mário nos “Msahos” do Tunduru – “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi viver para a Robben Island”. Esse momento aconteceu no início da década de 90. Antes da sua libertação, que ocorreu a 11 de Fevereiro de 1990, Nelson Mandela empreendeu uma engenhosa e solitária aproximação ao inimigo e conta essa fascinante história na sua autobiografia.

Nelson Mandela: «Em 1985, depois de um exame médico de rotina feito pelo clínico da prisão, mandaram-me a um urologista, que diagnosticou um aumento da próstata e recomendou uma intervenção cirúrgica. Disse que era uma operação de rotina. Consultei a minha família e decidi ir para a frente com a operação.» Quando teve alta, não o levaram de volta para junto dos seus companheiros de prisão. É aqui que a sua inteligência e a sua coragem revelam um grande líder. Perante o espanto dos seus companheiros revoltados, Mandela diz algo que para eles parece incompreensível: «Oiçam, meus velhos – disse eu -, não parece que nos devamos opor a isto.» Walter Sisulu, Ahmed Kathrada e Raymond Mhlaba estavam perplexos.

Escreve Nelson Mandela: «A minha solidão dava-me uma certa liberdade e resolvi usá-la para fazer algo que ponderava há bastante tempo: encetar conversações com o governo.» Mais adiante: «A minha solidão proporcionar-me-ia a oportunidade de dar o primeiro passo nessa direcção, sem o tipo de escrutínio que poderia destruir tais esforços.» Isto é de uma grande intuição política. «Encontrava-me agora numa espécie de isolamento esplêndido.» Mandela reconhece: «A decisão de falar com o governo era de tal importância que só deveria ter sido tomada em Lusaca. Mas eu achava que era necessário dar início ao processo, e não tinha nem tempo nem meios para comunicar com o Oliver. Alguém do nosso lado tinha de dar o primeiro passo, e o meu isolamento proporcionava-me simultaneamente a liberdade para o fazer e a certeza, pelo menos durante algum tempo, da confidencialidade das minhas tentativas.»

Nelson Mandela: «Decidi não comunicar a ninguém o que ia fazer. Nem aos meus colegas lá de cima, nem aos de Lusaca. O ANC é uma organização colectiva mas o governo tinha tornado a acção impossível neste caso. Não tinha nem a segurança, nem o tempo suficiente para discutir estes assuntos com a minha organização. Sabia que os meus colegas do andar de cima condenariam a minha proposta, e tal matá-la-ia à nascença. Há alturas em que um líder tem de passar à frente do rebanho, afastar-se numa nova direcção, com a certeza de estar a levar o povo para o caminho certo. Por fim, o meu isolamento forneceria à minha organização uma desculpa, no caso de as coisas correrem mal: o velho estava sozinho e completamente isolado, e as acções foram tomadas por ele como indivíduo, não como representante do ANC.»

O ANC ficou naturalmente inquieto quando se apercebeu destes esforços solitários de Mandela, que os ocultou. «Pouco depois disto, recebi um recado do Oliver Tambo, trazido às escondidas por um dos meus advogados. Tinha ouvido dizer que eu encetara conversações secretas com o governo, e estava preocupado. Disse que sabia que eu estava sozinho há algum tempo, separado dos meus colegas. Deve ter-se perguntado: o que se passa com o Mandela? A mensagem do Oliver era breve e directa: queria saber do que é que eu estava a afalar com o governo. O Oliver não poderia nem acreditar que eu me estava a passar para o lado do inimigo, mas talvez imaginasse que estava a cometer um erro de julgamento. Na verdade, o tom da sua mensagem sugeria isso mesmo.»

Em Maio de 1988 faz o primeiro encontro formal do grupo de trabalho secreto. Estas reuniões tinham o consentimento de P. W. Botha. Nelson Mandela fala-lhes da história do ANC, explica os pontos de vista do ANC, sublinha aquilo que os divide do governo, fala dos assuntos críticos: a luta armada, a aliança do ANC com o Partido Comunista e do objectivo do governo de maioria e a ideia da reconciliação racial. Foram dias, semanas e meses. O governo tinha uma condição: para haver negociações o ANC deveria renunciar à violência. «Respondi que o Estado era responsável pela violência, e que é sempre o opressor, não o oprimido, a ditar a forma de luta.» Isto é brilhante: «Cabe-vos a vós – disse -, não a nós, renunciar à violência.» Outro engulho: o Partido Comunista. Mandela argumenta que eram organizações separadas e distintas que prosseguiam um mesmo objectivo. O regime afirmava que o Partido Comunista controlava o ANC. Também aí Mandela é genial na argumentação. Exasperado atira-lhes: «Os senhores consideram-se inteligentes, não é verdade? Consideram-se poderosos, não é verdade? Bem, estão aqui quatro dos vossos e apenas eu, e não conseguem controlar-me ou fazer-me mudar de opinião. O que os leva a pensar que os comunistas são bem-sucedidos naquilo em que os senhores fracassam?»

O governo de maioria, as nacionalizações preconizadas na Carta da Liberdade, de 1955, preocupavam o regime: «Mas remiti-os para um artigo que tinha escrito em 1956 para o Liberation, em que afirmava que a Carta da Liberdade não era um esquema do socialismo, mas do capitalismo de estilo africano. Disse-lhes que não tinha mudado de opinião desde essa altura.» Quanto ao direito das minorias? «A África do Sul pertence a todos os que nela vivem, negros e brancos. Acrescentei que os brancos também eram africanos e que, em qualquer regime futuro, a maioria necessitaria da minoria: Não queremos empurrar-vos para o mar – disse.» Nesse mesmo ano, Mandela é transferido para Victor Verster, em Paarl. A 5 de Julho de 1989, P. W. Botha recebe-o: “visita de cortesia”. Um eufemismo, naturalmente. Botha, que se demitira do Partido Nacional, permanecia, no entanto, na chefia do Estado. F. W. de Klerk, ministro da Educação, ascende à liderança do Partido Nacional. Apesar da ferocidade do Grande Crocodilo (“Die Groot Krokodil”), o encontro corre bem. Tomam chá e são cordiais um com o outro. Um mês depois, em Agosto, P. W. Botha demite-se de presidente da África do Sul. De Klerk assume no dia seguinte. Mandela prosseguia os seus encontros com o comité secreto das negociações. Consegue vencer etapas. Em Outubro de 1989 são libertados: Walter Sisulu, Ahmed Kathrada, Raymond Mhlaba, Andrew Mlangeni, Elias Motsoaledi, jeff Masemola, Wilton Mkwari e Oscar Mpetha. Govan Mbeki saíra antes. Vive-se um momento de esperança.

F. W. de Klerk recebe-o a 13 de Dezembro de 1989. «Apresentei as minhas felicitações ao Sr. de Klerk pela sua ascensão ao cargo de presidente e exprimi o desejo de podermos trabalhar juntos. Ele foi extremamente cordial e retribuiu estes sentimentos.» Ali estava um interlocutor diferente. «Desde o primeiro momento que notei que o Sr. de Klerk escutava o que eu tinha a dizer.» A conversa entre os futuros Prémio Nobel da Paz de forma promissora: «O Sr. de Klerk, disse, imitando a famosa descrição do Sr. Gorbachev por Margaret Thacher, era um homem com quem se podia fazer negócios.»

Nelson Mandela: «Em 2 de Fevereiro de 1990, F. W. de Klerk foi ao Parlamento pronunciar o tradicional discurso de abertura e fez algo que nenhum outro chefe de Estado sul-africano alguma vez fizera: começou realmente a desmantelar o sistema de apartheid e a lançar os fundamentos de uma África do Sul democrática.» Uma semana depois, a 9 de Fevereiro, F. W. de Klerk quis ver Nelson Mandela. Este deslocou-se novamente a Tuynhuys: «Deparei com um Sr. de Klerk sorridente no seu gabinete e, ao cumprimentarmo-nos, ele informou-me que me ia libertar no dia seguinte.» O diálogo entre ambos é igualmente fascinante – De Klerk queria libertá-lo a 10 de Fevereiro em Joanesburgo; Mandela queria tempo para se preparar (ficara aturdido apesar de ter sonhado décadas com aquele momento e temia que uma libertação abrupta não fosse aconselhável)  e queria sair em liberdade na Cidade do Cabo -, mas já não cabe nesta história que vai longa sobre o ingente e prodigioso isolamento de Nelson Mandela.

 

 

 

 

A beleza do homem não está na cara, está é no carácter, na sua posição social, em suas posses: onde já se viu homem rico ser feio?

Jorge Amado

A escrita de Manuel Mutimucuio começa a ganhar registos muito apreciáveis no actual contexto da produção literária no país. Neste movimento presente – futuro, com alguns vaticínios à mistura, o escritor está a conseguir levar à literatura um debate de ideias e de valores pertinentes, questionando o status quo das coisas – e de que maneira. Garante-lhe êxito, nesse exercício, o facto do escritor ser um bom observador da nossa realidade e de, no acto da escrita, conseguir transcender para uma dimensão ulterior, feita de utopias, perguntas, dúvidas e (in)certezas. Só com essa abstração resultante de uma profunda leitura do espaço real nacional podem-se criar livros como Visão, com histórias nossas, dos nossos comportamentos e desvios; só desse modo torna-se possível captar tendências e fazer disso algo além de uma percepção.

Assim, começa a não ser surpresa o efeito literário de boa qualidade causado pela criatividade de Manuel Mutimucuio, pois, ao ler-se o último título do autor, Moçambique com z de zarolho, percebe-se a sua orientação, voltada para o poder da escrita enquanto um escape de retorno à realidade com outras perspectivas.

Moçambique com z de zarolho é uma história sobre como, em determinadas ocasiões, a cultura é algo fundamentalmente político, daí o futuro das personagens ser calculado a partir da língua – na qualidade de instrumento que garante apreensão, transformação e transmissão da própria cultura –, por deputados. Nesta ficção, temos duas entidades importantes no desenlace da história: Djassi, um deputado da Assembleia da República a representar homens bonitos, esses que têm poder e são, de vez em quando, vítima do mesmo, e Hohlo, um empregado doméstico a representar a classe dos desfavorecidos, sobretudo dos que buscam uma oportunidade de ascensão social na capital do país. Através destas duas figuras, ambas humildes na sua condição, Mutimucuio constrói e reconstrói um Moçambique possível, fora de um comodismo assente na herança colonial.

 Na verdade, o autor, com um olhar e atrevimento sociológico muito ousado, coloca as suas personagens a discutir a necessidade de o país ou substituir a língua oficial ou adoptar uma outra, a inglesa, quer porque a portuguesa está decadente quer porque os próprios moçambicanos, na história – e na realidade também –, são absorvidos pelo maior património cultural da Inglaterra. Deste modo, Manuel Mutimucuio sintetiza o que vai no (sub)consciente dos moçambicanos, não importa se insipiente, brinca com isso e projecta uma direcção, cuja finalidade, de longe, continuará a prejudicar a maioria, os miseráveis ou, se quisermos, as massas. Este é um livro que, ao questionar o status quo, com efeito, mostra-nos que há circunstâncias inalteráveis: a condição dos humilhados. Nisso, o escritor aposta numa crueldade suficiente para tornar Hohlo aquilo que, se calhar, o leitor não deseja, mesmo sendo relevante para os desequilíbrios emocionais gerados pelo enredo.

Moçambique com z de zarolho ajuda-nos a identificar as transformações de ordem social no nosso plano existencial. Paralelamente a isso, dá-nos o rumo para o qual o país caminha e a que ritmo.

Título: Moçambique com z de zarolho

Autor: Manuel Mutimucuio

Editora: Fundza

Classificação: 16

Todos os exercícios de leitura são, como é por demais evidente, importantíssimos para a questão e gestão da vida vivida no mundo social cada vez mais globalizado dos nossos novos tempos.

A leitura à que nos referimos é toda aquela que nos remete a alguns momentos de reflexão ou de peregrinação interior em busca do obvio, da transparência e da transcendência superando as, (não raras vezes…), reles e irrefletidas trans/aparências.

 Assim sendo, leituras podem e devem ser feitas também de maneira visual. Com simples mas penetrante olhar em razão das circunstâncias. Entretanto, a leitura que aqui abordo é mesmo aquela que implica a descodificação de textos, literários ou não, com que nos deparamos durante as nossas práticas quotidianas. Esta leitura poder ter um cariz informativo, formativo e até recreativo ou lúdico.

Livros e toda uma gama de publicações periódicas, físicas ou virtuais, conformam o que aqui nos interessa. Dentre estes, especificamente, mais nos interessam os de textos resultantes de estudos literários e da própria escrita criativa.

Sobre estes, que aprendemos a considerar «os mestres mudos», tivemos a oportunidade e rendemos homenagem num texto em jeito poético que se acha inserido na nossa IMPRESCINDÍVEL DOUTRINA CONTRA como sendo uma homenagem aos amigos e subintitulámo-lo poema de amor:         

Estridentes na capa e no verso bem disperso/ -forasteiros- os livros amam-nos em silêncio/ habitam-nos  siliciosamente descarregando/ sóbria iluminação sem nada exigirem de nós.// De quando em quando benevolentes/parece que o sono se adeja sobre eles/os palavrões inscritos nas lombadas/ filtram virgens nuvens paginadas/ sempre que procuramos inertes sonhar.// Os livros representam. Pensam e repensam/ seus títulos e subtítulos linhas e entrelinhas/esperam em silêncio que os aceitemos depois/ na estante do firmamento e do risonho porvir.//-Pacientes- mudos  e  eternos  fluorescentes revelam/ a beleza, o sentido e o olhar dos cegos que somos.// É merecido o silêncio em torno dos vivos/ livros paridos no ardor de pura decantação/ refastelando nossas velhas, novas e nobres amizades!

Assim sendo, vamos considerar os livros como parte do conjunto de meios de produção indispensáveis para o manejo de todo aquele que pensando, repensando e armazenando saber se propõe um cultor das belas letras.

Ler é para nós um exercício primário e primordial pois, se por trás -ou ao lado?- de um grande homem está sempre uma grande mulher, ouso dizer que… por trás de um bom e grande escritor esconde-se sempre um melhor e maior leitor.  

Fartos andamos de ouvir e dizer aos jovens principiantes, – que também já fomos e continuamos sendo, embora em razão do tempo, agora seguimos um pouco menos jovens e consequentemente mais experientes: somos sempre o primeiro leitor de todos os textos que escrevemos, sejam eles literários ou não e jamais um mau ou preguiçoso leitor alcançará o sofrido e ansiado estatuto de  bom aqui… ou melhor escritor ali.

 Sem falsa modéstia, vimos aqui dizer que temos sido dos que mais segue atentamente os dinâmicos movimentos culturais e, particularmente, literários em Angola ou mesmo nos distintos países africanos de língua portuguesa. E que ninguém espere de nós tapinhas ou palmadinhas nas costas pois, a vida nos ensinou que as palmadinhas nas costas, em jeito de elogio, são a pior coisa que existe e, curiosamente, os “likes” e tapinhas é o que a grande maioria dos escritores gosta. Principalmente os jovens escritores encharcados pelo prematuro feto da vaidade e pela ânsia de serem vistos e aparecerem por aparecer nas redes sociais em voga e nas páginas literárias locais em função do “timbre do momento e da paixão”. Os meus “likes” nunca são em vão.

Jamais deixamos de reparar, ensinar e aconselhar todos os que nos procuram e indiciam merecer a nossa atenção. Atendemos, principalmente, aqueles que demonstrando sólidas bases de cultura geral evidenciam um razoável e necessário domínio da língua enquanto fundamental instrumento de trabalho para todo o operário da palavra pois, esta, não raras vezes se apresenta misteriosamente cavilosa.

 Seguindo os mais jovens rejuvenescemos. Assim sendo, evidenciamos e aprimoramos mais facilmente o diálogo inter-geracional. A troca de livros é fundamental e o aconselhamento e introdução à leitura de autores clássicos é não menos importante  e vamos paulatina e progressivamente esbatendo o dialéctico conflito de gerações em razão do princípio filosófico da «negação da negação».

Um conselho, um ensinamento literário ou mesmo de outra qualquer natureza é sempre um motivo de jamais desperdiçar até porque reiteradas vezes ouvimos dizer que quem não ouve os conselhos dificilmente chega à velho e ouvir é uma das maiores virtudes dos humanos conscientes.

Reiner Rilke, ao que se diz, «um rapaz frágil e dotado» tinha fama de complicado e homem muito difícil de lidar. Entretanto, tinha discípulos, sendo Franz Kappus o mais conhecido. Em dado momento, Kappus, ainda e certamente, «com indícios tímidos de uma voz própria», duvidando da sua vocação «…decide enviar a Rilke alguns versos, repetindo um gesto há séculos feito por jovens poetas», conforme nos diz Francisco Vale. Sabe-se que a correspondência entre ambos, mestre e discípulo, seguiu-se por mais de dois anos.            

 Aos cinquenta anos, Virgínia Woolf escreveu a Letter to a Young poet  (hoje por demais conhecida), dirigida ao jovem poeta John. Mesmo não sendo ela uma poetisa mas sim aquela grande romancista que ainda hoje lemos com muito agrado, Virgínia ousou e aconselhou aquele suposto aprendiz de feiticeiro.

Rilk e Woolf coincidiram, nos seus conselhos aos jovens, relativamente a necessidade de mais leitura e muita paciência. Ambos contrariaram a pressa de publicar. Rilke chegou mesmo a dizer que «a paciênciaé tudo!». A paciência e a leitura proporcionam-nos o amadurecimento e lendo um livro rendemos sempre uma profunda homenagem a quem sacrificou horas de um irreversível tempo para o escrever. Só assim entendemos a expressão de Jorge Luís Borges segundo a qual «todos os livros são dignos de serem lidos» cabendo-nos, simplesmente, enquanto leitores, atender as prioridades da nossa consciência pois sempre o leitor desempenha um papel fundamental porque acaba por enriquecer a obra ou o livro e também a si mesmo, fazendo sempre por compreender aquilo que lê e sentindo a necessidade de um maior aprofundamento.       

 Para Borges, a cada uma hora de escrita correspondiam dez horas de leitura. E assim se forja um escritor ou mesmo um verdadeiro intelectual.

Bem próximo dos seus 89 anos, o filósofo Alemão Jurgen Habermas, em entrevista recente ao jornalista Borja Hermoso para o EL PAÍS-Brasil,muito profundo, alerta-nos da impossibilidade da existência de intelectuais não havendo mais bons leitores a quem alcançar com os argumentos esgrimidos e, já nos idos de 80 do século passado, o prof. Manuel Ferreira chamava a atenção para o fraco nível intelectual dos escritores africanos de língua portuguesa. Na leitura, na densidade, no grau de literariedade e nos argumentos da escrita criativa estava, certamente, o cerne da questão então apresentada com uma certa preocupação.

 Um verdadeiro intelectual, em princípio, lê compulsivamente. Escuta atentamente e vive na grandiosidade de saber transmitir humildemente e sem o nefasto “contentismo fácil” (escrevendo ou falando) o seu conhecimento científico e literário da maneira mais simples possível. Portanto, ambas, a- cultura literária e acultura científica- conformam aquilo a que vulgarmente chamamos de Cultura Geralmas, vimos não raras vezes entre nós, gentes que autoproclamando-se intelectuais e escritores, conforme diz o crítico Eugénio Lisboa «…apenas ouvem – quando ouvem- “falar de” coisas de ciência, cujo sentido profundo de todo lhes escapa.»

É Eugénio Lisboa, grande mestre das nossas literaturas, no seu ensaio sobre as DUAS CULTURAS quem nos diz: «Uma boa passagem pelo universo da ciência, pelas exigências da ciência, pelo rigor e cautela, repito, que a ciência requer e recomenda, daria ao discurso literário de quem o produz, outra nitidez, outra transparência, outro sabor, – e outro valor…».

 Lisboa, sugere que, nos dias de hoje, quanto menor for o fosso ou o distanciamento entre asduas culturas… melhor. Sempre em razão do ‘perigo iminente de incomunicabilidade’ e ‘devido àaceleração da produção criativa, a ritmo quase alucinante’.         

Ao terminar, deixo aqui a transcrição de um pequeno extrato de uma longa conversa mantida com Lília Momplé. Lília é uma octogenária escritora Moçambicana que, mesmo não se encontrando na mídia com a vulgaridade habitual, procurei e encontrei nas terras do índico onde, no Centro Cultural Brasil-Moçambique, passamos uma arejada e amena tarde de conversa, começando por pedir-lhe que me falasse da existência de uma relação livro/leitura/escritor pois, tendo sido professora de profissão, muito ainda tem para nos ensinar.

 [L.M.-Sobre os livros há muita coisa para dizer. Para um estudante o livro é a única coisa que dá ginástica mental. Os livros, por exemplo, vacinaram-me contra a sedução do poder. Eu não sou nada apegada ao poder e uma das coisas que aprendi nas estórias que a minha avó contava era que os animais mais fracos sempre conseguiam vencer os animais mais fortes por causa da sua inteligência. É que naquela «fortaleza» dos fortes estava sempre mesclada um pouco de estupidez e isso sempre foi assim e continua sendo assim até hoje.

Veja que os nossos Ministros hoje são quase imortais ou pelo menos assim se sentem. E são as estórias e os livros que me fizeram estar sempre longe do poder, e sem apetência para a ostentação porque  os animais das estórias da minha avó eram sempre fracos mas acabavam por vencer os mais fortes pela sua inteligência.

A importância do livro é única. O livro é que nos dá a cultura geral que nos faz compreender seja lá o que for…

O livro é muito mais importante que a televisão. A televisão é uma torneira de qualquer coisa que a gente está ali a consumir passivamente ao contrário do livro. O livro não. Com o livro temos que ser ativos somos obrigados a ser ativos. O livro obriga-nos a ir mais além e conseguir compreender o mundo e por isso muitos cientistas são leitores compulsivos porque foram ajudados através da leitura a querer saber muita coisa.

 L.F.-…E a internet?

L.M.-A internet é outra torneira que só despeja. Na verdade um aluno que não lê -livros!-, é um aluno medíocre. Em matemática um aluno tem de saber ler as equações. Pode até saber solucioná-las mas não o faz porque não entende o que se lhe pede e isto acaba por acontecer em todas as disciplinas.

Para aqueles jovens que querem escrever, a condição fundamental para escreverem é ler. A pessoa que não lê não pode escrever. Não pode. É impossível. É necessário que tenhamos diariamente contacto com os livros ou com algo que preenche o nosso imaginário como por exemplo a literatura oral.]

“Não há pensamentos perigosos. O pensar em si já é perigoso”,

Hannah Arendt

Entre a Bíblia e a Constituição que conhecimento nos é necessário para melhorar a condição humana? Quando me refiro à Bíblia, incluo também todas as escrituras sagradas que alegam conter a palavra divina capaz de aperfeiçoar os homens e religa-los ao divino. Quanto à Constituição, refiro-me à Lei-mãe que visa regular a convivência entre homens dentro de uma nação, no sentido de lhes garantir o bem-estar, a segurança e a justiça. A resposta para questão supracitada passa, portanto, por uma reflexão sobre os maiores problemas da humanidade.

E os maiores problemas que afectam a espécie humana têm sido a pobreza e os conflitos no mundo. Os homens estariam numa condição satisfatória se, dia-a-dia, não lhes faltassem os alimentos e não precisassem entrar em conflitos para atingir os seus interesses. Mas que causas geram mais pobreza e conflitos no mundo? A falta do conhecimento e prática da palavra sagrada ou a falta do domínio das leis seculares? Esta disjunção é duplamente justificável. Ora há quem possa defender que a falta da palavra divina no homem torna-o corruptível ao ponto de ele tomar decisões que geram mais pobreza e conflitos no mundo. Ora haverá quem diga que o desconhecimento das leis da polis torna os homens fáceis de serem roubados os seus direitos e deveres ao ponto de haver mais pobreza e conflitos no mundo.

De modo a ultrapassar-se este impasse da busca de causa primeira responsável pela pobreza e conflitos no mundo, urge perguntar-se: entre promover o conhecimento bíblico e conhecimento da constituição, que conhecimento aprimoraria mais a condição humana.  Ora o conhecimento bíblico tem o poder de nos levar à introspeção no sentido de avaliarmos e guiarmos a nossa vida na retidão dos mandamentos divinos, enquanto o conhecimento constitucional lança-nos para fora de nós mesmos, coloca-nos perante o contrato social e apresenta-nos as nossas responsabilidades para podermos conviver como homens civilizados dentro duma polis segura e cada vez mais próspera. Se a Constituição actual não nos permite esta condição, ao menos, dispomos de infinitas possibilidades de altera-la até adaptar-se às nossas utopias, pois as suas leis são, por natureza, revogáveis. Ao contrário, temos as escrituras sagradas que por natureza são mensagens dogmáticas que se arrogam ser verdades eternas.

Por isso, para fim último de melhorar a condição humana, mais vale os homens dedicarem-se mais ao conhecimento da lei secular do que da lei divina, pois enquanto eles confinarem-se às igrejas, consumindo versículos, o mundo lá fora continuará descuidado e inalterado. Mas, quando mediante a Constituição, os homens têm conhecimento dos seus direitos e deveres e fazem esforço para vê-los cumpridos, ainda que desapareçam as escrituras sagradas, haverá avanços na defesa dos direitos humanos, bem-estar e segurança. Sem o conhecimento da Constituição, por mais crentes que sejam, os homens continuaram extremamente propensos à manipulação das elites políticas responsáveis pelo desenvolvimento econômico e humano duma nação.

Não sugiro a erradicação das escrituras sagradas, mas proponho uma maior atenção a coisas da polis, pois este é o espaço onde dispomos de todos os instrumentos necessários para construirmo-nos como uma geração superior daquela que nos precede e deixarmos melhores condições para florescimento da geração posterior e um mundo melhor. A humanidade lucraria mais se a Constituição fosse comprada e lida à mesma frequência quanto o é a Bíblia e se as palestras sobre cidadania ganhassem mais espaço que as sessões de pregação que temos assistido nas praças, paragens, transportes públicos, etc.

Ryszard Kapuscinski: “Em pleno centro, a meio da Independence Avenue, há um edifício de quatro pisos, com varandas com balaustradas destruídas a toda a volta – o New Africa Hotel. No último piso, há um enorme terraço, onde existe um bar com algumas mesas. É aí que conspira a África dos nossos dias. É aí que se encontram os refugiados, exilados e emigrados de todos os cantos do continente. Geralmente, numa mesa sentam-se Mondlane de Moçambique, Kaunda da Zâmbia, Mugabe do Zimbabwe. Noutra, Karume de Zanzibar, Chisiza do Malawi, Nujoma da Namíbia, etc. O Tanganica é o primeiro Estado independente nesta zona, daí que sejam para ali atraídas pessoas de todas as colónias. À noite, quando o tempo arrefece e a brisa vinda do mar se começa a fazer sentir, o terraço enche-se de pessoas, que discutem, decidem sobre planos de ação, medem forças e calculam as possibilidades de sucesso. O terraço então num centro de decisão, numa ponte de comando. Nós, os correspondentes, somos, obviamente, frequentadores deste espaço, para obtermos informações. Como já conhecemos os líderes, sabemos quais as mesas a que vale a pena sentarmo-nos. Sabemos que Mondlane, simpático e aberto, gosta de conversar, enquanto Chisiza, enigmático e reservado, não abre pura e simplesmente a boca.”

Leio este relato impressivo do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski, considerado o maior repórter do século XX, no seu celebrado livro Ébano. Kapuscinski aterrou em 1957 pela primeira vez em África, como correspondente de um jornal de seu país, tendo como objectivo testemunhar o início do fim – parece uma contradição? – da era da colonização. Esteve no Gana nos primórdios da independência, que ocorreu em 1957 – a antiga Costa do Ouro foi a primeira nação africana que se tornou independente, no caso dos ingleses -, onde ouviu Kwame Nkrumah. A sua interacção com Kofi Baako, antigo desportista e professor, que se tornou um dos populares ministros, é paradigmática do tipo de governo e sonho que o Gana então projectava. Ao destino do seu líder carismático e dos seus desígnios aconteceu o que configuraria o destino de África cuja cartografia este livro traça notavelmente. Em 1962, Kapuscinski vivia em Dar es Salaam, altura em que cruzou com personagens como Eduardo Mondlane; viajou de lá para Kampala, no Uganda, para assistir à independência deste país que começa errático. Justamente nesse dia acordava atordoado num hospital recém-inaugurado, por causa de uma malária. Fez aquela viagem de carro sem mapas nem bússolas, o que em si era já uma grande aventura. Foi, mais tarde, dos primeiros jornalistas a aterrar em Zanzibar quando um golpe expulsou o sultão do poder. Conhecera no New Africa Hotel, de Dar es Salaam, Abeid Karume, que viria a ser o primeiro presidente da ilha. Lidou em Dar com os protagonistas das independências. Percorreu o continente ao longo de quatro décadas. Viveu a tragédia africana, testemunhou o genocídio étnico no Ruanda. Cruzou África e escreveu sobre as pessoas que encontrou, que eram pobres na generalidade – interessou-se mais por estas do que pelos poderosos líderes -, redigiu as suas histórias, muitas vezes, quase sempre, violentas, muito duras, duríssimas.

Leio Ébano e sinto-me sobressaltado pelo relato fascinante de um homem que foi testemunha privilegiada da história do meu continente. Estava ele em Zanzibar – a tentar escapar da situação ardilosa que se vivia na ilha – quando se dão golpes simultâneos no Quénia, Tanganica e Uganda. Em 1966 está em Lagos, na imensa Nigéria. Regista no seu diário o golpe de Estado que ocorre na altura. Fala de Abubakar Balewa (na época primeiro-ministro nigeriano), Ahmadu Belo, Samuel Akintola, entre outros, executados a 15 de Janeiro de 1966. O golpe é liderado pelo Major-General Johnson Thomas Aguiyi-Ironsi, que irá presidir à Nigéria, entre 16 de Janeiro de 1966 a 29 de Julho do mesmo ano, quando morre assassinado. Esta história, necessariamente violenta, necessariamente sangrenta, fascina-me. Parece um paradoxo? Leio-a empolgado. Conhecer o passado de África na pena de um jornalista que viveu um momento histórico irrepetível, isso não parece incongruente com uma perspectiva crítica dessa mesma história. Antes pelo contrário.

Esta irresistível viagem ao passado explica muito do que rapidamente esquecemos ou desprezamos, a história recente, dos últimos 50 anos, de uma África devastada pela seca, pela fome, pela guerra, pelo saque, pela corrupção, por uma geração de ditadores e ineptos, uma África que substituiu poderes do ocidente que a dilapidaram por outros (africanos) sequiosos de o fazer, proclamando uma sangrenta legitimidade. Ler este livro é um leniente contra a amnésia. Cresci ouvindo dizer que a culpa do nosso atraso, a culpa da nossa inércia, a culpa do nosso subdesenvolvimento, a culpa da nossa pobreza, a culpa da ausência de futuro ou a culpa da desilusão que sentíamos em África advinha do colonialismo. Passam mais de cinco décadas e somos incapazes de dar, no geral, um sentido que não seja o anátema da desgraça. Entretanto gerações de líderes, entretanto as guerras, entretanto a fome e a seca, entretanto a incapacidade. Leio este livro e uma memória histórica acode-me. Muitas das origens das nossas desgraças estão aqui explicadas. O colonialismo, sem dúvida, mas também a liderança africana é responsável pelo que aconteceu ao continente. Da Nigéria ao Uganda, nos relatos deste grande repórter polaco, que viajou pelas intransitáveis estradas africanas, que enfrentou emboscadas, que se cruzou com ditadores, que foi interpelado por rebeldes insurrectos, que assistiu a golpes de Estado, que falou com muitos dos seus protagonistas, que relatou o quotidiano de miséria que a promessa das independências não conseguiu desfazer, estes testemunhos, repito, são de uma dureza, são de uma extraordinária virulência. O que ele relata de Idi Amin poderia parecer ficção de tão hediondo e inclemente; ou o seu lancinante quotidiano na Nigéria, um dos países mais desiguais de África, entre uma oligarquia rica e uma população paupérrima; a sua pungente descrição de Lalibela, na Etiópia, assolada por uma fome responsável por um verdadeiro genocídio, facto escondido primeiro por Hailé Selassie e depois por Mengistu, que o derrubou e matou; tudo isto é devastador, tudo isto é medonho e atroz. Ao ler os seus relatos do Uganda, no tempo de Idi Amin, precedido por Milton Obote e por Tito Okello, todos eles ditadores que acabaram fugidos para o estrangeiro, no tempo em que os sargentos e coronéis ou generais autoproclamados marechais, desde a República Centro Africana, do infelicíssimo Bokassa, a Uganda do próprio Amin, cobriam o continente de ignomínia e miséria, fica-se com uma cabal ideia do que aconteceu de excruciante em muitos países.

Este relato é fascinante porque é o primeiro esboço da história. A história a quente. Essa é a grande arte do jornalismo: fazer o rascunho da história. A história de África é vista aqui por alguém que a relata no momento em que ela acontece, e não me venham dizer que se trata de um olhar exógeno para desvalorizar este relato. Ler Ryszard Kapuscinski é um murro no estômago. Estes relatos parecem um mundo cruel, malvado, desumano, bárbaro, impiedoso, insensível. São-no, efectivamente, um mundo que existiu, um mundo que existe ainda no nosso tempo, mas sobretudo denunciam uma mentalidade que ainda existe. Por isso, a democracia, a liberdade de imprensa, os direitos humanos e outros avatares do mundo ocidental chocaram com as circunstâncias e os homens de poder em grande parte de África, mesmo quando estes os proclamavam. Por isso é que é tão agreste a paisagem africana, embora, tal como o autor no-lo diz, não exista uma entidade uniforme que seja África, que o conceito uniformizador e necessariamente enquistado não produz a imagem de uma realidade tremendamente diferenciada como é a dos países que constituem o vasto e por vezes implacável continente africano. As lutas fratricidas, as guerras étnicas e tribais, os ódios viscerais, a intolerância em relação ao outro, a brutal incapacidade de aceitar a alteridade, o poder, a corrupção, a ânsia pelo enriquecimento são alguns dos males que atravessaram transversalmente o continente. Esta leitura é também um exercício devastador, mas essencial para a compreensão da chamada crise africana.

O diagnóstico de África parece muito duro. Mas não reflecte a verdade? Ryszard Kapuscinski interpela os africanos. Babashoa Chinsman (da Serra Leoa): “não é verdade que África tenha estagnado. África está a desenvolver-se, não é apenas o continente da fome”. John Menru (da Tanzânia): “África precisa de uma nova geração de políticos, que aprendam novas formas de pensar. A geração actual tem de abdicar do poder. Em vez de pensarem no desenvolvimento, estas pessoas pensam apenas na melhor forma de se manterem no poder, uma saída para África? Tem de ser criado um novo clima político, a) no qual se aceite o princípio de que o diálogo é imprescindível, b) permita uma participação da sociedade na vida pública, c) que respeite os direitos fundamentais do Homem, d) que leve à democracia.” Sadig Rasheed (Sudão): “não há certeza de que as sociedades africanas sejam capazes de adoptar uma posição autocrítica, mas disso dependerá muita coisa”.

Ryszard Kapuscinski: “O espírito europeu reconhece as suas limitações, aceita a sua imperfeição, é céptico, duvida, põe tudo em causa. Há outras culturas às quais falta este espírito crítico. Mais ainda: têm tendência para a superioridade, para considerarem que tudo o que as distingue é perfeito; por outras palavras, não conseguem ser autocríticas. Estão constantemente a responsabilizar outras pessoas e outras forças (maldições, diversas formas de domínio estrangeiro) pelas desgraças. Os representantes destas culturas vêem na crítica uma ofensa pessoal, uma tentativa consciente de os humilhar, uma forma de os maltratar. Se se lhes disser que a sua cidade está suja, é como se se lhes dissesse que eles próprios estão sujos, ou têm as orelhas mal lavadas, o pescoço e as unhas carregados de sujidade. Em vez de estarem disponíveis para a crítica, arrastam atrás de si todo o tipo de traumas, complexos, sentimentos de ódio, indignação, insatisfação e manias. Isto leva a que cultural e estruturalmente eles não sejam capazes de desbravar o terreno do progresso, e sejam incapazes também de ter em si vontade para a mudança e o desenvolvimento.”

Tenho pensado muito neste ponto. O lugar da crítica e da reflexão nas sociedades africanas. Um tema muito difícil, muito complexo e contraditório. Ryszard Kapuscinski interroga-se: “Será que as culturas africanas (em África, há tantas como religiões) pertencem a estas culturas inatingíveis e sem poder de crítica? Africanos como Sadig Rasheed começam a refletir sobre isso, pois querem encontrar uma resposta para a pergunta: por que razão é que África está a ficar para trás na grande corrida dos continentes?”

Boa pergunta.

Tenho um amigo que insiste que a obtenção da liberdade material é indispensável para a afirmação intelectual dos africanos ou para a afirmação do espírito crítico dos mesmos. Estou parcialmente de acordo. Porque nenhuma liberdade material pode ser garantida numa anarquia, no meio de despotismo ou perante a arrogância de poder, em África ou onde quer que seja. Essa liberdade e essas garantias podem desaparecer de um dia para outro e deixar a pessoa literalmente indefesa. As garantias das liberdades são muito frágeis neste contexto. Os direitos de que fala Rasheed não estão, de todo, garantidos.

Ébano relata a cultura da violência no continente. O que aconteceu na Libéria e a descrição do assassinato de Samuel Doe são disso exemplo paradigmático. Lembro-me vagamente desta história. Foi presidente entre 1980 a 90, tendo derrubado William Tolbert, instaurando, pela primeira vez, um poder dominado por descendentes de nativos africanos, até então dominados por descendentes de escravos oriundos da América, que fundaram a Libéria em 1847. A tortura que antecede a morte de Doe às mãos de Prince Jonhson, que lutava contra ele e contra John Taylor para a tomada de poder, foi filmada e circulou na época. Jonhson aparece a beber cerveja enquanto ordena que se corte a orelha do presidente. Ryszard Kapuscinski relata com pormenores esses dias de opróbrio da Libéria. Dias lúgubres. Duros de se lerem. É claro que estão nos antípodas da Libéria de hoje. África, no geral, deixou há muito de ser o retábulo dos ditadores. O que Ryszard Kapuscinski descreve crua e cruelmente, essa realidade duríssima que nos dominou, responsável por guerras, de facções que se querem apoderar do poder por aquilo que este representa como captura dos bens e da riqueza dos seus países é uma advertência. Este livro é um alvitre esmagador. A sua leitura deixou-me exaurido. Estou exausto. É profundo e perturbador. Penetra na selva africana, interpela os demónios que atravessam a longa noite africana. Talvez por isso tenha sido tão fascinante mergulhar nessa densa e demoníaca noite. Leio uma edição recente intitulada Ébano. As anteriores edições levavam o título de Ébano – Febra Africana. Ryszard Kapuscinski, nascido em 1932, morreu aos 74 anos, em 2007. Deixou uma vastíssima e aclamada obra, o seu nome foi cogitado para o Prémio Nobel. Não foi apenas um repórter em África, que conheceu profundamente. Também andou pela América Latina. Tenho deste autor incomplacente para ler Mais Um Dia de Vida – Angola 1975. Preciso, no entanto, de respirar e ganhar um novo fôlego.

 

É através dos nomes que se chega ao conhecimento que os homens têm.

