O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

O filhinho da Alicinha ia completar seis meses de idade. Ela pensou que era já altura de mostrar o bebé aos familiares do falecido marido. Assim, propôs à Julia:

“Se tiveres tempo no Domingo poderias acompanhar-me à casa da minha cunhada Melita, a irmã mais nova do Martinho”.

“Não vejo problema, também preciso dum tempinho para descansar”, respondeu a prima, a descortinar uma oportuniadde para soltar os olhos dos panos e das agulhas da costura.

“Coitada, ela teve um problema tão grande que quase a levava a suicidar-se”, adiantou a Alicinha , a aguçar a curiosidade natural da prima.

“Heish!, nesta família do teu falecido marido só acontecem coisas estranhas. O que foi que aconteceu à tua cunhada?”, perguntou a Julia.

A Alicinha ajeitou o seio à boca do filho para amamentar, aconchegou-o melhor ao peito e desvendou os eventos principais que conduziram à desgraça em que vivia a cunhada Maria Amélia.

“Como disse, a Melita é a irmã mais nova do meu falecido. Uma mulher bonita, desejada por muitos homens, alguns até muito instruídos, de boas famílias. Embora não tenha estudado muito, era muito inteligente e conservada. Ia à missa e ajudava toda a gente. Quando chegou a vez de namorar rejeitou boas propostas de pedido. De tanto escolher foi cair nas mãos de um chingondo chamado Bernabé, vê lá só tu!, um nortenho que acabava de chegar a Lourenço Marques, depois de cumprir com a tropa. Nem sei onde se encontraram, mas a verdade é que nem demorou tanto e já estavam a namorar. Ele conseguiu alugar uma casinha de madeira e zinco ali na zona da Maria Caldeira, perto da cantina do Dias.

  Ela ia lá visitá-lo com muita frequência, sobretudo aos fins-de-semana. Conforme ela nos disse depois, o tal era agente da Pide-DGS e andava a fazer espionagem da população aqui nos bairros. Como sempre sucede com gente boa e honesta, ela foi enganada por ele e ficou de grávida. Toda a gente ficou de boca aberta. Nem dava para acreditar que uma moça tão recatada e ajuizada se deixasse cair nas garras daquele bandido. Ele nem quis responsabilizar-se por ela, nem pelas filhas gémeas que depois nasceram. O meu falecido é que teve que aturar tudo. Até chegou de brigar com o tal e até foi deixá-la lá em casa dele. Mas o tal nortenho mandou-a embora depois. E ela voltou para casa, cheia de arrependimento. Continuou a trabalhar e a sustentar as filhas o melhor que podia.

“ Quando as crianças completaram três anos ela achou por bem meter queixa no tribunal, para o sustento das miúdas. E conseguiu que ele fosse obrigado a pagar uma mensalidade. O homem andava furioso com ela e tudo fazia para fugir às suas obrigações de pai e às ordens do tribunal. Até que chegou aquele dia em que ela foi  exigir uma mensalidade que já andava atrasada. Ele vivia com uma moça chamada Sãozinha, filha de um assimilado do bairro Fajardo, toda vaidosa, alta, muito bonita., mas bem ordinária.

Quando a Melita lá chegou estavam os dois a matabichar. Era num Domingo e ela vinha da missa na Igreja da Missão de S. José. Mal sabia que aquele era o primeiro dia no inferno que passaria a ser a sua vida. Depois de pedir licença, ele mandou entrar. E começou aquela discussão em que ele a empurrou, chamou-lhe nomes feios…sua isto!..sua aquilo…Só visto! Então a nova mulher dele meteu-se no assunto. Brigaram e brigaram bem.

Então o tal Bernabé resolveu separá-las e sentar-se com elas para apaziguar. Aquela mulherzinha parecia afinal compreender a situação porque, conforme as palavras da própria Melita, aquela disse: “ Olha, mulher, nada tenho contra ti, vocês conheceram-se antes de mim, tiveram as tais filhas juntos, mas o que não admito é vires à minha casa num Domingo como este, perturbar o nosso descanso e exigir coisas que não deves. Como posso aceitar viver com essas miúdas se nem sou a mãe delas? Que mãe és tu que queres desambaraçar-te dos teus filhos e vir largá-los aqui diante duma estranha que eu sou? Tem juízo, mulher. Nunca vi uma mãe que quer abandonar os filhos, seja por que motivo for”. O caso é que a Melita não tinha razão. Já namoriscava por aí com um outro rapaz que lhe dizia que só poderia casar com ela se entregasse as filhas ao pai. A questão estava toda aí”.

“ E acho que o moço tinha a sua razão. Ninguém quer, nem gosta de ser obrigado a criar os filhos dos outros”, disse a Julia.

“ Se fosses tu o que farias, Julia? Isso é tudo muito complicado”.

“ Comigo seria assim: ou ficas comigo e com os meus filhos, ou nada! É pegar ou largar. Filhos meus não dou a ninguém”.

“ Isso nunca deu certo. Sempre há problemas entre o casal por causa de filhos doutros casamentos. Ainda vou-te contar muitas histórias acerca disso”, contrapôs a Alicinha.

“As duas mulheres não se entendiam. O Bernabé já nem sabia para que lado virar-se; se ficar a favor da mulher actual e perder as filhas, ou perder a mulher e ficar com as filhas; estava num beco sem saída.Um dilema na mente de um homem que queria assumir-se ao mesmo tempo um pai e esposo responsável. Tentou negociar uma solução: fazer as pazes e depois chegar-se a um acordo. Proposta rejeitada: ”…não entro em acordos com ninguém…se quiseres ficar com ela pois então fica…isso é um pretexto para conseguir uma entrada na nossa vida, porque terá de vir ver as crianças…e tudo vai recomeçar…comigo não vai dar!…”, era o ultimato da dona Sãozinha que assim virava o bico ao prego: “…o culpado maior desta barafunda, desta pouca-vergonha, és tu, sem tirar nem pôr! E para acabar com esta palhaçada quero esta mulher fora do meu quintal. E é já!”, a Sãozinha levantou-se do assento onde o marido a colocara. Agarrou a Melita pelos braços e começou a arrastá-la em direcção ao portão de saída. O marido interveio para tentar separá-las. Em vão, a São parecia ter cola nos braços. Uma barafunda dos diabos: trocaram bofetões e arranhões, e rasgaram-se as roupas. A vizinhança acorreu ao quintal e chegou a tempo de testemunhar aquele golpe fatal quando a Sãozinha enterrou os dentes no rosto da Melita e arrancou-lhe um grande pedaço do lábio superior. Cuspiu-o e esmagou-o com os pés, irremediavelmente conspurcado e contaminado,  triunfante e orgulhosa do seu acto.

