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A leitura como pressuposto da escrita

Todos os exercícios de leitura são, como é por demais evidente, importantíssimos para a questão e gestão da vida vivida no mundo social cada vez mais globalizado dos nossos novos tempos.

A leitura à que nos referimos é toda aquela que nos remete a alguns momentos de reflexão ou de peregrinação interior em busca do obvio, da transparência e da  transcendência superando as, (não raras vezes…), reles e  irrefletidas trans/aparências.

Assim sendo, leituras podem e devem ser feitas também de maneira visual. Com simples mas penetrante olhar em razão das circunstâncias. Entretanto, a leitura  que  aqui abordo é mesmo aquela que implica a descodificação de textos, literários ou não, com que nos deparamos durante as nossas práticas quotidianas. Esta leitura poder ter um cariz informativo, formativo e até recreativo ou lúdico.

Livros e toda uma gama de publicações periódicas, físicas ou virtuais, conformam  o que aqui nos interessa. Dentre estes, especificamente, mais nos interessam os de textos resultantes de estudos  literários e da própria escrita criativa.

Sobre estes, que aprendemos a considerar «os mestres mudos», tivemos a oportunidade e rendemos homenagem num texto em jeito poético que se acha inserido na nossa IMPRESCINDÍVEL DOUTRINA CONTRA como sendo uma homenagem aos amigos e subintitulámo-lo  poema de amor:         

Estridentes na capa e no verso bem disperso

-forasteiros-os  livros amam-nos em silêncio

habitam-nos  silenciosamente  descarregando

sóbria iluminação sem nada exigirem de nós.

De quando em quando benevolentes

parece que o sono se adeja sobre eles

os palavrões inscritos nas lombadas

filtram virgens nuvens paginadas

sempre que procuramos inertes  sonhar.

 

Os livros representam. Pensam  e  repensam

seus títulos e subtítulos      linhas e entrelinhas

esperam em silêncio que os aceitemos depois

na estante do firmamento e do risonho porvir.

 

-Pacientes- mudos  e  eternos  fluorescentes revelam

a beleza, o sentido e o olhar dos cegos que somos.

É merecido o silêncio em torno dos vivos

livros paridos no ardor de pura decantação

refastelando nossas velhas, novas e nobres amizades!

Assim sendo, vamos considerar os livros como parte do conjunto de meios de produção indispensáveis para o manejo de todo aquele que pensando repensando e armazenando saber se propõe um cultor das belas letras.

Ler é para nós um exercício primário e primordial pois, se por trás -ou ao lado?- de um grande homem está sempre uma grande mulher, ouso dizer que… por trás de um bom e grande escritor esconde-se sempre um melhor e maior leitor.   

Fartos andamos de ouvir e dizer aos jovens principiantes, – que também já fomos e continuamos sendo, embora em razão do tempo, agora seguimos um pouco menos jovens e consequentemente mais experientes: somos sempre o primeiro leitor de todos os textos que escrevemos, sejam eles literários ou não e jamais um mau ou preguiçoso leitor alcançará o sofrido e ansiado estatuto de  bom aqui… ou melhor escritor ali.

Sem falsa modéstia, vimos aqui dizer que temos sido dos que mais segue atentamente os dinâmicos movimentos culturais e, particularmente, literários em Angola ou mesmo nos distintos países africanos de língua portuguesa. E que ninguém espere de nós tapinhas ou palmadinhas nas costas pois, a vida nos ensinou que as palmadinhas nas costas, em jeito de elogio, são a pior coisa que existe e, curiosamente, os “likes” e tapinhas é o que a grande maioria dos escritores gosta. Principalmente os jovens escritores encharcados pelo prematuro feto da vaidade e pela ânsia de serem vistos e aparecerem por aparecer nas redes sociais em voga e nas páginas literárias locais em função do “timbre do momento e da paixão”. Os meus “likes” nunca são em vão.

Jamais deixamos de reparar, ensinar e aconselhar todos os que nos procuram e indiciam merecer a nossa atenção. Atendemos, principalmente, aqueles que demonstrando sólidas bases de cultura geral evidenciam um razoável e necessário domínio da língua enquanto fundamental instrumento de trabalho  para todo o operário da palavra pois, esta, não raras vezes se apresenta misteriosamente cavilosa.

Seguindo os mais jovens rejuvenescemos. Assim sendo, evidenciamos e aprimoramos mais facilmente o diálogo inter-geracional. A troca de livros é fundamental e o aconselhamento e introdução à leitura de autores clássicos é não menos importante   e vamos paulatina e progressivamente esbatendo o dialéctico conflito de gerações em razão do princípio filosófico da «negação da negação».

Um conselho, um ensinamento literário ou mesmo de outra qualquer natureza é sempre um motivo de jamais desperdiçar até porque reiteradas vezes ouvimos dizer que quem não ouve os conselhos dificilmente chega à velho e ouvir é uma das maiores virtudes dos humanos conscientes.

Reiner Rilke «um rapaz frágil e dotado» tinha fama de complicado e homem muito difícil de lidar entretanto, tinha discípulos sendo Franz Kappus o mais conhecido. Em dado momento, Kappus, ainda e certamente «com indícios tímidos de uma voz própria»  duvidando da sua vocação «…decide enviar a Rilke alguns versos, repetindo um gesto há séculos feito por jovens poetas»,  conforme nos diz Francisco Vale.

Sabe-se que a correspondência entre ambos, mestre e discípulo seguiu-se por mais de dois anos.             

Aos cinquenta anos, Virgínia Woolf escreveu a Letter to a Young poet  (hoje por demais conhecida), dirigida ao jovem John, poeta. Mesmo não sendo ela uma poetisa mas sim aquela grande romancista que ainda hoje lemos com muito agrado, Virgínia ousou e aconselhou.