João Paulo Borges Coelho

Ngungunyane é um nome importante, quando se fala da história de Moçambique dos últimos 150 anos. Quer por ter resistido à dominação colonial portuguesa até ao limite das suas forças, quer por ter travado tantas ofensivas contra os chopes, povo que desprezava, enfim, mereceu dos autores moçambicanos muita atenção. Por isso, temo-lo na escrita de Rui de Noronha, Ungulani Ba Ka Khosa, Guilherme de Melo, Paulina Chiziane e, mais recentemente, na de Mia Couto. Cada livro destes autores reivindica o fragmento da história que lhes pertence ao escrever sobre uma figura tão controversa, além dos consensos como foi e é Ngungunyane. Com efeito, esta figura não só inquieta escritores ou historiadores, há também actores apaixonados pela ideia de desbravar um campo fértil de que ela é feita. Assim, não espanta o interesse de se levar aos palcos a peça teatral Os netos de Ngungunyane, que, mais do que ser uma adaptação da trilogia As areias do imperador, deixa evidente a ambição de se buscar conhecimento perdido algures, em algum período do tempo, a partir do nome do imperador e dos valores semânticos aí subjacentes.

O espectáculo encenado por Bruno Huca tem cerca de 20 minutos e, além do encenador como actor a traduzir de forma categórica a ciência da representação, numa actuação incrível, ao nível dos melhores, também conta com as actrizes Rita Couto e Sufaida Moyane. Embora curto, este é um trabalho de teatro muito denso, no qual se convida o espectador a procurar rostos, lugares e episódios na sua memória, no que sabe e ouviu dizer.

A peça até começa sugerindo um bailado, algo que ganha relevo nos movimentos corporais dos actores. Mas logo se percebe que é outra coisa de enorme qualidade. Concorre para o efeito a excelente conexão do trio, que consegue mergulhar num submundo e de lá retirar tantas alegorias relacionadas com o actual momento enfrentados pelos moçambicanos, por exemplo, no Norte do país, com “essas guerras que não começam, já vêm acontecendo”.

A principal pretensão deste texto teatral ainda em preparação é sugerir que a história do Imperador de Gaza não acabou, pelo contrário, continua, mas é preciso procurá-la no ADN da descendência que ele deixou em Moçambique e noutros cantos do mundo. Daí o título da peça e o enredo não se focarem nem nas lágrimas nem no sangue derramado. Vai além disso, complementado a história para a não repetir com excessos. Nessa tentativa de indicar o caminho conducente à moradia dos netos de Ngungunyane, numa encenação aparentemente simples, sem alteração do cenário inicial e quase sem variação da luz, o espectáculo envolve-nos num diálogo a altura do que Aristóteles considera seres superiores, quando se refere ao acto da representação na sua Poética. São discursos muito sólidos os proferidos pelos três personagens, os quais apostam nos recursos estilísticos como elementos fundamentais para tornar o enunciado algo aprazível de se ouvir. Desse investimento, a maior consequência, em alguns momentos, é mesmo essa de as frases sobressaltarem-nos por sugerirem uma realidade tão nossa quanto rotineira: “É assim que se procede em África. Dão-se oferendas aos grandes chefes”. À parte esta verdade, o personagem representado lindamente por Huca diz-nos: “Bebíamos para fugir de um lugar e tornámo-nos bêbados porque não sabíamos fugir de nós mesmos”. Há beleza…

Ora, neste jogo de buscar o passado como quem tenta preencher as lacunas do presente, instaura-se um conflito entre as próprias personagens que almejam encontrar a descendência de Ngungunyane, pois, a certa altura, surge na trama um momento de aceitação vs. recusa da descendência do imperador. Aí nos perguntamos quem são ou podem ser os netos de Ngungunyane e como a partir deles sempre podemos reconstruir os labirintos da história de Moçambique, com ou sem heroicidade.

Título: Os netos de Ngungunyane

Encenador: Bruno Huca

Classificação: 16

 

“Superioridade ou inferioridade?

Porque não tentar tocar o outro, senti-lo e descobrirem um e outro”

Frantz Fanon

“Se nós pararmos, eles vão parar?” Eis a questão hipotética dos que combatem o terrorismo e são combatidos pelo terrorismo. Quanto mais se pensa que se avançou consideravelmente na eliminação de grupos terroristas, mais cedo ou mais tarde, células de terror voltam a reproduzir-se com fim de continuar a infernizar os velhos inimigos dos seus ancestrais. Os laços de amizade, de parentesco e, ou, de lealdade são as mais inabaláveis garantias de que o nosso projecto poderá ser continuado breve ou tardiamente pelos próximos, após o nosso fim energético ou existencial.

Esse espírito de promessas implícitas nas relações humanas também está presente em organizações terroristas movidas fundamentalmente pelas ideias. Na luta contra o terrorismo, a morte dos supostos jihadistas passa a ser um objeto de vingança dos terceiros. Ou seja, basta o assassinato de um pai amado para o filho entregar-se à sua vingança. Se não é o filho, é o irmão. Se não é irmão, é o sobrinho. Se não for um sobrinho, poderá ser um amigo ou um admirador que vai procurar vingar-se ou continuar o projecto do seu ídolo. Tratando-se de uma célula terrorista por eliminar-se, quantos filhos, irmãos, sobrinhos e amigos terão de ser mortos para erradicar-se a organização, lembrando que as vítimas mortais, por sua vez, têm filhos, sobrinhos e amigos dos amigos?

A caça a uma cadeia toda de inimigos em busca de eliminar-se o terrorismo tem uma implicação grave que é de destruir uma parte imensurável da humanidade, pois o homem, terrorista que seja, é um ser sujeito a relações, logo que chega ao mundo. E enquanto o homem mantiver o compromisso com a reprodutividade da espécie, a humanidade estará ligada por laços. Dai que combater células de terrorismo implica declarar guerra uma parte imensurável da humanidade. Mas o mesmo ocorre quando são as células terroristas a banalizar o mal no território dos inimigos. A luta torna-se inexaurível. Em cada civil inocente morto nasce um amante que lhe quer vingar. O amante pode ser um filho, primo, irmão, amigo, sobrinho, pai, etc. Tudo indica que “sangue derramado não seca, nunca”. Ele só faz germinar continuamente sementes de vingança e ódio a estilo da Hidra de Lerna que, quando lhe é cortado uma cabeça, em substituição, crescem-lhe duas. O movimento de solidariedade “Je suis Charles Hebdo” aplica-se a esta ordem de ideias, pois quando os terroristas pensavam ter eliminado cabeças do jornal satírico francês, pouco depois, o mundo ergueu-se como Charles Hebdo.

São dois factores que podem levar o homem a continuar o projecto do mártitr: a ideologia ou o amor. A ideologia como doutrina que visa explicar o passado, o presente e desvendar o futuro mostra-se um sistema capaz de oferecer salvação e felicidade aos seguidores. Quanto ao amor, quando o seu objeto deixa de existir, é capaz de transformar o amante num instrumento de ódio e vingança. Os dois factores tornam-se razões suficientes para o engendramento dum círculo vicioso de vingança dentro do quadro da luta contra o terrorismo. Células terroristas no Médio Oriente podem estar a reproduzir-se ou fortificar-se pelo número de homens que ou acreditam na ideologia do grupo ao ponto de sacrificar as suas vidas ou porque veem o grupo como um meio para vingar os seus entes queridos em guerras passadas e não ultrapassadas.

O que devíamos aprender dessas histórias de luta contra terrorismo é que o espírito de violência consiste em reproduzir mais violência. E o espírito de violência afigura-se-nos fatal, quando concordamos com Frantz Fanon que entende que tudo que é gerado pela violência é só pela violência que pode ser destruído, apoiando-se, sobretudo, em factos da luta contra o colonialismo. Em outro ponto de vista diferente, Hannah Arendt avança a esperança de que só o perdão é capaz de desfazer o círculo vicioso de violência. O perdão como uma decisão de olvidar as mágoas e reiniciar a construção do que estava perdido deve-se afigurar incondicional na relação entre o ofendido e o ofensor. Caso condicional, deixa de ser perdão e torna-se ou vingança ou castigo. A relação entre perdão e vingança é de oposição, porém, quando se trata de castigo, este deve ser visto como alternativa conciliatória do perdão. Enquanto quem se vinga deseja satisfazer o seu ódio pelo sofrimento de outrem, quem procura castigar o opressor deseja reabilitar o indivíduo das suas acções. Ou seja, na vingança, o intento é de destruir o outro na pior medida, desconsiderando totalmente possibilidades da sua regeneração, diferente do castigo que se afigura um meio de o indivíduo expiar os seus males – é, unicamente, por este fim que foram criados os centros de prisão civil. A esperança de que os indivíduos venham a redimir-se dos seus erros é a razão suprema da existência das cadeias civis. A redenção é também a meta do castigo. Pode dar-se o caso de o ofensor convencer-nos de estar arrependido dos seus erros ao ponto de justamente aplicarmos o perdão, ao invés do castigo que se torna desnecessário, salvo quando prevalecem questões de indemnização.

Nesta ordem de ideias, toda a punição dada a um já redimido configura-se como um acto de opressão sádica. E todo o acto vingativo dispõe desse carácter sádico por não mais atender o fim de reabilitação do indivíduo. Todavia, há certos crimes que por se mostrarem tão atrozes e premeditados não mais nos permitem vislumbrar a reabilitação do delinquente. Nesses casos, os sistemas judiciários optam pela prisão perpétua ou pena de morte. Retomando a questão-mor “se nós pararmos, eles vão parar?”, a resposta afigura-se-nos um impasse entre os terroristas e os anti-terroristas por várias razões intrínsecas ao próprio conflito. Os terroristas movidos pela ordem religiosa que manda converter ou matar todos os infiéis, ainda que os anti-terroristas declarem trégua, estes são incapazes de parar até execução da sua missão. A única forma menos violenta de faze-los parar de cometer esses actos macabros seria a desconstrução invalidatória da escritura sagrada, sobretudo, no mandamento mortífero. Caso contrário, a guerra é inevitável. E para os terroristas movidos por questões político-económicas, a trégua passa pelo diálogo virado a programas políticos de inclusão económica. Quanto aos terroristas movidos pela dor de perda dos entes-queridos, o trabalho de paz deve ser feito num sentido fazer-se justiça ao passado e, quando convier, exercer-se o perdão sem se prescindir das indemnizações.

Todavia, dá-se casos em que os indivíduos mostram-se relutantes para ceder os seus interesses, mesmo estando cientes da insensatez das suas causas. Nestes casos em que o mal não mais resulta da falta do conhecimento, o único remédio afigura-se a guerra. É uma desoladora conclusão, mas necessária, dando a entender que ainda que seja pela negativa, a guerra faz parte da condição humana. Desde os primórdios que os homens fabricam a sua própria destruição, vencendo sempre os que dominam a arte da guerra. O maior desafio que se coloca à humanidade em geral para evitar-se cada vez mais conflitos no futuro deve ser uma educação cujo foco é a consciência planetária. Na medida em que decidirmos ser mais cosmopolitas e pensar menos em nossos interesses locais e egocêntricos, menos guerras irracionais registaremos num mundo que nos pomos a construir.

 

Uma utopia é uma realidade em potência.

 Édouard Herriot (1872-1957), político francês

Até agora não sei bem se foi por coincidência da folga no calendário futebolístico do mundial Rússia 2018 que as conversas desta sexta-feira eram todas mornas. Tudo despertou e incendiou-se depois de um velhote pontapear a monotonia, deixando assim a sua marca no livro dos recordes. O madala estava sentadinho na primeira fila do chapa, de óculos escuros, um casaco a condizer com a época de frio e, adicionalmente, usava um pau preto a servir de muleta, como fazia há uns anos o saudoso doutor dos doutores Mujuabure.

No entrocamento entre as avenidas 24 de Julho e Guerra Popular, um carro parou ao lado do semi-colectivo. Um homem de barba farta, qual  monhé à maneira dos filmes da primavera árabe.

O cobrador pôs-se apreciar o homem barbudo, cobiçado, «quem me dera ter aquela barba, John…»

O velhote ao meu lado, quase saltando da cadeira resmungou:

– Mas você não tem nada para gostar, não tens vergonha, menino? Aquilo só vai te dar borbulhas e sujidade, meu filho! E, repisando:

– Se você gosta, então cria a barba e verá o que vai acontecer.

O cobrador, discordando, abanou a cabeça, numa expressão conhecidíssima da sua geração, «mas este velho não bate bem, não está ma apanhar nas ideias».

O velho que deve andar na casa dos 68, 70 anos pontapeou a conversa para bem longe, como se faz no futebol para aliviar a pressão e contra-atacar:

 – Eu não gosto de barba. Até já fiz questão que os meus filhos não tenham.

Escutei tudo aquilo lendo o livro do notável escritor japonês Haruki Murakami, por sinal, um homem também sem barba.

E como  o velho não se dava por satisfeito, nem sequer sentia haver saboreado os louros da glória voltou à carga – Mesmo as minhas filhas quando começaram a ter mamas aos 12, 13 anos mandei tudo voltar para dentro…

Desta vez não pude tolerar o silêncio, já não conseguia manter-me pregado ao livro do nipónico. E desatei a perguntar:

– Como é que isso se faz isso, pai? Sabe que isso é ciência pura… – comentei vagamente.

– Não sou cientista, meu filho.

– Onde aprendeu, mesmo. Com os seus pais cá no sul?

– Sou do norte, sou de Tete, meu filho (talvez quis dizer norte do Zambeze, entenda-se…). Aprendi há muito tempo, antes de ir para tropa portuguesa em Montepuéz. Eu não queria ser incomodado nas folgas. Toda hora os meus amigos, depois da folga me diziam «vou fazer a barba». Eu ficava sossegado no meu cantinho. Para mim a barba é nojenta.

– Mas como isso se faz, pai?- voltei à carga!

– É muito segredo isso, meu filho.

– Mas, pai… – insisti.

– Está bem. Vou te dizer quando descermos. – prometeu o madala!

– Obrigado

Voltei a deitar os meus  olhos nos HOMENS SEM MULHERES  de Murakami,  conservando uma expectativa crescente pelo momento «H».

O velho que não estava para brincadeiras voltou à carga, gabando-se:

– os meus netos também. Os grandes e o pequenos não vão ter barba. Já lhes fiz o tratamento.

Os dois passageiros da frente e o motorista desataram a rir, à bandeiras despregadas. E, nestes tempos do campeonato do mundo até pareciam adeptos senegaleses na vitória à Polónia.

Pus o marcador na página onde me debruçava,  há pouco. E decidi manter a conversa com o velho, até às últimas consequências.  

– Mas pai! Não vê que está agir contra a natureza humana? Os seus filhos gostam de não ter barba? Que eles dizem, mesmo?

– Eles não querem saber de nada. Veem a mim pai deles sem barba. Não se incomondam. Até riem quando ouvem alguém preocupado em fazer barba no fim de semana para ir a uma festa ou cerimónia.

– Mas as coisas estão a mudar. O mundo é o outro, pai. Veja agora muitos jovens e adultos usam barba farta, cabelo grande. – Será que os teus netos vão gostar quando descobrirem no futuro que o avô fez isto de propósito para cumprir com os seus gostos. Não será isto egoísmo? – indaguei!

– Meu filho vocês como andaram aí a estudar pensam que sabem muito. Eu nem quero saber disso. Eu até lhes fiz um favor. – rematou o velho.

A moça, ao meu lado já tinha lágrimas riscando-lhe o rosto, pelas intermináveis risadas, de tão contente.

O cobrador partia a moca, esquecendo-se de dar trocos a uma outra moça desfeita em gargalhadas descontroladas.

– Vocês aqui no Maputo não sabem nada mesmo… – Lamentava o velhote.

Fui obrigado a descer na paragem do Hospital Central de Maputo para continuar a conversa com o velhote. E como já estava atrasado soltei a pegunta de partida, ao que o madala respondeu:

– para o teu filho não ter barba põe gema de ovo de galo.

E velho meteu-se pelo HCM a dentro sem olhar para trás feito Orfeu.

Não se espantem, meus amigos se, por estes dias me virem muitas vezes no HCM, num e noutro canto, deambulando. Ando à procura do velho de Cahora Bassa. Depois de contar esta história a muitos amigos ando à procura da resposta do velhote para saber como ele faz para os seios das meninas voltarem para trás antes dos 16 anos. De tão envolvido que estava em memorizar a história para não ter barba, perdi outros pormenores deste achado. Vejam que esqueci-me de pedir o contacto daquele doutor dos doutores, nem tão pouco perguntei pelo seu nome.

O que me preocupa  é o meu filho de 4 anos, já com manias de querer fazer a barba, um dia desses saiba que eu registei esta história do velhote de Tete. Vou telefonar aos meus amigos Daniel da Costa, Naguib, Sérgio Vinga, Zeca Ussene para certificar-me destes saberes e, porque não sabores do Zambeze.

Se você tiver acesso a uma dezena de canais de televisão e procurar novidades do desporto luso, vai ficar refém em mais de metade deles, das tropelias de um menino mimado, apontado ultimamente como tendo perturbações mentais, que ao invés de ser submetido a tratamentos psiquiátricos, vai abrindo noticiários, monopolizando manchetes e contrariando decisões da justiça portuguesa.
Estou a falar do ex-Presidente do Sporting Clube de Portugal, que sem ser portador de uma arma de fogo, conseguiu – e tudo indica que vai continuar – “disparar” em várias direcções, atingindo o desporto naquilo que de mais profundo deveria ser a sua essência: uma escola de virtudes! É um assunto de Portugal, mas que deve merecer meditação em todos os quadrantes do mundo.

Demoniocracia

O escândalo que Bruno de Carvalho protagonizou nos últimos três meses, virou a Comunicação portuguesa de pernas para o ar, subalternizando assuntos até os grandes incêndios que vitimam milhares de pessoas. Mesmo no que ao desporto diz respeito, os OI's “esqueceram-se” do título conquistado pelo Porto e até subalternizaram a participação lusa no Mundial.
Importa vender, vender, vender. E quanto mais escândalo, melhor!
A partir de vários ângulos, a opinião pública foi verdadeiramente intoxicada com uma novela sem fim à vista. Por alguns, o que aconteceu é entendido como democracia no desporto, mas na realidade não passa de “demoniocracia”.
Mesmo sem ser directo na sua declaração, o Presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, veio a público dizer que se não se pode tolerar a existência de “dois portugáis”: o do desporto e o outro. Isto porque se aquelas acções, sem a cobertura do futebol, já teriam merecido uma acção mais enérgica das autoridades.

Nada será como dantes

Agora, a família leonina poderá ter que passar a incorporar à selvajaria das claques, que separava antes dos grandes jogos os adeptos ferrenhos dos grandes clubes, uma novidade: nos jogos do Sporting, terá que haver separação dos pró e anti-Bruno de Carvalho!
Até onde chegou a febre clubística e a falta de bom senso!
Entre nós, no Norte, há um embrião de algo semelhante, no campo da Bela Vista, em que, recorrentemente, se transformam os jogos em campos de batalha. A responsabilização é encoberta pelo facto de se tratar de adeptos do futebol.
Há que tomar medidas duras enquanto “o jacaré está no ovo”, para que as coisas não se alastrem e façam nascer por cá, “clones” de Bruno de Carvalho, dirigente que, para mal dos nossos pecados, até nasceu na Província de Sofala. 

 

Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
no degrau da porta de casa,
graves como convém a um deus e a um poeta
Fernando Pessoa

A
Ouri  Pota e Cremildo Bahule

Saudações, caros ouvintes da Rádio Boca! O escritor Faife respondeu à carta de Suaila Ginabay.  A carta foi entregue há poucos dias, pelo seu agente literário que, depois de rubricar o envelope na presença de um dos membros da comissão organizadora, de mãos nos bolsos, revelou-nos sorridente que Faife, apesar de andar ocupado com um novo projecto literário fez questão de responder à filha de Deus. Confiram, caros ouvintes a lavra do escritor.

Querida Suaila,
É com declarado orgulho que te saúdo esta manhã. Li a tua carta com entusiasmo e quase tenho certeza que se concretizou o milagre vaticinado há séculos. Hoje é um dia especial. Transborda em mim a alegria de uma criança perante o primeiro brinquedo, na presença uma visita ilustre, como a tua, Suaila. Li a tua carta acossado por todos os lados pelos meus filhos, como quem disputa um lugar no concerto de Míriam Makeba no pavilhão do Maxaquene.

Imagino quão lindo é o teu  imenso jardim, esse sorriso.  Sou uma pessoa que aprendeu a admirar as outras, em particular gente que transmite esperança neste mundo, já sem sentido. Sou um felizardo, confesso-te. Implodiste com as minhas emoções, com o que acabaste de me revelar. Vejo na tua correspondência a sugestão de uma manhã aberta para o futuro.

Ainda me interrogo, com tantas novidades na prateleira moçambicana foste logo escolher o meu texto. Quando mais não seja esta admiração que revelas por mim. Grandes autores publicaram recentemente, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Marcelo Panguana, Paulina Chiziane, João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo. E outros notáveis como Rogério Manjate, Pedro Pereira Lopes, Macvildo Bonde, Lucílio Manjate, Andes Chivangue, Mbate Pedro, Sangare Okapi, Lica Sebastião, Sónia Sultuane, Chagas Levene, foste tu,  logo dar ao meu livro. Que mais te posso dizer?

Aceito o desafio, mesmo sem saber onde socorrer-me nesta missão, um pouco espinhosa, ou saber ordenar as ideias para te ajudar na escolha do noivo que te faça justiça. Espero corresponder aos teus mais fundos propósitos.

Entretanto, depois de conversar com a minha esposa entendi que o teu apelido me é familiar, Suaila. Tenho uns primos da parte materna com ligações à família Ginabay. Conheces o Yuri? É fotógrafo num jornal cá da praça.
Vai parecer-te estranho, mas adianto que sou um homem pouco dado à palavra e nem sei de onde vem esta energia que transforma o matraquear das teclas em texto. Sou realmente um desajeitado. Se não fossem os meus amigos a empurrar-me com umas palmadinhas nas costas, nas nossas conversas de café, não sei mesmo o que seria de mim, nem sequer haveria de imaginar o silêncio deitado na minha algibeira.

Vejas, tu Suaila que num assomo repentino, a página ficou encharcada de enormidades, como as vagas do mar sobre a areia da praia. Esta imagem lembra-me Quissico e o som das marrimbas. Espero que isto faça algum sentido.

Cabe a ti aguentares com as escolhas. O meu dedo foi cortado mil vezes e renasceu por que não me arrependo das escolhas que fiz nesta vida. Saberás um dia dizer-me quanto te custou esta aventura.

O meu bocejo não significa sono, nem desinteresse, Suaila. Vou beber água e continuar a sonhar. Espero receber em breve tuas notícias afortunadas, tal é a sina melódica em Zavala.

Preste bem atenção num detalhe que pode transformar a nossa correspondência num castelo de sorte no Verão. O meu e-mail está na antepenúltima página, em caracteres miúdos. Assim escreverás directamente para mim, encurtando distâncias nesta auto-estrada. Há muitas perguntas que reservo para a próxima missiva. Hoje ficarei por aqui, desejando-te bons dias, Suaila.
Com toda admiração,
Um beijinho!

HF
Ficamos por aqui, caros ouvintes. A nossa rubrica promete mais novidades na próxima edição. Por favor leiam obras de escritores moçambicanos para serem muito felizes!
Boas leituras!

 

 

Foi o meu dilecto amigo Álvaro Belo Marques, de quem fui discípulo, quem me havia de levar a Baptista-Bastos. Sabia da minha devoção intrémula por ele. Era, entre os escritores portugueses, aquele a quem mais empregava o meu entusiasmo quando se lhe referisse. Lera sobretudo o cronista, mas também o romancista. Lera-lhe tudo o que era possível encontrar em Maputo: As Palavras dos Outros (crónicas e reportagens), Cidade Diária (crónicas), Capitão de Médio Curso (crónicas), Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura (romance), Elegia para um Caixão Vazio (romance). Recordo-me destes títulos. Cumpliciava com o Álvaro a minha entusiasmada admiração. O Belo Marques era ao tempo o meu mestre em jornalismo, meu e de uma geração. Homem cultíssimo e de uma finíssima sensibilidade, tinha do Álvaro Belo Marques a benesse da conversa e da tertúlia, nas quais falávamos amiúde de livros, de escritores, de música, de cinema, de teatro. Falávamos com urgência da vida. Baptista-Bastos, o autor dos títulos que referi acima, era um ponto de convergência da nossa amizade e na sua veneração. Quando fui a Lisboa, em Junho de 1988, em jornada cultural, ele acederia encontrar-se comigo. Para mim, foi uma espécie de láurea.

Encontrámo-nos, justamente, no dia 25 de Junho de 1988, um dia jubiloso, era um sábado, recordo-me, e foi numa taberna lisboeta do Bairro Alto, denominada Águia D´Ouro. Ali nos encontrámos e ali firmámos a nossa amizade. Para sempre. Nem sempre o escritor que devotamos coincide com a personagem quotidiana que leva o seu nome. Pode acontecer serem duas pessoas diversas. Há tipos que escrevem coisas belíssimas e, no entanto, difíceis no trato e no convívio. É preciso ter cautela. Alguém asseverava que se devia manter distância quando amamos a obra de um determinado escritor para não experimentarmos a decepção de o conhecer. No caso do Baptista-Bastos, o contacto com ele e o convívio que tivemos ao longo dos anos aumentaram a admiração que tenho e que sempre tive pelo escritor. Comigo o homem foi sempre de uma grande afectuosidade. Uma grande generosidade, digo. O homem não desmentiu o escritor, antes pelo contrário. Sobretudo porque nunca abjurou dos seus valores.

Naquele dia, o Baptista-Bastos, também conhecido por B-B, não estava a beber, estava com um abcesso na boca e pediu uma água das pedras.  Ele escrevera algures: “O álcool reconforta-me, dá-me a ilusória aparência de equilíbrio emocional, mas destrói-me a memória vocabular e torna impossível qualquer expressão de dissidência.” Em Elegia para um Caixão Vazio afirmara: “Hoje já não me aflige muito a circunstância de beber em demasia. Desinteressei-me das causas e rebelei-me contra os efeitos.”

Eu estava ali diante de um verdadeiro “demónio tutelar” – expressão usada pelo colombiano Gabriel García Márquez ao falar do mexicano Juan Rulfo, que escreveu esse livro ímpar chamado Pedro Páramo, que o terá influenciado definitivamente -, o mais importante de todos. O mestre foi enfático: “Então, ó Nelson, como vai Moçambique?” e deu-me um abraço, um abraço rijo, como redigiu numa das dedicatórias, de um dos livros que me ofereceu. Falei-lhe de Moçambique com a brevidade necessária de quem queria ouvi-lo sobretudo. Ele falou-me dos episódios do quotidiano, a história de personagens do dia-a-dia. Ele amava as pessoas e gostava de discretear sobre elas. Tudo isto bebericando a sua água das pedras. Eu lera o seu auto-retrato e ali confrontava-me com o homem que não era o simulacro do que tinha descrito no romance Elegia para um Caixão Vazio, antes pelo contrário: “Este sou eu. E olho-me. O cabelo vai ruço, o olhar míope, vago, dorido, taciturno, e outrora não foi nada disso. As pálpebras, velas de muitas palavras sopradas, lidas e escritas; de naus melancólicas cheias de álcool, rumando absurdos portos de abrigo, os bares. À procura de quê, ó Bastos, à procura de quê? Muito mais de metade da vida consumida a aprumar frases, a tentar acertar num livro, numa historinha, numa reportagem, e sempre ignorado, ou conhecido somente pelos estafetas da cordialidade.”

Baptista-Bastos: “Cá estou eu. Um capitão de médio curso que não é capitão nem é nada; um retirante, porventura.” Para mim, sim, ele era um capitão, um capitão de médio e longo cursos. Eu viera de Maputo, de uma geografia longínqua para lhe dar um abraço. Ali estava com ele, o meu mestre, o maior de todos os meus mestres. Falou-me do amor aos homens, o amor irrenunciável à liberdade, a crença de que a felicidade era possível entre os homens, entre todos os homens. Dissera-me ele: “Os homens não foram feitos para serem heróis”. Esta frase ainda reverbera em mim. Os homens foram feitos para viverem em paz e harmonia, acrescentara ele. Os demónios que se escondem no mato das nossas refregas deviam ouvir isto. Os deuses e os demónios. Sabe-se que a paz, a concórdia, o acordo são vocábulos dissonantes da nossa experiência colectiva.  

Falou-me sobretudo do ofício quotidiano das palavras, o ofício de capitão de médio curso; falou-me sobre a azáfama das redacções, onde expendia os seus dias, onde ele debitava o seu amor aos homens e à liberdade. Onde ele contava as histórias da sua gente, a gente do quotidiano. Vinte anos depois daquele nosso primeiro encontro – outros tantos marcariam a nossa amizade -, ele publicaria o livro de crónicas A Cara da Gente. É sobre essa gente que ele se ocupou a vida inteira, nas suas crónicas, nas suas reportagens, nos seus romances. Escritor de primeiríssima água, para mim, indubitavelmente, o maior cronista português do século XX. À época, o maior cronista vivo da língua portuguesa. Naquela ocasião falámos de grandes cronistas e eu referi-me aos cronistas brasileiros, entre eles Rubem Braga. “O meu amigo Braga!”, exultou ele sobre o autor de O Conde e o Passarinho ou A Borboleta Amarela.

Baptista-Bastos ensinou-me, naquela brevíssima tarde, um dos segredos da reportagem: “Começa a reportagem com o facto que mais te emocionou.” Esta foi uma lição de vida. Antes de redigir um texto, diante da pantalha do computador, ou quando batucava – eis um vocábulo pilhado ao meu mestre – na minha vetusta e manual Royal, uma máquina de escrever, que se perdeu nos anos e da qual tenho saudades absurdas -, antes de me atirar ao ofício das palavras, digo, recordo-me da advertência do mestre de sempre: penso sempre no facto que me emocionou.

Outras obras de Baptista-Bastos posteriores àquele primeiro encontro: Um Homem parado no Inverno, O Cavalo a Tinta da China, No Interior da Tua Ausência, As Bicicletas em Setembro (romance) ou a A Cara da Gente (crónicas). Uma extensa e extraordinária obra, premiada e traduzida.  Escritor de grandes paixões, leio-o sempre exaltado e apreendo-lhe as paixões e a ternura torrencial que invade as suas páginas. A sua grande generosidade. O seu profundo humanismo. O seu amor aos outros. Escreve ele: “Jovem escritor, assaltou-me a petulante ambição de narrar invenções sobre os outros, a maneira que entendi melhor para recusar a vida tal como ela se apresentava.” Isto é extraordinário. Li isto, em Agosto de 2008, no frontispício do livro A Cara da Gente. Do quarto do hotel, em plena Copacabana onde me encontrava, escrevi-lhe: “Tenho sobre a mesa, neste quarto de hotel, sobre a Avenida Atlântica, em Copacabana, As Bicicletas em Setembro e A Cara da Gente. Dois livros recentíssimos. Li-os na longa travessia pelo Atlântico e recordei-me daquele dia triunfante. De ti li quase tudo. Leio-te empolgado ainda hoje. Naquele tempo, quando aprendi a batucar as crónicas que eu levava debaixo do braço para o jornal Notícias, lia e relia a Cidade Diária. E intentava o meu caminho tendo-te como meu predecessor. Disse-o e repito: escolhi-te para meu mestre, meu velho Baptista-Bastos. Digo “velho” com o pungente significado de afecto que este adjectivo tem na minha cultura. Para mim, para nós, dizer velho é uma forma de reverência, de respeito. Tu bem sabes, eu sei, mas o aviso serve aos incautos.”

Digo algures: os seus livros estão carregados de um profundo humanismo, mas não escondem, por vezes, uma ternura magoada. João Paulo Guerra, um amigo comum, um grande jornalista português, disse uma vez que Baptista-Bastos escrevia reportagens com lágrimas nos olhos. Eu li-o sempre com lágrimas nos olhos e muitas vezes quis escrever como ele: com lágrimas nos olhos. Comecei por ler as crónicas, li as entrevistas, li as reportagens, li os romances. O esplendor da língua. A luminosidade das palavras. Poucos escrevem com igual competência linguística: vocabular e semântica. Poucos manejam e remanejam a língua portuguesa como ele.  

Ele diz: “O jornalismo é uma disciplina superior da literatura.” Ele está na grande linhagem dos grandes cronistas portugueses. Ele é o maior cronista português do século XX. Sei que esta frase encerra, sublinha, enfatiza, uma veemência, uma exclamação, algo superlativo. Sou assim: veemente e, inadvertidamente, irreverente. Gosto de ser enfático. Ponho nas palavras ou tento pôr tudo quanto sou. Com a intensidade desprevenida de quem ama sem se precaver das desilusões.

Tive a honra e o privilégio de o ter a apresentar e a apadrinhar, em 1997, na Oikos, em Lisboa, o meu livro O Apóstolo da Desgraça, esse título que foi parodiado displicentemente no vocabulário político moçambicano, e que serviu para cercear a liberdade daqueles cujo ofício e destino é baterem-se pela liberdade do pensamento e das palavras, algo incompreendido e malvisto e malquisto, entre nós. Recuperei-o para título desta coluna. Também sou pelo direito à diferença e pela liberdade de discordar. O meu amigo Baptista-Bastos haveria de publicar o texto daquela apresentação num jornal para o qual ambos debitámos textos e paixões – o Público – com um título inesquecível: “A sintaxe do coração.” Nesse belíssimo e comovente texto ele falava da nossa amizade urdida no amor às palavras, no amor à liberdade e no amor incondicional aos outros – o nosso ofício quotidiano.

Sempre que o vi, sempre que nos encontrámos, foi com afecto que sublinhámos a amizade, com ternura incontida, entre o mestre e o discípulo. No longínquo e memorável dia – passam 30 anos! – em que ele bebia água das pedras, numa taberna do Bairro Alto, ainda fomos, pelas ruas estreitas de Lisboa, ao jornal Diário Popular, onde ele exercia então a mais bela profissão do mundo: a de repórter. Naquela redacção, onde se atafulhavam paixões, papéis, notícias, telexes e sonhos, ele tinha uma dezena de livros para me oferecer. Sentou-se à secretária e ajeitou os óculos. Parava e contava uma história, entre um autógrafo e outro. Numa vitrina, por detrás da secretária, coleccionava caricaturas, entre as suas destacava-se uma do grande Ernest Hemingway.

Vim, debaixo do braço, com O Secreto Adeus, O Passo da Serpente, Cão Velho entre Flores, Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura, Elegia para um Caixão Vazio, A Colina de Cristal (ficção), As Palavras dos Outros, Capitão de Médio Curso (crónicas) e O Homem em Ponto (entrevistas), no qual ele redigiu no frontispício: “25. Junho. 1988. Nelson Saúte: Não esqueças, nunca, que O Homem em Ponto põe sempre em ponto a questão da liberdade. Do português para o moçambicano, Baptista-Bastos.” O “nunca” está sublinhado. Nunca me esqueci disso, do seu profundo significado, do profundo significado da questão da liberdade. E faço quezília em lembrá-lo, sempre, sobretudo nestes tempos sombrios e atravessados pela mediocridade e pela intolerância, da qual tento estar a salvo, lendo e escrevendo, ouvindo música e amando sempre – dado que não sou afeito a ódios -, com ênfase e veemência.

Passam 30 anos hoje (redijo este texto à segunda-feira) sobre o dia em que nos encontrámos. A última vez que falei com ele foi a 27 de Fevereiro de 2013, no dia dos seus 80 anos. Falámos brevemente ao telefone. Eu estava emocionado por saudá-lo naquele dia. Há um ano, a 9 de Maio, chegou-me a infausta notícia: Baptista-Bastos deixara de pertencer ao reino dos vivos. Um mês depois, a 16 de Junho, foi o Álvaro Belo Marques. Perdi, numa assentada, dois grandes amigos, duas personagens importantes na minha vida. Um dia voltarei ao Álvaro. Queria hoje recordar-me do meu mestre Baptista-Bastos, quando passam, neste dia 25 de Junho de 2018, dia da nossa independência, três décadas sobre um dos encontros literários mais importantes e decisivos da minha vida.