De nada valeram as operações e os cuidados dos médicos no Hospital Miguel Bombarda. Fizeram enxertos e outras coisas mais, mas de nada valeram à Melita. Ela hoje anda sempre com um lenço no rosto, para cobrir os dentes que estão à mostra, desprotegidos pela cortina do lábio amputado”.

“ Essa mulher foi muito cruel. Se eu fosse a Melita matava essa dona São”, disse a Julia, enfurecida.

“ Mete muita pena ver assim uma mulher que já foi bonita, cheia de amigas e favorecida pelos homens. Hoje é uma sombra dela própria, a fugir de tudo e de todos, todos a evitarem a sua companhia como se ela fosse uma leprosa. Mete mesmo pena”.

“ O que foi feito das filhas?”, quis elucidar-se a Julia.

“ Sabes duma coisa? Nesta vida há pessoas com muita sorte: a tal São não pode conceber filhos, mas ganhou as gémeas. Agora todos encontram-se a viver no norte, em Vila Cabral, que é a terra-natal do Bernabé. A minha cunhada vive de vender peixe no bazar do Diamantino. Se lá fores e vires uma mulher que usa uma máscara de lenço na cara ficas a saber que é a minha cunhada, a Maria Amélia.

 

 

Apresentação do livro “Além do Túnel: Ensaios e Travessias“,

de Francisco Noa.  Kapikua Editora, 2020.

 

Quando lemos livros ensaísticos e literários, não raras vezes atemo-nos à forma, ao estilo, à perícia e deleite com que o autor se faz artífice das letras e palavras. Em seguida, exploramos à fundo a densidade e/ou complexidade dos assuntos e temas arrolados. Em todos estes quesitos, nesta obra, Francisco Noa superou-se.

Ao reunir textos escritos ao longo de sete anos em diversas circunstâncias em que transitou e papéis que vivenciou, nesta obra, com tão sugestivo título, “Além do Túnel: Ensaios e Travessias“, Noa impersona um prelúdio autobiográfico, não necessariamente centrado na caracterização de si, como individuo singular, mas através duma poderosa demostração da vastidão de capital intelectual e cultural que domina, evidenciado pela genica com que:

  1. i) mapea e analisa o campo das literaturas e das artes (em Moçambique, África e mundo afora;
  2. ii) analisa e interpreta temas e problemas que atravessam múltiplos domínios, Literatura, Artes e culturas, Educação, territorialidades, Identidades, ética e justiça, e Cidadania e ainda se banha no Oceano Índico, qual plataforma de líquidos sentidos;

iii) aciona e instrumentaliza referências teóricas e autorais diversas (locais e globais); com admirável rigor, invejável estilo de redação, sagacidade analítica e interpretativa.

O que Noa diz que Samora Machel fazia com a voz (impostação), o corpo (performance) e os gestos (imperativos), particularmente característicos de um exímio e carismático orador que era, ele fá-lo também aqui neste livro, com suas letras e palavras.

Desconfio sempre que dizem que uma determinada obra “é de leitura obrigatória”: Primeiro, porque é despropositado para a função e papel dos livros como ferramentas libertadoras, de suporte pedagógico e plataformas de aso à imaginação; Segundo porque a ideia de obrigatoriedade parece-me relativamente pouco fecunda e inspiradora, contraposta à de liberdade. Talvez por isso, não vá eu dizer que esta é uma obra de leitura obrigatória… mas que é daquelas obras que todos os que se interessam pela literatura, artes, culturas, identidades e educação deviam ter a liberdade e oportunidade de ler.

Pelo introito, já devem ter percebido que este não é um livro de fácil navegação, pela diversidade de textos que congrega, temas abordados, circunstâncias e/ou ocasiões em que foram escritos, excepto pela sistematicidade organizativa e creio editorial dos ensaios através dos quais Noa convida-nos para esta travessia ensaística e olhar “Além do Túnel”.

As três unidades temáticas que perfazem o livro: i) Travessias; ii) Literatura; e, iii) Educação; têm a utilidade heurística de organizar a vida “Além do Túnel”, mas são enganadoras pela inter-permeabilidade dos conteúdos, travessias e recorrências temáticas para além da consistência narrativa e analítica que o autor preserva a cada subtítulo. Um explicito exemplo do que digo, transparece no ensaio “Como implementar uma política do Livro em Moçambique” que integra a Parte I – Travessias, mas que facilmente poderia enquadrar-se sob a égide temática “Educação”, na Parte III, sem prejuízo da fluidez textual e temática. Esta complementaridade e possibilidades de intercambio de tópicos e temas acabam conferindo uma autonomia ao leitor para, querendo, subverter a ordem sequencial e explorar os ensaios ao sabor dos interesses instrumentais de leitura, deleitar-se, a bel prazer, com os mais de trinta ensaios, incluindo uma entrevista, que compõem a obra. Querendo, basta abrir e ler!

À rigor, no Capítulo das Travessias, o autor realça a importância das dimensões de política, indissociáveis de uma cultura de leitura. Mais do que estabelecer políticas de livros em si, enuncia todo um questionamento sobre a base dos défices estruturais de leitura em Moçambique, suas implicações e riscos de sustentabilidade para um país que lê pouco. Neste e em tantos outros ensaios, a maturidade intelectual e sociopolítica do autor possibilitam que enuncie propostas proactivas para dialogar e/ou responder ao que na obra surge como dilemas de desenvolvimento sociocultural e político.

Para Noa, a leitura é sem sombras de dúvidas,

“um dos principais veículos para a obtenção, alargamento e       sistematização do conhecimento em (…) todos os domínios    existentes, concorrendo, decisivamente, para alargar o horizonte das pessoas” (pp:20).

Este exemplo de avançar com interpretações e propostas de respostas interventivas fazem do autor e desta obra, em particular, um espaço de engajamento cívico e de avanço com propostas de governação e gestão, sem sacrificar a obrigatoriedade da compreensão e interpretação equidistante dos factos. Neste aspecto Noa vinca:

“A questão do livro de leitura não responde a imperativos particulares ou de curto prazo, mas sim a imperativos nacionais, aos destinos de um país, que decide comprometer-se verdadeiramente com o futuro, com o progresso e com a humanidade, no seu todo” (pp: 25).

Por esta obra, Noa revela-se um autor desconcertante, pela capacidade de, ele próprio, adoptar e assumir uma postura narrativa, que se distancia dos ensaios analíticos e interpretativos fortemente presentes na obra, para assumir o papel de encantador narrador que abusa de recursos linguísticos e estilísticos  para cronicar peculiares dimensões da vida. Sua paixão pelas viagens, portanto, pelas “travessias” presentes no título, transportam o leitor através, digamos assim… dum túnel do tempo para lugares de exuberantes memórias e registos.

