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O schotch de João Paulo…

Foi em 2008 que João Paulo fixou a sua estrondosa voz na pauta musical e silenciosa do tempo. Um Bluesman não morre, porque a sua actividade é a de diluir a morte no blues e no schotch. João Paulo não cantava blues, usava o Blues, atiçava a catarse que há dentro do blues com a vara da sua voz. Sou viciado em blues. E por isso escuto João Paulo como quem ouve sem parar a pregação de um pastor que além de conhecer a escritura sagrada, vive-a.

Se todos acreditamos que o blues nasceu na região do delta do Mississipi, então, cá entre nós, refinou-se ali no “Goa”. O bluesman sentado sempre no “Goa”, com um schotch vigiando os ângulos duma mesa, um maço de cigarros deitado e uma caixinha de fósforos semi-aberta, mirava o seu interior e caía nas escadas do seu olhar como caíam os negros possuídos por “worksongs” nas margens do Mississipi. Eu tinha um privilégio. Via aquela figura, que depois virara meu ídolo, sem nada pagar. Via sempre aquele bluesman afinando a rouquidão da voz com uma, duas, três, quatro garrafas…

Hoje passo por Goa e ainda sinto o cheiro da sombra de João Paulo na primeira mesa. As paredes de Goa eram as camisas de João Paulo, por isso ainda têm marcas da sua existência em todos cantos. Os sovacos das paredes suam João Paulo.

O schotch era o mar de “Goa” onde o bluesman encalhava os remos do blues. Os seus cabelos enrolados era como se enrolassem os seus pensamentos. Seu blazer de napa cheirava suor de um boémio com a alma andarilha. Qual boémio? Ele era casa do blues. Vê-lo no Gil Vicente cantando era como se o blues saísse, um pouco de si, e espreitasse o exterior. Era uma caixa de ressonância humana de blues. Sua vida era um harmónico que ressoava, disfarçado, em cada batida do coração. Sua boca parecia uma gaita de sentidos em cada falar. Falava pouco e tossia quase sempre. Quando sorria os seus lábios ressecados de álcool esticavam-se como se quisessem rebentar.

Era difícil ver o Goa sem João Paulo. Aliás, não era João Paulo que ficava ali no Goa; era o Goa que se tinha instalado no bluesman. João Paulo era mais de Goa que dele próprio. Ali, sentado, via os movimentos do mundo através do borbulhar do seu corpo. E muitos passavam-no pensando que era uma figura cuspida pela rotação e translação da Terra. Seus movimentos eram mínimos: penetrar, com os dedos, uma caixinha de fósforos, coçar os seus longos cabelos, apertar pelos lábios o cigarro, virar para esquerda e direita sem nada olhar e mudar a posição dos pés exaustos de tanto andar dentro de si.

Quando punha-se a mergulhar a cidade o fazia com passos lentos e cheios de charme. Caminhava sem magoar uma mínima matéria de vento. Nos últimos dias, um pilar de gesso segurava-lhe uma das pernas. E o passo crescia entre o gesso e a muleta. Coitado de João! – dizia. João era um fantasma que povoava todas as casas de artes ao cair da noite.

Ninguém como João Paulo soube cantar “Baby Please Don’t Go” de Muddy Waters, “Where Did You Sleep Last Night” de Leadbelly (barriga de chumbo) e “Mazumana” de Fany Pfumo. A lista é enorme que pode não caber neste "Relógio di Oro". João Paulo, JP, não via o Blues como apenas como um estilo musical; o blues era, para ele, um estado de espírito, uma vida que só se respirava pelos pulmões da voz. E eu ainda via JP no “Goa”. Com o seu blazer unido de vários zippers e com botões brilhantes. O dia todo passava-lhe ali sentado.

 

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