Numa recente intervenção na Grande Conferencia do 130.º Aniversário do Jornal de Notícias (Português) realizada no dia 1 de Junho, no Porto, Daniel David, o patrão do Grupo Soico, não poderia ter sido mais claro: a língua portuguesa não é um activo estratégico porque não gera rendimento; pelo contrário, é um passivo que as empresas da comunidade lusófona têm de suportar. É que, segundo Daniel David, os negócios em português obrigam a traduções, dificuldades de mobilidade, sendo, por isso, “(…) preciso um sobressalto de inteligência que crie um ambiente favorável para que [os] empresários [façam] negócios”. Mas a língua portuguesa tem um enorme valor, ainda que simbólico, quanto mais seja por ser a nossa língua oficial. E esse simbolismo é importante e deve contribuir para a defesa dos (nossos) interesses nacionais. É inquestionável que a língua inglesa é conhecida por ser uma língua universal, uma língua de negócios. As palavras de Daniel David, ainda que discutíveis, pretendem ilustrar a importância de uma língua de negócios como o inglês. O ano que levo em trabalho fora do país não deixa margem para dúvidas sobre a importância e o uso do inglês como língua de trabalho, ainda que algumas organizações internacionais potenciem o uso de outras línguas como o Francês e o Espanhol. O facto de a nossa língua oficial ser o português é uma desvantagem, mas que devemos aprender a usá-la como vantagem. Moçambique tem feito um enorme esforço para atrair investimento estrangeiro, sendo, nesse âmbito, essencial conhecer o inglês, até porque isso facilita a (nossa) interacção com os investidores. Mas creio que isso não nos pode levar não só a minimizar a língua portuguesa, como a pôr em causa os nossos interesses nacionais. Os exemplos da resolução de litígios através da arbitragem comercial internacional ilustram esta situação. Tem sido comum definir o inglês como a língua que é usada nos casos de resolução arbitral de litígios entre entidades públicas nacionais e entidades públicas ou privadas estrangeiras. Basta olhar para os contratos publicados pelo Instituto Nacional do Petróleo (http://www.inp.gov.mz/pt/Politicas-Regime-Legal/Contratos-de-Pesquisa-Producao-de-Hidrocarbonetos) e o recentemente aprovado Modelo de Contrato de Produção e Pesquisa (Decreto n.º 46/2016, de 30 de Outubro e publicado em http://www.inp.gov.mz/pt/Politicas-Regime-Legal/Modelo-de-Contratos-de-Pesquisa-e-Producao). Nuns casos, os contratos até estão em duas versões – português e inglês – mas a que prevalece em caso de conflito é a versão inglesa. No caso do Modelo de Contrato, a situação é muito mais grave porque condiciona Moçambique nas negociações. Não pretendo defender que o inglês não seja usado, mas ilustrar que o não uso do português é prejudicial para os interesses do país. Regra geral, as negociações são feitas em inglês, até porque são áreas, como é o caso do petróleo e gás, onde o inglês é habitualmente a língua da indústria. Sucede que o mundo arbitral é dominado por países falantes de inglês, cujo sistema jurídico tem raízes na common law, enquanto no nosso país o sistema jurídico é de civil law. Não é uma questão de substituir este por aquele: qualquer um deles é um sistema sólido e que tem implicações culturais. Não cabe neste texto indicar as diferenças entre um e outro sistema, mas trata-se de realidades e culturas bem diversas, sendo o inglês uma língua da common law. Um dos argumentos que pode ser usado para defender o português é de natureza legal, mas os que são mais importantes são de outra natureza. Determinar que em caso de litígio a versão do contrato que prevalece é a inglesa, é, aliás, ilegal, uma vez que esses contratos estão sujeitos a fiscalização prévia do Tribunal Administrativo que só visa contratos em língua portuguesa. Assim, em caso de litígio, como estes contratos determinam que a lei aplicável ao fundo da causa, ou seja, a lei aplicável para resolver a questão concreta colocada ao tribunal arbitral (lei diferente das regras processuais aplicáveis para resolver o litígio) é a moçambicana, então a versão que deveria prevalecer é a moçambicana. Mas, infelizmente não é o que acontece. Basta ver os exemplos acima referidos. No momento da negociação de um contrato não se imagina que possam surgir conflitos, mas um bom negociador deve pensar nisso e precaver-se relativamente ao local ou sede da arbitragem, sobre as regras processuais aplicáveis para a arbitragem, sobre as regras e o processo de escolha de árbitros e sobre lei aplicável ao fundo da causa. É, aliás, por isso que a cláusula da arbitragem é designada por cláusula da meia-noite, justamente porque quando chega a altura de a negociar, não só as partes estão cansadas, como o essencial – na opinião delas – já está negociado, esquecendo-se da essencialidade dessa cláusula. Um negociador de um país da common law vai defender o uso de tribunais estaduais de um país da common law ou uma arbitragem em inglês, com sede num país falante de inglês, aplicando-se regras de instituições arbitrais internacionais inglesas. Sabe, à partida, como resolver as questões acima referidas e, mais do que isso, quer, porque conhece, as regras da common law. Diz-se que a capacidade negocial dos países da periferia como Moçambique não tem permitido que se imponham nessas negociações, exigindo, por exemplo, o português como a língua da negociação, a língua do contrato que prevalece em caso de litígio e a língua da arbitragem. Acrescento uma outra razão: o desconhecimento das consequências da escolha de uma língua diferente do português é um factor relevante. Só posso considerar que foi por ignorância que o Governo aprovou um Modelo de Contrato em que a arbitragem tem sede na Suíça, a língua da arbitragem é o inglês, a versão do contrato que prevalece em caso de litígio é o inglês. E o que não deixa de ser notável, é que a lei aplicável ao fundo da causa é a moçambicana. É isso tem enormes consequências, desde logo os enormes custos que resultarão das traduções que serão necessárias fazer, não só das leis nacionais, como também de outros documentos e dos depoimentos das partes, testemunhas ou peritos, considerando que estas, razoavelmente serão moçambicanas e estarão mais à vontade expressando-se perante o tribunal arbitral em português. É por isso que os contratos deveriam ser, se não forem negociados em português, pelo menos a versão que prevalece deveria ser a portuguesa; a língua da arbitragem deveria ser o português. As instituições arbitrais internacionais estão preparadas para responder a estas situações, tal como estão preparadas para responder a decisão do Brasil de impor o português como língua do contrato em assuntos de direito público. Uma das formas de defender o interesse nacional – permitindo que entidades públicas e não só nacionais estejam mais à vontade nessas situações – é obrigar o uso do português. O meu mandato como Membro da Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI) foi renovado por mais 3 anos, por isso vou continuar a defender um maior uso da língua portuguesa na arbitragem internacional em defesa dos interesses do país. Como recentemente disse José Miguel Júdice numa conferência no Club Espanhol de Arbitrage, quando ninguém está familiarizado com a linguagem da lei aplicável e/ou com uma certa lei, pode haver uma tendência de conspiração que surge entre os envolvidos, porque aí descobriremos (muitas vezes tarde demais) que a lei que foi escolhida pelas partes para resolver o conflito, será substituída por um sistema ad hoc inventado e posto em prática pelo tribunal arbitral com elementos de várias jurisdições, experiências passadas dos árbitros, ideias subjectivas de justiça e uma disposição para resolver o conflito de uma vez por todas de uma maneira que muitas vezes parece um divórcio, independentemente das regras aplicáveis ??à situação. Quem está numa arbitragem internacional em defesa de Moçambique – o segundo de entre os países de língua oficial portuguesa, depois do Brasil, com o maior número de litígios na Câmara de Comércio Internacional – sabe das dificuldades e consequências do uso de outra língua que não seja o português.

O Cabo de Mongue contracosta com Linga Linga. Estes nomes dizem relativamente pouco, ou, rigorosamente, nada. Uma península e uma ilha, no Índico, na terra da boa gente, que assistiram a dezenas de naufrágios no pré-colonial e, muito para lá, do período da acumulação primitiva do capital.

Mongue fica, em direcção à eternidade  horizonte, pouco mais de meia centena de metros da imaginária linha do nível de tantas águas.  Um precipício que segue e determina, de forma abrupta, o ponto final da viagem para qualquer alma mais curiosa e que sofra de alucinações. Aqui, bem no topo da colina, como lá nas profundezas, final da falésia, só reinam os Deuses das lacunas e a fé dos crentes.

Mongue foi o local escolhido pelos  Franciscanos, em 1893, que, acto contínuo, construíram  uma igreja, bem no cume da montanha. Construir em locais altos, em busca de segurança e calmaria, sempre foi apanágio do colonizador e, indiscutivelmente, dos que navegaram com um crucifixo numa mão e, uma bíblia na outra. Simbologia da força, poder e salvamento das almas perdidas. Mas, construir no topo da colina, infelizmente, também, tinha  incontroláveis contornos e inconvenientes. As poeiras, os frios de fora de época e, os malignos ventos do sul. Para as igrejas, ainda pior, impedia que os fisicamente menos dotados, se fizessem ao culto, com a regularidade desejável.

Um pouco mais que igrejas e missões, Mongue tem algo milagroso. Os caranguejos com brincos de ouro. Difíceis de serem encontrados, segundo o mito que virou verdade, os caranguejos de brinco de ouro, não são, facilmente vistos por qualquer visitante. Existe um conjunto de pescadores que os conhecem e veneram. Uma geração que se recusa a desvendar os segredos, mas que fala sobre os caranguejos com convicção. Estes caranguejos de brincos de ouro, igualmente,  não podem ser pescados e nem consumidos por quem quer que seja. Vivem como senhores da tranquilidade.

Não se conhece bem a sua origem, porém, os locais, muito poucos, por sinal, conhecem bem o mangal e seus habitats. Seria uma espécie de Deuses de Mongue. O mundo tem uma variedade extensa de caranguejos. Uns maiores e outros menores. Os povos adoptaram nomes diferentes para cada espécie. Fazem parte da cadeia alimentar de um vasto conjunto de peixes e aves. Estes, porém, por serem de ouro, devem nascer, viver, procriar e desaparecer, sem obedecer às fatalidades dos predadores. 

Inhambane nos presenteia, de tempos em tempos, com estas raridades que teimam em não ser mitologia. Sempre que se contesta, então, com vivacidade, os locais argumentam, alto e em bom som, sobre a saga da Laurentina. Esta menina que, em 1989, fez parte dos náufragos na baía, quando o barco ancorava no primitivo porto da cidade. Laurentina ficou nas profundezas e as famílias de Homoíne, sua terra de origem, acreditaram sempre que ela regressava à superfície, uma vez por ano, para anunciar a sua eternidade. 

Uma vez por ano, rufavam-se os tambores para que ela levitasse, das profundezas, e confortasse os errantes humanos que eternizam seus dons e poderes. Escutando as descrições e os contornos, somos, todos, intimados a acreditar que a mitologia não faz denominador e nem fracciona as realidades deste povo e terra.

Comecei o novo ano vasculhando estas inconfidências. Quis, com olhos católicos e espírito pagão, entender porque os caranguejos de brincos de ouro irradiam tanto temor, mesmo sendo parecidos às mais belas mulheres da península. Queria descobrir de quantos quilateis são feitos os brincos e, se alguma vez eles se descolam do corpo. Até gostaria de saber onde os caranguejos os escondem quando não estão em uso.

Milhares de perguntas e só uma dezena de respostas. Um país inteiro que quer conhecer os Deuses das lacunas de Inhambane, a terra que mais gente rica e propriedade privada criou ao longo dos tempos. Esta terra de fartos coqueiros que se furtam às pragas e ao amarelecimento letal. Mas apenas consegui regressar como cheguei. Visitas e prolongadas, conversas com mais misticismo e pouca explicação.  

Apesar do desencanto, a  fé, um dia, me ajudará a encurtar as distâncias dos entendimentos dos raros fenómenos da natureza. Enquanto isso não acontece, fica a ressonância das vozes que defendem todas as verdades e nenhuma filosofia. Os caranguejos de brincos de ouro e a Laurentina para quem os tambores deixaram de ecoar. Um cheiro apetecível e deslumbrante de uma terra com todos os tons e sabores.

O primeiro Mundial de Futebol a que assisti, pela televisão, foi o de Espanha em 1982. Tinha quinze anos e era assíduo frequentador do Grupo Dinamizador, ali entre as avenidas Ahmed Sekou Touré e Filipe Samuel Magaia, nos dias dos jogos. Ganhou-o a Itália de Paolo Rossi, o melhor goleador com 6 golos e melhor jogador daquela copa. Diz a lenda que este estripador italiano (que o diga o Brasil) saiu da cadeia para levar a squadra azzurra aos ombros. Não sei se isto é verdade ou não. Mas, como aprendi há muitos anos, numa vetusta película de John Ford, um daqueles westerns inolvidáveis – O Homem que Matou Liberty Valence -, entre a lenda e a verdade, quando a verdade emerge, o melhor é manter a lenda. Mantenho, por conseguinte, a lenda.

A Argentina chegara a Espanha para defender o título de campeã do Mundo, mas soçobrou. Contudo, foi um jogador argentino, de seu nome Mario Kempes, que me haveria de empolgar. Ponho de parte os meus indeclináveis brasileiros, entre eles o Dr. Sócrates, que era mesmo médico: Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Não houve outro com semelhante garbo. Nem o caçula Raí. Mas lá iremos ao Brasil e aos desgostos que me tem dado. Falava de Kempes. Tornou-se célebre por comandar a Argentina na conquista do Mundial de 1978 em casa. Era um miúdo de 23 anos. Não brilhara em 1974, o seu primeiro Mundial. Haveria de fazê-lo em Espanha. Era o número 10, o predecessor de Diego Armando.  

O Brasil deu samba mas não teve glória. O escrete canarinho: Waldir, Leandro, Oscar, Luizinho, Toninho Cerezzo, Júnior, Paulo Isodoro, Sócrates, Serginho Chulapa, Zico, Éder, Falcão, entre outros. Curiosamente, da Alemanha, a vice-campeã, lembro-me de Karl-Heinz Rummenigge. Conhecia o mítico Franz Beckenbauer. Ainda vi remotamente um filme com ele a jogar. A França tinha Michel Platini, Jean Tigana e Manuel Amoros, que foi o melhor jogador jovem do torneio. A arqui-inimiga Argentina tinha, para além de Mario Kempes, Daniel Passarella, Osvaldo Ardiles ou o promissor Diego Armando. Os italianos campeões: Dino Zoff, Marco Tardelli, Claudio Gentile, Antonio Cabrini e aquele que desfez o Brasil com três golos: Paolo Rossi.

Eu assistia aos jogos numa caixinha pequeníssima, presa a uma gaiola no canto superior esquerdo da sala do Grupo Dinamizador do meu bairro, o Bairro Central. As cadeiras brancas de plástico não ofereciam nenhum conforto. Mas éramos tão magros que não as partíamos a cada vez que exultávamos. Naquela época julgo que pouquíssimos moçambicanos tinham televisão em casa. O Mundial e o Europeu eram vistos por alguns na Rádio Marconi, num prédio da baixa.

Vi depois o Mundial do México, em 1986, as coisas tinham mudado. Muitas casas tinham televisão. Ainda com antena portátil, que era necessário direccionar para obter o sinal que chegava, quase sempre, com pingos, depois de um exercício de paciência e com o concurso de todos a dizer qual era a melhor posição. Este foi o Mundial do Maradona. Nos quartos-de-final, no jogo contra a Inglaterra, no Estádio Azteca, contra uma equipa inglesa revoltada, o árbitro Ali Bin Nasser validou “a mão de Deus” de Diego. Maradona iria repetir a trapaça – para ser generoso no substantivo -, no Mundial seguinte, em Itália, 1990, usando a sua mão, não para marcar um golo, mas para impedi-lo à Rússia. O árbitro não viu nada.

José Craveirinha: “Será boato meus beiços a babarem os verdejantes relvados mexicanos/ enquanto o povo gasta os dentes em subjectivas bolas de farinha?/ Ou no México são reais as roliças nádegas de um Diego Maradona/ o presunto mais caro do mais recente futebolismo internacional?// Ligo o televisor e oiço um fulano a perder o fôlego no delírio do gôôô…lo!/ tudo via satélite no interior da minha casa sem eu lhe abrir a porta/ com medo dos fleumáticos anglo-saxónicos chefes de zaragatas/ e por causa das guapas moças de “shorts” a abanarem as mamas/ no centro do ecrã e sem que o árbitro assinale a falta.”

Quando este poema “«Mundial» de Futebol no México (em directo)”, do José Craveirinha, surgiu, foi um murro no estômago. Creio que o li em 1987 apenas, quando, na companhia da Fátima Mendonça, frequentava poetas para arregimentá-los para a causa da antologia que então preparávamos. Foi numa dessas visitas à casa do Craveirinha, ali na Mafalala, que este poema nos deslumbrou. Havia um célebre apresentador da TVE reincidente a dar caneladas na língua portuguesa. O Zé foi implacável com ele: “Quem autorizou o hirsuto “stopper” da semântica em riste/ a agredir impunemente o triste e indefeso Luís de Camões?” Lembro-me de comentar estes versos com a Fátima. Neste poema estava o melhor do Craveirinha, estava o poeta de finíssima estirpe.

José Craveirinha: “Aqui onde as crianças adeptas do Futebol Clube Tuberculose/ roem mandiocas fatais com a tal força anímica/ porquê a prioritária urgência em admirar/ um lírico Sócrates a falhar platonicamente/ um golo mais do que certo?

Como disse, li o poema depois do Mundial. Este poema foi um importante alerta, um despertar, um libelo contra a alienação. Começava, na mesma altura, o meu meu percurso como publicista e o acirrar de uma consciência crítica.  Mas antes  – recordo-me – sofri verdadeiramente com o jogo Brasil-França. Terminou a 1 a 1. Foi nos quartos-de-final. Primeiro foi o Zico, que viu, ainda durante o tempo de jogo, um penalti defendido por Bats e, depois, na sorte nas grandes penalidades, Júlio César e sobretudo Sócrates falharam. O meu ídolo da fita na cabeça.  Seus companheiros: Carlos, Júlio César, Edinho, Elzo, Branco, Júnior, Careca, Alemão, Edson e Casagrande. A França passou, chegaria ao terceiro lugar. Os franceses tinham Tigana e Platini e ainda Amoros. Karl-Heinz Rummenigge, Lothar Mattaus  ou Rudi Voller (Alemanha), equipa vice-campeã. Os argentinos, onde pontificavam Jorge Valdano ou Jorge Burruchaga, para além do astro Diego, foram campeões.

José Craveirinha: “Mas porquê esta fortuita indigestão de futebóis de dólares/ saboreados nos olhos via satélite e nas enfermarias/ o drama das ampolas de penicilina que não temos? // Quem autorizou o hirsuto “stopper” da semântica em riste/ a agredir impunemente o triste e indefeso Luís de Camões?// Com as hábeis botas do sr. Diego Maradona a chutar-nos/ quantos sapatos calçariam os pés dos Meninos/ infutebolizados pelo malfazejo júbilo/ das hienas soltas nas matas?

Não me recordo de acompanhar depois um Mundial da mesma maneira como  fiz entre 1982 e 86. Creio que o meu entusiasmo esmoreceu com o Mundial de 90. Recordo-me da Laranja Mecânica com Frank Rijkaard, Marco Van Basten ou Ruud Gullit. Aquela equipa holandesa era impressionante. Lembro-me da Alemanhã campeã com Brehme, Mattahaus, Voller ou Klinsmann. Ou ainda do Diego Maradona. Recordo-me do Roberto Baggio que fez um grande mundial. Em 1993 seria eleito o melhor jogador do mundo. Ainda vi, displicentemente, o Mundial de 1994 e o vi a falhar, na final, o penalti que daria o título ao Brasil. Mas já não me empolgava tanto, nem o Brasil, nem o Mundial. Daí para a frente, lembro-me muito pouco. Lembro de alguns nomes: Ronaldo, Bebeto, Rivaldo, Cafu, Roberto Carlos, ou Taffarel. Ronaldinho Gaúcho brilharia em 2002, mas em 2006 não esteve à altura. Hoje mal conheço a seleção brasileira. O Neymar não me convence. Ainda gosto de ver Marcelo. Pouco mais.  

José Craveirinha: “Nesta jogada de comida intelevisível/ 60 xambocadas indemocráticas de massas em directo/ mais outras 60 xambocadas em diferido no adiposo/ rabiosque fútil do idolatrado “desporto-rei”/ com dólares “cash” pagos em Maputo/ deliciando o anónimo dono do satélite.”

O futebol tornou-se-me indigesto. O excesso de futebol. O ópio do povo.  Algures no final da adolescência e na entrada da idade adulta percebi que o futebol, a telenovela brasileira e a própria televisão eram lenitivos contra a consciência social e crítica e que, em sociedades como as nossas, com défice de educação e cultura, poderia ter efeitos perversos. É claro que este tipo de avatares ajudam um certo tipo de poderes. Quer isto dizer que não vejo de todo futebol? Não vejo televisão ou não assisto a telenovelas? Vejo o mínimo. Falo de futebol com os meus filhos, mas falo-lhes para além do próprio jogo e dos valores e dos grandes gestos ou das misérias do futebol. Não diabolizo. Não frequento telenovelas – fui um adicto do Bem Amado e do Roque Santeiro -, mas já me deixei disso. A minha droga são os livros. A música. A pintura. A cultura.

A televisão tornou-se um lugar irrespirável: ou política ou futebol. Não há mais nada. Há estações de um país que nos é próximo que ficam semanas com um presidente pária de um clube. Outras tantas cultivam o reino da estupidez. Revoltei-me contra isso aos vinte e poucos anos: as televisões foram invadidas pelo futebolismo. E o desporto? A importância do desporto? O desporto pode ser um instrumento poderoso de inclusão, mas também pode ser de exclusão e de alienação. Vejo com cautela, para não me viciar, um ou outro jogo: Champions, finais de um Mundial, pouco mais. Quando foi do Mundial da África do Sul andei com uma turba amiga a divertir-me por Joanesburgo, Durban e Cidade do Cabo. Não me lembro do que vi em campo, mas dos momentos de cumplicidade e da alegria de levar o meu filho Irati a ver um Mundial. Também me recordo das prodigiosas mamas da Larissa Riquelme, fervorosa adepta do Paraguai, que trazia sempre um voluptuoso telemóvel entre os seus seios.

José Craveirinha terminava aquele seu belíssimo poema dizendo: “Zezé (Um ex-futebolista arrependido)”. Isto por conta dos paradoxais dólares gastos a alugar o sinal de satélite num país com muitas urgências. Muitas vezes me interrogo: quantas bibliotecas se fariam com aquilo que se gasta na incongruência do futebol? Eu não sou contra o futebol, até o acho um espectáculo extraordinário. Só contra um país alienado e pouco educado, um país pouco lido e preparado, um país ululante e nada crítico da realidade circundante. Bem sei que isso não é politicamente correcto. Preferia que se investisse no desporto, incluindo o futebol, nas camadas infanto-juvenis, e não se desperdiçasse dinheiro em clubes insanos, alguns dos quais acreditam que o curandeiro os pode ajudar a ganhar campeonatos. Daí esta minha quezília com o imperialismo do futebol. Porque ele parece ser uma única escolha. Não sou a favor da censura, sou a favor da sociedade aberta. Mas isso implica que eduquemos mais, leiamos mais, cultivemos mais. Quero um país que estime e se reveja na sua cultura, nos seus autores, nos seus escritores, nos seus músicos, nos seus artistas e criadores. Um país que saiba matemática e saiba discernir, um país que consiga destrinçar o essencial do “desimportante.” Um país mais educado e mais exigente. Que tenha no futebol ou lá o que for os seus momentos de lazer e de fruição, mas depois da saúde, educação e cultura.  
Não vejo o Mundial por isso? Vejo-o quando me dá na gana. Não tenho nenhum excessivo entusiasmo e nem me interessa muito. Outro dia um amigo disse que tinha uma aplicação no telemóvel com os jogos e queria passar-ma. Para quê? Não percebeu o meu desinteresse. Não sou nenhum fundamentalista anti-futebol. Nem extremista anti-televisão. Nem anti esses novos instrumentos de comunicação que tanto ocupam boa gente que nem sequer vai perder alguns minutos a ler este meu longo arrazoado a favor da cultura. Os meus momentos de fruição acontecem a ler ou a ouvir música.  Ou entre amigos, dos poucos que cultivo. Por fim, sou capaz de asseverar, a despeito, de que não tenho nada contra o menino que fui aos 15 anos e que comparecia, pontual e religiosamente, no Grupo Dinamizador, ali do Bairro Central, para se deixar exultar com as actuações inolvidáveis de Mario Kempes.

 

Toda a excitação se refugia na esperança de ver o sexo

Roland Barthes

 

Imane Kamal Idrissi, se quisermos, Imane KI, é uma artista plástica que vive em Moçambique lá vão alguns anos. Em Maputo, onde fixou residência, a marroquina tem exposto fragmentos da sua alma, com recurso à essa magia do pincel que apenas cede a poucos seres abençoados. Um desses fragmentos, feito de ilusões, mistérios e narrativas contadas em silêncio – que raio de narrador encontra-se naquelas telas? – é a colectiva A sombra dos sonhos, a qual, além de obras de Imane KI, apresenta, na Fundação Fernando Leite Couto, as de Mi Sook Park, uma artista sul-coreana. Por uma questão de método, hoje, é dos sonhos da artista marroquina que nos ocupamos.

Em O prazer do texto, a certa altura, Roland Barthes diz-nos: “toda a excitação se refugia na esperança de ver o sexo”. Como que a condizer com estas palavras poéticas do intelectual francês, Imane KI dá às suas obras uma série de elementos visuais que as tornam algo envolvente. O principal elemento, na verdade, é a evocação da figura feminina, feita com sedução, numa combinação entre o estético e a razão. Neste exercício, a artista plástica aposta em cores, digamos, taciturnas, (cinzento, preto), buscando, de vez em quando, um vermelho ou amarelo para adicionar um contraste ao essencial das imagens, quase sempre a mulher pintada. É nela que Imane KI aglutina o talento, as convicções e a maneira como se entrevê a partir do que move a sua criatividade.

A sombra dos sonhos, na pintura de KI, é uma exposição em que o desejo, a excitação e a contestação juntam-se para criar um debate sobre a condição da mulher enquanto mãe da beleza e, simultaneamente, vítima primária do que dessa beleza advém. Um exemplo disso é a obra “Pain”, pintada a óleo nas dimensões 102 x 76 cm. Nesta pintura, temos a figura de uma mulher cabisbaixa, escondendo o rosto com recurso às mãos, severamente amarrada. Aparentemente nua, no entanto, sem expor gratuitamente nada. A tela prende, quer pela beleza que possui quer pelo conteúdo ali apresentado. As cordas a sufocarem os pulsos, os tornozelos e as pernas simbolizam essa casmurrice de fazermos do “melhor” da natureza um ser refém da força do homem e das instituições sociais. Imane questiona o fenómeno, lembrando-nos da delicadeza que magoamos, quando partimos essa costela tão parte de nós.

Bem visto, Imane KI faz das imagens femininas uma energia visando derrotar o preconceito, a cumplicidade opressiva, ao mesmo tempo que engrandece predicados, os quais, a nós, os timbilosos, fazem-nos esgotar na esperança aludida por Barthes, afinal, nesta colectiva, está exposta “On the moon light”. Esta pintura (51 x 76cm) há-de ser a mais poética. Não fosse o facto de sabermos que este artigo terá como leitora Angélica Pereira, diríamos que aquela imagem de mulher deitada, expondo tudo à lua, apenas à lua, daí a inveja, é suficiente para trairmos a fidelidade e esbanjarmos em tudo o que a mesma provoca. Enfim, como podemos ferir o sonho de um ser que sabe ser “nossa sombra”? E como podemos não ver a luz que a “sombra” projecta em nós? Parecem ser estas as perguntas centrais da pintura de Imane KI. “Veiled eyes” (64 x 37cm), “Wedding day” (102 x 76) ou “Triangle woman” (43×60) – que também deveria estar nesta colectiva – em conjunto formam um sonho que clama por acontecer. Urgentemente.

Esta é a pintura de Imane Kamal Idrissi, uma obra que mergulha no âmago feminino para cantar a sua causa.

Autora: Imane Idrissi

Título: A sombra dos sonhos

Exposição colectiva

Classificação: 14

 

 

1958, Suécia. Brasil campeão, Pelé, aos 17 anos, revelação da prova e, consequentemente, o melhor do Mundo.

1962, Chile. Masopust, jogador checo, foi para a montra, tornando-se a revelação-mor.

1966, Inglaterra. Eusébio, estrela recém-vinda da Mafalala, deixou boquiaberto todo o planeta.

Naqueles tempos, a grande montra do futebol, era o Mundial. De quatro em quatro anos, “parava tudo” para atender ao valor mais sublime, que era chegar ao título mundial. Para trás, ficavam as diferenças clubísticas, as perspectivas de chorudos contratos e todos os demais feitos dos clubes aos vários níveis, ofuscados pelo bem maior que era levar a Taça Jules Rimet.
Os calendários, os longos estágios e todas as outras agendas, eram hierarquizados de forma a dar primazia àquela que era a montra verdadeiramente universal!

O que mudou

No Mundial da Rússia, o melhor da prova sairá de um “naipe” que não pode fugir a Ronaldo, Messi, Neymar, Pogba ou outra super-estrela já bem conhecida, numa hierarquia que até tem a ver com os “chorudos” salários!
Está-se, na realidade, em presença de uma réplica das principais Ligas Europeias, com a diferença das camisolas permutadas. Dos que actuam nos países que representam, vêm apenas raríssimas excepções. Daí que este Mundial não poderá mediatizar, os já mediatizados.
São estes os sinais de novos tempos e novos ventos. Grande parte dos jogadores estão com os pés na Rússia, mas com o pensamento nos clubes, nas possibilidades de conseguirem melhores contratos. Ou com o temor de perderem as vagas. As épocas estão na forja e candidatos aos seus lugares, são mais que muitos. Representar o país, é bom, mas… o patriotismo pode esperar!
O novo patrão no desporto de competição é o dinheiro. É a ele que os profissionais devem vassalagem. Brilhar ao serviço da Pátria mas perder o lugar na equipa que o sustenta, é um cenário presente, pelo menos nos jogadores ainda sem estatuto (con)firmado.

Aldeia global

Olha-se para a selecção francesa e constata-se que a equipa é composta maioritariamente por naturalizados ou descendentes de africanos. É o que está a dar. Portugal já naturalizou Deco e agora Pepe, para cumprir uma função, não importando o “sótáque”.
O tempo é de globalização, os cifrões ditam as leis. Não é necessário nem saber cantar o Hino de um país, para o representar.
E nós por cá, na nossa pequenez, continuaremos assistentes a participar simbolicamente, sem ultrapassar as pré-eliminatórias? Tentar travar a roda do desenvolvimento, com regras saudosistas que passaram para a história nas grandes nações, é impensável. Fala-se em SAD's mas dificilmente elas sairão das intenções com  profissionalismos de “faz-de-conta”.
Importa reconhecer que o futebol em particular e os outros desportos em geral,  podem ajudar-nos a ser uma parte bem mais activa e actuante nesta ou noutras grandes montras mundiais, com  benefícios imediatos para a nossa auto-estima – e não só – algo que já tivemos o privilégio de experimentar nos tempos dourados de Lurdes Mutola.

Falar de «Recados da Alma», romance de estreia de Bento Baloi, publicado em Moçambique pela Fundação Fernando Leite Couto, em Novembro de 2016, e que teve em 2018 a sua edição portuguesa, pela Ideia Fixa, obriga-me a passar pela memória do nosso primeiro encontro. Conheci o Bento na Póvoa de Varzim, durante o mítico festival literário Correntes d’Escritas, em fevereiro de 2018. Uma das muitas mesas a que tive o privilégio de assistir estava subordinada ao tema “Escrevo para dizer aquilo que não sei”. Entre o cartaz de nomes que iriam intervir, surgia um único desconhecido. Bento Baloi fez a sua comunicação e, quando a terminou, eu senti que passara a conhecê-lo um pouco, pois o texto lido, além de muito belo, entrava por esse mundo fascinante do autor e da sua ficção, entreabrindo a porta para quem era o homem atrás da obra.

O auditório apinhado do Cine-Teatro Garrett comoveu-se com a leitura de Bento Baloi e correspondeu com uma enorme e continuada salva de palmas. Comentei a excelência do texto com quem estava nas cadeiras ao meu lado e, após o término da sessão, venci a minha timidez natural para me colocar junto às escadinhas do palco. Queria cumprimentar aquele desconhecido que, por causa de um texto, passara a ser um camarada, um colega. Acima de tudo, queria dar os parabéns ao Bento Baloi por me ter conseguido emocionar. Apertámos as mãos, num sinal de reconhecimento mútuo, certos de que dali em diante não mais seríamos estranhos um do outro. Na sua generosidade, o Bento ofereceu-me, no dia seguinte, um exemplar do seu romance, assim dedicado: «À Isabel e Paulo, com muita estima e amizade. Um grande abraço fraterno com calor de Moçambique.»

Se cito a dedicatória é porque nela estão contidas algumas pistas para uma possível leitura de «Recados da Alma». As dedicatórias do romance, em parte, prosseguem o texto das Correntes, nesse exaltar de uma mãe que já partiu, mas que, a partir do céu, em forma de estrela, continua a iluminar a mente do autor. Se cito a dedicatória é porque quis entender, nalguns trechos, traços do jornalista tornado romancista, tal como acontecera comigo no meu primeiro livro de ficção, sendo uma curiosidade que os nossos livros comunguem o período dos quentes anos de 1974-1975, embora «Recados da Alma» se estenda por outras décadas. Se cito a dedicatória é por ter sentido nas páginas deste romance o calor moçambicano, seja do sol a aquecer a pele, ou da voluptuosidade dos corpos femininos, ou dos ritmos e movimentos da dança xingombela. E não resisto a ler-vos esta citação: «Sol abrasador fustiga Lourenço Marques. A urbe está calma e as ruas silenciosas demais para o que é habitual. De quando em vez uma meia dezena de automóveis percorre o asfalto da Pinheiro Chagas, alguns à esquerda e outra meia dezena para a direita. O vento não sopra. As acácias vergam-se inertes ao calor húmido que se faz sentir.» Por fim, se cito a dedicatória, é por ter encontrado nesta obra sinais de fraternidade e de mãos estendidas ao próximo.

A sinopse do livro refere que um jovem jornalista, durante a cobertura à operação de salvamento de vítimas das cheias do vale do rio Save, acaba por receber um maço de papéis das mãos de um velho comerciante. Ao analisar os papéis já amarelecidos, o jornalista descobre retratos de várias vidas que o transportam para outros tempos, tempos agitados numa cidade ainda chamada Lourenço Marques que se movia tanto ao ritmo de bailes noturnos animados pelos discos de 45 rotações, como ao medo semeado pelos terríveis «mabandido», ou dos sussurros e mensagens subversivas em torno dos nomes Mondlane e Machel. Há um futuro que se começa a escrever e um passado que se começa a apagar, mas para os jovens Mafalda e Eugénio o mais importante residia no amor que, contra todas as vontades e probabilidades, os passara a unir. Depois, no frenesim de pânico, saques e violência iniciado a 7 de setembro de 1974, os destinos dos jovens amantes, tal como os destinos de Portugal e Moçambique, estilhaçaram-se, obrigando a uma separação violenta. E só a história que poderão ler irá revelar se Mafalda e Eugénio se voltaram a juntar…

Não gosto de estragar o prazer da descoberta aos leitores, nem estou habilitado para fazer teses literárias sobre romances. Tal como na sessão das Correntes, apenas posso transmitir ao Bento, e aos seus futuros leitores, as emoções sentidas ao longo de «Recados da Alma». Estamos perante um livro de uma enorme tolerância. «O que seria da história de um país sem as estórias das suas gentes?», pergunta o comerciante que tomou notas, ao longo dos anos, das vivências de amigos, amigas e companheiros. E eu pergunto: que seria da história de um país, ou neste caso, de dois países, se houvesse uma perceção única e intolerante do passado? A generosidade de Bento Baloi reside na forma como mistura o local e o global, o moçambicano e o português, a tradição e o progresso, através de um conjunto de personagens que nos dão visões diferentes sobre os mesmos assuntos, assuntos graves, sensíveis, geradores de divisões, como a segregação, o amor multirracial, o orgulho pátrio, o colonialismo, o preconceito, sem jamais cair num romance panfletário ou ideológico. Há uma espécie de olhar fraterno, nada fraturante, para com cada personagem, como se o autor quisesse contextualizar e compreender cada ato realizado ou cada ideia expressa. E, na verdade, todos somos filhos de contextos, seja um elemento do gangue mabandido, uma retornada da ponte aérea ou um membro do braço armado Dragões da Morte.

Apesar de nos dar pedaços da história de Moçambique, quer na sua luta pela independência, quer nas subsequentes cisões internas, ou até da vida dos portugueses obrigados a partir de um país que consideravam o seu, nunca se encontra na escrita de Bento Baloi um discurso maniqueísta ou uma tentativa de acerto de contas. Pelo contrário, mesmo nos casos mais delicados, o autor limita-se a expor os acontecimentos históricos e a deixar que as emoções das personagens, e não as suas, conduzam a trama e o leitor. E é neste grande detalhe que a fraternidade e generosidade de Bento Baloi se agiganta, aceitando ser uma ponte, uma mão estendida, em vez de um veículo de ódio. Há em «Recados da Alma» o mesmo afeto improvável que liga Eugénio, empregado preto, ao seu patrão branco racista. Há em «Recados da Alma» a demonstração de que o preconceito, o bem e o mal, não são questões de raça ou de nacionalidade. São questões do ser humano.

A própria escrita de Bento Baloi funciona como elo entre Moçambique e Portugal, por estar escrito num português esmerado, entrecortado com os termos intraduzíveis das línguas autóctones, que, tal como Mia Couto referiu, é capaz de «contar uma história com singular eficácia, mas guardando uma marca poética que envolve e seduz os leitores». A sedução e força do amor estão, aliás, presentes ao longo de todo o livro, nas mais variadas vertentes e situações, numa tentativa de superar os traumas de uma relação que começou torpe – o colonialismo –, e prosseguiu aos solavancos – as vidas alteradas num segundo, as cicatrizes na pele e na alma –, sem com isso se suavizar a história passada ou evitar realidades dos novos tempos, como o imperialismo económico. «Recados da Alma» é um livro que tem política, mas que não é politizado, pois procura manter uma equidistância ideológica. E, porém, é um livro de causas, um livro militante, um livro que se entrega às suas personagens, numa ligação muito próxima, muito afetiva, que evita juízos morais, com base nos estereótipos, preconceitos e visões históricas que, precisamente, vão sendo desvelados nestas páginas.

Foi esta ligação umbilical de Bento Baloi às emoções humanas, provocadas por pessoas reais, como uma mãe falecida, ou por personagens inventadas, como o Eugénio e a Mafalda de um romance, que eu descobri no texto das Correntes d’Escritas e que confirmei em «Recados da Alma». A grande diferença é que no início éramos desconhecidos e agora já nos conhecemos um bocadinho. Obrigado e boa leitura.  

Paulo M. Morais

Vila Nova de Gaia, Maio de 2018

* Título do editor desta página.

 

Foi em 2008 que João Paulo fixou a sua estrondosa voz na pauta musical e silenciosa do tempo. Um Bluesman não morre, porque a sua actividade é a de diluir a morte no blues e no schotch. João Paulo não cantava blues, usava o Blues, atiçava a catarse que há dentro do blues com a vara da sua voz. Sou viciado em blues. E por isso escuto João Paulo como quem ouve sem parar a pregação de um pastor que além de conhecer a escritura sagrada, vive-a.

Se todos acreditamos que o blues nasceu na região do delta do Mississipi, então, cá entre nós, refinou-se ali no “Goa”. O bluesman sentado sempre no “Goa”, com um schotch vigiando os ângulos duma mesa, um maço de cigarros deitado e uma caixinha de fósforos semi-aberta, mirava o seu interior e caía nas escadas do seu olhar como caíam os negros possuídos por “worksongs” nas margens do Mississipi. Eu tinha um privilégio. Via aquela figura, que depois virara meu ídolo, sem nada pagar. Via sempre aquele bluesman afinando a rouquidão da voz com uma, duas, três, quatro garrafas…

Hoje passo por Goa e ainda sinto o cheiro da sombra de João Paulo na primeira mesa. As paredes de Goa eram as camisas de João Paulo, por isso ainda têm marcas da sua existência em todos cantos. Os sovacos das paredes suam João Paulo.

O schotch era o mar de “Goa” onde o bluesman encalhava os remos do blues. Os seus cabelos enrolados era como se enrolassem os seus pensamentos. Seu blazer de napa cheirava suor de um boémio com a alma andarilha. Qual boémio? Ele era casa do blues. Vê-lo no Gil Vicente cantando era como se o blues saísse, um pouco de si, e espreitasse o exterior. Era uma caixa de ressonância humana de blues. Sua vida era um harmónico que ressoava, disfarçado, em cada batida do coração. Sua boca parecia uma gaita de sentidos em cada falar. Falava pouco e tossia quase sempre. Quando sorria os seus lábios ressecados de álcool esticavam-se como se quisessem rebentar.

Era difícil ver o Goa sem João Paulo. Aliás, não era João Paulo que ficava ali no Goa; era o Goa que se tinha instalado no bluesman. João Paulo era mais de Goa que dele próprio. Ali, sentado, via os movimentos do mundo através do borbulhar do seu corpo. E muitos passavam-no pensando que era uma figura cuspida pela rotação e translação da Terra. Seus movimentos eram mínimos: penetrar, com os dedos, uma caixinha de fósforos, coçar os seus longos cabelos, apertar pelos lábios o cigarro, virar para esquerda e direita sem nada olhar e mudar a posição dos pés exaustos de tanto andar dentro de si.

Quando punha-se a mergulhar a cidade o fazia com passos lentos e cheios de charme. Caminhava sem magoar uma mínima matéria de vento. Nos últimos dias, um pilar de gesso segurava-lhe uma das pernas. E o passo crescia entre o gesso e a muleta. Coitado de João! – dizia. João era um fantasma que povoava todas as casas de artes ao cair da noite.

Ninguém como João Paulo soube cantar “Baby Please Don’t Go” de Muddy Waters, “Where Did You Sleep Last Night” de Leadbelly (barriga de chumbo) e “Mazumana” de Fany Pfumo. A lista é enorme que pode não caber neste "Relógio di Oro". João Paulo, JP, não via o Blues como apenas como um estilo musical; o blues era, para ele, um estado de espírito, uma vida que só se respirava pelos pulmões da voz. E eu ainda via JP no “Goa”. Com o seu blazer unido de vários zippers e com botões brilhantes. O dia todo passava-lhe ali sentado.