Após visitar Luanda, pela pena do Noa, aquela cidade jamais será a mesma. A minúcia com que descreve Luanda é de deixar qualquer um estarrecido pela densidade das emoções que empresta, ainda que possa, como moçambicanos, deixar-nos enciumados.  Melhor dito, a descrição que faz sobre Lichinga, em Niassa, já de volta ao solo pátrio, assume os sabores dos alimentos, ricamente diferente do que descreve do que viu/viveu em Luanda. Para Noa,

“A vitalidade cultural desta urbe imensa [Luanda] e em franca    expansão, apesar de alguma desordem à mistura, que não deixa,     mesmo assim, de concorrer para um fascínio particular, não deixa     ninguém indiferente” (pp:29).

Os lugares nesta obra  assumem, efectivamente, funções vitais, muito para além de referências espaciais e geográficas, mas a forma de territórios prenhes de simbolismos e significações ou, como Noa bem diz, “paisagens socioculturais”, “etno-paisagens” que demandam uma “competência intercultural” para nelas navegar. A alusão que o autor faz ao bairro da Mafalala não poderia ser mais ilustrativo!

Esta linha narrativa, concorre para a complexificação da obra, potenciando um prazer de leitura quase cronista e poética, com intervalos de análise crítica e interpretativa de vários textos e temas literários, além de intervenções de cariz programático, como recorrentemente o faz quando aborda questões da educação, do ensino superior, destes “tempos líquidos”, dos multilinguismos, das trans-nacionalidades e das interculturalidades que perpassam os três grandes capítulos temáticos que compõem o livro.

As reflexões que o autor faz sobre a “A sociedade do conhecimento” evidenciam a sua preocupação e compromisso com a erosão de valores, com a ética e moralidade, numa conjuntura em que o volume e velocidade da informação difundida pelos diversos dispositivos mediáticos e eletrónicos à disposição subvertem a ordem social e normalizam a agressividade física e psicológica potenciando a conversão do que poderiam ser ferramentas e recursos de e para o conhecimento em algo diferente. Para Noa:

“Os massivos e multifacetados dispositivos tecnológicos à nossa disposição e os infindáveis conteúdos veiculados vão,      irreversivelmente, ocupando o vazio interior que se foi cavando       dentro       de cada um de nós. Enquanto, por um lado, se busca         frenética    e      obsessivamente a coincidência entre o facto e a sua         disseminação,     dominados que estamos pelo síndroma da       simultaneidade, por dentro,         assistimos à rápida desagregação de      referências, mais ou         menos       sólidas, e que têm regido a linha    evolutiva da condição humana” (pp:32).

Neste tom severo, o autor enuncia a importância de sistematização e híbrida apropriação de valores ditos tradicionais, conciliados com os avanços da modernidade simbolizados pelo advento das redes sociais por ele consideradas “um logro de gigantescas proporções” (pp:34).

Dizer isso não faz de Noa um autor pessimista e/ou fatalista, senão um profissional da educação e das letras que não abdica da missão propositiva de alistar e discorrer sobre “Dez Desafios para o Futuro”  realçando, entre outros, a importância da “não normalização do absurdo”, a contínua aposta na educação, cultura de trabalho e produtividade (muito para além do cabide de emprego em que a funcionalismo público, por exemplo se transformou). A questão da responsabilidade e penalização, demasiados caros aos actuais debates na esfera pública moçambicana, é também abordada neste livro, até porque,  na perspectiva de Noa:

“Não se constrói uma sociedade avançada, respeitada e respeitadora se     ela não penalizar, de forma correctora, educativa, sistemática         e exemplar, os transgressores, independentemente da sua origem, posição de classe, fortuna, crença ou ideologia”  (pp: 41).

Esta expressão de compromisso do autor com o país, tomado como estando em permanente (re)construção, atravessa sutilmente quase todos os ensaios, onde mais do que a função analítica e interpretativa o autor não se furta a fazer avanços propositivos para e sobre o devir. Logo após vincar os Dez desafios para o futuro, ao abordar a questão do turismo cultural, uma vez mais, Noa termina o texto legando “Cinco ideias para viabilizar o turismo cultural”, com propostas intemporais e que permanecem mais do que pertinentes  a qualquer tempo.

As viagens que Noa faz “Além do Túnel” acabam por revelar a candura de um autor generoso, pela magnanimidade com que apresenta e descreve “o outro”, seja esse outro seu contemporâneo, de gerações  pretéritas e/ou jovens das novas gerações, o que só é possível pelo profundo conhecimento e interface que estabelece com esse outro, seja através do contacto interpessoal ou através das suas obras. A forma como Noa retrata Ricardo Rangel, João Albasini, José Craveirinha, Aldino Muianga, Michel Laban, Jorge Amado e outros fascinam pela capacidade de celebrar o ícone (em cada um deles) através da interpretação do seu trabalho e feitos, sem desembocar em qualquer esvaziamento de propósito da evocação de tais figuras nos seus ensaios.

Além do Túnel é uma obra estruturada em ascendente espiral, contínuo crescendo, na medida em que a cada página e subtítulo devorado, surge o próximo subtítulo, que permanece, igualmente, engajador e de arrebatador interesse e atractividade.

A meu ler, o capítulo sobre Literatura é uma verdadeira cátedra. Em lugar nenhum jamais encontrei tão denso e profundo retrato sobre a literatura moçambicana, e não só. Neste capítulo, Noa problematiza e analisa as origens e matizes da nossa história e percurso literário, as continuidades e rupturas temáticas, as dimensões estéticas, ficcionais, sociopolíticas e emancipadoras… atravessando décadas, melhor dito, épocas dialogando com quase todos os autores proeminentes e iniciantes sem preconceitos ou juízos de valor.

O capítulo sobre literatura, soa a poiésis, um investimento de construção de uma cosmologia da literatura moçambicana e de outros quadrantes, onde o leitor é exposto e experiencia toda uma arqueologia e etnografia da literatura, embasada num sólido e profundo conhecimento sobre a constelação de autores, temas, escritos emblemáticos e seus significados enquadrados numa magistral análise da historicidade, em perspectiva de longa duração, o que só é possível por estarmos diante de um investigador sério, leitor multifacetado, profundo conhecedor do campo e escritor profícuo que Francisco Noa é!

Permitam-me que termine com a leitura de uma epígrafe, usada pelo autor:

Eu li um livro e a partir daí toda a minha vida mudou desde aí”.

Francisco Noa, citando Orhan Pamuk, escritor turco.

Aqui chegados, resta-me apenas dizer que li, aliás fui, “Além do Túnel” e, por conta destes “ensaios e travessias”, a minha compreensão sobre a literatura moçambicana (e não só) não é mais a mesma. Como eu, asseguro que deste portal que vai “Além do Túnel” que Noa hoje apresenta ninguém sairá incólume.