Rilk e Woolf coincidiram, nos seus conselhos aos jovens, relativamente a necessidade de mais leitura e muita paciência.

Ambos contrariaram a pressa de publicar. Rilke chegou mesmo a dizer que «a paciência é tudo!».  A paciência e a leitura proporcionam-nos o amadurecimento e lendo um livro rendemos sempre uma profunda homenagem a quem sacrificou horas de um irreversível tempo para o escrever. Só assim entendemos a expressão de Jorge Luís Borges segundo a qual «todos os livros são dignos de serem lidos» cabendo-nos, simplesmente, enquanto leitores, atender as prioridades da nossa consciência pois sempre o leitor desempenha um  papel fundamental porque acaba por enriquecer a obra ou o livro e também a si mesmo,  fazendo sempre por compreender aquilo que lê e sentindo a necessidade de um maior aprofundamento.        

Para Borges, a cada uma  hora de escrita correspondiam dez horas de leitura. E assim se forja um escritor ou mesmo um verdadeiro intelectual.

Bem próximo dos seus 89 anos, o filósofo Alemão Jurgen Habermas, em entrevista recente ao jornalista Borja Hermoso para o EL PAÍS-Brasil, muito profundo, alerta-nos da impossibilidade da existência de intelectuais não havendo mais  bons leitores a quem alcançar com os argumentos esgrimidos e, já nos idos de 80 do século passado, o prof. Manuel Ferreira chamava a atenção para o fraco nível intelectual dos escritores  africanos de língua portuguesa. Na  leitura, na densidade, no grau de literariedade e nos argumentos da escrita criativa estava, certamente, o cerne da questão então apresentada com uma certa preocupação.

Um verdadeiro intelectual, em princípio, lê compulsivamente. Escuta atentamente e vive na grandiosidade de saber transmitir humildemente e sem o nefasto “contentíssimo fácil” (escrevendo ou falando) o seu conhecimento científico e literário da maneira mais simples possível. Portanto, ambas, a- cultura literária e a cultura cientifica- conformam aquilo a que vulgarmente chamamos de Cultura Geral mas, vimos não raras vezes entre nós, gentes que autoproclamando-se intelectuais e escritores,  conforme diz  o critico Eugénio Lisboa «…apenas ouvem – quando ouvem- “falar de” coisas de ciência, cujo sentido profundo de todo lhes escapa.».

É Eugénio Lisboa, grande mestre das nossas literaturas, no seu ensaio sobre as DUAS CULTURAS quem nos diz: «Uma boa passagem pelo universo da ciência, pelas exigências da ciência, pelo rigor e cautela, repito, que a ciência requer e recomenda, daria ao discurso literário de quem o produz, outra nitidez, outra transparência, outro sabor, – e outro valor…».

Lisboa sugere que, nos dias de hoje, quanto menor for o fosso ou o distanciamento entre as duas culturas melhor, em razão do ‘perigo iminente de incomunicabilidade’ e ‘devido à  aceleração da produção criativa, a ritmo quase alucinante’.         

Ao terminar, deixo aqui a transcrição de um pequeno extrato de uma longa conversa mantida com Lília Momplé.

Lília é uma octogenária escritora moçambicana que mesmo não se encontrando na mídia com a  vulgaridade habitual, procurei e encontrei nas terras do índico onde no Centro Cultural Brasil-Moçambique passamos uma arejada e amena tarde de conversa começando  por pedir-lhe que me falasse da existência de uma relação livro/leitura/escritor pois, tendo sido professora de profissão, muito ainda tem para nos ensinar.

[L.F.-Podemos falar agora da relação entre o escritor, o livro e a leitura?

L.M.-Sobre os livros há muita coisa para dizer. Para um estudante o livro é a única coisa que dá ginástica mental. Os livros, por exemplo, vacinaram-me contra a sedução do poder. Eu não sou nada apegada ao poder e uma das coisas que aprendi nas estórias que a minha avó contava era que os animais mais fracos sempre conseguiam vencer os animais mais fortes por causa da sua inteligência. É que naquela «fortaleza» dos fortes estava sempre mesclada um pouco de estupidez e isso sempre foi assim e continua sendo assim até hoje.

Veja que os nossos Ministros hoje são quase imortais ou pelo menos assim se sentem. E são as estórias e os livros que me fizeram estar sempre longe do poder, e sem apetência para a ostentação porque  os animais das estórias da minha avó eram sempre fracos mas acabavam por vencer os mais fortes pela sua inteligência.

A importância do livro é única. O livro é que nos dá a cultura geral que nos faz compreender seja lá o que for…

O livro é muito mais importante que a televisão. A televisão é uma torneira de qualquer coisa que a gente está ali a consumir  passivamente ao contrário do livro. O livro não. Com o livro temos que ser ativos somos obrigados a ser ativos. O livro obriga-nos a ir mais além e conseguir compreender o mundo e por isso muitos cientistas são leitores compulsivos porque foram ajudados através da leitura a querer saber muita coisa.

L.F.-…E a internet?

L.M.-A internet é outra torneira que só despeja. Na verdade um aluno que não lê -livros!-, é um aluno medíocre. Em matemática um aluno tem de saber ler as equações. Pode até saber solucioná-las mas não o faz porque não entende o que se lhe pede e isto acaba por acontecer em todas as disciplinas.

Para aqueles jovens que querem escrever, a condição fundamental para escreverem é ler. A pessoa que não lê não pode escrever. Não pode. É impossível. É necessário que tenhamos diariamente contacto com os livros ou com algo que preenche o nosso imaginário como por exemplo a literatura oral.].

 

 

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