 

Os últimos anos, amiúde, são tipificados por emboscadas literárias dos combatentes da Luta de Libertação Nacional. Uma espécie de epopeia narrativa e descritiva de uma guerra que foi feita por cidadãos anónimos, com histórias de glória, com memórias e com ensinamentos para os combatentes pela liberdade e justiça, nas mais variadas gerações e transversalidade cultural de todos os continentes. Obras que exorcizam fantasmas que flanquearam as suas vidas no passado, alvejaram as mentes, nem por isso tão jovens, do azul (vermelho) da revolução e empurram matérias inexplicáveis e indecifráveis para este presente que será sempre futuro.

Depois da poesia de combate e de libertação, com textos que ainda ecoam como trovões de morteiro em determinados ouvidos, se abre, de porta em porta, um espaço privilegiado para novas e mais cicatrizadas terapias colectivas, armadas de obuses de outra índole. Ainda sou do tempo onde se encavilhavam estrofes que se envernizaram mentes juvenis ávidas de entendimentos sobre heroísmos exacerbados. Pelos corredores das escolas declamávamos de cor e em voz alta … não basta que seja pura e justa a nossa causa/ é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós…. como se, esse sentido, fosse nosso e estivéssemos, todos possuídos pela nobreza desse alinhamento libertário.

Com intervalos de tiro ou de rajadas solitários, ou ainda, de lança granadas, a resistência dessas memórias e o sentido histórico das kalachi Nikov vão sendo reveladas. Vivências que se acantonaram, algures, galgam os muros da disciplina e dos silêncios militares. Uma espécie de refrão de coral obrigatório.

Verdade que o rigor cartesiano da história nem sempre pode ser exigido a todos estes escritos. Memórias dormentes e cansadas, desavindas, são susceptíveis de amnésias em surdina. Rebuscar os fundos da memória tem um preço. Caro, pesado e de consequências imprevisíveis. O fundamental, louvado por todos, seria deixar os registos e os episódios. Historiadores se encarregam e encarregarão do resto. Ideal será que a energia continue pululando em cada mente libertadora, para que o Cartesianismo impere. Eu existo, logo, escrevo.

Na tentativa de historiar a história desta libertação, feita a ferro e fogo, já se destrataram datas, nomes, locais, rios, montes e comandos. Mas, ainda assim, fica para o presente um discurso que se institucionaliza, formal e até ortodoxo. Aquele encadeamento de factos que transcende a ciência e ganha contornos de religião, senso comum e filosofia, tudo junto, como se acasalam as restantes formas de saber.

Estes novos modelos literários, me perdoem os escritores, os críticos literários e potenciais candidatos, parecem reconfigurar uma nova forma de estar e ser desta literatura que, nos últimos tempos, não tem mãos a medir. Nunca se escreveu tanto, neste país, mesmo que queiramos ignorar e menos valorizar esta realidade. Escrevemos como nós próprios somos. Um linguajar híbrido e distanciado das morfologias e sintaxes, das regras vernaculares. Se escreve da direita para a esquerda e vice-versa. Importante será marchar, marchar e marchar e escrever, escrever e escrever.

Tenho em mãos e olhos uma destas obras. A biografia do Coronel Mateus Óscar Kida. Quis o destino que o seu nome fosse Óscar, pois, ele próprio se confunde com um Óscar desta terra, de simplicidade, humildade e de bom humor. Um Óscar do distinto grupo de combatentes. Mateus Kida não procura glórias, apenas quer recordar uma vida de várias vivências e que fizeram da sua contribuição um exemplo de bravura e dedicação ao seu povo.

Pela sua obra, com inúmeras referências às lideranças político-militares, Óscar Kida cadencia marcha narrativa que desvenda o passado de uma história que, quase se confunde com a história deste país, e bem, na sua contemporaneidade. Confissões e fotografias desgastadas pelo tempo. Uma espécie de autobiografia dessa luta pela libertação da terra e dos homens contra um inimigo colonial e visceral.

Todavia, não são as revelações que mais cativam, assustam ou pretendem metralhar os leitores. São, certamente, as vontades de satisfazer um ego. Promessas e juras de lealdade para com a liberdade. Óscar parece ter lido o poema, por onde passa o exército de libertação/ fica um rasto verde e chuvoso e o caminho para passar a liberdade e o futuro.

Assim, nas centenas de páginas do coronel, diga-se, pessoa humilde e afável, respeitador e inibido, o nosso biografado traduz, de forma simples, os episódios musculados e militarizados que testemunhou. Aliás, muitas facetas ainda são sua marca. Dança como ninguém. Exímio passista e leitor assíduo de todos os jornais que esta praça pode oferecer. As qualidades de dançarino são testemunhadas na voz do Engenheiro Miguel Massingue seu ex-colega nas TDM:

“ … nesse instante o Coronel disse vou à pista dançar, fiquei surpreendido. Como ele quer se expor assim? Dançou e eu ao lado dele a dançar depois notei que a discoteca toda parou e estava a bater palmas… percebi que as plamas eram para ele e não para mim … bati palmas como qualquer um… (p. 332).

Outra das qualidades do Coronel Mateus Óscar kida que salta à vista relaciona-se com a área da segurança de altos responsáveis, iniciada já no II Congresso da FRELIMO e continuado na protecção do Presidente Samora Machel, primeiro Presidente de Moçambique Independente.

… recordo-me por exemplo, daqueles formidáveis mergulhos [em Cuba], acompanhando o Presidente Samora Machel e Fidel Castro, durante os quais este último gostava de caçar lagosta. Foi numa dessas ilhas que tomei pela primeira vez sopa de tartaruga.”(p.212).

 A partir deste livro pode-se compreender que o Coronel Mateus Kida é um Óscar da História recente de Moçambique. O seu contributo para a edificação de um estado soberano e democrático é incomensurável nas várias páginas a si dedicadas, poucas, se comparadas à grandeza da pessoa. Na verdade, as quase quatro centenas de páginas descrevem o suor e segredos mantidos ao longo dos anos, de um homem com características peculiares dada a sua simplicidade e humildade.

 Estes anos não foram suficientes para se entenderem, ou já nem faz parte dos interesses juvenis, compreender como se criaram e se avançava para as bases militares, as cores das trincheiras, os sabores de napalm.

Contudo, neste resgatar, mais ou menos iconográfico, da historiografia militarizada da libertação nacional, presumo que a história desta jovem nação exigirá mais profundidade. A cientificidade dos factos e a validação das fontes. A oralidade suportada pelas evidências, devidamente restauradas, e que confrontem com os estereótipos de um passado, nem por isso muito distante. Existe uma responsabilidade dos narradores que vai muito para além da descrição de um combate, uma vitória ou uma derrota.

A publicação deste livro coincide com um momento histórico crucial na história desta nação arquitetada por Eduardo Chivambo Mondlane, pai da Unidade Nacional. Neste ano de 2018 celebram-se as bodas de Ouro do II Congresso da Frente de Libertação Nacional evento realizado no solo pátrio na mítica e histórica aldeia de Matchedje onde o Coronel Mateus Óscar Kida se fez presente. Cito algumas passagens:

Eu participei no processo, e, nas vésperas da realização do Congresso, participei na preparação do relatório da Província, que devia ser apresentado. Recebi algumas delegações, mas depois, tive que passar para a segurança do próprio Congresso…”(p.105).

Coronel Kida dedicou a sua vida inteira ao combate. Ele não se transformou em combatente, mas numa lenda do próprio combate. Em poucos minutos de conversa deu para entender como se desinteressou por patentes militares mais altas, e compreender a sua postura de guerrilheiro sem exageros. Fala de um combate com perdas e ganhos de ambos os lados. Irmãos que se digladiaram. Relendo sua biografia navegamos ou sobrevoamos os férteis campos das estratégias e tácticas, a bravura e tenacidade dos envolvidos.

Uma espécie de ser de ficção, mas feito de corpo e alma, de sonhos, de desejos e vontades, de amizades e amores. Também ele foi um combatente com medos, receios e hesitações. Coragem e persistência comungadas com temores e incertezas. Afinal, os guerrilheiros são tão seres humanos como todos nós e viveram na pele as emoções que passam pelos jovens e adultos que apenas ouviram falar dessa luta. Este livro, ainda que escrito por outrem, um amigo confidente, surge como uma caixa de surpresas, porém de fortes convicções.

A génese deste empreendimento remonta à amizade entre o autor e o biografado, iniciada no complexo gimnodesportivo do Ferroviário de Nampula em 2004 e percorre momentos e espaços da vida deste actor e contribuinte da História de Moçambique.

Agora, que sua obra chega aos nossos olhos, para os devidos julgamentos, seria importante que o apetite dos jovens para a leitura fosse despertado. Entendo que nada será forçado, nem que esta biografia será introduzida nas escolas, ou onde quer que seja. Se exige sim, que se criem as condições e a responsabilidade de levar esta e outras obras bibliográficas para quem necessita.

Entendo, também, que Óscar Kida continuará ajudando na segunda libertação do seu e nosso Niassa, agora por via da palavra. Depois das bandeiras, seguem-se outras libertações, sobretudo, a económica. Niassa precisa de todos os investimentos, como nós precisamos de oxigénio para respirar.

O Coronel Kida fez a sua parte e o país e Niassa agradecem. Perfeccionista, o coronel passará os seus próximos dias relendo sua própria biografia, na tentativa de ainda incorporar novas memórias. Mas, isso, terá de ser para o próximo livro. 

Tínhamo-nos conhecido na Associação dos Escritores nos meados dos anos 80 e houve, desde logo, uma grande empatia entre nós. Fátima Mendonça era uma reputadíssima professora universitária e divulgadora incontornável da literatura moçambicana e eu um miúdo intrépido que queria saber e fazer tudo. Em finais de 1985 houve em Maputo um encontro que trouxe, entre outras personalidades, o professor Manuel Ferreira que, na altura, deu a conhecer a antologia de poesia No Reino de Caliban III, cujo volume era dedicado a Moçambique. Aquele volumoso livro verde inquietou-me. Apesar de trazer nomes como Luís Carlos Patraquim, Manuela de Sousa Lobo ou Brian Tio Ninguas, entre outros, escapava-lhe uma produção poética onde sobressaísse, sobretudo, a geração da Charrua, revista que tinha sido lançada em Junho de 1984. Pareceu-me, desde logo, que haveria lugar para apresentar uma antologia com a nova poesia moçambicana, a poesia que se produzia naqueles anos, os anos 80, que era o testemunho e o testamento de uma época única. A antologia de Manuel Ferreira cobria muito pouco da poesia que nós então produzíamos, sobretudo a vertente lírico-amorosa, que irá, de certo modo, caracterizar esta época, como a rebeldia e a afirmação de uma nova geração de poetas moçambicanos, que tiveram em Eduardo White, claramente, o seu expoente mais elevado. White, que publicara Amar sobre o Índico – um belíssimo livro de estreia -, em 1984, não constava na antologia. Numa das nossas conversas, ali na associação, interpelei a Professora Fátima Mendonça com essa e outras inquietações. Foi dessas conversas que ficou o repto de trabalharmos num livro conjunto. Combinámos que iríamos fazer uma antologia de poesia com o marco de 1975 para a frente, seria a poesia produzida no contexto do novo país, revelando, por conseguinte, novos poetas e novas propostas, estilísticas e temáticas, que esta então intentava subscrever. Começámos a recolha e sistematização da informação em 1986. A antologia cobrirá o lastro temporal que vai de 1975 a 1988, dado que terminámos o livro em Março de 1989, pese embora este ter sido publicado apenas em 1993.

A nossa ideia era que a associação fosse a editora do livro e nem cogitávamos uma ideia diversa desta. O trabalho de composição começou por ser feito, com o apoio do Ricardo Santos, no CEDIMO (Centro de documentação e informação de Moçambique), onde por acaso cheguei a trabalhar, antes de me decidir a fazer jornalismo. O Ricardo dirigia o CEDIMO e foi determinante o esforço que pôs neste trabalho para que um volume de fotocópias ou originais pudesse ter forma única na composição que se fez no início daquela empreitada. Importante e decisiva seria, também, a colaboração e o empenho de Júlio Navarro, que seria o autor do arranjo gráfico e acompanharia, depois, todo o processo de produção do livro.

A capa branca, com o título em magenta cobrindo-a inteiramente, encimada pelos nomes dos autores e com a chancela em baixo, vista hoje, como o próprio livro ou os acabamentos, parecem demasiado artesanais ou amadores, mas reflectem o melhor que se poderia fazer ou conseguir nas circunstâncias do país e das possibilidades que as gráficas poderiam oferecer. A impressão decorreu no CEGRAF. Vivíamos uma época em que conseguir papel para alimentar a edição de um simples livro era um acto que exigia muito – senão tudo! -, não só dos editores, mas também dos autores. Batíamos as portas das embaixadas pedindo apoio em papel ou computadores para fazer os nossos livros. Inclusive, chegámos a pedir ao Presidente da República apoio, numa visita que lhe fizemos. A sua resposta foi de antologia, mas não posso cometer aqui tal inconfidência. Quando os nossos livros eram então publicados, eram notícia de primeira página. Para os livros, para as revistas literárias, que então surgiram, para alimentar o nosso parco panorama editorial. Fazer um livro, nos anos 80, era um parto longo e dificílimo. Doloroso.

Para além de uma apresentação assinada pelos antologiadores, trazia um estudo da Fátima Mendonça que servia de prefácio. Os poetas apresentavam-se por ordem alfabética do primeiro nome, no final constava um apêndice biobliográfico – nome completo, pseudónimos usados, data e local de nascimento, formação académica, profissão e actividades, livros publicados e outras indicações, constituem este apêndice e, depois, um índice de autores, com referência de poemas e fontes bibliográficas, onde aparecia o autor e o poema, a fonte, a data da publicação e a respectiva página. Muito deste trabalho foi realizado no contacto pessoal com os autores. À distância destes anos, não deixo de verificar que este contacto (não só para confirmar dados, cruzar informação, mas sobretudo para obter textos, muitos inéditos seriam incluídos nesta antologia) foi das tarefas mais gratas que desempenhei na vida. Reuníamo-nos, amiúde, na casa da Fátima, num prédio da Julius Nyerere, com uma vista soberba sobre o Índico. Na varanda, ela tinha uma área de trabalho, onde guardava, sobretudo, fichas, com numerosa e importante informação que coligira na sua longa e distinta trajectória de investigadora, divulgadora e professora da literatura moçambicana. A Fátima Mendonça é uma pioneira estudiosa da nossa literatura. Há muito que merecia uma homenagem pelo extraordinário trabalho que realizou ao longo dos anos. Contudo, sabe-se: vivemos num tempo em que o desconhecimento, o descaso e a displicência imperam e ululam.

Para os incautos: Fátima Mendonça leccionou, na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1977 e 2004, quando se reformou: Literatura Moçambicana, Literatura Comparada, Literaturas Africanas Comparadas, Retórica e Poética, Literatura da África Austral e Outras Artes. Foi examinadora externa nas Universidades do Zimbabwe e Durbanwestville e professora convidada nas universidades Patrice Lumumba (Moscovo), Rennies e Poiters (França), Salamanca e Santiago de Compostela (Espanha), Witwatersrand (África do Sul), Universidade de Coimbra e Universidade Nova de Lisboa (Portugal), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). É autora de uma vasta obra ensaística: Literatura Moçambicana – as dobras da escrita (2012), Rui de Noronha: Meus versos (edição crítica da poesia de Rui de Noronha, 2006), Antologia da Nova Poesia Moçambicana (co-autoria, 1993), Literatura Moçambicana – a história e as escritas (1989). Co-organizou a edição da obra da Noémia de Sousa (Sangue Negro), organizou o livro póstumo Poemas Éróticos de José Craveirinha. É também co-autora de João Albasini e as luzes de Nwandzengele (2014).  Conferenciou sobre a nossa literatura em diversas cidades e universidades do mundo, em colóquios e congressos, redigiu ensaios críticos sobre a literatura nacional, é provavelmente a moçambicana com maior arcaboiço do percurso histórico da Literatura Moçambicana. Pretextos não faltam para a Universidade Eduardo Mondlane, o ministério da Cultura ou lá quem quer que seja fazer-lhe um reconhecimento público. Aqui fica o meu humílimo preito. 

Quando foi publicada a antologia, em 1993, António Pinto de Abreu, António Tomé, Brian Tio Ninguas, Celestino Jorge, Elton Rebelo, Fernando Manuel, Filimone Meigos, Gulamo Khan, Hilário Matusse, José Pastor, Julius Kazembe, Kalungano/Marcelino dos Santos, Leite de Vasconcelos, Luís Cardoso, Nelson Saúte, Noémia de Sousa e Simião Cachamba não tinham a sua obra publicada em livro. Destes autores, Brian Tio Ninguas e Gulamo Khan tinham morrido quando a antologia saiu. De Gulamo seria publicado postumamente Moçambicanto. Tio Ninguas permanece inédito em livro. Elton Rebelo (Júlio Bicá), Hilário Matusse, Leite de Vasconcelos e Noémia de Sousa faleceram muitos anos depois deste lançamento, mas viram antes serem publicados seus livros. Celestino Jorge e José Pastor morreram e continuam inéditos em livro. António Pinto de Abreu, Fernando Manuel, Filimone Meigos, Marcelino dos Santos (livro único), eu próprio, haveríamos de publicar diversos livros ao longo dos anos. Permanecem inéditos Julius Kazembe, Luís Cardoso (publicou um álbum de pintura) e Simeão Cachamba (tinha um livro pronto, mas não tenho notícia da sua publicação.).  Albino Magaia, Armando Artur, Calane da Silva, Carlos Cardoso (livro único), Clotilde Silva, Eduardo White, Hélder Muteia, Heliodoro Baptista, Jorge Viegas, José Craveirinha, Juvenal Bucuane, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Mutimati Barnabé João, Orlando Mendes, Rui Nogar, Sebastião Alba, Sérgio Vieira, FRELIMO (autor coletivo), completam o escol dos poetas escolhidos.

No lapso de tempo em que decorreu este trabalho, a quatro mãos, eu concluí o secundário, colaborara como jornalista cultural na Rádio Moçambique e no Notícias, fizera um curso médio de jornalismo, entrara para os quadros da revista Tempo, onde me tornaria, em 1988, editor da “Gazeta de Artes e Letras”, colaborara abundantemente na imprensa moçambicana. Um sonho que começara a porfiar aos 18 anos vi apenas concretizar-se aos 26 anos, em 1993. Muitas foram as vicissitudes, mas este trabalho foi em si uma espécie de um curso superior de literatura moçambicana (de poesia, no caso), que me permitiu ter um amplo conhecimento das obras, dos autores e das circunstâncias em que muitas delas foram produzidas. Muito devo ao convívio e ao trabalho, minucioso, diligente e informado, que tive com a Fátima Mendonça. Aprendi muito. Aprendo tudo.

Este trabalho iluminou, por assim dizer, o meu trabalho como jornalista cultural. A inversa é válida: o meu labor jornalístico também deve e muito a esta tarefa como antologiador. Muito ou quase tudo o que fiz como jornalista cultural foi divulgar autores – ler as suas obras, recenseá-las, entrevistá-los, anotar, discutir, polemizar. Esta foi a minha tarefa. Aprendi muito com o antologiador e este imenso com o jornalista. Quando, menos de uma década depois, o Nelson de Matos, meu editor na D. Quixote, me desafiou a organizar, primeiro uma antologia de contos (As Mãos dos Pretos), título emprestado a um belíssimo conto de Luís Bernardo Honwana, talvez o mais belo conto jamais escrito na nossa literatura e de poesia, depois, (Nunca Mais é Sábado – título emprestado a um soberbo poema de Rui Knopfli no notável Mangas Verdes com Sal), a minha tarefa e a minha diligência foram facilitadas pelo trabalho, conhecimento que travara, rede que estabelecera, empatia que tivera com autores e obras, o que tornou aquela empreitada menos difícil do que seria se eu não beneficiasse do trabalho de sapa realizado anteriormente. 

Falei em tempos à Fátima Mendonça da necessidade de revermos e reeditarmos esta obra: Antologia da Nova Poesia Moçambicana. O pretexto dos seus 25 anos em 2018 – foi editada em 1993 – poderia ser uma justificação incontornável. Até porque, depois de 1988, não só surgiram novos e belíssimos poetas – há outras ausências que o tempo histórico e as suas circunstâncias não nos “permitiram” incluir e que hoje estariam lá representados indubitavelmente -, assim como muitos de nós publicámos o melhor que soubemos e pudemos, ulteriormente, e isto poderia ser resgatado numa antologia tão ampla quanto significativa, como foi a tentativa daquela, sem dúvida, a primeira que se fez em Moçambique no período ulterior à independência, com a ambição e a relevância que tinha e que tem.

“Nunca é alto o preço a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo”, Friedrich Nietzsche

A morte é o recipiente inferior da ampulheta e os grãos de areia que inelutavelmente caiem nele somos nós, os seres humanos. A queda é iminente. Ninguém sabe se está perto ou distante do funil para boca da morte. Estamos todos misturados e distraídos com a fugacidade do mundo até que, de repente, o chão que pisamos se nos abre num abismo sem mais saída. E aqueles, que dispõem da sorte finita de colocar o pé num degrau rígido, voltam-se às pegadas da nossa vida para perceber “qual foi o destino traçado pelos nossos passos?”

Quanto menos cambaleantes tiverem sido os nossos passos na vida, mais nítida é a nossa existência no mundo. Se quisermos deixar uma memória concisa sobre nossa existência no cosmos, é mister que os nossos passos, em forma de decisões e acções, sejam tão consistentes quanto possível. Eis o poder existencial da consistência que não se nos afigura fácil de conquistar tal como qualquer outro tipo de poder. Para conquista da essência da nossa existência, mais do que carácter, é-nos preciso uma vida acorrentada aos princípios ético-morais, a virtudes ou à negação radical de quaisquer princípios – o que se chama nihilismo. Caso contrário, a nossa existência incorre no risco de ser medíocre, extinguindo-se connosco tão rápido quanto o abraço da morte. Os princípios ético-morais, aqui referidos, não têm de ser necessariamente valores convencionados pela sociedade. É-nos possível projectar a nossa essência para o mundo por meio da contra-cultura ou concepção subjectiva dos valores.

Todavia, o homem enquanto vivo está destinado à falibilidade de contemplar-se como projecto final. Tal falibilidade deve-se ao facto do fim da sua acção ser imprevisível, embora definida a sua intenção. Hannah Arendt já cogitara tal impossibilidade de homem conhecer a sua essência em vida, cabendo sempre aos terceiros biografar a sua identidade póstuma. Constitui, especialmente, um dever dos historiadores, escritores, poetas e artistas perpetuar a memória daqueles que em vida disseram e praticaram palavras e actos extraordinários testemunhados pelos homens.

Mesmo que o homem não chegue a se contemplar como resultado final do seu próprio projecto ainda vivo, a sua vida é digna de honra pela consistência com que se desdobrou ao longo do tempo. E para buscar-se uma vida d’honra, todos os homens dispõem das mesmas oportunidades, não importando as circunstâncias a que estão sujeitos. A condição sin qua non de uma vida d’honra inconfundível é a consistência nas palavras e acções. A dupla moralidade é própria de um homem medíocre que deixando se vitimizar pelas circunstâncias fugazes do mundo esvai o barro da sua vida sem nunca ter moldado o seu próprio ser. O aforismo “sou eu e as minhas circunstâncias” de Ortega y Gasset, quando interpretado como manifesto de um homem que busca definir o seu ser em função das circunstâncias, revela-se-nos uma filosofia de vida que ordena ao olvidamento constante de quaisquer traços ontológicos do homem ao longo de uma série de situações. Ou seja, na perspectiva de Ortega y Gasset, o ser humano é incapaz de construir-se ao modelo da sua vontade e pensamento, senão aos tentáculos das circunstâncias em que se insere. Ele é sempre chamado a adaptar-se ao espírito de cada circunstância, assumindo todas as contradições do seu ser que os momentos lhe impõem.  

Um homem de circunstâncias arrisca-se a experienciar a crise existencial que consiste na inquietante ignorância do seu propósito no cosmos. Embora extremamente profunda, esta dor metafísica pode ainda levar o homem a criar-se como um projecto que possa dar sentido à sua existência e, deste modo, curando-se dela. A existência com sentido obriga a vida a ser consistente, e é pela consistência que o homem liberta-se da crise existencial. Além do essencialismo e do existencialismo, o homem tem a terceira alternativa que consiste na redefinição da sua vida supostamente predestinada. O mais crucial já não é mais saber se, de facto, nascemos com um propósito ou devemos criar um, mas sim é manter-nos consistentes no que achamos que somos ou queremos ser.

Só a consistência é capaz de nos livrar de uma vida sem sentido. Que os pequenos desvios da vida cometidos por nós mesmos não nos sirvam como desânimos, mas sim como rascunhos do tipo de existência a partir do qual gostaríamos de ser lembrados.

Vais deixar que eu fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
Tu és igual à noite, calada e constelada.
Pablo Neruda

 

À

Mubayane Muianga, minha avó!

 

A rádio-boca inaugura hoje a rubrica Histórias Criativas. A primeira participante é Suaila, filha do casal Ginabay de Inhambane. Pretendemos promover a leitura de obras de autores moçambicanos. Os ouvintes interessados podem enviar uma carta à apreciação de incontornáveis nomes das letras do país, na residência circular da praceta, a Culpa Morre Solteira, na baixa da cidade.

Suaila escreveu, como ela nos confidenciou, o que leu e gostou e deseja sempre reler.

Eis o conteúdo da missiva dirigida a Hélder Faife:

 

Estimado escritor,

Primeiro gostaria de saber da tua rica saúde! As árvores do meu imenso pomar vibram. As areias de todo Nyambavale quase que se soltam pelos ares, neste momento em que me deito nestas palavras.

Vim revelar-te o que passei nos raros momentos do rico prazer, durante a leitura. Sabias que hesitei, debatendo-me com uma interrogação fundamental. Andei preocupada, pois até hoje ninguém da minha família sabe explicar por que razão um pássaro azul esboçava um cântico triste, no coqueiro grande do quintal durante todas as noites que eu rabiscava esta carta. Aquele fenómeno invulgar sempre acontecia quando o silêncio pincelava a tarde, mordendo o sol pelos calcanhares. E a sombra densa começa a guarnecer o nosso terreiro.

Como deves imaginar, meu escritor, não sou uma mulher de vacilar por assombrações. Nem vou ceder à pressa dos meus velhos, em casar-me cedo.

Gosto quando lês assim, acariciando a minha caligrafia na textura do papel. Eu e as árvores, dedicamos-te a alegria de ramos carregados de frutos. Não nos conheces de lado nenhum. E nem antes permitistes que te tratássemos por tu, neste tom inclinado. Fazemos isto porque precisamos de introduzir-te na mística da terra. A única coisa de Inhambane que imagino conheceres são as tanjarinas. Nesta época terás provado dessas tanjarinas vulgares que andam por aí na capital. E, mal de vocês enganados por oportunistas dizendo que são tanjarinas de Inhambane. Coitados!

Meu escritor, o que me leva a escrever-te é algo mais fundo como os tesouros que estão por debaixo desta terra. Estou deitada, olhando o céu, imaginando coisas. Bem gostaria de ver-te pendurado lá no alto do coqueiro. Contento-me apenas por ver-te nos caracteres que compõem o teu nome neste livro DE(S)DENHOS. Nem me perguntes porquê. Digo-te apenas que isso me preenche. Sinto-te aqui comigo. Só eu sei o que isto significa.

Sei que continuas aí expectante, por mais notícias. Vou contar-te um segredo. Sou a filha mais bonita dos meus pais. Tenho aqui uma fila de gatos-pingados, pedindo a minha mão em casamento. Decidi, então, saber a opinião de alguém que muito admiro. O que te peço, HF, é que a partir do que te escreverei, reproduzindo as intenções daquela gente, possas ajudar-me no razoável. Isto até incomoda-me, sabe.

Lembrei-me de um outro segredo muito meu. Todos os registos que esses parceiros-estratégicos pretendem publicar em livro sobre Zavaleni, a biodiversidade de todo litoral de Inhambane estão comigo. Tenho um manual de valor incalculável, com o registo de todas as canções chopes, todo o nosso imensurável património: a beleza dos lugares, os costumes das nossas gentes, o repositório do Tineve, Ntondo, Mwendje e coisas que não posso nomear. Isto é tão sensível como a polpa da madrugada. Até receio que esta gente da rádio-boca meta o nariz. Proponho-te um pacto: se chegares a meio na leitura da minha lista de coitados, poderei revelar-te as preciosidades que guardo no baú secreto. Está combinado?

 

Um beijinho,

Suaila Ginabay

 

Caros leitores,

Esperamos por mais novidades literárias na próxima edição de Histórias Criativas! Votos de boas leituras!

Saudações,

Celso Muianga

 

Quando, em Novembro 1990, parti para estudar em Portugal, levava na mala, entre outras coisas, uma providencial cassete de música moçambicana. À distância de quase trinta anos, já ninguém grava música em precárias cassetes. Era uma compilação abrangente da música moçambicana e recordo que tinha músicas que tocavam na rádio e eram na altura grandes sucessos: Ghorwane, Xidimingwana, Joaquim Macuácua, Wazimbo, José Mucavele, Avelino Mondlane, Alexandre Langa, Camal Gijá, Fany Mpfumo, Madala, Manecas Tomé, Magid Mussá, Aida Humberto, Ana Juliana, Eva Mendonça, Elsa Mangue, Elvira, Mingas, Guegué, Zena Bacar ou Resiana Jaime, eu sei lá! Tinha comigo outras cassetes, de outro tipo de música, que eu ouvia com devoção na época, e levava a impressionante gravação do “FMI”, do José Mário Branco, que o Álvaro Belo Marques, de grata memória, me dera a conhecer nos meados dos anos 80. Foram anos prodigiosos para a música e nós ouvíamos ou víamos os vídeos, nos vetustos Betamax, grandes sucessos como Michael Jackson, Diana Ross, Marvin Gaye, Freddie Mercury, Madonna, Prince, Tina Turner, George Michael, Lionel Richie, A-ha, The Police, Whitney Houston, Chris Isaak, Phil Collins, Scorpions, entre tantos outros. Cultivava também a música africana: Sam Mangwana, Mbilia Bele, Tabu Ley, Franco Rocherau, Manu Dibango, Salif Keita, entre outros. Debutavam então ou começavam a ser reconhecidos: Youssou N´Dour, Angelique Kidjo, Geoffrey Oryema, King Sunny Ade, Papa Wemba, Touré Kunda, Ray Lema, por adiante. Segui, de perto, o que a rádio dava e ela exercia um forte magistério nesse domínio. A TVE tinha poucos programas de música. Mas lá passavam, nos interlúdios, sobretudo, músicas moçambicanas. Ou concertos que iam acontecendo aqui. Recordo-me do programa de Jorge Morgado, que era um fã dos Jon Bon Jovi. Eu ouvia um pouco de tudo. Não tinha preconceitos.

O Simão Anguilaze, que tinha sido meu colega na Escola de Jornalismo, entre 1987 e 1988, e o Teodósio Bule, que iria formar-se em Economia, foram meus companheiros de viagem e de aventura nos sete meses que iria expender em Chaves. Iam no avião outros bolseiros, entre eles o Gabriel e a Maria Cecília, desaparecida precocemente. Ambos foram para Vila Real. O nosso destino final era Lisboa (eu e o Anguilaze) ou o Porto (no caso do Teodósio, do Gabriel ou da Maria Cecília), mas antes tivemos de cumprir uma espécie de penitência numa escola secundária longe daquelas duas cidades.

Apesar de eu estar no 2º ano na Universidade Eduardo Mondlane, fui obrigado a fazer a 12º ano e lá colocaram-me em Chaves. Chegámos à meia-noite e abrigámo-nos na primeira pensão que encontrámos disponível. Havíamos de lá permanecer aqueles meses todos. A viagem, na altura tortuosa, levava umas 10 horas de autocarro da antiga Rodoviária Nacional. Isto depois de uma viagem de 10 horas de avião! O Eugénio Lisboa ficou escandalizado e ainda tentou intervir quando soube que eu ia passar por aquela provação lá para o fim do mundo, mas disse-lhe que não valeria a pena gastar munições com isso. Se fossem necessárias, iríamos usá-las noutras frentes. As aulas começavam em Setembro e nós já íamos com atraso: estávamos em Novembro. Fiquei, por conseguinte, sete meses em Chaves e foi um tempo de uma longa espera. Um tempo de leituras, sobretudo. Boas leituras. Recordo que li bons livros, de bons romancistas, sobretudo americanos, como John Steinbeck ou Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald ou John dos Passos, Truman Capote ou Mark Twain. Ainda com a mania de ler só americanos naquela época.

O homem da tabacaria, que ficava na praça central, emprestava-nos o jornal Público todos os dias, no final da manhã, e devolvíamos o jornal lido ao final do dia. Era de uma grande generosidade. Tenho pena, mas não me lembro do nome dele. Ficávamos, por vezes, muitas vezes, a conversar, longamente, com ele. Tinha tido um passado africano, mas não era daqueles tipos chatos que ficavam o tempo todo a assombrar-nos com os seus fantasmas de África. Nada disso. Não me queixo do tempo que ali passei, por conseguinte. Acabou sendo um tempo bastante proveitoso. Conheci muito boa gente. As pessoas em cidades pequenas têm outra atitude, dão-se connosco, somos visíveis. São capazes de ter ou desenvolver afecto com forasteiros. É o caso da D. Maria do Céu, lá da escola, que nos tratava como se fôssemos seus filhos. Havia uma canção – “Não há estrelas no Céu” – cantada pelo Rui Veloso, que era um sucesso estrondoso na época. Eu brincava com a D. Maria do Céu fazendo o trocadilho da música. Um dia fiz-lhe um poema: “Não há Céus nas Estrelas!” Ela comoveu-se com esse carinho. Aqui há muitos anos, fomos a Chaves e ainda encontrei a D. Maria do Céu.

Comíamos na escola durante o dia e à noite numa tasca familiar, numa rua oposta à nossa pensão, onde geralmente chegávamos justamente à hora do telejornal – às 8 da noite. Comíamos ali a crédito e pagávamos no fim do mês ou quando podíamos ou quando chegavam os parcos escudos da nossa bolsa. Quando vinha a bolsa, metíamos a caderneta da Caixa Geral dos Depósitos – era o tempo das cadernetas! -, sacávamos o dinheiro e pagávamos as contas, que incluíam o serviço do quarto na pensão – que eu dividia com o Bule e o Anguilaze – e outras despesas como lavandaria. Mas às vezes ficávamos meses sem bolsa. A minha namorada vivia em Madrid e, por vezes, mandava-me de lá umas valiosíssimas pesetas, que davam para equilibrar as contas, sempre periclitantes. A vida de estudante bolseiro é assim: dificílima. 

Quando dava para isso, aos sábados, comprávamos o Expresso, que líamos com devoção ao largo do Rio Tâmega, numa esplanada ensolarada, à espera da hora de comer o nosso sacramental cozido à portuguesa, que aquela família acolhedora e com um vocabulário bastante ilustrado pelo vernáculo e algo inusual para nós – praticavam sem rebuços a língua portuguesa entre eles! -, diligentemente fazia aos sábados. Nunca me esqueço de um belíssimo artigo da Clara Ferreira Alves que li, num desses sábados de sol ao largo do rio, – era Primavera! -, sobre Graham Greene, quando este morreu, em Abril de 1991. Grande Graham Greene! Não teve o Nobel. Também não o deram a Jorge Luis Borges. Ou a tantos que o mereceriam como o Carlos Drummond de Andrade. Grande artigo aquele da Clara Ferreira Alves! Nunca mais me esqueci desse belo escrito da Clara. Muitos anos depois tornámo-nos amigos e eu nunca lhe contei esta história.

Foi quando aconteceu a “Tempestade no Deserto”, uma ofensiva militar, iniciada a 17 de Janeiro de 1991, liderada pelos EUA, que combinava efectivos de dezena de países aliados contra o Iraque, que invadira o Koweit em Agosto de 1990. A rendição dos iraquianos ocorreu a 28 de Fevereiro de 1991. Os nomes dos generais americanos eram comuns nas nossas conversas, fosse Norman Schwarzkopf ou Colin Powell, que merecia – não sei porquê – o nosso entusiasmo. Saddam Hussein fazia parte das nossas conversas ou Tariq Aziz, que teve aquela famosa “boutade” sobre a possibilidade da guerra numa entrevista antes da saraivada de bombas sobre Bagdad: “Fifty fifty”, dissera ele: “Se os americanos quisessem, haveria guerra. Se os americanos quiserem, haveria paz”. Víamos com devoção a CNN, a estação global, e as reportagens do Peter Arnett em Bagdad, com explosões e sirenes, atrás de si, e Bernard Shaw, outro dos nossos heróis, nas suas aparições no famoso hotel Al-Rashid. E lembro-me do Carlos Fino, que encontrei, muitíssimos anos depois, numa festa literária em Ouro Preto, e estivemos à conversa sobre esse tempo impetuoso. Conhecia-o quando era correspondente da televisão pública portuguesa em Moscovo, na turbulenta era do Gorbatchov e aquando do golpe do Ieltsin. Ocorrera antes o eclipse da Dama de Ferro, Margaret Thatcher, e de Londres chegavam notícias das lutas fratricidas para a suceder. Helmut Kohl era o homem todo-poderoso da Alemanha. A América tinha o Bush pai. Nós vivíamos a discutir política internacional e a ler os artigos sobre o que se passava naquele mundo que para nós era um mundo extraordinário. O mundo que a CNN tornara uma aldeia. A chamada aldeia global. Um tempo empolgante. Na África do Sul escrevia-se um breviário empolgante da liberdade, facto não isento de tragédia que ensombrava a empresa de Nelson Mandela. Hoje já ninguém se lembra da refrega dos Zulus e do seu chefe tribal Mangosuthu Buthelezi. Eram tempos fascinantes aqueles anos 90. Em Moçambique insinuava-se um caminho para a paz. A guerra não era apenas uma metáfora nos nossos escritos ou uma alusão idílica nos dias de hoje, de amnésia e displicência em relação à memória. Havia massacres e a sua crueldade era absurda. Como explicar que a receita para fazer um herói tenha sido tão subvertida? Adiante. África debatia-se com os seus dramas, dilemas e chagas. Passam três décadas.

Quando recolhíamos ao quarto, muitas vezes, quase sempre, eu punha, com a adesão e entusiasmo de todos, a minha cassete no meu pequeno gravador/reprodutor Sony. Ouvíamos compungidos aquelas músicas que sublimavam as nossas saudades de casa, da família, da terra. Havia, entre aquele impressivo cancioneiro, uma música que nos empolgava a todos: “Dadinha”, de Joaquim Macuácua. Creio que nos sete meses em que permaneci em Chaves devo ter ouvido, quase todos os dias, aquela música de Macuácua. Depois de Chaves, eu e o Anguilaze fomos para Lisboa, para a Universidade Nova, cursar Ciências da Comunicação; o Bule foi para o Porto, onde estudou Economia; e a minha cassete, entretanto, ter-se-á perdido não sei onde. Perdi outros precisos objectos. Dei emprestado e nunca tive de volta a cassete que tinha gravado o “FMI”, do José Mário Branco, e um exemplar do romance Mayombe, do Pepetela, que tinha marcado a minha juventude, depois de As Aventuras de Ngunga, que me fizeram sonhar, através de uma adaptação para a “Cena Aberta”, feita pelo inesquecível Né Afonso. Muitos anos depois comprei o CD Ser Solidário onde vem aquele poema vibrante “FMI”. Escusado será dizer que voltei a comprar o Mayombe. A última vez que estive com Pepetela, o que ocorreu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, também numa festa literária, em 2014, pedi-lhe que me autografasse o exemplar daquele soberbo romance que tinha um significado literário irrefutável, mas sobretudo uma carga emocional muito grande para mim. Esquecer-me-ia assim definitivamente daquelas perdas de Chaves.