A advertência que ocorre-me deixar é que quem entrar “Além do Túnel”, corre o risco de tornar-se fanático, no melhor sentido do termo, é claro, assumindo esta obra como imprescindível instrumento de consulta, referência e deleite no campo da literatura, identidades e educação e cultura.

Não digam depois que foi por falta de aviso!

Grato pela atenção e muitos parabéns Francisco Noa.

 

Maputo, aos 15 de Dezembro de 2020

 

 

Mia Couto foi o vencedor do prémio de literatura Jan Michalski, estabelecido pela fundação com esse nome, na Suíça, em 2010. O vencedor deste prémio há dois anos foi Olga Tocarczuk, que viria a ganhar o Nobel de Literatura em 2018. O prémio foi atribuído à trilogia “As areias do Imperador”.

O júri foi eloquente na sua apreciação:

… a qualidade excepcional da escrita de Mia Couto, o modo como subtilmente mistura oralidade, e narrativa, cartas, fábulas, lendas, sonhos e crenças que, no conjunto, nos transportam para a realidade histórica de Moçambique colonial nos finais do século 19. Sem nenhum traço de maniqueísmo, o autor desenha com mestria o retrato de sedutores personagens que enfrentam a desumanidade da Guerra.

… o romance de Mia Couto é, ao mesmo tempo, uma saga histórica e uma narrativa encantadora, um poderoso retrato de uma fascinante mulher, uma história de amor e humanidade. Com um idioma inventivo que é renovado pela terra africana e inspirado na sua singular poesia, o autor moçambicano questiona crenças, cria pontes entre mundos e apaga fronteiras numa meditação universal sobre a alteridade.

É uma bela notícia, não só por mais um reconhecimento internacional do nosso grande escritor mas sobretudo pela consagração de uma obra de excepcional qualidade, a trilogia “As areias do Imperador” que, para mim, ocupa o lugar cimeiro de toda a vasta produção de Mia Couto, particularmente com o segundo e o terceiro volumes. À medida que os livros foram saindo – “Mulheres de cinza”, “A espada e a azagaia”, “O bebedor de horizontes” –, escrevi as minhas notas de leitura. Para os eventuais interessados, trago aqui o que escrevi na altura depois de ler o último volume da trilogia.

O BEBEDOR DE HORIZONTES

Mia Couto terminou a sua trilogia “As areias do imperador” com um belo romance, este “O bebedor de horizontes”, depois de a ter iniciado com “Mulheres de cinza” e continuado com “A espada e a azagaia”. Disse ele que a escrita desta trilogia tinha sido o maior desafio da sua carreira literária; para mim, superou o desafio de modo brilhante.

Os três romances giram à volta de Gungunhana, ele é o imperador, o Leão de Gaza. No primeiro volume, vemos o império no seu ponto mais alto, com a vitória sobre os chopes, aliados dos portugueses. Nesse primeiro romance, surge-nos a outra figura central da trilogia, Imani, mulher de apenas 15 anos, que, por ter aprendido português, vê-se num papel charneira nos acontecimentos que se seguem. Com Imani, conhecemos a sua família – a mãe, que se suicida, o pai, os dois irmãos que combatem em lados opostos numa guerra que, sendo colonial, foi também fratricida. Aparece o sargento Germano de Melo, um republicano integrado no exército da conquista colonial, homem de lealdades divididas e que acaba por superar os seus preconceitos quando se apaixona por Imani. E surgem-nos algumas outras figuras fascinantes, como a italiana Bianca, dona dum bordel em Lourenço Marques e que ama Mouzinho de Albuquerque; ou Bibliana, feiticeira com grandes poderes curativos. Gungunhana está ausente, o seu poder tirânico e cruel é a sua face visível.

Em “A espada e a azagaia” confrontam-se os dois poderes, o do imperador de Gaza e o do distante rei de Portugal, D. Carlos, com os seus representantes políticos e militares, António Enes, Mouzinho, Caldas Xavier, Aires de Ornelas. Neste livro, surgem Gungunhana, o Nkossi, e a sua mãe, a poderosa Impibekezane, que tentam manter o Estado de Gaza através de um possível compromisso com os portugueses, que Mouzinho de Albuquerque impossibilita, decidindo a destruição da capital, Mandlakazi, e a captura de Gungunhana. O centro do livro é o confronto final entre o exército português e o de Gungunhana e seus aliados, e Mia Couto dá-nos de forma intensa o clima de violência das grandes batalhas sem se deixar tentar pelo fascínio mórbido das descrições das carnificinas. As últimas páginas do livro, com Gungunhana prisioneiro e levado com algumas das suas mulheres / rainhas para a lancha de guerra, primeira etapa do exílio, e depois na própria lancha onde um destroçado imperador é confrontado por um Zixaxa altivo, são tão boas e com um final tão perfeito que me perguntei se o terceiro livro era necessário.

Felizmente, temos agora o terceiro volume, a história não ficaria completa sem este “O bebedor de horizontes”. Este terceiro livro é muito, muito bom, não sei se alguma vez a prosa de Mia teve um sabor poético tão marcado. A história, contada em trinta capítulos, é a do exílio, das perdas.

É a última vez que pisamos a nossa terra. É uma pena que caminhes calçada, Imani.

 Ao imperador, às sete rainhas que o acompanham, ao filho Godido, ao conselheiro Mulungo, a Zixaxa e às suas três mulheres, a Imani também levada, o deixarem a terra é insuportavelmente doloroso, e o livro transmite-nos esse sentir: são dez capítulos para a lancha com os prisioneiros percorrer o Limpopo até Xai-Xai e um navio os levar até Lourenço Marques, outros cinco capítulos em Lourenço Marques. Seguem-se seis capítulos com a viagem para Lisboa, cinco em Lisboa na prisão, três no exílio – Açores para os homens, São Tomé para as mulheres, para finalizar com um brilhante epílogo no último capítulo, já no tempo da nossa independência.

Gungunhana vai perdendo tudo no longo caminho: o império, o medo daqueles a quem subjugou, as ilusões sobre os portugueses, a virilidade, a dignidade, vai-se tornando um farrapo. Faz uma última profecia, uma invocação:

Virão buscar-me, Zixaxa. Os meus netos virão buscar-me.

É um contraste enorme com Zixaxa, o chefe Mpfumo, o homem que mantém a dignidade e que sobrevive.

O Ngungunyane vai tecendo cestos. Eu vou tecendo pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo de me vingar de Ngungunyane. O rei de Gaza entregou-me aos portugueses? Pois agora é o que eu sou: um português, um português de pele escura. Um português feliz que olha para quem o traíu e o vê infeliz e bêbado.