Não oiço “Dadinha” há, seguramente, mais de vinte anos. A rádio, nos anos 90, dava muito essa música. Suponho que continue a dar. Mas também deixei de ouvir rádio e não tenho podido ouvir muitos dos músicos moçambicanos. Há pouco, quando me lembrei de “Dadinha”, consultei o livro Marrabentar e não encontrei nele referência alguma. O Amâncio Miguel vive hoje nos Estados Unidos. Vi que estava online e mandei-lhe um WhatsApp – são os tempos modernos. Pergunto-lhe se o Macuácua está vivo. Diz-me que já morreu. Tanto músico morto, respondo-lhe. Há quase 13 anos publiquei, na Marimbique, o livro compilado e organizado pelo Amâncio, este Marrabentar, onde se biografaram muitos músicos moçambicanos. Não está o Joaquim Macuácua. Também procurei o João Cabaço e não estava. Estão o Arão Litsure e o Hortêncio Langa. Curiosamente, não se referem a Cabaço. Duas grandes referências afectivas para mim – Macuácua e Cabaço. Tenho de desafiar o Amâncio a fazer uma edição nova deste Marrabentar, revista e acrescentada. Falta-nos bibliografia neste domínio. Ou um dicionário da música moçambicana.

Por que razão me lembrei esta noite da música “Dadinha” do Joaquim Macuácua, um músico muito famoso nos anos 90 e que me acompanhou, durante a minha penitência de sete meses, em Chaves? A razão próxima é que eu queria escrever sobre um músico moçambicano. Tenho ouvido ultimamente e recorrentemente os Ghorwane e sobretudo Pedro Langa e Roberto Chitsondzo. Gosto muito dos Ghorwane na voz do Pedro Langa. Como olvidar “U Yo Mussiya Kwini”, “Massotcha” ou “Mamba Ya Malepfu”? Sou um indefectível do Chitsondzo. Oiço-os impenitentemente desde “Akuhanha” dos anos 80 até “Mussakaze” de hoje. Um dia escrevo sobre eles. Lembrei-me de Zaida Lhongo, que era famosa nos tempos em que retornei à Pátria, meados de 90, sobretudo por “Zabelani” ou “Alfândega”, “Sibo” ou “Sifa si Dlheli”, mas não me lembrava de nenhuma narrativa que me ligasse à sua voz, embora eu adorasse Zaida, sobretudo a sua performance em palco. Recentemente vi uns vídeos seus na Internet e recordei-me da sua iconoclastia. A despeito, “Dadinha”, na dilacerada voz de Joaquim Macuácua, impôs-se-me: lembra-me um tempo de espera, em Chaves, entre finais de 90 e meados de 91, que aproveitei atirando-me à leitura de romances americanos, sobretudo os da geração perdida, lendo jornais e acompanhando empolgado a guerra do golfo e os seus efeitos na CNN e exultando com Bernard Shaw, o famoso anchor man preto, talvez o primeiro entre os mais famosos, sonhando com o dia em que aportaria na Universidade Nova de Lisboa para fazer Ciências da Comunicação, um curso que estava na moda e que me levara a Portugal, onde me atardaria 5 exultantes anos da minha vida.

 

 

 

Sou uma mulher independente, sim. Independente de tudo, mas infelizmente dependente de parvos como tu. Fumávamos o mesmo cigarro, aliás fumei os cigarros todos que acendias nos teus lábios, bebi os vinhos todos que desaguavam na tua língua. Fiz tudo por ti. Larguei o pateta que se dizia meu marido. Ele de marido não tinha nada, mas tinha muito de tudo que tu não tens. Iludiste-me com a conversa do divórcio, com as chamadas falsas a falsos padrinhos, com as confissões de amor que não sabiam direito da tua língua.

Tu não prestas. O que fizeste de mim foi destruir uma mulher que estava te construindo. Tenho pena de ti. Afinal, tu sabias que só querias fazer de mim um carrossel de desejos? Uma mulher-bombeira das suas loucuras e fantasmas sexuais? Tu só mereces uma coisa no mundo: um palácio no inferno. Inferno. Mas até o inferno pode recusar-te, porque tens tanto inferno dentro de ti. Um homem crescido, como tu, deixa, de jogar a bola vem jogar uma mulher. Isso é falta de organização mental para reconhecer as coisas e as pessoas. As pessoas, as mulheres não foram feitas para serem jogadas. Podem ser jogadas, como me fizeste, mas nunca se partem. Como podes saber disso se nunca soubeste quantas vezes eu fugi de casa para estar contigo.

Tens cartões de bancos, mas não tens banco dentro de ti para guardar um sentimento mínimo. Coitado! O teu coração é um objecto morto que não saberá nunca o que é amor. Não sei porque escrevo sobre ti, seu parvo. Sim, és parvo, sim. Talvez estejas acima disso na hierarquia da inferioridade. Um parvo só gasta tempo fazendo parvoíces e tu gastaste-o fazendo estupidez com a tua afinada insensatez.

Varro todos dias a casa para ter a certeza que já não tem um passo teu aqui. O teu cheiro tem o mesmo selo com o do esgoto. Molho, todos dias, a casa com incensos para matar o teu cheiro. Dá nojo a presença do teu cheiro aqui. Dá nojo saber que o meu corpo foi, um dia, teu. Sinto nojo de tudo. Nojo de mim por ter te ensinado a viver em vão, nojo de ti por te suportares mesmo não valendo nada. E sinto nojo do mundo por existires. O mundo é baixo demais para aceitar pessoas como tu. O mundo devia expulsar-te ou ele sair de ti.

Fique sabendo que tudo que um dia fizemos juntos desfiz sozinha. Agora percebo porque fui tão cega ao teu lado. Como não ser cega perante um objecto que nem quase existia? Sim, não existias. Passavas por mim e eu não te sentia, beijavas-me e eu não movia os lábios, acariciavas-me as mãos e eu nem dava-te a unha, tudo que fazias não sentia. Tu é que me fazias esforço para sentir. És baixo. És uma criatura que não sei com que cegueira vi.

Tenho certeza que agora estás a destruir mais uma mulher. Tenho certeza que já fizeste outra cair na tua isca. Com certeza estás enganando uma, como eu, com falsas declarações de amor, com envelopes selados de saliva estúpida e suja, com essa sua voz que nem sabe pronunciar bem os ditongos. Nunca soubeste nada. Até o meu nome nunca soubeste pronunciar, por isso sempre me chamaste de amor. A única coisa que sempre soubeste foi mentir, esconder o rosto debaixo da almofada para disfarçar o arrependimento em cada noite passada comigo.

Onde estiveres saiba de algo: nunca voltarás a ser homem suficiente para mentir para outras. No fundo mentes para ti mesmo, pois te achas homem! Oh, meu Deus, homem tu? Tu nem serves para ser a capa de um homem barato como o sapateiro da rua 5. Nem tens a mínima estética para ser um corcunda. Só tens jeito para uma coisa: para ser nada. E mesmo nesse nada tens dificuldades sérias. Queres mesmo saber: eu quero que todas as pedras das ruas levantem um castelo de dor sobre a tua cabeça.

 

Há ausências que não se preenchem,

Há amores que não morrem,

E há pessoas que vão, mas ficam!

 

Ao Joaquim Boaventura Massingue,

três meses de permanente saudade!

 

22h00 fomos depositar as suas cinzas no mar! Era o seu desejo, sempre gostaste do mar, talvez pelos seus mistérios, sua imensidão, sua tranquilidade, sua (…). Na cidade não se falava em outra coisa, senão na decisão que tomaste em vida…soava estranho, mas quem te conhece entendeu. Há pessoas que nos marcam e tu foste uma delas, não só para nós, seus filhos, mas mesmo para quem contigo travou um dedo de conversa, eras diferente! Não é por seres nosso pai, mas pelo homem que eras…esperamos dignificar-te!

– Meus filhos preparem-se vamos à praia, surpreendeste-nos várias vezes. No seu Datsun (MIA 33-84), no Land Rover ou pelo Vitz, íamos todos e partilhavas histórias…dávamos gargalhadas à ida até à volta. Gostavas de dar mergulhos, a mamã não gastava nada daquilo…

– Joaquim volta aqui…Joaquim, mano Joaquim volta phaaa. Vejam lá o vosso pai…é por isso que não gosto nada de vir aqui. Dizia minha/nossa mãe, sua esposa! E tu de longe enchias-te de risos, era contagiante.

Eras sorridente, feito um aventureiro destemido, fazias questão de ir mais fundo…Confesso que tínhamos medo, mas era seu jeito, não temias uma (boa)aventura.

Lembro-me dos anos que passamos juntos em Nampula.

– Meu filho quer viajar?

– Para onde papá?

– Vamos lá conhecer Pemba amanhã!

Foi numa noite e no dia seguinte lá estávamos no autocarro, foi assim que conheci a praia do Wimbe e a cidade de Pemba. São tantos os episódios, enfim.

Não te entendo, confesso que não. Convivi contigo boa parte da minha vida, mas me surpreendo até hoje. É como se se apercebesses que o mal queria dar o golpe final. Antes de chegar a capital, te certificaste que as finanças estavam saudáveis para não ser encargo para ninguém, sempre o disseste, mesmo quando a saúde abundava em ti. Enfim…

Partiste! Que pena, já me vou…repetiste várias vezes no leito daquele hospital que só é grande pelo nome e em tamanho, mas na hora da verdade nem medicamentos tinha. Contrariando discursos de quem deveria estar mais atento a esses míseros que nos tornamos. Há coisas e coisas, há momentos e momentos, há tristezas e tristezas. Infelizmente, o mal não vive solteiro, procura sempre amantes para enaltecer a sua musculatura, o seu nome e para garantir a sua procriação. Já o bem é solteiro, vive de pequenas aparições, depende de corações, não é omnipresente. Faz mesmo falta. Injustiças foi o que tentaste combater nesta aldeia de miseráveis, mas o mal tem sogros, filhos, sobrinhos e até netos para garantir a sua omnipresença nas cabeças de quem tem terreno fértil. Sabias que eras o nosso porto seguro, por isso que pena! Disseste a nós filhos, não me esqueço!

Madrugada amena, ruídos, gritos, músicas assaltam o meu compartimento. O sono apercebe-se e desperta-me. A saudade invade…

– Neste mundo reina a lei do mais forte, vive-se num do mundo do mal. A esses patrões chamaste-os “Abutres da minha terra”, o livro que ficaste por escrever.

Antes da doença chamar por si, já o dizias e com conhecimento de causa! O terreno encarregou-se de justificar tais palavras.

– 17h00…Ele não está bem…deixemos tudo na mão de Deus, disse aquele médico um dia antes da misteriosa levar-te.

– Procurem este medicamento para vermos se atenuamos a infecção…mas vos adianto que aqui no HCM não tem e é difícil ter nas farmácias privadas. O mal não anda solteiro mesmo!

Corremos…a luta era contra o relógio do mal. E como acelera…conheci a cidade onde moro há mais de oito anos como nunca…mas o destino era previsível. Qualquer ideia era válida, sentíamos que o mal ganhava espaço e apadrinhava a misteriosa.

O nosso país é aquela coisaaa! E a culpa­? De certeza morrerá solteira… Enfim, fomos aos terminais de autocarros que fazem viagens à África do Sul numa tentativa desesperadora de encomendar os fármacos. Mas o relógio, esse, (parecia numa maratona) marcava 21:30, não logramos sucessos!

Apareceu então a ideia de contactar uma mulher – estava feito uma amiga, mostrava-se sempre presente neste mar de agonias…ela é de uma beleza e simpatia de afugentar qualquer mágoa, seu falar, gesticular é de trazer paz, enfim este é outro mar de incertezas – que se prontificou a ajudar através de uma conhecida na terra do rand. Era sábado e a esperança é que os medicamentos chegassem na segunda-feira. Enfim era o possível, embalamos na esperança…

Como era de praxe às 5h00 da manhã de domingo… Já estávamos no percurso para o hospital. Segui na frente, com uma tigela verde com papa de soja… o mano irmão Ânsio – meu mais velho – veio logo depois. Os guardas já nos conheciam… era nossa casa e como era habitual.

– Bom dia, como está a ser o trabalho?

– Haaa como sempre normal, disse um deles com semblante de quem estava cansado.

Enfim, fui subindo as escadas na esperança (…). Já naquele piso…parte dos seus pertences estavam arrumados no chão como se tratasse de um regresso a Xai-Xai sua/nossa casa.

– Come mais um pouco meu pai. Não quer voltar para casa? É o que eu dizia para te animar, nada falavas, apenas me reparavas e sorrias! Reabria-se a esperança.

Sua casa (Xai-Xai) era/é o seu porto seguro, seus olhos brilhavam quando te falavamos.

Naquilo tudo…seu irmão Orlando – com quem passamos momentos divertidos em Chókwè e em Xai-Xai – estava num canto estático. O cérebro faz cálculos e como faz.

– O que se passa? Porque que essas roupas estão aqui? Questionei.

O silêncio tomou conta dele, ficou trémulo e gago…algumas pessoas que estavam nas proximidades sentiram o peso. E eu não senti as minhas pernas, o meu tronco, por instantes perdi o discernimento. Enfim, a coisa terminou no mar (onde depositamos as suas cinzas), mar de tristezas, mar de incertezas, mar…

Meu pai, a nossa história lembra-me tantas outras que ouvi por aí…e que outras chegaram até mim nesta coisa de fazer jornalismo. Lembro-me de um senhor de Inhambane que ficou paraplégico por um alegado erro médico, de um cidadão que me disse não ter sido atendido no hospital porque o médico nada podia fazer…já estava de saída, da prescrição do paracetamol para enfermidades que não têm nada a ver, da falta de paciência no atendimento de doentes, da falta de luvas, da falta de máscaras. Enfim…há filhos e enteados… as lições da sua morte!

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca.

Fernando Pessoa

Ao Badrudine Remane,
pelo aniversário e amizade!

Quando a luz da viatura deflagrou sobre os meus olhos ao contornar a esquina do Moiane, a noite ainda era uma criança. A conversa com Amós Tembe fluía ao sabor das baforadas do Maronga que discorria novelos dos seus momentos áureos. Como uma vez disse o saudoso Amaral Matos foi no tempo que o rico ainda era pobre.

Aquela viatura sintonizava o meu olhar, num misto de curiosidade e desassossego, marchando lentamente, ao passar diante do bar Barcelona, iluminando silhuetas que, vistas à distância me pareciam do próprio Dakêles, o Badrudine Amade na companhia do Caniate, meu chará pendurados no murro.

Vou abrir um parênteses, explicando o cognome Dakêles. No ano das primeiras eleições autárquicas juntámos meticais e decidimos ir em grupo a um lugar que apenas era frequentado pelos nossos pais. Naquela época a nossa obrigação passava por cumprir a missão matinal de ir à padaria Império, no mesmo edifício do emblemático restaurante matolense. Foi numa tarde de sábado que decidimos enfrentar a esplanada do restaurante O Condestável. E, quando degustavámos já da refeição deu-se uma algazarra qualquer. Levantámo-nos para conferir as imagens do combate, em directo. Mas afinal era tudo fogo de palha! O guarda tratou de enxotar os dois desocupados. Ao retomarmos à mesa os seis pratos tinham sumido, misteriosamente. Interpelámos a moça que nos atendera à chegada. Ela reagiu de forma memorável!

– Xi! Me desculpem, moços. Pensei que vocês fossem daqueles que comem um pouco e depois deixam.

Naquele instante desabou uma ruidosa gargalhada, entre gozo e espanto. O Badru era o tesoureiro do dia, por isso herdou a alcunha Dakêles até hoje.

E, voltando à viatura que riscava o meu olhar, já bem perto, aproximando-se do nosso refúgio. A prata debruando a chaparia do bólide, não nos intimidava. Estávamos metidos naquela conversa terapêutica na Casa Guida. O Xandolas rondava gesticulando solenemente, atendendo a um telefonema regado de importância que só ele sabe conferir.

Oh, Guida, mais uma rodada p`ra estes plebeus – berrava Amós Tembe, naquela voz enrouquecida e jovial.

De seguida uma jovem rompia entre os assentos, fintando as mesas onde militavam Ana Maria, a Melinha, a ministra, o Eng. Sidónio, a professora Emeliana Kanko, a Ivete, a turma dos ireverrentes da mesa 9, em conversa animadíssima, o Miro, o Ferdinando, o Julinho, a Pipinha, a Míriam, o Zú, o Herbok, o Ben Hur, o stôr Ckobra e outros que já perdí de memória.

Antes de voltar à história da viatura que prendia a minha atenção, o velho Nhanombe, ao levantar-se da sua mesa para os lavabos exibiu os seu status, dirigindo-se ao Miro:

– sobrinho, deixa-te de histórias. Se não tens nada para falar assobia! Estás espantado por eu te dizer que vi este carro a ser montado na Escócia, hein? Vi-o, mazé ainda a ser rebitado. Isto é um Defender da última geração. Um carro quando é caro é assim… O Miro permanecia sereno, ignorando a fumaça de vaidade espelida por alguém que tinha idade para ter o juizinho no lugar. Apercebi-me naquele instante que Zú, Julinho, Herbok e Ben Hur levantavam-se, num gesto de respeito e cortesia.

É ele. Sim, ele mesmo. É, juro cinco chagas – a prima Ana Maria era a ilustração do espanto colectivo.

Os nossos olhares fisgados debruçavam-se sobre a figura sorridente que ia nos saudando.

O homem meteu-se entre a multidão, qual comitiva de recepção improvisada. A mão foi passando ao de leve por todos os presentes, numa saudação breve, mas fraterna. O senhor de fato preto fez-se ao balcão entre obediência e hesitação num terreno que era suposto ser ele a comandar as operações. O líder, sempre sorridente era o centro dos olhares e da conversa animada.

Tia Guida não cabia em si de contente. Os maiorais, com lugar reservado no quintal, movidos pelo vapor da cortesia entregavam-se ao aperto das mãos, entre sorrisos e brilho nos olhos.
– Como vai, Chefe? – ouvíamos o velho Nhanombe, liderando já o grupo dos mais-velhos, composto por nomes sonantes, quais anfitriões de ocasião, perguntando pela saúde do visitante.

Muito bem. E agora estou muito feliz por estar convosco, meus irmãos.
O senhor de fato preto arremessou a encomenda para a viatura. Antes do aceno final, o ilustre visitante selou a noite.
Dona Guida não esquece daquela oferta p`ra os meus amigos se divertirem todos.

Uma ruidosa salva de palmas ecoou sobre o lugar.

Não fosse aquele o dia inaugural e talvez o último, de visita à Casa Guida estas imagens não conservariam a frescura, desfilando o sorriso escoltado pela brancura dos marfins e aquele aceno na despedida.

As luzes do mercedes benz voltaram a incendiar as sombras das acácias que se perfilam na rua Malangatana. Aquela noite estava condenada a ser memorável e, do lugar onde estávamos sentados podíamos ver as pétalas amarelas que atapetavam o chão, ilumunadas por faróis dakêles.

 

Uma casa sem nome, mas cheia de rostos: comecemos pelo lado carrancudo que se dá pelo nome de Vasquez e assim começo também eu por cumprimentar o meu colega do painel e irmão de São-Tomé e Príncipe, Orlando Piedade, autor dos livros que confesso desconhecer: O Amor Proibido e Os Meninos Judeus Desterrados;

Estendo o meu frágil, mas animado aceno ao escritor e diplomata brasileiro, Fortuna, que um dia escreveu: nenhuma rotina adormece, e nem cabe reclamar das dores faveladas e dos acidentes.

Falando em rotinas, espero que as minhas vindas à Angola sejam mais frequentes. Por enquanto, devo contentar-me com o facto de ser a minha primeira vez a estar nesta bela pátria, país que gerou tantos autores cujas obras fazem parte da minha formação literária. Cito dois desses: Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho.

Encontro-me aqui, mais uma vez, com o Lopito Feijoó, esse continuador de David Mestre e a quem tenho denunciado a dura realidade de me encontrar e reencontrar com outros escritores africanos, mais na Europa ou no Brasil do que em África.

O FESTLAB veio para me desmentir e para me dizer que estou redondamente enganado. Por isso agradeço à curadoria deste Encontro pelo convite e um especial Thank you (com sotaque, como dizem os namibianos aqui ao lado) para Nídia, a Vera e a amiga Maria Cantinho, pessoas generosas que tornaram possível a minha primeira vez, isto é, a minha vinda…

…e presença neste festival que é a prova inequívoca de que a literatura desempenha um papel importante na construção contínua da ideia da lusofonia, estimulando os vários processos para a sua afirmação e para o desenvolvimento das nossas nações.

Apesar dos inúmeros desafios e de algum desencanto, a luta pela afirmação das literaturas lusófonas, com as suas próprias marcas identitárias, deve continuar e este tipo de encontros, de intercâmbio cultural, representam um dos mais nobres contributos para aprofundar a nossa visão literária e colectiva do mundo lusófono e, para unirmos os nossos esforços com vista a ultrapassarmos as grandes preocupações actuais, como por exemplo, o escasso acesso ao livro e à leitura e a urgente necessidade de formarmos leitores.

Estes encontros são também importantes para encurtar distâncias, construindo diálogos que respeitem, obviamente, a pluralidade do mundo lusófono, porque tal como dizia o outro, a lusofonia é per si, cada um de nós.

O FESTLAB ocorre no mês em que celebramos a língua portuguesa, o troféu de guerra dos países africanos de língua portuguesa, como diria Luandino Vieira, essa língua que é o maior unificador do mundo lusófono e que nos lembra que somos todos filhos da mesma mãe, ainda que os contextos de cada país sejam diferentes, e que cada um de nós tenha a sua marca estilística.

Não podemos também nos esquecer que partilhamos as mesmas preocupações, que acabam por atormentam-nos a todos, como por exemplo, a deficiente circulação do livro dentro de cada um dos nossos países e entre eles.

Depois deste preâmbulo, deixem-me contar-vos uma pequena história (fictícia)

Há dias, um amigo meu, proprietário de uma livraria independente, em Maputo, das menos de 10 que existem e da qual sou um assíduo frequentador, disse-me que iria instalar na sua livraria um sistema de vigilância por câmaras, em circuito semi-fechado (sei lá o que isso significa), para detectar o roubo de livros. Decisão legítima a do meu amigo João Taraduma***, nestes tempos difíceis em que há cada vez menos leitores a comprarem livros.

É preciso fazer-se um combate cerrado contra esses ladrões, esses filhos da… quase ia eu dizer-lhe, quando me lembrei que foi graças ao furto de um livrinho, em tempos remotos, que tive a minha primeira febre literária, quando li pela primeira vez este verso: “o amor é fogo que arde sem se ver”. Estava eu no fulgor da adolescência e nas minhas primeiras paixões.

Fiquei obviamente calado e meio-confuso. Pensei aqui para os meus botões: Este ataque tecnológico que o meu amigo quer fazer contra o furto dos livros, não irá inibir o surgimento de novos escritores? Não estará o futuro da literatura moçambicana e, por extensão, a lusófona, em risco?

Sai de imediato do interior do meu silêncio e abordei o meu amigo: Oh, Taraduma, meu grande irmão, não estarás a exagerar em colocar câmaras? Entendo que esses ladrões de livros acabam por dar golpes duros à nossa cultura e afectam profundamente a economia nacional.

Mas veja lá: isto não é um caso de só colocares alguns espelhos circulares em dois ou três cantos e resolve-se logo o problema e gastas menos com aparelhagens de vigilância?

Nada disso, amigo, interrompeu-me exaltado o livreiro. Os espelhos não funcionam para a qualidade e inteligência de ladrões que frequentam esta livraria.

Falo-te de gente erudita, leitores fervorosos, que devoram tudo que lhes aparece a frente, desde um Patraquim a um Lucílio Manjate, ou desde um Armando Artur a um José Luís Mendonça. Conheço os malandros. Um espelho iria permitir-lhes contemplar a imagem da pessoa a quem querem iludir, proporcionando-lhes a escolha do momento mais propício para agirem.

Decisão tomada, meu caro amigo. Vou colocar câmaras, sofisticadíssimas, por tudo quanto é canto neste espaço. As câmaras são infalíveis. E digo-te, desde já: vou também equipar a livraria com um sistema magnético de detecção de roubos. Rematou.

Voltei a ficar mudo. Não por falta de argumentos, mas para que não tropeçasse na minha própria fala e fosse logo magneticamente detectado pelo meu amigo.

Ouviu-o falar durante minutos e minutos. João Taraduma era um homem visivelmente entusiasmado com a aparelhagem de vigilância e de detecção de furtos que iria instalar na livraria. Tudo tecnologia de ponta, disse-me. E a coisa mais interessante é que as câmaras, segundo ele, não estariam nunca apontadas para as portas e janelas da livraria, controlando quem entra ou sai. Nada disso. Até porque o sistema de vigilância seria desligado durante as horas em que a livraria estaria fechada para voltarem a ser ligadas durante a hora de funcionamento. Segundo o meu amigo, as câmaras estariam vocacionadas para vigiar o leitor, directamente apontadas para os seus olhos, como se fossem verdadeiras Kalashnikovs.

E só pelo olhar interessado do leitor num dos livros, a maneira como ele o pega e o tempo que leva a folheá-lo ou o tempo que o livro fica na mão, seria suficiente para detectar um potencial ladrão de livros e pronto, a campainha de alarme iria soar e katlha, estava apanhado o ladrão.

Quando eu já ia protestar e dizer que tanta sofisticação e tecnologia talvez fosse afugentar os poucos e bons leitores que ainda entram na livraria, o meu amigo João Taraduma voltou à carga: a preocupação da sociedade literária actual não é só com os futuros furtos.

Estamos também preocupados com os roubos de milhares de livros que aconteceram nos últimos 20 anos e que arruinaram por completo a economia nacional. Para estes casos, meu caro amigo, aventa-se a criação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, para lidar com os roubos acontecidos entre 1997 e 2017.

Os que mostrarem algum sinal de arrependimento e voluntariamente confessarem, serão imediatamente perdoados.

Já esses outros, ladrõezinhos sem moral, serão condenados a pagar pesadas indemnizações. Já me candidatei para ser membro da Comissão e se estiveres interessado diz-me e darei o teu nome.

Pautei-me obviamente pelo silêncio e pensei novamente cá para mim: mas estas ideias e incursões do João Taraduma, não são uma traição à causa literária? Nessa tarde tão recente, sai sorrateiramente da livraria do meu amigo, mais mudo que nunca e como só decidi aventurar-me na escrita porque, como se viu acima, não sei argumentar e nem falar (e aqui abro um parêntesis para reconhecer que entro em profunda contradição com o slogan do FESTLAB: fazer, falar, viver), acabei por escrever esta carta, esta manhã, ao meu amigo João, porque tal como dizia Craveirinha, nosso Poeta-mor, traição maior é saber escrever e não o fazer.

*** nome fictício

Nota sobre o fim dos roubos e a morte do livro

Caro João,

Perdoa-me a saída repentina da tua livraria, noutro dia, sem que terminássemos a interessante conversa que estávamos a ter, mas tinha mesmo que te abandonar a fim de me preparar para uma viagem a Luanda, onde vim participar num encontro de escritores. De entre vários assuntos, será discutido o Livro e a Tecnologia (veja só as coincidências, Taraduma) tema que, devo confessar-te e o faço só a ti, desconheço em absoluto, tirando a belíssima aula que me deste, dias atrás, sobre o sistema de vigilância que pretendes colocar na tua livraria. Só não revelei a minha ignorância à organização do FESTLAB, por receio que cancelassem o convite. Assim perderia a oportunidade de conhecer Luanda, o Atlântico, e a excelente culinária angolana, para além das suas belas mulheres.

Agora, com mais calma, e instalado no quarto 2205 de um hotel que tem uma vista magnífica sobre o Cais do Porto, escrevo-te esta nota para dizer-te o seguinte:

Julgo que qualquer conversa sobre o livro e a tecnologia deve incluir, sempre que possível, uma breve referência sobre o desenvolvimento histórico do livro e as origens da escrita.

E aqui está a primeira dificuldade que encontro, nesta tentativa quase falhada de tentar abordar o tema: é que o livro e a literatura são a maior invenção ‘tecnológica” da humanidade.

Como sabemos, já vamos num longo caminho percorrido de mais de 10 séculos, desde o tempo em que se escrevia no bambu, tão pesado ou, em bocados de seda, que era caríssima usando-se mais tarde o pergaminho, indo à época do manuscrito medieval, passando pelos tempos de Gutenberg e do livro dos nossos dias para desaguarmos por fim nos Gadgets e no livro electrónico.

A história tem-nos ensinado que o livro foi sempre tecnologicamente evoluindo, dentro de uma certa manifestação estética, obviamente e, assim se espera que aconteça nos próximos tempos.

Sendo assim, é inevitável empreender esta aventura, sem que me debruce, ainda que levemente, sobre a história da impressão e da produção do livro.

Como sabes, meu caro livreiro, evoluímos do bambu e do pergaminho para o papel, que foi fabricado pela primeira vez na China e que hoje tens aos montes aí na tua livraria, graças ao génio do Marquês Ts’ai Lun, no ano 105 da era cristã.

Faço esta introdução para desconstruir certas certezas de ontem, que hoje têm-se revelado não serem assim tão certeiras. Falo, por exemplo, de uma suposta morte do livro convencional, em favor das formas digitais do livro, revelada há cerca de 10, 15 anos, no esplendor e boom dos e-books, gadgets e de outros aplicativos e formas electrónicas de difusão literária.

Lembra-te que houve em todo o mundo debates tão fervorosos e acesos, que alguns juravam pelas almas dos seus antepassados, que o livro, como objecto que o conhecemos, teria os dias contados e muito provavelmente seria hoje uma das peças a ser mais admirada, durante a visita que alguns de nós faremos aos Museus, no próximo dia 18 de Maio, Dia Internacional dos Museus.

Ora, uma década depois do frenesim inicial, caracterizado por um aumento exponencial das vendas e do acesso à literatura através do material digitalizado, sabemos hoje que as vendas dos livros digitais caíram substancialmente, passando de cifras de 70% do total de livros vendidos em algumas plataformas, para cerca de 30%.

Em alguns meios, onde há electricidade e internet, sejamos sinceros, o livro digital teve o codão de aumentar o acesso ao conhecimento e ao entretenimento em grupos em que o livro, na sua forma convencional, não chegava.

Entretanto, devido, em parte, ao preço ainda alto e a outros factores elencados aqui, em muitos meios, o livro digital não se democratizou, continuando inacessível para a maioria dos cidadãos. Portanto, quer seja electrónico ou não, volvidos mais de quinhentos anos, em alguns contextos, o livro continua a ser um objecto raro e um privilégio de alguns e propriedade exclusiva de um grupinho.

Sabemos também que uma parte dos novos leitores, depois de se introduzirem na leitura, através do livro digital, acabaram por migrar para o livro tradicional, pois, até hoje, os e-books ou livros electrónicos têm alguns desafios que ainda precisam de ser resolvidos, para que de facto se transformem em elementos complementares do livro convencional, nessa batalha de todos para o aumento do acesso à literatura e à cultura.

Um dos desafios dos gadgets, por exemplo, é que por muito que contenham os melhores livros da literatura universal, são ainda um meio esteticamente perturbador a alguns de nós, retirando-nos o tal prazer do texto, que tanto advogava Roland Barthes. É como se “A Va Sathi Va Lomu”, do meu conterrâneo Fany Mpfumo, passasse a ser cantada pela tua voz, João.

A tipografia, quando surgiu no séc. XV, veio satisfazer uma exigência do mercado: multiplicar os textos e expandir o acesso. Como sabes, no nosso país e nos outros, há ainda problemas estruturais relacionados com a distribuição do livro e a sua deficiente circulação: os livros não chegam onde deviam chegar e quando chegam, é com um atraso considerável.

Taraduma, longe vão os tempos em que era tao fácil darmos de caras com um Uahenga Xitu estacionado numa qualquer prateleira de uma livraria em Maputo ou, com um Arménio Vieira.

Não quero aqui incitar à violência alguma, mas quero lembrar-te que os livros dos autores referidos acima, de tão boa qualidade, circulavam mais dentro da lusofonia, quando os nossos países estavam debaixo de regimes totalitários do que agora.

Tudo isto, na verdade, não tem muito a ver com o livro em si, mas sim com um sistema deficiente e não-inclusivo de distribuição de quase tudo que é essencial, desde alimentos, medicamentos, preservativos, rendimentos, volvidos mais de quarenta anos após as independências das colónias portuguesas. Mas a cerveja chega a todo lado, dirias tu. Será?

Passaram-se séculos e a expansão do acesso à literatura e ao livro deve ser também objectivo do livro digital nas suas várias formas. Mas expandir o livro digital num contexto de uma baixa cobertura eléctrica e de internet é muito diferente dos ambientes em que a Internet e a electricidade abundam. Para além das habituais dificuldades económico-sociais que definem também o leitor, já para não falar das questões estruturais do mercado.

Agora, em tom meio-confessional, digo-te o que não consegui dizer-te há dias, meu Taraduma: tenho uma relação difícil com a tecnologia, mais por inaptidão do que por desprezo.

Daí que a conversa no outro dia sobre a instalação de câmaras na tua livraria, tenha-me dado algumas voltas à cabeça. Porque tal como muitos, sou daqueles que ainda olha para o livro como um objecto de partilha, acto tão importante nestes tempos duros em que cada um vive fechado em si mesmo.

Olho para o livro como algo que também deve ser emprestado ou oferecido. O livro é para mim, sobretudo, um lugar de partida e de chegada e, até hoje, os e-book e algumas formas de livro digital falharam em cumprir em plenitude esse papel tão essencial da humanidade.

E podemos imaginar porquê. Porque o livro tradicional exerce uma maior influência estética no gosto do leitor do que os e-books e, às vezes, do que qualquer arte.

Um livro impresso e belo é sempre melhor que um gadget e ainda é o maior veículo para ensinar às crianças o amor incondicional à vida e às coisas belas.

E isso é tão crucial, nestes tempos difíceis, caracterizados por uma ausência do apreço ao belo e da falta de gosto. É uma fase, dizem uns, é algo global a que não podemos fugir, dizem outros.

Seja o que for, é sobretudo, uma revelação da crise de valores que todos os dias desfila nos nossos rostos. Esse facto pode ser suficiente para explicar a situação actual de apuros em que o livro se encontra e em consequência disso, em que tu te encontras, Taraduma.

Não nos esqueçamos que o livro representa um sistema de valores. Dos mais nobres. E essa é, provavelmente, uma das razões de fundo por que é que é combatido em todas as frentes. Mas não desanimemos: há ainda alguns raios de luz por entre as trevas, como tu costumas dizer.

E uma das formas de resistência, penso eu, é a de termos editores de bom gosto, que dêem à estampa livros esteticamente belos, bem executados, com um cuidado na parte tipográfica e na encadernação, com excelentes ilustrações e imaculadas revisões linguísticas. Parafraseando Douglas McMurtrie: a ambição de qualquer autor é a de ter uma boa obra de literatura com um belo aspecto gráfico.

Portanto, quer-se livros com qualidade gráfica e literária. Se não fizermos nenhuma concessão nesse domínio, o livro resistirá.

Como sabes, eu sou daqueles que ainda aprecia a forma dos livros, o seu cheiro, a textura e quanto mais anos os livros tiverem, mais charmosos e atraentes são. Este é que é o encanto dos livros. O cheiro agradável do papel velho ainda me seduz.

João, em qualquer discussão acerca do livro tradicional versus livro electrónico, tenho sempre o cuidado de separar o debate entre literatura, portanto, a arte de escrever livros, e a arte de imprimir e produzir livros, para assim não confundir o conteúdo do contido ou o meio do fim.

E é aqui que surge a magia da arte e a sua beleza: é que a literatura, essa mãe das artes, sempre sobreviverá, como aliás a história nos ensina, quer ela seja escrita e inscrita em pedras ou em papel.

A literatura, essa invenção única da humanidade e a única prova da sua existência, não deve ser uma simples reprodução, mas sim uma nobre criação. Quer ela esteja estampada em madeira ou na palma das mãos. Porque ela deve, essencialmente, não se desviar do essencial: o de ser uma boa literatura. Não devemos perder o nosso fascínio pelos bons livros, assim como não devemos deixar de beber uma cerveja angolana, quer nos sirvam num copo descartável ou numa mbenga.

O nosso compromisso deve ser, pelo menos penso eu, com a boa literatura, aquela que nos faz ter febres ou arrepios quando o sujeito poético em Rui Knopfli diz: não conheço esse mar que me vem beijar os pés. Tudo isto vem só lembrar-nos a mais pura verdade, Taraduma: o mercado livreiro é bastante complexo e está em constante transformação.

É provável que um dia o livro impresso transforme-se em livro digital e desapareça. Pode acontecer que o leitor do futuro exija novas maneiras de ter acesso à literatura e contra isso não podemos lutar. O homem é um animal de hábitos e tudo dependerá dos hábitos dos leitores nos próximos tempos. Mas julgo que esse processo vai levar ainda algum tempo e dependerá, em muito, do perfil do leitor nas próximas décadas.

Não nos esqueçamos do essencial: quem determina a forma que a literatura tem hoje e terá no futuro é sempre o leitor. Tudo dependerá então da sua preparação e capacidade de transformar e dar vida aos símbolos mortos que se encontram impregnadas nas páginas das grandes obras literárias.

Assim, o futuro do livro tradicional dependerá, em parte, do comportamento do leitor médio, das suas necessidades, gostos e sobretudo do seu conforto e do seu nível de preparação para a invenção. Não nos distraiamos: o leitor comum quer um livro fácil de ler, de manusear e de adquirir. Até agora o livro electrónico não preenche em plenitude estes requisitos

Outra confissão minha: o meu apego ao livro impresso é talvez o jeito que encontro de ser patriota. Moçambique é dos poucos países no mundo que ostenta um livro na sua bandeira. Mas se a virada for para os livros digitais e gadgets, estou preparado e não serei menos nem mais patriota por isso.

E para terminar, João, julgo que devias pensar seriamente em abandonares o livro tradicional e apostares no digital e nos gadgets. A vantagem dos gadgets, João, é que já não terás que te preocupar com as quantidades de pó que se acumulam nos livros, o tempo que perdes para os limpar, o peso que são quando os carregas de um lado para o outro. Outra importante vantagem, e talvez a mais importante: com o livro digital, acaba-se de vez com essa tua preocupação com o furto dos livros.

E agora pergunto-te: não é mais fácil, João, investires na digitalização do livro ao invés de digitalizares a tua livraria? Bem, aqui fica a questão.

Daqui da janela do Atlântico e distante de qualquer sistema de detecção de roubos, envio-te um aceno, meu caro amigo João Taraduma, e vou ter que terminar abruptamente esta carta, porque se aproxima o início do debate na mesa em que estou inserido no FESTLAB e como sabes, nem sei o que vou dizer.

 

 

As mulheres têm, em todas as situações, mais causas de sofrimento do que o homem, e padecem mais do que ele.

Honoré de Balzac

O novo livro de Dany Wambire é uma proposta para o leitor viajar pela realidade moçambicana. À imagem do seu primeiro livro, este A mulher sobressalente é feito de circunstâncias próximas às peripécias dessas Munhavas abundantes no país. Este é um livro constituído por 10 contos, nos quais o universo suburbano é um espaço com muito por ser explorado. Desde “O linchamento dos dólares” a “O filho do camponês”, de “O bêbado corrigível” ao “Conselheiro da enfermeira”, esta colectâna encerra nas suas histórias o empenho do autor fazer da escrita um recurso didático. Talvez, por ser professor, Wambire apresenta, de forma recorrente, narrativas com esse teor paternal, pronto a contar na mesma proporção que veicula valores essenciais para boa conduta.

Em todo o caso, dos 10 contos existentes no quarto livro de Wambire interessam-nos três. O primeiro é a “A mulher sobressalente” (que intitula o livro), provavelmente, o melhor do livro. Nesta narrativa, o escritor dá voz a uma narradora autodiegética, o que pressupõe ser protagonista. Confessamos que não somos apreciadores deste tipo de narradores. No entanto, neste caso, a narração acontece tão bem na primeira pessoa que as dores da personagem tornam-se quase tangíveis. Esta é uma história de uma rapariga do campo que é arrancada da cidade para onde fora morar enquanto a menstruação não descia de modo a assumir a responsabilidade de saldar as dívidas do pai e salvar o casamento da irmã. Por isso, Quinita, A mulher sobressalente, é obrigada a deitar-se com o cunhado – com a anuência da irmã mais velha – para gerar um varão. Depois de nascer, o bebé é arrancado dos braços da mãe, afinal…: “ – Este bebé fica aqui. Pertence agora à tua irmã. Tu fizeste-o para ela. Assim salvaste-lhe o casamento, pois ela só fazia meninas” (p. 45). Diante da indignação de Quinita, o pai responde, autoritário: “ – Isso é tradição e pronto. Vamos para casa”. E a rapariga obedece.

No conto A mulher sobressalente, a tradição é uma prisão, que usa, humilha, subalterniza e desgraça a protagonista da história. E, a própria irmã de Quinita, embora se beneficie da tradição, por ter o lar garantido depois de o marido conseguir o almejado filho, também é vítima desse conjunto de valores machistas sempre a favorecerem os homens na história.

Os valores tradicionais voltam a subalternizar uma personagem no conto “Casal de Brincadeira”. Nesta história, a certa altura, o narrador relata: “Tina tinha 4 anos de idade, mas já tinha aprendido da mãe a cuidar do cabelo, a lavar a loiça, a limpar o chão e a tomar banho para gingar. A ser submissa também. Motivo que fizera com que Dinhito a elegesse como esposa de brincadeira” (p. 73).

À imagem de “A mulher sobressalente”, em “Casal de Brincadeira” há uma educação baseada numa tradição que algema as mulheres, fazendo delas utensílios domésticos, usados enquanto não quebram. Ao investir neste tipo de histórias, Dany Wambire é cruel como se sugere. Vai à origem dos problemas e coloca-nos na pele das personagens para nos apropriarmos das suas dores.

Na terceira história que nos chama atenção, “A bolsa diz tudo”, temos um facto curioso. Ginho, o protagonista, ao ganhar uma bolsa de estudos para Europa, informa ao pai. Antes de autorizar a viagem do filho, pede-lhe que arranje, primeiro, uma nora. Essa é a garantia de que o velho necessita para acreditar no regresso do filho. A felicidade da tal nora, condenada a enfrentar anos sem o marido, nunca é pensada. Mais tarde, cumprido o desejo do pai, Ginho vai cursar Economia na Europa, onde engravida Vânia, uma brasileira lá a doutorar-se em Antropologia. A paixão por Ginho foi intensa. Por isso, a brasileira preferiu viver em Moçambique. Para sua infelicidade, perde o marido e logo de seguida é obrigada a cumprir o ritual de viúva, deitando-se com o cunhado mais novo, mesmo contra a sua vontade.

De facto, “as mulheres têm, em todas as situações, mais causas de sofrimento do que o homem, e padecem mais do que ele”. Honoré de Balzac oferece-nos esta frase em Eugénie Grandet. Dany Wambire, neste A mulher sobressalente, lembra-nos isso, com aquele vigor de quem é contra… Por ter sido educado por uma grande mulher? Isso pouco importa.

Título: A mulher sobressalente

Autor: Dany Wambire

Editora: Fundza

Classificação: 14

Carneiro Gonçalves: “Caminhai célere, ó jovem povo do Quiteve, e vinde ouvir a história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasalhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guerreiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos génios antigos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e era tão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, as savanas. Requestavam-na os mais expeditos; transformou em temeridade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas, peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suas gargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que despenteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.

Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, o espírito das águas. Todas as moças acabadas de donzelar na última lua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangue entre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeiros soberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cruzavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moças uma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava e ria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nos espasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto as aringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em torno das fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tremiam de uma admiração sagrada.”

São oito brevíssimos parágrafos de uma belíssima e trágica história de amor. Kilomko encontrou, em certa madrugada, Malidza, regressava ele dos seus combates. Diante do seu olhar, caiu-lhe a lança da sua mão invencível pela primeira vez. Esperava desde então o fim das guerras para desposar Malidza. Mas, um dia, o nhamessoro apareceu na aldeia para invocar o espírito das águas. No momento da dádiva, o mago poderia escolher a jovem que o impressionasse mais. Escolheu Malidza.

Carneiro Gonçalves: “Gritaram as mulheres saudando a escolha. Mas Malidza recuou, recuou sempre, levou consigo o sofrimento de Kilomko e o espanto das outras mulheres que não compreendiam a fuga sacrílega.

Diz-se que a floresta matou Malidza.

Mas notai, ó jovem povo de Quiteve, que Kilomko sabe onde repousa o corpo de Malidza, que foi encontrar no sítio onde a viu pela primeira vez. Dois abutres debicaram-lhe os olhos. Levantaram para o céu quando Kilomko se aproximou. E o antigo guerreiro também sabe que o espaço agora é mais azul porque o encheram de luz mais duas estrelas.

António Carneiro Gonçalves nasceu a 21 de Junho de 1941 e morreu, a 20 Janeiro de 1974, num acidente de viação, aos 32 anos, deixando não apenas este belíssimo texto, que iria integrar o livro Contos e Lendas, editado pela mão do poeta Sebastião Alba (pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves), seu irmão, mas também contos que dariam para um outro livro e um romance escrito e reescrito. Era jornalista, deveria integrar, naquele ano, a redacção do Expresso, em Lisboa, viajava para a então Lourenço Marques, hoje Maputo, onde iria apanhar o avião para Lisboa, ia também no carro o poeta Julius Kazembe. O prefácio do livro é um pungente elogio de irmão para irmão.

Sebastião Alba: “Na noite de 20 de Janeiro de 1974, meu irmão ia ao volante, ao largo das estrelas. Seu companheiro de viagem ter-lhe-ia dito: “Carneiro Gonçalves, olha que noite!”; e o carro em que seguia despistava-se a vinte quilómetros de Vilanculos; ele morreria hora e meia depois, no posto sanitário dum areal nocturno. Tinha trinta e dois anos e – rigorosamente – o que sonhou. A mim, apenas quinze meses mais velho do que ele, fora destinado o definitivo infortúnio de escrever estas linhas.”

O texto de Alba é escrito vinte dias depois da tragédia e é o prólogo do livro que ele organizou. Traz duas lendas, entre as quais “Malidza”, contos, e o fragmento de uma novela. Um ano antes, na revista Tempo, no suplemento literário dirigido por Rui Knopfli, que o entrevista, o autor de Contos e Lendas deixaria a sua biografia sintética e magistralmente grafada.

Carneiro Gonçalves: “Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tete. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar dois livros. Lá virá o dia. Ensaiei um romance que reescrevi já algumas vezes. Ontem mesmo ia na primeira página…”

Eu li esta lenda no secundário e ao longo dos anos sabia-o de cor. Este é um dos textos que mais me empolgou –  a par de “As Mãos dos Pretos”, de Luís Bernardo Honwana – ao longo de largos, larguíssimos anos. Carneiro Gonçalves tinha outros belíssimos textos, como “A Lua do Advogado” ou “A Mulher do Escritor”. Mas foi “Malidza” que sempre concitou o meu entusiasmo. Durante anos acreditei que se tivesse uma filha ela teria o nome de Malidza, era tal a minha paixão por esta belíssima história de amor. Bela e trágica: o sacrifício de Malidza, o sofrimento de Kilomko acompanharam-me desde sempre.

Talvez eu também tenha querido ser escritor por causa deste belíssimo texto. Recordo-me do quanto ficava empolgado nas aulas de português, com o professor Agostinho Mamade, na Josina Machel, quando dávamos este texto. Líamo-lo e descodificávamos as palavras. O vocabulário, as expressões linguísticas, as metáforas. Um parágrafo dava para discussão de uma aula inteira. O dicionário para encontrar o significado. O exercício da sinonímia. A riqueza vocabular, a riqueza semântica, a expressiva capacidade de contar, em pouco mais de três páginas, uma belíssima história seriam para mim uma grande lição de escrita.

A poesia: aprendi ainda com este texto de que a narrativa, a prosa, não eram expressões despidas de poesia. Antes pelo contrário. A bela prosa era também a expressão cabal de boa poesia. O ritmo das frases. As suas metáforas. As suas imagens. O seu encadeamento. As suas invocações. A escolha das palavras. As palavras certas na frase. As palavras escolhidas com cuidado. As palavras ditas com enlevo. As palavras escritas com inequívoca beleza.

Aquelas aulas com a leitura cuidada de “Malidza” foram, por assim dizer, as minhas primeiras lições de escrita literária, uma espécie de iniciação na chamada escrita criativa. Escrever é um ofício que se ensina e se aprende. É tradição anglo-saxónica. Nós adviemos de um universo onde se cultiva um certo misticismo em relação à criação literária. Onde ao talento se consigna uma certa ideia de um poder divino ou encantatório que nos leva a escrever ou a criar. Devo dizer que não comungo dessa visão. A literatura procede de trabalho, de exercício, de leitura antes de tudo, de conhecimento, de conhecimento da tradição literária, de conhecimento de outras escritas, de dedicação, de obstinação. Mas isso é tema de outra conversa.

Em 2005 foi publicado em Portugal o volume A Escrita de Anton, de Carneiro Gonçalves (organização e estudo introdutório de Calane da Silva e notas biobliográficas de António Sopa), que recolhe os textos que haviam sido dados à estampa na recolha Contos e Lendas, acrescenta-se-lhe uma lenda pelo menos, alguns contos, crónicas e uma massa espessa de textos puramente jornalísticos. Li o longo texto do Calane da Silva, polvilhado de muita informação, que ajudam a compor o perfil deste escritor desaparecido precocemente. Chamavam-no os mais próximos de Anton, o nome do seu primeiro contista predileto, Anton Tchekov.

Li os textos, dos muitos publicados em A Tribuna, Diário, Notícias da Beira, nas colunas que Carneiro Gonçalves teve. Pessoalmente, atenho-me aos contos e às lendas. Reconheço que haverá, algures, noutros textos, o quilate da escrita do autor, mas nada melhor do que nos textos que o próprio exerceu, até ao limite, a sua oficina, burilou e expurgou tudo que era expurgável. Nada tenho contra a recolha de textos jornalísticos, interrogo-me apenas quais seriam os limites. Publica-se tudo? Quem afere a sua qualidade? O autor, se estivesse vivo, aprovaria? Bastará, como no caso, a vontade da família?

Esta questão ponho-a em relação ao que está na imprensa, não em relação a obras literárias inéditas – há casos de autores que se manifestam contra a publicação póstuma de certas obras que deixam inéditas e que se revelam, ulteriormente, obras-primas. O caso de Franz Kafka que pediu que o seu amigo Max Brod queimasse os seus manuscritos é revelador. Vieram a confirmar-se como obras-primas. Kafka, se quisesse, as queimaria ele próprio. Não queimou porque tinha, ainda que remotamente, esperança na obra que deixava. Isso é um caso diferente. Outra coisa é a exumação de textos de circunstância, nos sepulcros dos jornais. Aí me interrogo. A despeito, a escrita de Carneiro Gonçalves é uma das mais belas escritas que se podem encontrar no universo da literatura moçambicana, não obstante o facto de ele ter-se apartado muito cedo do reino dos vivos.

Rui Knopfli: “Carneiro Gonçalves comete às letras moçambicanas o ânimo e a frescura do seu discurso lesto e elegante, de um rigor que não pactua com fáceis efeitos de embelezamento, antes se cinge aos calculados riscos de uma disciplina que é, simultaneamente, a da cultura e a de uma ática simplicidade. (…) Razão, talvez, por que a sua prosa desencadeia em nós a fragrância de um vinho novo e generoso, acidulado e nobre.”

Sebastião Alba: “Meu irmão caminhava em sombra; caminharia sem se voltar até ao fim das nossas vidas. E, afinal, era o que a todos nos restava dele. Não estou certo de que tenha feito uma boa escolha, pois de quase nada estou seguro. Como sucede com muitos de nós, ele acreditava que aquilo a que se chama a visão de um artista é a sua primeira imagem poética do mundo, essa que ao longo da vida se busca fixar num fundo de luz permanente. Vinte dias após a morte dele, não posso ainda impedir-me de esbarrar no que se me afigura uma evidência pavorosa: a obra desde já irrealizável e a que, algum dia, lograsse acabar, tiveram para ele um mesmo e último sentido.”

Creio que o Alba explicita, enunciando as dúvidas que teve em resolver o vazio que encontrara, após cotejar o índice encontrado na pasta que Carneiro Gonçalves levava consigo, que o levou – passe-se a redundância! – a substituir um conto que não descortinou por um texto escrito aos vinte anos: “Um circunstancialismo jugulante impediu que outro feixe de contos se atasse, desde logo, no presente volume.” (Sebastião Alba)

Carneiro Gonçalves tinha uma estranha predilecção pela lua. A lua ou o luar são títulos de seus contos ou escritos, atravessam as suas histórias. Naquela noite de 20 de Janeiro de 1974, ele ia ao volante e terá dito o seu companheiro de viagem: “Olha que noite! Que luar tão lindo!”. Carneiro Gonçalves, ao que parece, fascinado com o luar, despistou-se entregue a essa visão sublime que o prendeu ali para sempre.

 

No texto de Alba, redigido próximo da morte do irmão, não aparece a referência ao luar: “Que luar tão lindo!” Calane da Silva acrescenta-lhe essa frase e diz que a confirmou de um amigo indefetível de Gonçalves, João Schwalbach. Sou amigo há mais de trinta anos do Julius Kazembe. Sei que ele ia com o Carneiro Gonçalves naquela noite, falámos eventualmente de Carneiro Gonçalves, mas sempre evitei abordar a história e os pormenores de um dos trágicos acidentes que marcam a história literária de Moçambique.

 

Há muitos anos que não lia “Malidza”. Olhei sem desespero para a estante e a memória levou-me a esta história da minha adolescência, história que marcou definitivamente a minha vida e que ainda hoje me comove quando a leio como se a lesse pela primeira vez. Tenho dois filhos. A mais nova é uma menina. Uma belíssima rapariga à beira dos 18 anos. Não cheguei a dar o nome da heroína da lenda do Carneiro Gonçalves, como sonhei algures na juventude. Nem sequer teve o nome da cantora Sade Adu por quem me haveria de apaixonar anos mais tarde. Ela chama-se Mayisha, foi o nome escolhido pelo seu mano Irati.

Reuniram os meninos de rua numa pilha de fila e noutro canto da sala, onde crescia uma árvore de Natal com luzes, tinham sido amontoados miúdos vindo dum infantário próximo. Os meninos de rua sujos, com suas vestes brilhando de sujidade e os miúdos do infantário cheirando ranho seco esperavam, na sala, o Pai Natal Solidário.

Os rapazes do infantário, uns colados às cadeiras de rodas e outros de cabeças arredondas de doenças estranhas, eram cuidados e concentrados em molho por um grupo de irmãs brancas, baixas, com saias gotejando até as dobradiças dos joelhos e com cruzes em terços de ferro cruzando-se entre os seios pestanejando tetas nas suas batinas.

Os meninos de rua faziam da sala uma rua. Arrancavam-se balões inchados de ar e molhados de saliva; faziam de golpes e pontapés meios de divertimento e caçavam-se piolhos em suas cabeças cheirando a erva daninha das suas almofadas de pedra. A filosofia da rua andava com eles em todos sítios.

Os meninos irmanados pelo infantário e os familiarizados pela rua fizeram fila na sala grande. Palhaços de cabelos coloridos, com vestes abotoadas de cores diversas, tentavam alegrar aquelas criaturas tristes. Uma música infantil ressoava dos altifalantes sobrepostos. Uma figura vestida de Pai Natal distribuía rebuçados aos meninos. Era o Natal Solidário. Tudo era feito pela solidariedade.

Cada menino foi servido uma sopa onde legumes flutuavam como sobreviventes dum acidente culinário. Os meninos de rua tomavam-na sem usar as colheres e enfiavam-se na fila vezes infinitas para repetir a dose líquida. Sorviam a sopa como pequenos monstros. As mãos das irmãs carregadas de colheres de sopa pareciam máquinas de guindastes nas bocas dos rapazes do infantário. Todos tomaram sopa, fizeram os estômagos nadaram na sopa quando saltitaram num pula-pula.

Moças lindas, vestidas de jeans, com camisetas estampadas a frase: “Natal Solidário para Todos”, circulavam e recolhiam os pratos de sopa atirados ao chão. As moças por questões de higiene trabalhavam com a nudez das mãos vestida de luvas. E os tinham máscaras. Eram voluntárias apesar de voluntariadas pelo subsídio mais alto que alguns salários.

O “Natal Solidário” terminou. Os presentes do Pai Natal não se fizeram mais presentes. Os meninos com a sopa gaguejando nos estômagos voltaram ao calor da rua e os outros recolheram a casa das irmãs. O coordenador da equipa solidária, carregando ao colo uma criança abananada no infantário, falou aos microfones de rádios e televisões que eram excitados por mãos de jornalistas. Falou e falou. Agradeceu aos patrocinadores.

A equipa da solidariedade foi a uma sala luxuosa dum restaurante. Balançou copos bem gordos de vinhos ao ar e fez balanço. Conferiu os cheques, contou os parceiros sérios e seleccionou fotos bem focadas de crianças sorrindo com a sopa na boca para publicá-las nos jornais. Todos foram às suas casas carregados de salários oferecidos por Pai Natal, embrulharam números enormes em suas carteiras e esqueceram o apetite que abriram aos meninos.

 

Na semana passado fui designado para acompanhar a visita do Presidente da República à província de Sofala. Era o regresso de quem lá viveu um ano e oito meses, igualmente a mando do serviço, o que me permitiu viver experiência enriquecedora e conhecer melhor aquela província e suas gentes que literalmente não só fala como o nome da província sugere, mas também age e trabalha arduamente.

Apesar de que já tinha estado na Beira uma semana antes, a passagem pela cidade por apenas um dia me permitiu ir a locais que na semana anterior não tinha conseguido ir. E foi de coração partido que vi a cidade com as ruas totalmente partidas. Em algumas vê-se o esforço inglório do município a tentar tapar os buracos. Por outro foi de satisfação pois senti uma Beira que cresceu muito desde que de lá sai em finais de 2014. Novas infra-estruturas económicas surgiram, o bairro de Estoril parece não dever nada a Triunfo de Maputo e o percurso da Beira a Inchope vai ganhando nova vida.

Foi com satisfação que percorri a Estrada Nacional Número 6, aquela mesma que fiz várias reportagens entre 2013 e 2014 a denunciar a sua acentuada degradação sendo a principal via de interligação do nosso país a vários países da SADC. A estrada está quase pronta e com novo rosto.

No Domingo dia 19 iniciamos a aventura que nos levaria ao norte da província de Sofala região que foi assolada pelo conflito militar e que o Chefe de Estado decidiu visitar este ano. As 9 horas as duas Toyota Land Cruizers, comumente chamadas HZ estavam estacionadas no hotel e prontas para levar os 13 jornalistas idos de Maputo para cobrir a Visita Presidencial. Uma das HZ era do tipo que é usada como ambulância, pelo que a maioria dos jornalistas usaram-na a outra tinha mais conforto e por isso todos lá queriam entrar, mas só os mais teimosos conseguiram usa-la. Tinha capacidade só para 4 passageiros.

As 10 horas partimos com destino final o distrito de Chemba, mas com paragem em Caia para pernoitar. Depois de discussão sobre a via a usar venceu o grupo que preferiu usar a Estrada Nacional Número Um, com desvio em Gorongosa via Casa Banana até Cheringoma e depois até Caia. Assim fizemos e só às 19h30 minutos chegamos a Caia.

O percurso foi extremamente doloroso. A EN1 está completamente irreconhecível, cheia de buracos enormes que engolem qualquer viatura ligeira. Mas tive satisfação ao ver o renascer da vida ao longo de toda estrada que liga a vila de Gorongosa passando por Vunduzi até Casa Banana. Percorri aquela região altamente produtiva em meados de 2014 e estava totalmente abandonada. As poucas pessoas com que se cruzava só se via lágrimas de sangue nos seus rostos, mas agora vi alegria, vontade de produzir mais. Vi baracas abertas, muita gente a circular, mulheres e crianças a lavar roupa nos riachos que nascem da Serra da Gorongosa.

Aquela terra que testemunhou o derramamento de sangue entre irmãos mostrou-me que está pronta para transformar a tragédia e os momentos difíceis porque passou em força para produzir mais e combater a pobreza no seu seio e no país em geral. O mesmo vi em Casa Banana, em Mazamba e em Cheringoma que visitariamos dias depois.

Chegados a Caia pernoitamos na Pensão do músico Esaú Menezes. As 5h00 do dia seguinte partimos, mesmo com reclamações dos colegas que se faziam transportar na “ambulância” pois a noite não fora suficiente para acalmar as dores causadas pelos bancos de napa e madeira aliados aos saltos nas covas das estradas esburacadas. Mas fazer o quê a jornada estava apenas a iniciar.

Partimos para Chemba via Sena, ao longe deu para matar saudades da ponte ferroviária Dona Ana sobre o rio Zambeze. Nunca tinha estado em Chemba mas a nova fábrica de açucar em fase terminal de construção e o enorme canavial dão indicação de que nos próximos tempos Chemba vai ter uma outra realidade. A feira provincial que mostrou as potencialidades económicas de Sofala realizada em Mulima voltou a mostrar o quanto aquela província está determinada em desenvolver.

No fim do dia e depois do trabalho devíamos partir para Maríngue onde devíamos passar a noite para dia seguinte receber o Chefe de Estado. Mas uma informação vinda de Marínguè diz que o local onde devíamos pernoitar foi ocupado por outras entidades e a solução era irmos dormir em Caia. Lá fomos nós. Mas para nosso azar todas hospedagens de Caia estavam ocupadas. Solução: dormir no carro. E porque na “ambulância” não era possível oito pessoas dormirem alguns recorreram às cadeiras da esplanada do Rocha para tentar acalmar o corpo castigado pelas péssimas estradas e os bancos dolorosos do carro, isso já passavam das duas horas da madrugada.

As 4 horas da manhã uma parte conseguiu negociar com o pessoal da pensão Rocha para fazer o banho outros não. E mesmo assim partimos para Nhamapaza onde o Presidente inaugurou a extensão da energia eléctrica algo que acontece pela primeira na história daquele povoado. À nossa chegada, procuramos sítio para o matabicho e indicaram-nos a barraca Sobra de Mbuzine da dona Tina. Logo as 7 horas ela serve como matabicho arroz ou xima com galinha cafreal e dobrada. Não tinhamos escolha pois não sabiamos quando teriamos a próxima refeição. Alguns dos que não conseguiram fazer banho em Caia, tentaram pedir nas residências particulares de Nhamapaza mas a falta de água que aponquenta aquela região não permitiu satisfazer o nosso desejo.

De Nhamapaza seguimos para a vila de Marínguè. Depois das reuniões acompanhamos o presidente que decidiu caminhar pelas ruas daquela vila. Aqui foi onde ganhei mais uma recompensa. Conhecer um Marínguè que nunca tinha ouvido falar. E de jovens que através do comércio procuram reverter a sua história de pobreza. Alguns mostraram as pequenas e degradas barracas que lhes têm permitido ganhar a vida e com orgulho estarem a construir outras barracas convencionais e maiores. Outros que de pequenas pensões estão a evoluir para pensões maiores e com melhores condições e até expandir o negócio para outros locais.

Foi agradável ver Marínguè que luta para deixar para traz os anos de um passado sangrento e a abraçar um presente de busca incensante pela prosperidade.

De Marínguè já depois das 20 horas partimos para Inhaminga, a vila sede do distrito de Cheringoma. Usamos a EN1, entramos por Phiro deixando a Serra da Gorongosa do lado direito e mais uma vez pela Casa Banana. Chegados à vila, passava da uma hora da madrugada fomos à pensão Safari onde deviamos pernoitar. Já não havia quartos. O pessoal local decidiu desfazer a reserva feita. Fomos ver outros locais e nada. Alguém nos indicou uma tal de pensão Bombinha. Na procura da tal cruzamos por sorte com uma das pessoas que devia nos receber e acomodar. Admirada disse que já não contava connosco. Mesmo assim acordou o colega que nos levaram para o Instituto de Formação de Professores de Inhaminga. Depois de negociações conseguem arranjar colchões que foram colocados numa sala de aula para descansarmos. Felizmente aqui conseguimos água para o banho. Só depois das 3h30 da madrugada conseguimos dormir. As 5 horas tinhamos que partir para Mazamba, que dista 42 km da Vila. E lá fomos trabalhar.

Inhaminga surpreendeu-me por ser uma vila organizada e com o movimento que mostra que está a recuperar os seus tempos áureos, antes da guerra que a devastou, e não entendi porque não é município. Depois do trabalho não haveria outra escolha senão ir dormir na Beira. E desta vez escolhemos usar a via de Muanza até Dondo. A estrada também é péssima. Encontramos camiões transportando madeira enterrados. Precisamos de mais de 4 horas para fazer apenas 177 km. A viagem viria a terminar em Nhamatanda. Uma Vila municipal que por estar ao longo da EN6 teve sempre uma actividade económica intensa.

Definitivamente, a viagem permitiu perceber que o conflito de 2013 a 2016 teve impactos muito negativos na economia e na vida das pessoas na província de Sofala. E a população tenta mostrar com trabalho e determinação que não quer mais a guerra, as pessoas querem dar um rumo diferente para as suas vidas e seus filhos. E urgentemente o governo precisa de repor as estradas da província de Sofala para dar a oportunidade àquela população de lutar pelo seu desenvolvimento.

Que Deus abençoe Sofala.

 

Todos os exercícios de leitura são, como é por demais evidente, importantíssimos para a questão e gestão da vida vivida no mundo social cada vez mais globalizado dos nossos novos tempos.

A leitura à que nos referimos é toda aquela que nos remete a alguns momentos de reflexão ou de peregrinação interior em busca do obvio, da transparência e da  transcendência superando as, (não raras vezes…), reles e  irrefletidas trans/aparências.

Assim sendo, leituras podem e devem ser feitas também de maneira visual. Com simples mas penetrante olhar em razão das circunstâncias. Entretanto, a leitura  que  aqui abordo é mesmo aquela que implica a descodificação de textos, literários ou não, com que nos deparamos durante as nossas práticas quotidianas. Esta leitura poder ter um cariz informativo, formativo e até recreativo ou lúdico.

Livros e toda uma gama de publicações periódicas, físicas ou virtuais, conformam  o que aqui nos interessa. Dentre estes, especificamente, mais nos interessam os de textos resultantes de estudos  literários e da própria escrita criativa.

Sobre estes, que aprendemos a considerar «os mestres mudos», tivemos a oportunidade e rendemos homenagem num texto em jeito poético que se acha inserido na nossa IMPRESCINDÍVEL DOUTRINA CONTRA como sendo uma homenagem aos amigos e subintitulámo-lo  poema de amor:         

Estridentes na capa e no verso bem disperso

-forasteiros-os  livros amam-nos em silêncio

habitam-nos  silenciosamente  descarregando

sóbria iluminação sem nada exigirem de nós.

De quando em quando benevolentes

parece que o sono se adeja sobre eles

os palavrões inscritos nas lombadas

filtram virgens nuvens paginadas

sempre que procuramos inertes  sonhar.

 

Os livros representam. Pensam  e  repensam

seus títulos e subtítulos      linhas e entrelinhas

esperam em silêncio que os aceitemos depois

na estante do firmamento e do risonho porvir.

 

-Pacientes- mudos  e  eternos  fluorescentes revelam

a beleza, o sentido e o olhar dos cegos que somos.

É merecido o silêncio em torno dos vivos

livros paridos no ardor de pura decantação

refastelando nossas velhas, novas e nobres amizades!

Assim sendo, vamos considerar os livros como parte do conjunto de meios de produção indispensáveis para o manejo de todo aquele que pensando repensando e armazenando saber se propõe um cultor das belas letras.

Ler é para nós um exercício primário e primordial pois, se por trás -ou ao lado?- de um grande homem está sempre uma grande mulher, ouso dizer que… por trás de um bom e grande escritor esconde-se sempre um melhor e maior leitor.   

Fartos andamos de ouvir e dizer aos jovens principiantes, – que também já fomos e continuamos sendo, embora em razão do tempo, agora seguimos um pouco menos jovens e consequentemente mais experientes: somos sempre o primeiro leitor de todos os textos que escrevemos, sejam eles literários ou não e jamais um mau ou preguiçoso leitor alcançará o sofrido e ansiado estatuto de  bom aqui… ou melhor escritor ali.

Sem falsa modéstia, vimos aqui dizer que temos sido dos que mais segue atentamente os dinâmicos movimentos culturais e, particularmente, literários em Angola ou mesmo nos distintos países africanos de língua portuguesa. E que ninguém espere de nós tapinhas ou palmadinhas nas costas pois, a vida nos ensinou que as palmadinhas nas costas, em jeito de elogio, são a pior coisa que existe e, curiosamente, os “likes” e tapinhas é o que a grande maioria dos escritores gosta. Principalmente os jovens escritores encharcados pelo prematuro feto da vaidade e pela ânsia de serem vistos e aparecerem por aparecer nas redes sociais em voga e nas páginas literárias locais em função do “timbre do momento e da paixão”. Os meus “likes” nunca são em vão.

Jamais deixamos de reparar, ensinar e aconselhar todos os que nos procuram e indiciam merecer a nossa atenção. Atendemos, principalmente, aqueles que demonstrando sólidas bases de cultura geral evidenciam um razoável e necessário domínio da língua enquanto fundamental instrumento de trabalho  para todo o operário da palavra pois, esta, não raras vezes se apresenta misteriosamente cavilosa.

Seguindo os mais jovens rejuvenescemos. Assim sendo, evidenciamos e aprimoramos mais facilmente o diálogo inter-geracional. A troca de livros é fundamental e o aconselhamento e introdução à leitura de autores clássicos é não menos importante   e vamos paulatina e progressivamente esbatendo o dialéctico conflito de gerações em razão do princípio filosófico da «negação da negação».

Um conselho, um ensinamento literário ou mesmo de outra qualquer natureza é sempre um motivo de jamais desperdiçar até porque reiteradas vezes ouvimos dizer que quem não ouve os conselhos dificilmente chega à velho e ouvir é uma das maiores virtudes dos humanos conscientes.

Reiner Rilke «um rapaz frágil e dotado» tinha fama de complicado e homem muito difícil de lidar entretanto, tinha discípulos sendo Franz Kappus o mais conhecido. Em dado momento, Kappus, ainda e certamente «com indícios tímidos de uma voz própria»  duvidando da sua vocação «…decide enviar a Rilke alguns versos, repetindo um gesto há séculos feito por jovens poetas»,  conforme nos diz Francisco Vale.

Sabe-se que a correspondência entre ambos, mestre e discípulo seguiu-se por mais de dois anos.             

Aos cinquenta anos, Virgínia Woolf escreveu a Letter to a Young poet  (hoje por demais conhecida), dirigida ao jovem John, poeta. Mesmo não sendo ela uma poetisa mas sim aquela grande romancista que ainda hoje lemos com muito agrado, Virgínia ousou e aconselhou.

Rilk e Woolf coincidiram, nos seus conselhos aos jovens, relativamente a necessidade de mais leitura e muita paciência.

Ambos contrariaram a pressa de publicar. Rilke chegou mesmo a dizer que «a paciência é tudo!».  A paciência e a leitura proporcionam-nos o amadurecimento e lendo um livro rendemos sempre uma profunda homenagem a quem sacrificou horas de um irreversível tempo para o escrever. Só assim entendemos a expressão de Jorge Luís Borges segundo a qual «todos os livros são dignos de serem lidos» cabendo-nos, simplesmente, enquanto leitores, atender as prioridades da nossa consciência pois sempre o leitor desempenha um  papel fundamental porque acaba por enriquecer a obra ou o livro e também a si mesmo,  fazendo sempre por compreender aquilo que lê e sentindo a necessidade de um maior aprofundamento.        

Para Borges, a cada uma  hora de escrita correspondiam dez horas de leitura. E assim se forja um escritor ou mesmo um verdadeiro intelectual.

Bem próximo dos seus 89 anos, o filósofo Alemão Jurgen Habermas, em entrevista recente ao jornalista Borja Hermoso para o EL PAÍS-Brasil, muito profundo, alerta-nos da impossibilidade da existência de intelectuais não havendo mais  bons leitores a quem alcançar com os argumentos esgrimidos e, já nos idos de 80 do século passado, o prof. Manuel Ferreira chamava a atenção para o fraco nível intelectual dos escritores  africanos de língua portuguesa. Na  leitura, na densidade, no grau de literariedade e nos argumentos da escrita criativa estava, certamente, o cerne da questão então apresentada com uma certa preocupação.

Um verdadeiro intelectual, em princípio, lê compulsivamente. Escuta atentamente e vive na grandiosidade de saber transmitir humildemente e sem o nefasto “contentíssimo fácil” (escrevendo ou falando) o seu conhecimento científico e literário da maneira mais simples possível. Portanto, ambas, a- cultura literária e a cultura cientifica- conformam aquilo a que vulgarmente chamamos de Cultura Geral mas, vimos não raras vezes entre nós, gentes que autoproclamando-se intelectuais e escritores,  conforme diz  o critico Eugénio Lisboa «…apenas ouvem – quando ouvem- “falar de” coisas de ciência, cujo sentido profundo de todo lhes escapa.».

É Eugénio Lisboa, grande mestre das nossas literaturas, no seu ensaio sobre as DUAS CULTURAS quem nos diz: «Uma boa passagem pelo universo da ciência, pelas exigências da ciência, pelo rigor e cautela, repito, que a ciência requer e recomenda, daria ao discurso literário de quem o produz, outra nitidez, outra transparência, outro sabor, – e outro valor…».

Lisboa sugere que, nos dias de hoje, quanto menor for o fosso ou o distanciamento entre as duas culturas melhor, em razão do ‘perigo iminente de incomunicabilidade’ e ‘devido à  aceleração da produção criativa, a ritmo quase alucinante’.         

Ao terminar, deixo aqui a transcrição de um pequeno extrato de uma longa conversa mantida com Lília Momplé.

Lília é uma octogenária escritora moçambicana que mesmo não se encontrando na mídia com a  vulgaridade habitual, procurei e encontrei nas terras do índico onde no Centro Cultural Brasil-Moçambique passamos uma arejada e amena tarde de conversa começando  por pedir-lhe que me falasse da existência de uma relação livro/leitura/escritor pois, tendo sido professora de profissão, muito ainda tem para nos ensinar.

[L.F.-Podemos falar agora da relação entre o escritor, o livro e a leitura?

L.M.-Sobre os livros há muita coisa para dizer. Para um estudante o livro é a única coisa que dá ginástica mental. Os livros, por exemplo, vacinaram-me contra a sedução do poder. Eu não sou nada apegada ao poder e uma das coisas que aprendi nas estórias que a minha avó contava era que os animais mais fracos sempre conseguiam vencer os animais mais fortes por causa da sua inteligência. É que naquela «fortaleza» dos fortes estava sempre mesclada um pouco de estupidez e isso sempre foi assim e continua sendo assim até hoje.

Veja que os nossos Ministros hoje são quase imortais ou pelo menos assim se sentem. E são as estórias e os livros que me fizeram estar sempre longe do poder, e sem apetência para a ostentação porque  os animais das estórias da minha avó eram sempre fracos mas acabavam por vencer os mais fortes pela sua inteligência.

A importância do livro é única. O livro é que nos dá a cultura geral que nos faz compreender seja lá o que for…

O livro é muito mais importante que a televisão. A televisão é uma torneira de qualquer coisa que a gente está ali a consumir  passivamente ao contrário do livro. O livro não. Com o livro temos que ser ativos somos obrigados a ser ativos. O livro obriga-nos a ir mais além e conseguir compreender o mundo e por isso muitos cientistas são leitores compulsivos porque foram ajudados através da leitura a querer saber muita coisa.

L.F.-…E a internet?

L.M.-A internet é outra torneira que só despeja. Na verdade um aluno que não lê -livros!-, é um aluno medíocre. Em matemática um aluno tem de saber ler as equações. Pode até saber solucioná-las mas não o faz porque não entende o que se lhe pede e isto acaba por acontecer em todas as disciplinas.

Para aqueles jovens que querem escrever, a condição fundamental para escreverem é ler. A pessoa que não lê não pode escrever. Não pode. É impossível. É necessário que tenhamos diariamente contacto com os livros ou com algo que preenche o nosso imaginário como por exemplo a literatura oral.].

 

 

Liga “ligou-se” aos escribas

Mesmo sofrendo críticas mais ou menos contundentes, afinal os que dirigem o futebol sentem que todos somos parte de uma mesma causa: a de edificar o desporto nacional. Foi essa a mensagem que a Liga e a Federação de Futebol transmitiram ao país, quando orientaram que antes dos jogos da ronda 10 do Moçambola, se fizesse um minuto de silêncio em homenagem a Boavida Valente Funjua, um jornalista de referência, que deu grande parte da sua vida a (d)escrever o desporto nacional, com ousadia e sentido patriótico.

Devido a uma doença que o debilitou nos últimos anos, a sua vigorosa pena andou arredia do Jornal Desafio, pelo que para muitos já andava esquecido. Porém, num gesto com muita profundidade, a figura de Funjua foi exaltada de uma forma que só é usual em figuras que pugnaram, marcando a diferença, por uma causa. Neste caso, atingiu particularmente os jornalistas desportivos, o reconhecimento de que, mesmo trabalhando em trincheiras diferentes, o fim ambicionado é comum. Parabéns, Liga e Federação Moçambicana de Futebol!

Em contra-ponto, com mágoa, muita mágoa mesmo, “esqueceu-se” o Jornal Desafio, onde o jornalista deu grande parte do seu saber ao longo de três décadas, de editar um jornal totalmente a preto-e-branco, como sinal de luto pelo desaparecimento físico, de alguém que foi um dos seus apaixonados fundadores.

Uma pena irreverente

Trabalhei com Boavida Funjua mais de 20 anos. Ao longo desse tempo, alguns dos seus escritos acabaram por me provocar alguns “amargos de boca”, pela contundência da sua abordagem.
Vou recordar um episódio, em pleno período de direcção centralizada, e em que os jornalistas tinham que pautar pelas “linhas orientadoras” do partido no poder.