Nestes três romances, onde a narração está a cargo duma jovem chope, não se podia esperar que o retrato de Gungunhana fosse resplandecente. O império de Gaza foi o que foi, estabeleceu-se com a razão da força. E um imperador em queda e feito prisioneiro não é uma imagem de primeira grandeza. Outro grande escritor moçambicano, Ungulani Ba Ka Khosa, escreveu há cerca de trinta anos um outro livro essencial da nossa literatura, “Ualalapi”, onde Gungunhana também não é tratado com punhos de renda. Uma escritora portuguesa, Ana Cristina Silva, escreveu há uns anos um livro interessante, “O rei do monte Brasil”, narrando o exílio de Gungunhana nos Açores e o regresso de Mouzinho a Portugal até o suicídio deste em Lisboa. As fotos incluídas no Apêndice Final de “O bebedor de horizontes” não são um enfeite, permitem uma melhor leitura (talvez devessem ter sido distribuídas ao longo do livro).

E Imani? Grávida do sargento Germano, o saber português e a sua beleza (“Descrevi-te como a mais bela das mulheres”, escreve-lhe Zixaxa do exílio) funcionam como uma maldição. O imperador e as rainhas desconfiam dela, até por andar calçada, os portugueses querem que ela espie o imperador, um pastor evangelista, que também vai preso no barco para Lisboa com os seus fiéis, quer a sua ajuda para assassinar o imperador. Imani encanta quem a vê com os olhos abertos: o republicano Álvaro Andrea, comandante da lancha “Limpopo”, António Sérgio de Sousa, o comandante do navio que os leva para Lisboa, Bianca, a rainha Dabondi. Em Lisboa, sofre a perda maior, insuperável: o filho recém-nascido é-lhe arrancado para ficar com a avó, a mãe de Germano: A batalha, contudo, estava decidida mesmo antes de começar.

As mulheres são dominadas e a minha criança é-me arrancada dos braços. Dona Laura embrulha-a numa manta e afasta-se a passo acelerado. Desvanece na distância o choro do meu bebé. Até que escuto apenas a água tombando sobre o tanque. Daqui para a frente será sempre assim: um rumor de água será a única voz do meu pequeno filho.

 Imani é uma personagem fascinante, uma extraordinária criação literária, mulher de vários mundos, lealdades, identidades, depósito de poucas alegrias e muitas dores.

O final do livro é um regresso ao princípio da história e uma passagem do testemunho, uma herança entregue aos nossos escritores.

Estão aqui os meus escritos, estão aqui as cartas que guardei, está aqui toda a minha vida. Leva estes cadernos e publica-os se achares que merecem ser conhecidos.

É um pesado encargo este, de escreverem a nossa vida.

 

Álvaro Carmo Vaz

Escritor

…não há, de um lado, o abstrato e, de outro, o concreto.

Forma e conteúdo são da mesma natureza, sujeitos à mesma análise.[1]

Levi-Strauss

Este pensamento de Levi-Strauss continua sendo actual e atuante nos dias de hoje, pelo menos no cenário literário moçambicano cujas ilações chegam-me por via da mera observação e, haja humildade, pelo bastante incipiente envolvimento.

Na crítica feita por Levi-Strauss ao modelo de análise teorizado por Vladimir Propp no seu Morfologia do conto maravilhoso”, dentre vários aspectos destaca-se o que o primeiro considera “pecado” não só de Propp mas do Formalismo no seu todo ao pregar que a forma e o conteúdo devem ser absolutamente separados, pois somente a forma é inteligível, e o conteúdo não é senão um resíduo desprovido de valor significante. Contudo, para Levi-Strauss (e para o estruturalismo) esta oposição não existe: não há, de um lado, o abstrato e, de outro, o concreto. Forma e conteúdo são de mesma natureza, sujeitos à mesma análise.

Não caberia nesta redação, a busca possível de fazer sobre este aspecto contudo valerá termo-nos harmonizado a respeito do âmbito em que esta epígrafe foi extraída. Vem isto a propósito de um cada vez mais recorrente, e quiçá escaldante, debate que se materializa entre escritores e críticos literários, senão aspirantes a estes exercícios, que mesmo nestes tempos austeros conseguem, através dos meios virtuais, ensejo para trocar impressões em prol da literatura.

Como uma espécie de “servilismo à musa da história” para recordar as constatações de Derek Walkott no seu bastante peremptório e polémico artigo “The Muse of History” as percepções e credos crispam-se entre os binómios “forma e conteúdo” do ponto de vista do lado em que a balança da primazia deve pender. Há, por um lado,

uma postura de recriminação que vê no senso comum do que se apregoa como característica sine qua non da literatura uma forma de opressão. Esta foi uma percepção alimentada, sobretudo, pela vontade dos primeiros fazedores de literatura moçambicana (e não só) em forjar uma postura ética e estética própria e que conferisse uma autenticidade identitária.

Por outro,

revela-se uma visão que se mostra despida das amarras do “servilismo à musa da história” e está em buca de uma universalidade que é natural nos tempos que correm e devido a essa naturalidade, assume-se, também, a universalidade de um esteticismo já vencido, por exemplo, pela afirmação em epígrafe e, ainda mais, pela Desconstrução de Jacques Derrida.

A primeira postura defende a primazia do conteúdo na obra literária e a segunda, contrariamente, assume que a forma é que merece relevo tanto na criação assim como na recepção.

O que ainda está por considerar nesta conversa para podermos eliminar as assimetrias entre as âncoras e progressismos dos painelistas é que se está a abordar um assunto já teorizado, de tal forma que se ainda se mostra recorrente, das duas uma: ou há um desconhecimento desses consensos ou se está, em nosso meio, para engendrar um novo cânone a partir da posição que irá prevalecer.

Quanto aos consensos a que me refiro, diga-se que a primazia da forma em detrimento do conteúdo (na literatura) fora defendida, por exemplo, por Boris Schnaiderman ao afirmar que

ela (a obra literária) poderia conter esta ou aquela filosofia, reflectir esta ou aquela opinião política, mas, do ponto de vista literário, o que importava era o processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, jamais um factor externo.”[2]

Esta visão foi sendo contraposta por vários estudiosos dentre os quais destaca-se Teun Van Djik através da sua teoria geral da comunicação literária que compreende, em simultâneo, a teoria dos textos, a do discurso e a dos contextos literários.