Eu era o responsável editorial do Desafio, estava de férias, quando foi publicada uma grande entrevista com Zaid Ali, então dirigente do Desportivo de Maputo, conduzida pelo irreverente Funjua. Tratava-se da polémica transferência de Ali Hassan, apontado ao Benfica de Lisboa e que acabou rumando para o Sporting. O conteúdo era directo, sugerindo um eventual envolvimento promíscuo de José Júlio de Andrade, então
“todo-poderoso” Secretário de Estado de Educação Física e Desportos e Chefe do Gabinete do Presidente Samora Machel. Dizia o Zaid Ali que aconteceram situações no processo, envolvendo aquele alto dirigente, “que lhe davam vontade de vomitar”.

O que se seguiu, devem calcular. Um “rodopio” de convocatórias ao Ministério Público, as minhas férias estragadas, com pressões e insinuações que me tiraram o sono em vários dias. E porque não havia gravação da entrevista, o Zaid Ali ficava-se pelo “nim” (nem sim, nem não quanto à responsabilizando-se das suas declarações).

Mas o Funjua, como parte do seu carácter, não desarmava e dizia que tinha feito bem o seu trabalho e que não receava as consequências. Foi preciso muito jogo de cintura para se arquivar o processo.

Está claro que este é apenas um episódio que ilustra o carácter por vezes inflexível, roçando a teimosia do recém-falecido colega. Não tinha só coisas boas, pois o seu feitio era mesmo difícil. A verdade porém, é que se tem que render homenagem à forma séria, abnegada e convicta com que Funjua encarou ao longo da sua vida o jornalismo e o desporto, seguramente dois grandes amores da sua vida.

São estas facetas que vão permanecer em quem com ele conviveu e que deveriam ser, indubitavelmente, um legado a transmitir às novas gerações de jornalistas.

 

Tributo a  Ali Juma Issufo

Abrimos alas para os homens de fato preto e de semblantes carregados. Uma canção descia dos céus enquanto um grupo de seis homens de braços firmes e unidos movem-se num olhar ausente entre a multidão, arrastando-se solenemente. Cumpria-se o acto derradeiro. O meu silêncio ilustrava-se no breve arrastar dos lábios para ajeitar a mímica celestial. Um vulcão de canções em erupção nesta homenagem ao meu amigo das habituais conversas no TPM das 19horas. 

O pastor percorria a parte final do evangelho quando, num repente pisei a Teasse sem querer, empurrado por Quito, magoando-a.  Por sorte daquele momento infeliz talvez os presentes terão pensado que o choro abafado de Teasse fosse em memória do finado. Outras senhoras à volta afastaram-se, temendo uma segunda vaga de pisadelas. 

O sol escaldante de fevereiro toldava-nos os rostos. Suores marejantes sulcavam-nos o corpo em cascata. Os casacos de ocasião tornavam-se insuportáveis. 

A viúva mal se via. Para além das vestes negras, um batalhão da tropa das comadres guarnecia-lhe por todos os lados. O espaço contíguo onde decorria o velório estava impossível. O choro incontido de algumas vizinhas contrastava com a contínua e descompassada gritaria da viúva, em desespero temendo o traço curvado do futuro que somente a Deus ainda pertence.

Nesta noite, debruçado sobre a varanda de casa, ponho-me a meditar. Povoam-me lembranças do militar que, sem o conhecer, bastas vezes vimo-nos em frente à base N`Tchinga onde vivi com o tio Benedito, há décadas. Ele na guarita e eu ali, do lado oposto, junto ao murro, contemplando os carros que por ali passavam, Niva, Lada,  Madjedje, Kamaz, Tatra,  a abelha da wolkswagen, etc.

Voltamos a cruzarmo-nos com regularidade anos mais tardel. Foi quando o meu tio esteve de visita à casa dos meus pais, acompanhado por um numeroso grupo de colegas, todos fardados. Um deles chamava-se.  Ali Juma. Estava fora das minhas cogitações pensar que era aquela a última vez que o via nas fileiras das forças armadas.

Não me recordo bem do mês nem do dia em que escutámos uma proclamação tão demorada, plena de fazer concorrência àquela mítica noite de 25 de Junho inaugural da República Popular.

– Estão ma ouvir bem? Estão ouvirê? Eu Ali Juma Issufo, o próprio Mwakilompa amanhã esse huora, Nampula. Estão a ma ouvir bem, nampula. – E continuou.

– Amanhã esse huora nampula axinêni, minha terra. Vocês vão me lembrar. Vou amanhã mesmo. O bilhete de avião está aqui estão a ver bem. – Exibindo-o para a plateia de ocasião composta por uma fila de gente do bairro que já estava desejosa do brinde de despedida.

– Eu, o próprio Mwakilompa vou-me embora. Já acabou guerra. Já fui desmobilizato. Vou ver minha terra, meus amigos. Já lutei. Agora estou desmobilizdo. Não vou demorar muito muito chegar na casa. Minha casa é ali quando sai do aeroporto de Nampula, estão a ouvir bem? 
E continuou naquela declaração efusiva– Esse huora Nampula axinene, nu vali pena. Esse huora Nampula, sim senhora, heheheh. E exultou – Ungawihihihihiii. Uungaaawihiiii –completamente eufórico.

Durante o brinde de despedida surgiu o inesperado. O filho mais-velho da esposa de Mwakilomba pôs-se a discurtir desajeitamente. A voz num tom bastante alto, completamente sem respeito nenhum pela progenitora. Mwakilompa levantou-se para serenar os ânimos, separando o rapaz que já se preparava para desferir um golpe à mãe. Na segunda tentativa o Madiskobe acertou de forma contundente no braço esquerdo de Mwakilompa que pairava no ar segurando uma garrafa de um refrigerante qualquer, em defesa da esposa. 

Seis meses depois daquele noite de proclamação da viagem adiada Mwakilompa foi promovido a estivador-chefe, num dos armazéns da baixa. 

Era frequente ver Ali Juma aos domingos, metido num fato preto, a regressar da igreja doze apóstolo. Mas nem por isso deixava de fazer parte das celebrações islâmicas como o Ide-Ul-Fitre e outras mais, trajado a rigor entre irmãos muçulumanos. 

Anos mais tarde, no mesmo TPM voltamos a cruzarmo-nos. O homem de Nampula apresentava um semblante frágil. Os músculos outrora fortes estavam vencidos por uma doença que ele me não sabia explicar em palavras. Fiquei a saber que já trabalhava no escritório, cuidando de algum expediente. 

– Estou a trabalhar mas nô estou a trabalhar aquele serviço de carga. Já nô pode carregar mais carga, sabe. Esse meus braços não aguenta mais. Minha vida está mal, cada vez mais, amigo.  Senti um desalento acelerado naquela fala morna do Mwakilompa. Um gigante doutros tempos. Um gigante entre Khambu e Nadjimbu, dois colossos do bairro, de músculos arredondados. 

– Agora só vou no banco depositar cheque. Depois voltar, entregar talão patrão. Meu serviço é receber carta e entregar patrão.

 Desta vez Ali Juma, falou transpirando um ar desolado. Não reconheci o próprio Mwakilompa, macua de Nampula, de olhos vidrados de emoção. Pairava no ar  uma ave qualquer anunciando, talvez, que estava para breve a chegada dos homens de semblantes carregados.
 

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*Do emakhuwa, louvado, adorado

Marcelino dos Santos redigiu, de Portugal, onde se encontrava a estudar desde 1947, uma carta que seria publicada no prestigiadíssimo O Brado Africano, onde anuncia, com irredimível convicção, a sua combatividade, aos 20 anos. Isto nos finais dos anos 40. Permanecerá quatro intensos anos na antiga capital do Império. Estuda e conspira, milita clandestinamente. Envolvido numa organização dos estudantes das colónias, sairá para Paris, em 1951, onde prossegue a sua actividade política com premência, a par dos seus estudos. Abandonado o curso de engenharia, estuda ciências económicas e sociologia. Reúne, no seu quarto, a 100 metros da Sorbonne, futuros lutadores pela liberdade. Intentava fazer um movimento anti-colonial, que precede a formação da frente – no caso de Moçambique – que irá concretizar o objectivo da luta. Participa em importantes encontros internacionais, como os festivais da juventude. Em 1959 é expulso de França. Razões? A sua intensíssima actividade política. Bélgica e Inglaterra inscrevem-se nos territórios de exílio. Em 1961 (18 e 19 de Abril) participa na fundação da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas). O PAIGC, que nascera em 1956, representa a Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA (igualmente fundado em 1956) representa Angola, o MLSTP (nasceria em 1960) participa em nome de S. Tomé e Príncipe, e a UDENAMO (também de 1960, que será substituída pela ulterior FRELIMO na organização) defende o nome de Moçambique. Marcelino dos Santos é eleito secretário-geral da CONCP e secretário das Relações Exteriores da UDENAMO. Seria, em 1962, fundador da FRELIMO, da qual chegará a ser vice-presidente.

Em Setembro de 1990, quarenta anos depois daquela imprescritível carta, quis saber, numa longa entrevista que lhe fiz em dois dias, no seu gabinete de Presidente da Assembleia Popular, de onde herdara essa costela nacionalista.

Marcelino dos Santos: «O porquê de arvorar, de brandir essas ideias? É preciso considerar a realidade vivida: vários aspectos, seguramente. Mas o primeiro é que, quando eu deixo Maputo, nos anos anteriores, os mais velhos falavam sempre da “causa”, “a causa africana”. Muitas vezes só diziam: “a causa”. Alguns, na altura, com a idade do meu pai. Quando souberam que ia partir, se me encontrassem na rua diziam: “Vem cá, ó miúdo. Tu vais para Lisboa, não é?” “Sim”. “Então, vai lá e volta formado para vires defender a nossa causa”.»

O Brado Africano titula, numa breve e ilustrada coluna, “Dr. Marcelino dos Santos: Por notícias recebidas de Paris, soube-se, nesta cidade, que um moçambicano acaba de concluir a sua formatura em Ciências Económicas e Sociologia na Universidade de Sorbonne. Trata-se de Marcelino dos Santos, ex-aluno da Escola Técnica Sá da Bandeira, que cedo deixou a sua terra a caminho da Mãe-Pátria, seguindo depois para Paris, onde prosseguiu os seus estudos. Formou-se agora em Ciências Económicas e Sociologia, concretizando o seu ambicionado sonho. Marcelino dos Santos, nosso distinto colaborador, a quem sinceramente felicitamos, é filho do sr. Firmino dos Santos, ex-administrador deste jornal, e de sua esposa sra. D. Teresa Sabina dos Santos, a quem endereçamos os nossos parabéns.”

Como se atesta acima, Marcelino dos Santos foi e formou-se. A despeito, não voltou de imediato. A “causa” reteve-o perto de três décadas. Quando voltou trazia consigo “a nova árvore/ da Independência Nacional”, como escreveu num dos seus mais belos e célebres poemas – “É preciso plantar”.

Marcelino dos Santos: “É preciso plantar/ mamã/ é preciso plantar// é preciso plantar/ nas estrelas/ e sobre o mar// nos teus pés nus/ e pelos caminhos// é preciso plantar// nas esperanças proibidas/ e sobre as nossas mãos abertas// na noite presente/ e no futuro a criar/ por toda a parte/ mamã// é preciso plantar// a razão/ dos corpos destruídos/ e da terra ensanguentada/ da voz que agoniza/ e do couro de braços que se erguem// por toda a parte/ por toda a parte/ por toda a parte// por toda a parte/ é preciso plantar/ a certeza/ do amanhã feliz/ nas carícias do teu coração/ onde os olhos de cada menino/ renovam a esperança// sim mamã/ é preciso/ é preciso plantar// pelos caminhos da liberdade// a nova árvore/ da Independência Nacional”.

A mãe Teresa viu-o plantar essa árvore. Aliás, a poesia do filho elucida o amor incorruptível pela pátria através da figura da mãe. Não só no poema que citei, mas num conjunto significativo de textos. A mãe é a metáfora dessa terra que é preciso libertar e pela qual se luta. O pai, antigo operário dos Caminhos de Ferro, não o viu chegar, na condição de herói e mito da velha “causa”. Morreu em 1965 aos 67 anos. Para além dos Caminhos de Ferro, onde trabalhara, fora da direcção do jornal fundado por João Albasini e onde avultaram nomes como os de Estácio Dias, pai de João Dias, escritor prematuramente desaparecido.

Marcelino não acompanha aqui a florescente actividade literária e a consagração de nomes como José Craveirinha (1922-2003), Noémia de Sousa (1926-2002), Rui Knopfli (1932-1997), Rui Nogar (1932-1993) ou Luís Bernardo Honwana (1942). Noémia segue o caminho do exílio e vai para Lisboa em 1951. Quando o cerco aperta em Portugal, salta a fronteira, com a filha às costas, em 1964. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos em Paris. Noémia, cujo nome se tornou, por alguma razão estranha, disjuntivo neste percurso, está na primeira linha da luta anticolonial e participa desta geração de libertários. Não obstante, ela falou-me sempre com ênfase e empatia dos seus companheiros: o guineense Amílcar Cabral (1924-1973); os angolanos Agostinho Neto (1922-1979), Lúcio Lara (1929-2016), Viriato da Cruz (1928-1973) ou Mário Pinto de Andrade (1928-1990); o moçambicano Marcelino dos Santos (1929). Foi com a Noémia que eu obtive o retrato humano e apaixonante de Marcelino, longe da retórica dissimulada da revolução.

Eduardo Mondlane, impedido de continuar os seus estudos na Universidade de Witswatersand, na África do Sul, permanece um ano em Lisboa, no início da década de 50, enquanto aguarda a oportunidade para ir para os Estados Unidos. Está também em Lisboa Fernando Vaz, médico, envolvido, como muitos dos estudantes, na Casa dos Estudantes do império. Não se estabelece ainda entre eles uma forte ligação: Mondlane vai para os Estados Unidos e Marcelino para Paris. Terá, na capital francesa, uma frenética actividade política. Participa no Festival Mundial da Juventude em Bucareste, em 1953, com Agostinho Neto, Guilherme Espírito Santo, de S. Tomé e Príncipe, e Vasco Cabral, da Guiné-Bissau. Foram para lá enquadrados no MUD-Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, de oposição ao regime de Salazar), mas apresentam-se como representantes de cada um dos seus países, com tabuletas indicando Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe. Mais tarde irão representar os seus países nos festivais de Varsóvia (1955) e Moscovo (1957).

Marcelino dos Santos começa por estudar em Grenoble, mas muda-se para Paris. Em Grenoble leram Franz Fanon (1925-1961). O seu Pele Negra, Máscaras Brancas surgiu em 1952 e esteve na origem de debates. O Orfeu Negro, de Jean-Paul Sartre, fora publicado em 1948. A questão da raça inflamava os contraditórios. Discutiram estes e outros livros. Organizaram palestras denunciando aquilo que pareciam ser aspectos menos positivos na obra de Fanon. Isto ainda em Grenoble, onde estava com Aquino de Bragança (1924-1986). Partem para Paris em 1953. Aquino de Bragança acompanha-o. Mário Pinto de Andrade transfere-se de Lisboa para Paris em 54 e desenvolve sobretudo uma importante actividade cultural, da qual avulta a sua colaboração na Presence Africaine. O Congresso dos Homens Negros é um dos eventos realizados pela Presence Africaine.

Paris é também uma capital cultural indeclinável e Marcelino convive com grandes figuras do mundo cultural africano ou com o ideário próximo dele: Aimé Cesaire (1913-2008, poeta, dramaturgo, ensaísta e político, ligado ao movimento surrealista e fundador da Negritude, nascido na Martinica); Alioune Diop (1910-1980, senegalês, escritor e editor, fundador da Presence Africaine, talvez a maior figura intelectual negra da primeira metade do século XX, o primeiro preto editor em França); Léon-Gontran Damas (1912-1978, escritor e político francês, nascido na Guiana francesa); David Diop (1927-1960, poeta senegalês, morreu cedo, um dos poetas promissores de língua francesa, ligado à negritude, de quem Marcelino foi muito próximo); René Depestre (poeta do Haiti, tem hoje 91 anos); Edouard Glissant (1928-2011, poeta e romancista francês, oriundo da Martinica); entre outros.

Conviviam, embora o olhassem com alguma desconfiança, com Leopold Senghor (1906-2001, escritor e político, foi presidente do Senegal entre 1960 e 80, e foi, com Aimé Cesaire, um dos ideólogos da Negritude). Conviveu ainda com W. E.B. Du Bois (1868-1963), historiador, sociólogo, nascido nos EUA e autor e figura célebre. Também conviveu com Jacques Rabemananjara (1913-2005), político e intelectual malgaxe. Ou com Jean Price-Mars (1876-1969), do Haiti, escritor, médico e diplomata.

Mário Pinto de Andrade contou-me certa ocasião que Marcelino dos Santos cedeu parte dos direitos autorais de um livro seu publicado na antiga União Soviética que permitiu a edição do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Há quase trinta anos confirmei com o próprio Marcelino dos Santos esta informação. O Caderno foi importante iniciativa editorial de Mário Pinto de Andrade e de Francisco José Tenreiro (1921-1963, poeta santomense, autor de Ilha de Nome Santo, desaparecido prematuramente). Este caderno é dedicado a Nicolás Guillén, poeta cubano. Tem poemas de Noémia de Sousa.

Marcelino dos Santos: “Verde carmin azul e violeta/ e nós / marchando no planalto.” Estes belos versos foram escritos em 1968 durante a marcha pela liberdade: “e sempre nos nossos olhos/ as cores suaves e doces/ de verde carmin azul e violeta/ na paisagem quente/ da terra livre de Moçambique”. O poema “Nampiali” é um dos mais belos textos deste poeta-guerrilheiro. Em 1953, escrevera, ainda em Paris, “Canto do amor natural”, que será muitos anos depois o título do seu livro em Moçambique, em 1987. “No lento balancear/ Das palmeiras/ Torcendo-se em movimentos melancólicos/ eu canto-te o meu amor.”

Marcelino dos Santos: “Mãe negra/ Embala o seu filho/ E na sua cabeça negra/ Coberta de cabelos negros/ Ela guarda sonhos maravilhosos”. A figura da mãe, no sentido denotativo, mas também a metáfora: a terra. O sonho intransigente da liberdade. A luta, a razão da luta. Pátria, Moçambique: “fonte do meu querer/ e razão do meu viver”, escreverá em “À minha Pátria”. “Terra mãe” será título de um dos seus poemas.

Poeta da revolução, combate, através das palavras, de seus versos, alguns, muitos, panfletários, como assumirá, no texto “Para uma moral”, de 1967. Poema-panfleto, poema-comunicado, documento, didáctico e moralista. Texto destinado a jovens que preferiam seguir seus estudos em vez de empregar os seus conhecimentos ao serviço do povo nas zonas libertadas: “Continuar ou não a estudar/ não é problema teu nem meu// é nosso”. “Somos soldados da FRELIMO”, dirá no “Primeiro panfleto”. No “Segundo panfleto”: “O importante não é o que EU quero/ o que Tu queres// mas o que NÓS queremos/ A Revolução é assim”.

A minha geração, quando, nos anos 80, intentou um caminho, fez o percurso literário adverso. Não tenho pruridos em considerar e relevar a importância histórica e, talvez sociológica, daquela produção literária, designada de combate, mas tinha e tenho reservas de cariz estético. Discuti muito com o Rui Nogar a este respeito. Discutimos fraternalmente. Mas o Rui tinha o condão de acreditar que a causa era de ordem suprema na literatura e, mesmo assim, não enjeitar outras possibilidades. Foi o Nogar, aliás, que acolheu a nossa geração, que era uma geração rebelde, que era uma geração crítica, na Associação dos Escritores. Foi ele quem lhe criou espaço para a afirmação. Não é por acaso que a nossa geração se afirma com uma poesia lírica contraditando esta – a do Rui Nogar ou Marcelino dos Santos, designadamente.

Marcelino dos Santos, que também foi Kalungano ou Lilinho Micaia, publicou o seu único livro em Moçambique há 30 anos – Canto do Amor Natural – pela Associação dos Escritores. Foi, por assim dizer, um acontecimento literário. A densidade histórica da sua poesia merecia um novo acolhimento e enquadramento editorial. Mas vivemos num país onde nem sequer os seus heróis – Marcelino dos Santos é indubitavelmente um deles – merecem a atenção e o cuidado dos poderes públicos na área da cultura para que a sua obra seja reenviada para o trânsito dos leitores, lida, estudada e reconhecida. O poeta-revolucionário merece essa láurea em vida. A sua produção recente, alguma dela que integrou as antologias que organizei ou co-organizei, ou outras, devia ser resgatada. Fica o repto para quem de direito. Marcelino dos Santos é um dos poetas mais importantes da chamada poesia de combate e a sua poesia confunde-se não só com a sua vida mas com parte relevante da nossa história. Por outro lado, não é possível discernir sobre a sua poesia sem pensar e entender o seu percurso de vida, de militante e de combatente. A sua utopia. A utopia da sua geração.

Primeiro na Associação dos Escritores que ele frequentou assumindo-se como poeta e despojado do poder – e é interessante isso e é aparentemente paradoxal -, depois em inúmeras circunstâncias, convivi, ao longo dos últimos 30 anos, com Marcelino dos Santos, e, não obstante as contradições que marcaram e marcam o seu trajecto pessoal, aprendi a admirá-lo e respeitá-lo sem sujeitar o meu juízo a nenhuma espécie de rigor moral ou de outra ordem. Quem seria eu para o fazer? Mais do que isso, reputo como um dos mais coerentes da sua geração. Não o vi transfigurado nem camaleónico. Podemos não concordar com ele, mas temos que respeitar a sua coerente obstinação.

Releio os seus poemas, relembro a sua longa e bela trajectória, recordo-me das imensas ocasiões em que falámos, discutimos fraternalmente, das vezes que o visitei em casa, do seu olhar penetrante, da sua voz poderosa, dos tempos em que ele era um tribuno audaz, um dos grandes tribunos moçambicanos, relembro o elogio fúnebre a Samora, a sua voz embargada, que a todos nós comoveu, das lágrimas de Marcelino diante do féretro de Machel, de outros momentos, tantos outros momentos, hoje e sempre, numa relação sempre fraterna do poeta e meu camarada de letras. No domingo, 20 de Maio, ele fez 89 anos. Regozijo-me por isso e saúdo-o aqui vivamente.

 

A cultura na educação
Caros estudantes,
Assistimos, hoje, ao lançamento da 7a edição do Concurso Vodacom Turma Tudo Bom. Trata-se, como vocês sabem, de um concurso cultural e educativo, o que demonstra que existe uma relação entre a cultura e a educação. Mas qual seria essa relação?
Se nós definirmos a cultura como tudo o que o homem cria, transforma e transmite às gerações futuras, vamos perceber que a própria educação faz parte da cultura. Ou seja, cada sociedade, cada país, educa os seus filhos de acordo com os seus hábitos culturais. Se vocês se recordarem, alguns dos nossos manuais, como o de Português, trazem canções, jogos, rituais tradicionais, lendas, mitos, como elementos da cultura importantes para a nossa educação. Isto significa, também, que educar é transmitir cultura. Ou seja, transmitir cultura é educar, da mesma forma que educar é um acto de valorização da cultura. Enfim, podemos dizer que cultura e educação são a mesma coisa. Faz parte da nossa cultura, por exemplo, acordar aos sábados e ajudar na limpeza da casa, mas muitas vezes não nos apercebemos que assim os nossos pais nos educam a ter uma casa sempre asseada, sempre limpa. Faz parte da nossa cultura ir a um culto religioso aos domingos, e assim somos educados a respeitar e a ajudar o outro. Algumas pessoas têm dito que faz parte da nossa cultura chegar atrasado a uma aula, a uma reunião familiar – o xitique começa sempre tarde, porque todo o mundo atrasa –, ou atrasar quando vamos à consulta com o médico. Aqui não concordo; não concordo que o atraso faça parte da cultura moçambicana. E porquê, porque penso que se os moçambicanos atrasam a fazer o que têm que fazer, então é Moçambique que se torna um país atrasado. E como não concordo que o meu país seja atrasado, começo a pensar que, afinal, a cultura e/ou a educação, podem ser melhoradas.
De facto, tudo na vida pode ser melhorado. Os primeiros telemóveis que se venderam em Moçambique pareciam barras de sabão-bingo, hoje, os telemóveis quase que são umas folhas de papel. Pensemos em qualquer objecto, e vamos verificar que todos sofreram um processo de melhoramento. Um dia os televisores foram de duas cores, preto e branco, hoje são coloridos, e já não têm aquela corcunda a ocupar muito espaço nas estantes das nossas salas de estar, são mais delgados e confortáveis. As próprias estantes das nossas salas mudaram, já não temos estantes de um metro e vinte ou trinta centímetros, onde guardávamos copos e pratos que só usávamos nos dias de festa, hoje as estantes – se é que podemos chamar de estantes – têm menos de cinquenta centímetros. Ou seja, a cultura e a educação são dinâmicas, porque o homem também é dinâmico.
Ora, se, como disse Lavoisier, na natureza nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma, então a cultura e a educação também podem ser transformadas. A nível mais restrito da educação, é fácil de ver: periodicamente, temos programadas curriculares novos, novos manuais e novos métodos de ensino e aprendizagem. Estas mudanças vão ao encontro de novas transformações culturais: o uso do telemóvel, o uso das redes sociais, são novos elementos que entraram para a nossa cultura e para a forma como a sociedade nos educa. Por isso, devem fazer parte dos programas de ensino, de modo que possamos corrigir o que não estiver de acordo com uma boa conduta como cidadãos. Temos que parar de pensar, por exemplo, que atrasar é normal, que ter duas, três namoradas é normal, que ir à sala de aulas alcoolizado é normal, que bater na namorada ou no namorado é normal, que cabular é normal, que tentar subornar os professores é normal, que envolver-se com drogas é normal. Nada disto é normal, são anomalias da nossa cultura e da nossa educação. Estas anomalias devem ser retiradas, ou seja, devemos melhorar a nossa cultura naqueles aspectos que não nos dão dignidade. E é aqui onde entra a literatura moçambicana.

A importância da literatura moçambicana
A literatura moçambicana, como qualquer outra literatura, é importante porque pode ajudar a corrigir os vícios da nossa cultura, corrigir os nossos defeitos. Mas não é possível falar da função da literatura moçambicana se não falarmos, antes, da necessidade que temos de ler. Ou seja, para que a literatura moçambicana exerça a função de curar os nossos vícios, primeiro temos que ler; temos que saber qual é a importância da leitura.
Caros estudantes,
A leitura é importante por, pelo menos, cinco razões. A primeira razão: a leitura é importante para o nosso desenvolvimento cognitivo. Isto significa que ao lermos um livro aumentamos os nossos conhecimentos. Mas, mais do que isso, é interessante reparar que, uma vez que nós adquirimos os conhecimentos através do nosso cérebro e do nosso pensamento, quanto mais as pessoas lêem, mais exercitam o cérebro e o pensamento, de modo que aumentem as suas capacidades de adquirir conhecimentos. Ou seja, se quisermos combater aqueles vícios da cultura de que falei, temos que melhorar a capacidade do nosso cérebro em adquirir conhecimentos e o melhoramento desta capacidade só se faz através da leitura.
A segunda razão: a leitura é importante para a formação do juízo crítico. Isto significa que um livro de contos, por exemplo, nos ensinam a saber julgar e decidir diante de qualquer situação em que nos encontremos. Um livro de histórias pode ensinar-nos a separar o bem do mal, o mau do bom, o justo do injusto, a cumprir com os nossos deveres e a exigir os nossos direitos. A única diferença é que no processo de leitura nós não nos apercebemos destes ensinamentos; o livro não é propriamente uma sala de aulas, em que temos um sumário para cada lição. Na leitura, estes ensinamentos estão lá, e revelam-se, por exemplo, quando nós não gostamos de uma personagem, quando nos rimos de uma cena, ou quando choramos ou ficamos triste porque um animal da história morreu. Ao vivermos estes estados emocionais, significa que, nesse momento, há muitos ensinamentos que são transmitidos e que podem, mediante um processo de reflexão individual, ajudar-nos a combater aqueles vícios da cultura.
A terceira razão: a leitura é importante para o acesso à informação. António Jamal, um grande repórter da Rádio Moçambique, tinha o hábito de dizer que “um cidadão informado vale por dois”. De facto, quem tem o hábito de ler, lê tudo e anda informado. A informação, seja de que natureza for, ajuda a melhorar ou a mudar os nossos hábitos culturais: saber sobre os efeitos do álcool ou das drogas ou que o dia tem apenas 24 horas e que todos na vida têm 24 horas do dia para melhorarem o seu desempenho, é importante e, mais importante ainda, é importante reflectir sobre isso de modo que possamos mudar a nossa forma de viver.
A quarta razão: a leitura é importante para a expressão. Uma reclamação que, geralmente, os professores apresentam, é o facto de os alunos não conseguirem expressar as suas ideias. Esta dificuldade deve-se à falta de leitura. Quando as pessoas cultivam o hábito de ler, aprendem novas palavras e o significado delas, o que significa que passam a conhecer mais coisas. Assim, elas podem expressar melhor o que pensam, pois, repito, já conhecem muitas palavras e as coisas que elas significam e, portanto, podem falar à vontade das coisas que vêem, das coisas que imaginam ou sonham. Melhoramos também a nossa forma de pensar, passamos a organizar melhor o nosso pensamento, para melhor expressarmos as nossas ideias.
A quinta e última razão: a leitura é importante para o enriquecimento cultural. Isto significa que ao lermos um romance ou um livro de poesia, por exemplo, ficamos mais ricos, porque passamos a conhecer mais sobre a nossa cultura e sobre a cultura dos outros, ou seja, a origem das coisas que os homens inventaram, o que os homens pensavam ao inventarem essas coisas; podemos conhecer muitos povos e lugares, as suas invenções, os seus pensamentos, as suas crenças. Este enriquecimento cultural nos ensina a ser tolerantes, a aceitar a diferença entre colegas e amigos, entre pessoas de origens diferentes, entre pessoas de crenças diferentes da nossa; este enriquecimento ensina-nos a saber dialogar para resolvermos os nossos problemas.
Como disse antes, tudo o que nós comemos, fazemos, pensamos, sonhamos, desejamos, inventamos, tudo isso é a nossa cultura, que nós recebemos dos nossos avós e vamos deixar para os outros que virão. Aqui é que entra a literatura moçambicana de forma muito específica. Porque dizemos literatura moçambicana, o adjectivo “moçambicana” nos alerta que iremos encontrar nos nossos textos vários aspectos ligados à nossa cultura e/ou educação: aspectos que têm a ver com a nossa moral, a nossa ética, a nossa filosofia, a nossa religiosidade, as nossas invenções, os nossos conhecimentos. Isto significa que ler a nossa literatura nos permite entrar em contacto com a nossa própria cultura, a cultura que os nossos antepassados deixaram, os seus ensinamentos, e perceber, finalmente, que atrasar a um compromisso não é normal, que ter duas, três namoradas não é normal, que ir à sala de aulas alcoolizado não é normal, que cabular não é normal, que tentar subornar os professores não é normal, que envolver-se com drogas não é normal. E vamos perceber isso porque, como diria Hegel, a função de qualquer literatura é melhorar a nossa humanidade, melhorar os homens que somos. E como é que ela faz isso? Fazendo-nos às vezes chorar, às vezes rir, às vezes deixando-nos tristes e inconformados. Pois é, como disse antes, às vezes lemos histórias que têm personagens que não nos agradam. Isto significa que com elas aprendemos alguma coisa que pode ajudar-nos a melhorar a nossa forma de viver, a nossa cultura e a nossa educação. Por isso leiam, ler está na moda e é a única moda que não passa. Não importa em que suporte for, se é um livro impresso ou se é um e-book, os livros electrónicos. O importante é que a gente leia. Não importa se é um poema que nos chegam pelo whatssap ou pelo facebook, o importante é que possamos ler. Porque a leitura é tão necessária como o pão que comemos todos os dias ou o ar que respiramos o dia todo!
Obrigado!

 

“Só há duas forças neste mundo: O espírito e a espada.

Mas no final o espírito supera a espada!”

Napoleão Bonaparte

 

Toda a virtude clama continuamente por circunstâncias adversas para poder se afirmar. A sabedoria requer problemas para poder enaltecer-se. A temperança precisa passar por meio de tentações para provar-se, assim como a coragem só se revela em momentos de perigo. E é por meio da coragem que homens viris distinguem-se dos efeminados. Há homens que mesmo destruídos revelam-se mais corajosos que os seus próprios destruidores. Um pigmeu que enfrenta um gigante em proteção à sua família, ainda que seja esmagado no meio da luta, é digno duma laje de valentia, o mesmo não podendo valer para o gigante que teve um opositor desnivelado em termos da força e altura. Isto significa que, em termos de coragem, a força é uma propriedade de menos relevância que a predisposição em defender um determinado bem contra todos os perigos.

Neste sentido, o guia moral de um homem valente é de quem pratica um acto nobre, não porque pode, mas porque deve. Não se trata de conseguir fazer, trata-se de fazer o que tem de ser feito. É digno de ser chamado corajoso o pai do Heitor que, sozinho na sua velhice, foi recuperar o corpo do filho na cabana de Aquiles, principal inimigo da Troia. Sabia dos perigos que corria, mas julgou que fosse opróbrio permitir que o corpo do seu filho se consumasse sem ter tido um funeral condigno devido ao medo de Aquiles. Afigura-se-nos que a coragem resplandece melhor em indivíduos que se encontram em situação que lhes é desfavorável. Dai que o prémio de valentia não cabe aos vencedores, mas àqueles que se dispuseram a enfrentar o perigo cujo fim era incerto.

Não obstante as guerras não sejam bem-vindas ao mundo pelo número de vidas que cobram em troca da paz, elas são, por excelência, arenas onde a coragem se torna objeto de elogio. A guerra se apresenta um caça-valente no embate dos guerreiros adversário. Nela se conhecem heróis, vilões, corajosos e cobardes. Deste modo, resistir ao medo da morte e violência é a prova belicosa que honra os corajosos e avilta os cobardes. Embora com pêsames, a guerra travada por soldados entre nações permite-nos medir a valentia dum povo para com outro. Da mesma forma que a guerra Peloponeso nos permitiu descobrir a valentia dos espartanos, as conquistas ecuménicas do Alexandre o Grande nos provaram a sua valentia e mestria na arte da guerra. Toda a virtude clama continuamente por circunstâncias adversas para reafirmar-se.

Todavia, com o advento da nuclearização dos países como forma de garantir a sua soberania no séc. XXI, o nosso mundo incorre no risco de perder o aparato para avaliação da valentia dos povos. Quando a força dum Estado deixa de consistir na valentia dos seus homens e passa a incidir em bombas nucleares, consequentemente se arranca ao homem a honra de ser um guerreiro. Num mundo em que as guerras entre as nações são feitas com disparos de mísseis balísticos intercontinentais, não haverá mais necessidade de existir tropas altamente treinadas nem tampouco estrategos militares. O pouco de exército a ser formado servirá para assuntos de ordem interna civil. E há menos honra em guerreiros que combatem os filhos da sua própria terra que os adversários estrangeiros.

A guerra como uma arte, a honra e a glória lhe importam. Tal entendimento pode ser obtido no encontro histórico entre Cipião Africano e Aníbal do Cartago, na véspera da batalha de Zama. Conta-se que Cipião, imperador romano, e Aníbal, líder do Cartago, não obstante grandes inimigos fossem, teriam agendado um encontro pessoal para discutir termos e condições duma provável guerra. Quando, pela primeira vez, se avistaram, um sentimento de honra comoveu-lhes o espírito por causa da imensurável consideração que um tinha pelo outro. Porém, tal admiração não foi razão suficiente para impedir que a guerra acontecesse. Os dois definiram o local onde era suposto deflagrar a segunda batalha púnica longe dos civis inocentes. Foi deveras esta brilhante diplomacia que tornou a guerra púnica honrosa e justificou a glória de Cipião que comandava um grupo reduzido de homens, mas altamente destros contra Aníbal que liderava um extenso grupo de homens com uma frente de elefantes, no dia 19 de outubro de 202 a.C.

Esta nobre guerra tem menos chances de ter lugar em séc. XXI, tempo em que as nações acreditam que seu futuro só pode ser guarnecido por bombas nucleares. Mas basta carregar-se num botão nuclear para que uma cidade toda desapareça junto com milhões de humanos em menos de poucos minutos. Ao contrário dum ataque de forças militares que levaria semanas ou meses para destruir um inimigo como uma cidade. Ou seja, as bombas nucleares têm a propriedade de acelerar o tempo de uma guerra por causa do seu poder de destruição massiva. E quando a guerra torna-se um fenómeno que se consome em minutos ou horas, ela escamoteia consigo as oportunidades diplomáticas entre as partes conflituosas que poderiam resultar em armistícios ou cessação definitiva da guerra.

É consabido que desde sua presença no planeta terra, os homens sempre atentaram contra sua própria existência e, por um triz, voltam à reconciliação. Mas ponderando-se o nível de perigo das armas com que os homens ameaçam sua existência hoje em dia, o fim duma parte considerável da humanidade tornou-se uma questão iminente. O mundo estaria em boas condições de segurança se todos os Estados dispusessem de armas nucleares, pois haveria medo entre eles de directamente destruir-se como acontece entre a Rússia e os Estados Unidos da América. Por outro lado, o mundo seria relativamente um lugar mais seguro se nenhum dos Estados fosse nuclearizado, assim não haveria sérios riscos de destruição em massa.

Enfim, o que se mantém fora de hipóteses da cogitação é a guerra. Os homens são naturalmente propensos a desencadear conflitos por conta dos seus interesses pessoais. É sempre preciso um esforço racional para conter-se os nossos instintos egoístas e deliberar-se pelo bem de todos, ou ao menos, da maioria. Sendo assim, é uma responsabilidade da humanidade envolver-se em actos de educação na construção de um mundo que dê oportunidades aos homens de provar suas virtudes. Tudo quanto nos possa proibir de manifestar o que há de mais sublime em nós, deveria ser banido da esfera humana. E porque as armas nucleares colocam em risco as virtudes de um guerreiro deviam ser conduzidas à destruição.

 

Durante muito tempo a biodiversidade foi ignorada. Falava-se da flora e da fauna como entidades complementares, mas nunca se ia ao fundo da complexa relação entre os seres vivos. A noção de que a vida plena, tal como a conhecemos hoje, depois de milhares de milhões de anos de evolução, baseia-se na diversidade para estar em equilíbrio é uma ideia relativamente recente.

Foi com a adopção, a 22 de Maio de 1992, do texto final da Convenção da Diversidade Biológica, sua assinatura na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e a sua entrada em vigor a 29 de Dezembro de 1993, que o mundo acordou para essa nova realidade, em que a biodiversidade ganhou uma identidade própria. Por isso, o dia 22 de Maio foi designado o Dia Mundial da Biodiversidade.

Era o reconhecimento colectivo de que cada espécie de ser vivo cumpre um papel importante na manutenção do equilíbrio ecológico. Cada vez que uma espécie é extinta ou reduzida, é uma punhalada nesse frágil equilíbrio chamado ecossistema. Estima-se que 99 % das espécies que habitaram o planeta já estejam extintas. Alguns por fenómenos naturais que causaram extinções massivas. Outros pela actividade humana, relacionadas com a aceleração do aquecimento global e as mudanças climáticas, o desmatamento, o uso abusivo de agro-químicos, queimadas descontroladas, etc.

Cresce a consciência de que a biodiversidade é uma “amiga oculta”, longamente ignorada e menosprezada. Grande parte dos seus benefícios ainda não foi estudada, conhecida ou reconhecida. Embora seja difícil dizer com exactidão, muitos cientistas estimam o número de espécies que habitam actualmente o planeta em cerca dos 8-11 milhões, dos quais apenas 1,9 milhões são conhecidos e documentados. Numa coisa os cientistas são unânimes: que milhões de espécies vão desaparecer antes mesmo que sejam conhecidas. Só no reino animal, das cerca de 8800 variedades conhecidas, 7% já foram extintas e 17% estão em risco de extinção.

Com essa sistemática perda de biodiversidade, a biosfera fica fragilizada e também enfraquecem os seus diversos ecossistemas que sustentam a manutenção da vida, a produção de alimentos, a oxigenação do ar atmosférico, o equilibro do carbono, etc. Daí a urgência de olhar para a biodiversidade como fonte de vida e resiliência.

Nessa constante busca de equilíbrio, alguns sectores têm merecido uma atenção especial: os solos, a flora, a fauna, e os ecossistemas aquáticos.

Solos

Uma grande parte dos alimentos que consumimos é plantada em solos férteis. E para que os solos garantam a sua fertilidade é importante a contribuição de diversos microorganismos (vírus, bactérias, fungos e protozoários), plantas e animais que garantem matéria orgânica, nutrientes e minerais.

Sendo um reservatório natural de biodiversidade, o solo fértil é considerado um ser vivo. Suporta e fixa as plantas através das suas raízes; alimentando-as com água, minerais e outros nutrientes; fornece habitats para mamíferos, insectos, lagartos, crustáceos e vermes; protege uma infinidade de seres vivos contra ventos e correntes de água; contribui para a filtragem da água, e para a manutenção do ciclo dos gases atmosféricos.

Flora (incluindo florestas)

O reino vegetal cumpre um papel fundamental na biosfera. A cadeia alimentar na crosta terrestre começa com a disponibilidade de plantas para os animais herbívoros. Seguindo-se outras sequências da cadeia. Os seres humanos estão entre os benificiários mais directos, pois alimentam-se, simultaneamente, de plantas e animais.

As plantas também contribuem para a regulação da composição do ar atmosférico através da fotossíntese, produzindo oxigénio e removendo o dióxido de carbono da atmosfera. Este processo também ajuda diminuir o “efeito estufa” e o aquecimento global.

Através de diversos ciclos “biogeoquímicos” de que as plantas são parte importante, muitos recursos fundamentais são reciclados e disponibilizados. Por exemplo o ciclo da água, através do qual as plantas absorvem água do solo e subsolo e a lançam na atmosfera através da evapotranspiração ou ainda a fixação de nitrogénio atmosférico no solo em parceria com micróbios designados rizóbios.

Uma única planta (uma árvore, por exemplo) pode criar ecossistemas essenciais para muitas espécies de aves, insectos, mamíferos, vermes e répteis. Também fornece combustível lenhoso, madeira, fibras, medicamentos, essências, borracha, óleos e medicamentos.

Cerca de 80% da dieta humana é composta por plantas. Estima-se que, na História da Humanidade, 7 mil espécies de plantas são ou já foram cultivadas para o consumo humano.

Fauna

Chamamos fauna ao conjunto de animais que habitam o planeta. Eles povoam os meios terrestres, aquáticos e aéreos. Como os animais que habitam os meios aquáticos são aqui abordados especificamente (ecossistemas aquáticos), importa realçar o papel da fauna que habita os meios terrestres.

A fauna tem um papel fundamenta no equilíbrio ecológico: faz o processo inverso das plantas, absorvendo o oxigénio e libertando dióxido de carbono, contribuindo assim para o precioso equilíbrio na composição do ar atmosférico; é peça fundamental da cadeia alimentar, primariamente através dos herbívoros e granívoros, que por sua vez são fontes de proteína e muitos outros nutrientes, essências para carnívoros e omnívoros; também contribuem para a fertilização dos solos, polinização, disseminação de sementes, etc..

A produção pecuária beneficia de cerca de 25 espécies de animais que foram domesticados e utilizados na agricultura e para consumo. Outros são capturados ou retirados dos seus habitats naturais para consumo humano. A fauna representa assim uma inesgotável fonte de alimentos ricos em proteína.

Ecossistemas aquáticos

Os ecossistemas aquáticos podem ser naturais (mares, oceanos, rios, lagoas e mangais) e artificiais (albufeiras, canais de irrigação, aquários, campos inundados de produção de arroz, etc.). Os meios aquáticos geram múltiplos ecossistemas. Acredita-se que foi em meios aquáticos que a vida teve origem. Estes ecossistemas aquáticos jogam um papel fundamental na multiplicação do fitoplâncton e zoo-plâncton, muito importantes na cadeia alimentar e no ciclo do oxigénio e carbono. São também importantes para fornecer água, regular a temperatura e o clima.

A pesca e aquacultura não só representam uma fonte importante de alimentos, como também uma fonte de rendimentos para cerca de 820 milhões de pessoas no mundo, em toda a sua cadeia de valor. Só em 2015 foram capturados cerca de 92,6 milhões de toneladas de pescado. O consumo anual de pescado per-capita é estimado em 16 Kg.

A concluir

A preservação da biodiversidade é importante para evitar a perda de recursos naturais que sustentam a vida no planeta. Ela requer uma luta feroz para combater ao aquecimento global e as mudanças climáticas, mas também outras medidas mais específicas como o combate contra o desmatamento, as queimadas descontroladas, a caça furtiva, a pesca ilícita e ilegal, o uso de pesticidas e agro-químicos poluentes, a intoxicação dos mares com plástico e a contaminação dos solos.

 

É interminável a lista de gente que se suicidou. O suicídio é uma corrente do fim que ganha anilhas nas filas dos hospitais, nas pontes das cidades, nos terraços dos prédios, nos quartos escuros, nos ramos da árvores e em tudo que tem vida. O peso do corpo é a corda do suicídio quando as escadas nos levam ao último piso do prédio. Uns entre a roupa molhada enfiam o pescoço no estendal e fazem a vida secar para sempre. A água do mar, do rio também serve de corda para afogar a vida.

Pequenas dimensões de matéria sinalizam o suicídio em todo lugar. Um pano branco que tapa um chão avermelhado de sangue, rodeado por criaturas que lamentam o desconhecido que desenhou o seu fim, uma camisa que flutua no mar dá o último sinal de uma vida que foi diluída por ondas e espuma, uma corda que segura um corpo que flutua nas ondas no vento, um revólver com sangue, tudo isso espalha-se na cidade. O suicídio testa-se em toda parte como se fosse uma nova ciência da vida. E a dor é maior porque o suicídio tem um perímetro mais vasto que a vida.

O suicídio é a fórmula vital de problemas que não resolve. Os jovens suicidam-se e os mais velhos suicidam-se no tempo suicida. José Manuel Balmaceda, ex-presidente do Chile, deu um tiro na sua cabeça, Vincent Van Gogh atirou contra o seu peito, Adolf Hitler e sua esposa envenenaram-se, Amy Winehouse explodiu por conta duma overdose, Gilles Deleuze atirou-se dum prédio. Ali na Matola, o sofrimento das estátuas mastigam com suas bocas cheias de fome o suicídio de Alberto Chissano.

A 14 de Março de 2018 Stephen Hawking morreu. Esse físico teórico e cosmólogo britânico, um dos sucessores de Isaac Newton na Universidade de Cambridge no cargo de titular da cadeira Lucasiana de Matemática, disse antes da sua morte que apoiava o suicídio assistido. Mas, somente quando a pessoa envolvida faça essa escolha sem nenhuma pressão. Em seu último suspiro defendeu que a partir do Big Bang, o Universo se expandiu de um ponto minúsculo em um processo conhecido como inflação, criando universos infinitos que poderiam ser muito diferentes do nosso.

Voltamos à Grécia antiga e encontramos o tratado "Elogio da Morte" de Alcidamente. Orador celébre. Alcidamente argumentava que o acto supremo da vida era o de aniquilá-la voluntariamente. O suicídio era, para ele, um acto de liberdade e sabedoria. Convidava todos homens a suicidarem-se.

A Filosofia do Suicídio do grego soou, mais alto, na Alemanha. Filipe Batz, publicou com o nome de Filipe Mainlander o livro "Filosofia da Redenção". Mainlander convidava a todos para um suicídio universal. Argumentava que a morte de todos homens seria o fim do Ser, visto que a morte de Deus constituiu o princípio da vida e do Mundo. Mainlander defendeu a sua teoria com a sua própria vida; suicidou-se tempo depois. E a possível filosofia do suicídio ganhou um capítulo importantíssimo.

Entre Hawking, Alcidamente e Mainlander há um caminho que "legitima" o suicídio. O nosso tempo é andarilho e peregrino desse caminho. Suicidamo-nos e deixamos tudo nos suicidar. Temos pressa em morrer e impaciência em esperar a morte. Escrevemos com a grafia do nosso tempo o compêndio do suicídio.

Continuo escrevendo sobre o suicídio, mas há no fundo dessa caneta que, agora, uso duas gotas de suicídio: o suicídio da incerteza e o do medo. A incerteza de continuar a escrever sobre o suicídio e o medo de parar de escrever e parecer que pretendo suicidar o texto antes do fim. Cada linha de um texto pode ser uma corda resistente para o suicídio do sentido. Escrevo a mão e devo depois passar tudo a limpo no computador. O meu computador tem na sua testa uma maça mordida. Uma Apple. E que significa aquela maça mordida? Sei que ela cheira a suicídio. O pai da computação moderna, Alan Turing, em 1954 trincou uma maça envenenada com cianeto e consumou o suicídio. Eis como termino o texto: escrevo sobre o suicídio, com uma caneta que gagueja suicídio e sobre um computador com uma homenagem ao suicido.

 

«Escrever sobre o presente é como caminhar à beira do precipício: podemos cair»

Salman Rushdie

Informação de última hora!

Interrompemos o show de Gatafox na casa Mapiko para apresentar uma notícia que promete fazer correr muita tinta. Convidamos o repórter volante, que está na sede do comando-geral da polícia a nos brindar com as últimas sobre este caso.

Caro colega repórter volante Carvão Arde Molhado venha daí:

– Saudações senhores telespectadores,

Estamos perante o que se fornece como sugestão aos nossos cineastas para uma longa-metragem, um caso próximo a um policial do western americano, que até se pode chamar BARCOLINO e o Detective DZAHELA.

As autoridades policiais anunciaram há momentos que estão no encalço de um perigoso cadastrado conhecido nos meadros especiais operativos como BARCOLINO, O INQUERÍVEL. Este sujeito lidera uma quadrilha que se dedica à burla qualificada, desperta agudas paixonites, incontroláveis e enganosas. Barcolino é acusado por mais crimes, tais como pecolato e branqueamento de capitais, incluindo cinquenta e cinco crimes que aguardam parecer da comissão mista e interministerial entre os Ministérios da Justiça, Mar e Águas Interiores e Pesca; Terra e Meio ambiente; Ministério da Saúde e Ametramo. Barcolino e seus comparsas têm actuado preferencialmente nas regiões da Costa do Sol e João Mateus, na Matola.

 Barcolino é alvo de uma denúncia popular que chegou até nós na última madrugada, emitida pelas autoriadades locais da zona do Chiango. Este fulano é tido como peixe, perdão, persona non grata. Na ficha que recebemos consta que a sua lacalaca, ou melhor, o seu modus operandum tem veneno. É um perigo para a saúde pública, terrestre, aérea e marítima. Até ao momento foi emitida uma ordem nacional de busca e captura, usando meios disponíveis para a corporação, entre os quais anzol, rede de pesca, munições diversas para o uso no espaço aéreo, marítimo e terrestre.

Neste instante, a intervenção do repórter foi interrompida por uma ruidosa salva de palmas de jornalistas e populações circunvizinhas que estão no comando-geral. – E o repórter Carvão Molhado volta à carga:

– E mais se informa que o detective Dzahela foi destacado para esta inadiável e urgente operação. Segundo informações recentes o Major Dzahela caracteriza-se por usar elementos típicos, de infalível sucesso, onde quer que seja: lápis na orelha esquerda, pistola amarrada sobre a cabeça e fisga no pescoço. A sua última missão, antes de passar para a reserva é mesmo procurar e neutralizar o cadastrado Barcolino.

O ilustre detective, depois de receber a sua nova missão, com elevada determinação que lhe é característica e, somos impelidos a reforçar mais alguns atributos. Senhores espectadores, a lista de atributos prevê-se de longa leitura. O detective Dzahela é internacionalmente conhecido, sobretudo nas cidades da Matola, Maputo, da baixa a Costa do Sol. As suas fontes estão em alerta máximo e, segundo informações recentes, podemos referir que estão no encalço do meliante. E antes que seja tarde o nosso detective, graças às tecnologias já emitiu uma declaração pública, via-skype, a partir do seu escritório móvel. Esta declaração está a tornar-se célebre, tal é a velocidade de partilhas nas redes sociais, estremecendo meio mundo nos quadrantes do crime.

HOJE VAI MORRER UM CÃO E UMA CÃ!

Informo aos moradores das zonas da Matola, de João Mateus ao Língamo, de Língamo à Baixa da cidade, e de lá até a Costa do Sol, que o cidadão Barcolino, o inquerível está mal comigo. Através de indicações superiores e jurando as minhas platinas fui destacado para esta missão. Garanto cumprir com brio e eficácia. E não tenho receio nenhum em dizer que o senhor Barcolino, sim você mesmo que me está a mirar vou-te prender, em 25 horas, no máximo. O mundo está farto de saber que és um Mafioso incorrigível. Não vou aqui reveler a minha táctica. Adianto apenas que vou-te procurar na tua casa no bairro dos pescadores. E, se te encontrar enquanto não estás, vou directo à Parte Incerta. Lá no teu bar favorito, ah, ah, aha – todo gabarolas e convencido – não falha nada. Vou-te prender bem, mesmo antes de terminares o último copo e de beijares a nova amante. Vou interromper esse festim sem gastar uma bala. O meu equipamento resolve tudo!

Mas oiça aqui. Venho de longe, batendo no peito, por três vezes, com os olhos desorbitados de fúria – o meu admirável ídolo Xidiminguane já senteciou a nossa missão comum. Vou-me guiar no registo de Lucílio Manjate*. A tua missão Barcolino é fugir. A minha, o próprio detective Dzahela é te prender. Xidiminguane disse e eu aqui, na paz dos deuses do mar e da terra informo-te: «onde vamos nos encontrar nunca mais o capim germinará». Não te rias, seu infame e miserável. Vou acabar com essa mania de mafiares malta nós, andares por aí a fingires que morreste enquanto estás vivo na morte da vida.

Tenho dito!

O comandante

Dzahela

*Crónica inspirada na novela de Lucílio Manjate, A TRISTE HISTÓRIA DE BARCOLINO, Cavalo do Mar, 2018

 

Conheci o Heliodoro Baptista em 1987, numa das suas raras vindas a Maputo, à época, e tornámo-nos amigos imediatamente. Recordo-me de, numa ocasião, no jardim Tunduru, meses antes de ele dar à estampa o seu primeiro livro Por Cima de Toda a Folha, me ter dado a conhecer o seu original. Estranhei que o livro não tivesse aquele que eu considerava o seu mais belo e pungente poema até à data – “Poema à Filha de Thandi” – que era e é um poema arrebatador. Felizmente, o Heliodoro ainda foi a tempo de incluí-lo no livro. Na verdade, ele pensava que o mesmo deveria fazer parte de um livro posterior. Por Cima de Toda a Folha foi editado em 1987, e o livro seguinte – A Filha de Thandi – seria publicado em 1991.

O Heliodoro era um poeta da linhagem dos poetas que se revêem numa poesia como forma de conhecimento, numa poesia eclética. Releva daí o facto de a discussão que se despoletou sobre a questão da intertextualidade, naqueles anos, não ser de todo, em relação a ele, alheia. A poesia de Heliodoro é uma poesia que nos interpela, que nos confronta, que nos defronta, que nos inquieta. Mas também uma poesia que dialoga com a melhor poesia e com os poetas que ele reputava.

Quando me encontrei, em Junho de 1988, em Lisboa, com o meu mestre Baptista-Bastos, levava-lhe o livro do Heliodoro. Numa carta (naquele tempo nós correspondíamo-nos através de missivas) que ele me redigiu a agradecer os livros que lhe oferecera, considera o Heliodoro um grande poeta. Dei boa nota dessa opinião do Baptista-Bastos ao Heliodoro e sei que ele ficou muito feliz com tal reconhecimento. A despeito do quilate da sua poesia, quando publica o seu livro de estreia, que era a súmula de 14 anos de escrita, Heliodoro Baptista estava marginalizado.

Heliodoro Baptista: “Eu penso que o livro, de facto, talvez me tenha retirado definitivamente de uma certa marginalidade, orquestrada pelo Poder.” O poder, que fora aliás tema de muitos dos seus poemas, entre os quais o emblemático “As outras mãos”, um dos seus mais belos textos: “As mãos do poder, meu amor, /são mãos humanas”, começa assim o poema que tem como epígrafe uma citação de “O Estaleiro”, de Juan Carlos Onetti, um escritor uruguaio, um dos maiores prosadores em castelhano do século XX: “É estranho que aqui ninguém soubesse mesmo de nada!”

Este livro de estreia tem poemas belíssimos. Os primeiros versos do poema alusivo ao massacre de Wiriamu nunca me saíram da cabeça: “Vede/ a amabilidade das manhãs/ exprimindo-se tão bem/ por sobre o espaço das bombas”. É notável. Ou estes versos de “Alegoria”: “Em Inhaminga, meu amor, / estão as armas apontadas para o céu/ mas só há pássaros”. Isto é de um grande poeta. A voz de um eleito.

Heliodoro  Baptista era um grande leitor de poesia. Pablo Neruda foi, indubitavelmente, um dos seus poetas electivos. Os filhos menores, à época em que os conheci, Pablo e Guy, recitavam o poema 20 dos Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada. Não é despiciendo, aliás, o nome do filho Pablo, a quem ele dedicou um belo poema “Variações Onomásticas”: “E tu, meu filho, / que carregas esse nome diabólico/ por que dizes já com 2 anos/ a mim de cenho mortuário/ que assim, assim mesmo, / «estás farto desta merda»?

Outro poeta que ele leu com admiração e com quem dialogou imensamente na sua poesia é o português Herberto Hélder. Aliás, o poema “Paisagem com poeta em segundo plano” começa e termina com dois versos entre-aspas, que ele não identifica o autor, que são de Herberto: “Tantos nomes que não há/ para dizer o silêncio”. Creio mesmo que Herberto foi o arquétipo do poeta que ele pretendeu ser.

Herberto Hélder: “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” Assim começa o livro Poemacto, que se seguiu ao A Colher na Boca, que tinha aquele belíssimo poema “O Amor em Visita”: “Dai-me uma jovem mulher, com a sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite”. Imagino o Heliodoro, rodeado dos seus fantasmas, lendo, na Beira, este imensíssimo poeta. “Em cada mulher existe uma morte silenciosa” – escreve Herberto. O amor e a morte perseguiram-no, de certo modo.

Homem de palavras, cultivava-as com perícia de relojoeiro suíço. Os seus poemas, para além de terem soberbas metáforas e imagens poderosas ou até mesmo pavorosas, eram feitos de palavras e de um ofício que lembra a “Ars Poetica” do Rui Knopfli, outro poeta cujo amor e devoção nos aproximava. Num poema de A Filha de Thandi, intitulado “À volta das origens”, dedicado a Rui Knopfli e a Eugénio Lisboa, o diálogo intertextual é explicito com um texto do Knopfli: “Sim, de facto, ‘uma só e várias línguas/ eram faladas e a isso/ por estranho que pareça, também chamávamos pátria’”.

Heliodoro Baptista: “As palavras amadurecem, transcendem-nos. / Como os dias. Este trajecto imemorial.” – isto na “Poema à Filha de Thandi”, que assim termina: “Mas os poetas têm boca. / As metáforas são o seu próprio ardil/ para que outros leiam/ o que ele nunca disse.” As Palavras Amadurecem seria o título de uma antologia publicada, em 1988, na Beira pelos dez anos da página “Diálogo” do Diário de Moçambique.

Há imensíssimos poemas do Heliodoro Baptista de que gosto implacavelmente. Poemas que nos desassossegam. Poemas que querem subverter. Aliás, Jorge Viegas, que inicia, em Quelimane, um convívio literário, escreverá no belíssimo poema “Subversão”: “À subversão devemos/ A estatura do que somos”, depois de asseverar que “o poeta subverte os planos da linguagem”. Heliodoro Baptista, um poeta subversivo, no poema “De nós e dos outros”, que tem uma epígrafe do japonês Yukio Mishima (“A verdadeira pureza é sujarmo-nos e, no entanto, não nos sujarmos realmente”), escrevia: “Querem-nos, a alguns, bem sentados/ na fofa realidade escamoteada/ a uma outra realidade desavinda/ onde crescem agudas, ásperas vozes.”

Ouso falar extremamente de mim mesmo”, escreve Heliodoro Baptista em A Filha de Thandi. E diz adiante: “da imobilidade do poema/ explodirá o mais prodigioso grito de amor”. Aqui está a definição da sua poesia. “Falo-vos destas vozes mansas, chamando-nos docemente, / deste país em agonia mas vivo, / com seus fluxos, grutas, segredos, xistos, volição, / onde, de resto, se confundem/ estas recém-nascidas palavras, / adventícias, nunca. Consumadas, talvez.”

Heliodoro Baptista: “O pecúlio são os filhos, / o horizonte raso dos versos, / a doçura oriental dos teus olhos/ e o castanho desenvolto/ do teu corpo inextinguível / onde, às vezes surpreso, / restauro comovidamente/ o deus que em menino/ quis ser.” Belo poema dedicado à musa soberana Celeste. No livro de estreia dedicara à Celeste um outro belíssimo poema: “Gravidez”: “Traço a traço/ desvendo-lhe as feições/ por onde a vida rufla/ as grandes asas”. Este livro – A Filha de Thandi – está cheio de belas metáforas. Num poema, “Prova dos Nove” (dedicado ao Eduardo White e à Olga): “Assim crescem as arestas da angústia, / as mesas estão cada vez mais vazias”. Isto é extraordinário. Num outro, “Preço dos sonhos” (dedicado ao Jaime Santos e ao Fernando Cunha): “É de vidas que se fala aqui/ e, sobretudo, de destroços humanos, / do que restou de todos nós.”

Gosto maningue muito (“maningue muito” é pilhado ao Craveirinha) do poema “A Uma Ingénua Nórdica”. Queria citá-lo na íntegra mas aqui não caberia. Também gosto do pungente “Ao Futuro”, dedicado ao filho Guy: “Saberás um dia que o amor nunca/ nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre esteve”, começa assim o texto que fecha o livro. Tem versos seminais: “Rigorosamente contemporâneo/ da explosão cósmica/ que, contam, declinou ao princípio/ do escuro e da luz”. Termina com a seguinte estrofe: “Nunca aceites ser mártir. / Ama o teu presente e o futuro/ e, por certas tardes de sábado, / de olhos porventura humedecidos, / limpa docemente a minha tumba”. 

Haveria muitos outros exemplos para citar, nesta noite em que o evoco. Quero terminar com o poema “Hablando, com amor, em setembro”, que ele dedicou a Ungulani Ba Ka Khosa, ao Eduardo White e a mim próprio. No meu livro, A Pátria Dividida, de 1993, tenho um poema dedicado ao Heliodoro. Em A Filha de Thandi, ele dedica-me o poema “O Amor em movimento”. O Heliodoro foi dos poetas mais generosos no afecto e isso vê-se como proliferam dedicatórias em seus livros. Este poema invoca Pablo Neruda no diálogo que ele estabelece connosco. “Nosotros, irmão Pablo, / também fazemos milagres a sorrir”, di-lo. Ou: “a realidade aqui é um repto/ um grito vocabular”.

Releio este belíssimo poema e tocam-me estes versos fulminantes. Heliodoro era um poeta inspiradíssimo. Apetece-me citá-lo todo, mas falta espaço para o fazer. Leio: “Nosotros, irmão Pablo, / nós também somos os mesmos:/ com astúcias, tumultos, originalidade, / na dor exaltante desta transparência carnal/ se sermos coisas, aromas, corações atónitos (ou atómicos) / abraços penitenciários, suicídios de luz.

Heliodoro Baptista: “Os jardins ainda não são jardins, / a fome es muy fuerte e alguns dias, seus poentes, / dão-nos a gramática incontrolável desta candonga/ da desordem programada, o rigor selectivo desse negócio/ que é a desolação animada pelos anunciados humanismos, / das imperiais conveniências do dólar”. Este poema é lindíssimo e me sinto orgulhoso de me ter sido dedicado, como ao Khosa e ao White: “Entretanto, aqui estamos,/ numa casa, em Setembro,/ com nossas praças, hablando em Setembro,/ nesta cidade índica e austral, esculpindo/ contigo em Setembro de todos nós, / que produziu depois esta fúria de amarmos a liberdade/ e esta coragem, sem exibições de nunca temer o látego,/ o banco do tribunal, as armas, / quando nos localizam e apontam a subversão/ de amar o valor erótico, beijar o sexo como a uma hóstia,/ a ajoelhar defronte do altar de uns seios, sem ocultações, / puros, feridos pela paixão de se ser homem, entidade,/ motor próprio, paisagem sempre nascida em cada cópula,/ porque o amor é tudo, sempre será tudo e todos, / belo, paranoico, avassalador, canibal, suspeito,/ veneno, vitamina, lâmina de punhal que dá vida, soro vital”.

Não haveria melhor definição para a sua poesia nem haveria melhor inscrição no horizonte intemporal desta escrita na qual se inscreve (passe-se a redundância) a sua memória e a sua biografia como, por exemplo, nestes belos e doloridos versos, que citei acima. A sua experiência está neles sublimada: “Por que não experimentam prender as estrelas?” – indaga-nos. Querem melhor metáfora? Este pungente texto, como tantos outros que Heliodoro produziu, na sua tumultuosa vida, são a lídima expressão de uma voz singularíssima da nossa lírica, de um poeta que nunca abdicou do amor e da liberdade, de um poeta quizilento, se quisermos, mas que tudo o que escreveu, como queria Rui Knopfli, foram poemas de amor, aliás, apanágio de grandes poetas.

Termina assim aquele poema que ele nos dedicou: “Não poder viver senão uma vida/ é como não viver”. Não tenho mais palavras esta noite. Ella Fitzgerald e Louis Armstrong cantam “April in Paris”, um velho clássico dos anos 30, composto por Vernon Duke, com letra de E. Y. Harburg, para um musical na Broadway (Walk a Litle Faster) e interpretado profusamente ao longo de anos: Billie Holiday, Bill Evans, Charlie Parker, Sammy Davis Jr., Count Basie, Frank Sinatra, Sarah Vaughan, Wynton Marsalis, eu seil lá!

Heliodoro Baptista nasceu a 19 de Maio de 1944, em Gonhane, Quelimane. Morreu a 1 de Maio de 2009, na cidade da Beira. Poeta inconformado, está na primeira linha da lírica moçambicana. Sofreu, por muitos anos, o opróbrio da marginalização. Foi jornalista e contista. Para além dos títulos acima referidos, publicou, em 2005, Nos Joelhos do Silêncio, no qual retoma alguns dos seus temas electivos, entre eles a mitologia de Thandi. Ele sempre recusou o silêncio. Mesmo quando precavia os filhos: “Pode ser que tenha de regressar/ aos dias das mil ciladas. //Como a outros, na exactidão deste tempo, / nada é imune.” Foi sempre poeta do amor: “Digo-vos: no amor não importa o espaço/ e muito menos o tempo”. Celebro-o aqui na companhia de Ella Fitzgerald e de Louis Armstrong: “never missed a warm embrance” (nunca perdi um caloroso abraço). O seu “grito vocabular”, mais do que um repto, é uma realidade esta noite. Por cima de toda a folha.

 

 

O inusitado pedido de morte do cientista britânico de 104 anos de idade foi, enfim, deferido. Ao som de “ode of joy” de Bethoven, Goodall deitado sobre uma cama de altura de joelhos na clínica suíça Cycle of Life sentiu a vida a esvair-se lentamente afora. E foi assim que a morte e o livre arbítrio estiveram de mãos dadas num estranho consórcio. Num mundo que nos habituou a correr atrás do tempo para ganhar a vida, é-nos sempre comovente ver alguém que corre contra o tempo para conquistar a morte. Para Goodall, cessar a vida tornava-se necessária ante a inelutável debilidade física protagonizada pelo tempo. O cientista ecológico chegou a questionar que sentido havia restado numa vida cuja rotina se resumia em acordar, alimentar-se, mover-se alguns centímetros e dormir.

É, portanto, sob estas condições que nos urge pensar o suicídio e, uma das suas vertentes, a eutanásia. O que nos é permitido aprender desses dois fenómenos? A reflexão sobre suicídio ou morte em geral coage-nos sempre a pensar a vida ou num sentido valorativo-comparativo. O suicídio como escolha problematicamente livre da própria vítima encontra o seu fundamento ou na crise existencial ou no utilitarismo. Ou seja, há dois tipos de suicidas que concorrem à morte. Há os que se libertam da vida pela dor de existência e falta do sentido da vida. Há aqueles que o fazem por um determinado interesse que pode ser secular ou sobrenatural. O importante a sintetizar é que há sempre algo acima duma ingénua vontade de morrer que impulsiona o homem à auto-destruição.

Sendo assim, há um imperativo de olharmos para o suicídio, não como uma escolha livre, mas sim uma escolha forçada pela crise de existência ou pelo utilitarismo moral. A morte nunca é escolhida por si. Nesta ordem do pensamento, entende-se que o suicídio é tanto uma morte natural como homicídio, porquanto a vítima não se apresenta como autor, mas sujeito da sua própria morte. Nisto, ele é ao mesmo tempo vencido e vencedor. E as dores e os princípios de existência são, por excelência, os verdadeiros autores dos suicidas.

Goodall não foi livre na tomada da sua decisão. O insignificante da sua existência impeliu-o à eutanásia. Todavia, há algo em comum que se encontra em todos os suicidas: o amor à dignidade humana. Todos aqueles que renunciam à sua própria existência, no fundo, clamam por uma vida digna. São tão radicais que se predispõem ou a viver condignamente ou não a viver vida nenhuma. Para os suicidas, não basta viver mas viver bem. Deste modo, a vida em si não tem valor algum. É preciso um exercício axiológico para o enriquecimento da existência. Se calhar tenha sido esse o maior legado filosófico de Séneca ao preconizar os humanos a darem sentido à sua própria vida para que no fim sejam dignos de ser lembrados.

Para este filósofo estoico, o homem sábio alongará sua vida não enquanto puder, mas enquanto dever, isto porque a vida assemelha-se a uma peça teatral, não importando a sua duração, mas a sua qualidade. Aquiles foi um exemplo duma vida breve, mas memorável, depois que preferiu ir à guerra onde encontraria uma morte prematura mas gloriosa a ficar em casa e envelhecer nos braços da sua amada sem direito a nenhuma página na história da humanidade.

Olhando para além do bem e do mal do suicídio, é possível vislumbrarmos o belo quando alguém renuncia à sua vida por não poder viver de acordo com os seus termos e condições, tal como não deixa de ser nobre que um trabalhador demita-se a ser demitido. O amor à vida é capaz de sujeitar o homem a uma existência humilhante, quando o faz preterir feitos nobres pela sua própria sobrevivência.

Enquanto humanos, que nos permitamos sempre uma vida digna, sem perder a consciência que a vida não é ao todo “um mar de rosas” e é em grandes tempestades que se relevam grandes marinheiros.

 

A saúde é certamente um dos principais factores estruturais para o desenvolvimento sustentável. Ela afecta não apenas o bem-estar das pessoas, mas também a sua produtividade. Porém, o estudo da relação entre a saúde e o desenvolvimento é complexo. Há muitos elementos, variantes e variáveis a levar em consideração.

Esta complexidade foi aumentando à medida que a definição de desenvolvimento se modernizou, deixando de ser um mero sinónimo de crescimento económico, passando a considerar outros aspectos de natureza social, cultural, ambiental e política, como os níveis de desigualdade, o equilíbrio de género, o desemprego e o uso sustentável dos recursos naturais.

A abordagem economicista centrava-se no “capital humano” (emprego, divisão e diversificação do trabalho) e o seu impacto na produtividade. Partindo desta perspectiva, a saúde seria uma função do desenvolvimento. Um maior investimento nos sistemas de saúde como um todo, tanto pelo sector público como privado, resultaria numa melhor capacidade produtiva.  

O risco era o de tratar os seres humanos como capital físico, como se fossem máquinas. Porém, a saúde de uma comunidade não se resume aos índices de morbilidade e mortalidade, e demais estatísticas, nem mesmo no quadro organizacional e institucional do sector da saúde.

A abordagem carecia de elementos de humanização, numa perspectiva multissectorial e aberta, partindo mesmo da definição dos termos “saúde” e “desenvolvimento”; da distinção entre infecção e doença; de como cada uma delas afecta o estado físico e mental e a produtividade per capita; e, de quais os desafios relevantes no continente africano.

Daí o recurso à uma solução pragmática, realçando preocupações relevantes, actuais e urgentes: a saúde materno-infantil, as doenças não transmissíveis, as zoonoses (tuberculose, salmonela, ténia, raiva, gripe aviária etc.), as epidemias (como a malária, a cólera, diarreias, o ébola e o HIV/SIDA).

Saúde materno-infantil

Um dos indicadores mais importantes numa comunidade é a saúde materno-infantil. Nesse elo entre a mãe e a criança está a matriz da qualidade dos recursos humanos. O estado de saúde da mãe define o estado de saúde da criança e das gerações vindouras, a curto, médio e longo prazos.

Em África, os problemas começam logo com a elevada incidência de gravidez precoce. Neste caso, tanto a mãe como a criança são expostos a elevados riscos biológicos (como complicações da gravidez e partos distócicos), sociais, demográficos e económicos. Todo o processo de gravidez é afectado não apenas pela imaturidade biológica da mãe, mas também por um cocktail de problemas como baixa renda, habitação precária, anemia, alimentação inadequada, instrução limitada, e baixa utilização de serviços pré-natais, que no conjunto resultam no baixo peso à nascença.

Após a nascença, uma nova vaga de factores como a persistência da anemia nas mães, desmame precoce, abandono da criança, desnutrição proteico-calórica da criança e vulnerabilidade às doenças infecciosas como a diarreia e o sarampo resultam em elevados coeficientes de mortalidade infantil até aos 5 anos e em insuficiência ponderal (baixo peso e raquitismo).

Doenças não transmissíveis

As doenças não transmissíveis, também conhecidas como “não infecciosas”, por não serem causadas por agentes patogénicos, são cada vez mais importantes para a saúde pública e podem ter natureza crónica. Entre elas estão as doenças autoimunes, doenças cardiovasculares, diabetes, osteoporose, cataratas, pedras nos rins, anemia, obesidade, alzheimer e outros problemas mentais.

Em África a situação é preocupante por falta de medidas preventivas adequadas e de tratamento especializado que algumas dessas doenças requerem.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 70% das mortes têm como causa doenças não transmissíveis. Embora algumas tenham origem genética, outras estão associadas à pobreza, como a anemia (deficiente acesso a uma alimentação adequada, agravada por falta de informação), obesidade (alimentação desregrada), enfisema pulmonar e bronquite (associado ao consumo do tabaco), a hepatite ou cirrose hepática (provocada pelo alcoolismo). Outras estão ligadas a degradação ambiental, poluição do ar e dos cursos de água, intoxicação com metais pesados, material radioactivo e agroquímicos.

Zoonoses

As zoonoses são doenças transmitidas dos animais vertebrados para as pessoas, e vice-versa. Os agentes patogénicos em causa podem ser vírus, bactérias ou parasitas. Considerando que em África o contacto com os animais é íntimo e inevitável (animais de estimação e de consumo), as zoonoses representam uma ameaça real.

Devido à fraqueza dos mecanismos de vigilância sanitária na cadeia de valor dos alimentos em África, a tuberculose bovina, a salmonela, a listeriose, e a campilobacteria representam preocupações constantes. A raiva, por seu turno, faz muitas vítimas mortais todos os anos, pois o diagnóstico e tratamento em humanos é difícil e oneroso. Requer-se uma estratégia de vacinação dos animais domésticos, particularmente cães, que representam a maior ameaça relativamente à transmissão da raiva para humanos. A gripe aviária já fez alguns mortos entre humanos, por isso requer o controlo da doença a nível das aves para minimizar o risco de contaminação às pessoas.

Epidemias

No continente, a malária continua uma assassina implacável, causando mais de 1 milhão de mortes por ano; a cólera não só provoca elevada mortalidade, mas também abala as estruturas económicas e sociais; a tuberculose mata em série e representa um elevado custo (agravada pela HIV/SIDA); as diarreias causam numerosas mortes, particularmente em crianças; a poliomielite, a ébola, a febre-amarela e a hepatite B ainda fazem vítimas inocentes e indefesas.

Todas elas são peças fundamentais do ciclo da pobreza. No caso da malária, os resultados dos esforços preventivos, baseados na utilização de redes mosquiteiras, e no combate aos focos de proliferação de mosquitos, são encorajadores, mas carecem de massificação. A busca de uma vacina efectiva gera esperança, mas ainda não se chegou a um resultado satisfatório. A cólera persiste, agravada pela falta de água potável, inexistência de latrinas melhoradas, falta de higiene nos mercados e casas de pasto.

A HIV/SIDA é uma epidemia (elevada à condição de pandemia) preocupante: é transmissível, não tem cura, tem um custo elevado de tratamento, debilita as pessoas e as famílias (crianças órfãs), prejudica a produtividade e promove a exclusão.

A África é o continente mais afectado por este flagelo, com cerca de 26 milhões de pessoas infectadas, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. Novos avanços terapêuticos permitem controlar a doença e impedir a transmissão do vírus da mãe grávida para os filhos, mas estes serviços ainda não foram generalizados no continente.

Factores retardadores

Os avanços dos sistemas de saúde em África são muitas vezes barrados ou retardados por alguns factores. Um deles é o obscurantismo que funciona paralelamente aos sistemas convencionais de saúde. Está muitas vezes associado a práticas de feitiçaria e bruxaria que geram vinganças e ódios. Também promovem mutilações genitais femininas e masculinas, ritos de iniciação, tatuagens em condições precárias, poligamia e exclusão de pessoas deficientes, albinos e homossexuais.

De igual modo, a corrupção e o oportunismo proliferam nas esferas da saúde, promovendo o charlatismo, a vulgarização de clínicas clandestinas (particularmente para a prática do aborto), a “explosão” de farmácias improvisadas comercializando falsos remédios, o tráfico de medicamentos e equipamentos hospitalares, as curas miraculosas por seitas clandestinas, e o “vale-tudo” para a obtenção do dinheiro fácil.

Importa ainda realçar que as guerras e demais conflitos, os desastres naturais e a emigração em massa, estão na origem de algumas epidemias e complicam a equação de combate às mesmas.

Conclusão

Os sistemas de saúde do futuro devem ser concebidos de forma integrada, com toda a sua multissectorialidade, tendo como esteio um conjunto de medidas preventivas: Combate à pobreza, boa alimentação (pois o preventivo e medicamento mais genérico é a alimentação), infra-estruturas adequadas, legislação, informação, formação e educação sobre práticas e hábitos saudáveis, acesso a água potável, saneamento, combate aos vectores e vacinações. Isso requer lideranças fortes e colaboração de todos, particularmente da sociedade civil.

 

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