Estas teorias surgem de um debate similar ao que ganha matéria nos dias de hoje (não só nosso meio) como forma revitalizar o compromisso com a arte da escrita que foi sempre forjada entre âncoras e progressismos. Sobre a âncora que nos apregoa à primazia da forma, Salvato Trigo no seu “Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira” alerta-nos que “é óbvio que tal posição só pode levar-nos a uma aporia teórica: na verdade, com ela perder-se-ia a dimensão relacional com que o texto se alicerça para se construir como síntese coerente e coesa de representação ou de figuração do mundo.”

No nosso caso, estas crispações tem toda razão de ser e remontam as discussões sobre o ser ou não ser duma escrita “panfletária” que marcou uma certa geração e que, pela antítese ou pelo contexto, talvez tenha sido peremptório que assim fosse.

Hoje, os anseios parecem outros e faz sentido que assim seja, porque há cada vez mais motivos que justificam a aversão pelos rótulos que se fazem a um escritor moçambicano, por exemplo, sobretudo por um olhar outside. Salvo o erro mas parece vincado, entre os “novos escritores”, o anseio de ser lido numa perspectiva universal e não nativista. Contudo, essa peleja parece querer sustentar-se naquele esteticismo já vencido contrariando o que Marc Rombault apud (op. cit.) acredita ser um dos desígnios de toda a grande literatura: ser o “barómetro da consciência moral dum povo”.

[1] Citação extraída da carta de Lévi-Strauss em reacção à “Morfologia do conto maravilhoso” de Vladimir Propp.

[2] TRIGO, Salvato. Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Voga, 1986;

Se queres um desejo,

insinua-te na minúcia

dos detalhes. Pega na pista

de uma palavra indomável

e segue-a delicadamente.

Heliodoro Baptista

 

“Ka Madaukane: da fome e do silêncio” e “Da pele e da caligrafia” são as partes que perfazem o livro de estreia de Otildo Guido, lançado em Novembro, um ano depois de vencer o Prémio Literário Fernando Leite Couto. Embora com alguns registos assimétricos, essencialmente, as duas secções da obra estão intrinsecamente interligadas, do ponto de vista temático e/ou estrutural.

“Na imensurabilidade da estiagem”, O silêncio da pele é um exercício poético cujo substracto é a conversão em verso o que se aproxima à realidade do poeta. Desde “Garimpeiros” (primeiro poema) a “O voo” (o último), a ciência da palavra de Otildo Guido aplica-se no desenvolvimento emocional, utilizando sotaques taciturnos para recitar a poesia como é: autêntica. Não obstante, o poeta imege no campo da óptica para sedimentar um universo, às vezes, aparentemente neo-realista, a partir do alcance da palavra, quer com a alegoria como recurso estilístico, quer com a sinédoque a imprimir nos versos esse carácter polissémico imprescindível.

Neste jogo, no caso de “Ka Madaukane: da fome e do silêncio”, geralmente, Otildo Guido estabelece sujeitos de enunciação que se abstraem da autoridade do “ego” no acto de tornar a poesia mais envolvente. Ao contrário da segunda secção, ali o entusiamo particular é raro, afinal os condimentos da escrita são mais exógenos do que endógenos. Quiçá, como consequência disso, nota-se algum paralelismo entre o leitmotiv e a necessidade de exprimir.

Os sujeitos de enunciação de Guido têm os pés muito assentes no chão. Eles vêem o que se passa à volta, sentem os cheiros e captam tantas outras sensações que os consente adjectivar os substantivos das coisas, claro, com o cuidado de não tornarem a poesia absolutamente “egocêntrica”.

Em parte, O silêncio da pele é uma escrita para os outros. Por isso, em “Ka Madaukane”, os sujeitos sabem ser ministros da palavra, servindo-a no equilíbrio entre a razão e a fantasia, sem que isso se torne uma espécie de culto à Nova Objectividade. Aqui, a escassez, a fome, a penumbra e as particularidades ingratas da existência importam. É por isso que o sofrimento está representado de diferentes ângulos.

Se, em “Ka Madaukane” interessa destacar a variação da escrita entre o impessoal e a pluralidade – “e tudo em nós, nessa luz,/ nessa água, nessa máscara/ dos dias, das noites/ e das palavras tenebrosas” (p. 35) –, em “Da pele e da caligrafia”, sim, os sujeitos não resistem a voltar a mira dos seus olhos ao próprio íntimo. “Da pele e da caligrafia” é a secção mais líquida, com frequentes referências à água (doce e salgada), aos rios, à chuva, às lágrimas ou aos oceanos. Esse interesse-líquido é muito peculiar: “Envolve-me de memórias,/ de cheitos e de culturas/ até que as minhas mãos de água/ se tornem magestosamente um rio” (p. 53).

Com a expressão da poesia mais singularizada, a enunciação dos sujeitos aparesenta-se realmente possessiva e com recorrentes alusões a um eventual “interlocutor” passivo. Isso torna a poesia mais melosa, urgente e pragmática: “Ama-me agora/ amanhã nao estarei// Beija-me as feridas/ e beba-me/ para que me esconda/ dentro da tua solidão” (p. 61).

É na segunda secção que, como diria Heliodoro Baptista, “os sujeitos insinuam-se na minúcia dos detalhes”, definem o que são, o que almejam, e ainda manifestam encantos e projectam musas, afinal a busca pela complementaridade é crucial. É mais ou menos isto O silêncio, de Otildo Guido, um verdadeiro grito da pela.

 

Título: O silêncio da pele

Autor: Otildo Justino Guido

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 13

Hoje gostava de começar por realçar dois pormenores interessantes que recentemente estabeleceram pontes entre a minha juventude em LM (Maputo), por onde comecei esta série de artigos, e o presente aqui na Universidade de Macau (UM). O primeiro, tem a ver com o Michel Vaillant, uma das minhas séries favoritas de banda desenhada, criada precisamente quando nasci (1957) pelo francês Jean Graton (agora com 97 anos), e da qual adquiri vários livros entre os 12 e os 17 anos. Macau é famoso pelo seu Grande Prémio de Fórmula 3, com um traçado semelhante ao do Mónaco e cuja 67a. edição se realizou recentemente. Decorria o ano de 2018 quando o filho Philippe Graton, que edita actualmente o livro, veio até Macau e me falou na ideia de lançar o 77o. livro da série, com uma história sobre o GP local 35 anos depois da primeira, “Michel Vaillant – Encontro em Macau” de 1983. Como tinha ouvido falar do meu laboratório através de um amigo comum (Ricardo Pinto – Director do Jornal Ponto Final) gostava de incluir na aventura umas cenas de uma trama de espionagem electrónica no meu laboratório, e assim ficámos “imortalizados” (!) nuns quadradinhos da história apresentada em Novembro de 2018 e designada por “Michel Vaillant – Macau”, editada em 3 versões, Português, Chinês e Inglês. Foi um momento inesquecível até porque o livro autografado pelo autor foi oferecido (na minha ausência) à minha neta (Gabriela) no dia do lançamento. O segundo, está relacionado com a minha faceta de filatelista iniciada também em Moçambique quando coleccionava os selos das cartas que chegavam de Portugal, colecção que agora se espalha aos milhares por dezenas de álbuns com selos e blocos novos e usados, com carimbos do 1o. dia, etc… aproximando-se o 20o. aniversário da criação da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) a 20 de Dezembro de 2019, e uma vez que a bandeira da Região tem uma flôr-de-lótus, verifiquei no princípio do ano que um dos nossos chips electrónicos, publicado numa revista científica de topo da área, o IEEE Journal of Solid-State Circuits, tinha uma implantação muito semelhante a um corte de uma raíz da flôr-de-lótus. Propus então aos Correios de Macau que o chip aparecesse num selo/bloco comemorativo dos 20 anos, o que foi aceite. Assim a 20 de Dezembro, após a criação artística de um especialista, a colecção do aniversário da RAEM surgiu com o selo do bloco principal contendo o nosso chip e alguns esquemáticos do circuito destinado a aplicações na rede de 5G. Tendo assim a nossa Electrónica ficado perpetuada na “História Filatélica de Macau”!

Macau, é uma Região de 31 km2 com 1 península, 2 ilhas (Taipa e Coloane) e um enclave (1 km2) na ilha da Montanha (Hengqin), na China, com a UM apenas, murada e ligada à Taipa por 1 túnel sub-aquático. Uma característica local são as suas 5 pontes! A mais famosa de 1974, um dos ex-libris locais (aparece no logo da UM), é designada por Ponte Nobre de Carvalho (antigo Governador), projectada pelo Engo. Edgar Cardoso, com o formato de um Dragão, entre Macau e a Taipa. Outras duas em paralelo e uma quarta, designada por Flôr-de-Lótus entre a Taipa e a ilha da Montanha (Hengqin), e por fim a Ponte em Y, Hong Kong-Macau-Zhuhai, que é a mais longa travessia marítima do mundo com 55 km! Para além destas 5 pontes físicas em betão, Macau foi igualmente definido pela China como uma plataforma (ou seja, mais uma ponte, esta intangível) para os países de língua portuguesa. A sua universidade pública principal, a UM, tem cumprido exactamente essa função ao longo dos tempos como irei elaborar de novo com mais alguns episódios que o demonstram.

 

Em 1998, quando do primeiro encontro em Macau da Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), presidiu ao mesmo o Primeiro Ministro, Engo. António Guterres (estudámos ambos no mesmo departamento do Técnico), quando o recebi e nos deslocámos do parque de estacionamento até ao auditório principal da universidade passámos por um cordão de alunos dos países africanos de língua portuguesa, que aqui estudavam, ele foi cumprimentado efusivamente por todos, e perguntou-me: “Mas isto não é uma reunião de Reitores?”, eu respondi: “Sim, eles estão lá dentro à sua espera, estes são nossos alunos”, ficou bastante surpreendido por serem tantos alunos de África!

Em 2000, Timor-Leste passava ainda um mau bocado antes da independência, quando um grupo de 10 jovens timorenses, na sua maioria familiares do pároco local também timorense, Francisco Fernandes, mais conhecido por “Padre Xico” (nosso mestre em português), chegou num sábado ao aeroporto de Macau, vindo da Indonésia. Como não tinham documentação não podiam entrar na Região. Recebo então um telefonema dum funcionário do Governo relatando o facto e perguntando-me se eles eram alunos da UM, porque se fossem poderiam entrar, caso contrário seriam deportados… pedi um tempo para verificar, telefonei à nossa Directora do Departamento de Português, Profa. Maria Antónia Espadinha perguntando-lhe se sabia de alguma coisa, ficou de falar com o Padre Xico, o qual lhe disse que sim e que estava à espera que eles chegassem e pudessem estudar na UM… face a esta situação desesperada, assumi a responsabilidade e respondi ao funcionário, que sim que eram nossos alunos, e assim entraram os 10 em Macau. Possuíam apenas documentos da Indonésia, alguns papéis de liceus em indonésio (tinham apenas o equivalente ao 10o. ano…), não sabiam falar Português, e apenas alguns falavam pouco Inglês. Tivémos de criar cursos especiais de 2 anos para aprenderem Português, Inglês e outras matérias ao nível do 12o. ano para os podermos admitir depois na UM. Mas a universidade teve de suportar tudo no início, alimentação, alojamento, propinas, etc… e a situação económica local na altura não era famosa, pelo que corríamos o risco de não os conseguir financiar durante muito tempo. Mas, em 2002, numa tarde, a minha secretária diz-me: “Está ali fora um senhor que diz ser o Cônsul da Finlândia, em HK e Macau, e gostava de falar consigo”. Recebi-o, fiquei espantado pois apesar de estar de fato e gravata trazia uma mochila às costas. Apresentou-se como Pauli Makela, estava baseado em HK mas tinha vindo nesse dia a Macau, e disse que sabia que Timor-Leste ia ser independente em breve, e como eu era o Vice-Reitor português, gostava de ver comigo se tínhamos alunos timorenses e se tinham necessidades financeiras, pois a Finlândia estava interessada em ajudá-los a completar os seus estudos. Pensei para com os meus botões, isto é um milagre, este sujeito só pode ter caído do Céu! Mas, assim foi, a Finlândia pagou tudo aos 10 jovens a partir desse momento, não foi fácil, a progressão foi lenta, alguns foram desistindo, mas o Cônsul dizia-me sempre: “Mesmo que consigamos graduar só 1, já é importante”! E conseguimos, em 2008, 2 licenciaram-se, em Comunicação, o Francisco Gusmão, e em Direito, a Zulmira da Silva. Na altura, já o Cônsul era Embaixador da Finlândia em Roma e, como nós, ficou radiante com o resultado. Dois pormenores interessantes, a Zulmira, é actualmente Juíza em Díli, e visitou-nos recentemente nesse âmbito, por outro lado, o Cônsul finlandês era uma pessoa única, aparecia de vez em quando no meu gabinete, quando vinha a Macau, e lembro-me uma vez de lhe perguntar: “Tem carro? Se precisar o meu motorista leva-o onde fôr preciso.” Foi a única pessoa que sempre recusou tal oferta dizendo: “Não se preocupe, eu apanho um táxi”! Realmente, inacreditável.

Foi, assim, com uma enorme satisfação, que em 2016, como Presidente da AULP, presidi ao primeiro encontro da Associação, em Díli, organizado pela Universidade de Timor-Leste, pelo Reitor, Prof. Francisco Martins, de quem sou amigo. E, num momento especial em que Portugal se qualificou para as meias-finais do Europeu de Futebol, o jogo acabou perto das 5h da manhã e as ruas encheram-se de motorizadas com jovens que gritavam: “Porto”! “Porto”! Impressionante o carinho que o povo timorense demonstrava pela equipa portuguesa. Mas são inúmeras as estórias ao longo de mais de 28 anos como professor, e 23 anos como Vice-Reitor na UM, que envolvem a relação com os alunos e também professores dos países de língua portuguesa, nomeadamente os alunos africanos. Foram por isso dois momentos altos na minha vida, um quando recebi a Presidência da Associação, da Universidade Lúrio, do Reitor Jorge Ferrão, em 2014, e o outro quando em 2017 entreguei a Presidência à Universidade Mandume Ya Ndumefayo do Lubango, em Angola, ao Reitor Orlando Mata, no encontro anual em Campinas, no Brasil, e no qual entregámos os prémios Fernão Mendes Pinto (autor da “Peregrinação” que passou por Macau) às melhores teses de mestrado e doutoramento de 2015, 2016 e 2017, prémios estes que propus e foram financiados pela Fundação Macau.

Para concluir, e num ano atípico com uma pandemia global, não queria deixar de referir, que pensando nas necessidades dos países africanos para fazerem face à mesma, surgiu-me a ideia em meados de Abril, e falei com uns colegas do meu laboratório e um outro colega da UM, que preside ao Instituto do Desenvolvimento e Qualidade – IDQ/Macau, Prof. Tam Lap Mou, e decidimos projectar 2 ventiladores para apoiar doentes com Covid-19, que foram concluídos em Agosto com tecnologia inovadora e completamente local, com custos muito menores que um ventilador normal no mercado. Foram entregues simbolicamente em cerimónia presidida pelo Reitor da UM, Prof. Yonghua Song, em Outubro de 2020, aos Cônsules de Angola e Moçambique em Macau, e estão neste momento a caminho de Maputo, e do Lubango, tendo sido doados à Universidade Pedagógica e à Universidade Mandume. Poderão ser utilizados em doentes reais, mas a ideia é igualmente doar a tecnologia e treinar engenheiros e médicos locais no desenvolvimento de novos ventiladores, o que deverá acontecer na próxima fase do projecto. Em tempo de pandemia e de dificuldades em todo o mundo, Macau e as suas instituições, UM e IDQ-Macau, cumpriram mais uma vez o seu papel de Ponte para a colaboração entre 2 continentes!

 

Rui Martins.

Macau, 1 de Dezembro de 2020.

P.S.- A praça principal de Macau é o Leal Senado, onde no edifício com o mesmo nome, se encontra uma placa com o título “Não Há Outra Mais Leal”, concedido pelo Rei D. João IV à cidade em 1654, pois foi o único local que não se rendeu aos Filipes de Espanha. Lembrei-me disto pela data de hoje, dia da restauração, em Portugal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A abertura do País para o multipartidarismo propiciou, sem alguma margem para dúvidas, um ambiente favorável à existência humana, nas suas múltiplas dimensões. E, sendo o homem um ser dotado dessa capacidade de pensar e expressar-se, em muito sairíamos a ganhar com as garantias constitucionais de liberdade de expressão e direito à informação. Todavia, o sujeito homem-moçambicano que devia gozar dessa liberdade de expressão e do direito à informação labuta na contramão, no sentido de se aprisionar nas paredes da sua própria cabeça.

Não havendo dúvidas de que, entre muitos dos nossos actores, a existência política derive de aspectos gastronómicos, os circuitos de pensamento nacionais parecem arregimentarem-se, por necessidade que suplanta o acto de pensar, à dois principais pólos de pensamento. Esses núcleos, bastas vezes, trazem a imagem de leões e hienas que se digladiam em torno de uma carcaça de búfalo. Na arrancada de cada pedaço, salivam impropérios do tipo lambe-botas e/ou antipatriotas. Essas qualificações são arremessos mútuos, feitos de olhos vendados pela fúria, sem admitir um meio-termo. Quem fica por cima do muro deve cuidar-se, pois pode ser “abatido em fogo cruzado”.

Ao longo dos tempos, marcados pela marcha democrática, com o ponto de partida o ano de 1994, debatemo-nos em busca de ar para respirar, por baixo da lama, presos a uma rede tecida pelos fios da nossa própria intolerância política e jornalística. Nisso a liberdade de expressão irá sempre pagar a mais alta das facturas. Se de um lado temos os partidos da oposição e o partido no poder, por outro temos os órgãos de comunicação, coadjuvados pelas redes sociais, tolerantes até onde lhes convém. Porque a mídia não deixa de vestir cores partidárias, estudos científicos atestam tal facto, a intolerância ganha contornos de inimizar o pensamento, com cada uma das partes a julgar-se exclusiva como detentora da verdade. Mas, essa verdade é relativa, no que geralmente entendemos significar a não existência de verdades absolutas, nem vindo da imprensa, nem vindo dos partidos políticos.

O império da intolerância que ora grassa pelo País torna-se visível nas páginas dos jornais, nas telas das televisões e nas redes sociais, sob patrocínio ideológico do poder político e das organizações não-governamentais e afins. Ora, quando nos referimos ao poder político entenda-se o partido no poder e os partidos da oposição, pois cada um, na sua esfera de influência exerce um certo tipo de patrocínio à intolerância que amordaça o pensamento e a consequente liberdade de expressão.

Hoje, encaramos a subtileza e sofisticação de métodos de mordaça, através dos quais os políticos ou seus adeptos e a imprensa ou seus públicos ajuízam e votam qualquer indivíduo que exterioriza o seu pensamento ao lugar do vitupério: lambe-botas ou antipatriota.

Como se pode constatar nas suas páginas, apesar de ter lutado desde a sua origem  pela liberdade, a nossa imprensa, face a interesses de múltiplas dimensões, acaba por se comportar como um canal por onde flui a lama da intolerância, o cerceamento de tudo o que indica um pluralismo de ideias e a própria liberdade de expressão,  que paradoxalmente, muitos jornalistas se arrogam defender.  Uma questão ficaria a girar no ar: quem, senão a própria imprensa e as redes sociais, projectou o arremesso de expressões vexatórias do tipo lambe-botas ou antipatriota?

Esses dois termos funcionam agora como autênticas gazuas, que extirpam quaisquer iniciativas de pensar sobre assuntos de interesse público. Com o uso desses termos nem é tolerado o olhar de quem está por cima do muro. Se a sua opinião favorece, de algum modo, um sector da política activa, ou é lambe-botas, ou será antipatriótico. Em Moçambique todos clamamos pela liberdade de expressão, mas condicionando-a a vigorar até onde nos convém.

A ridicularização subjacente em lambe-botas, ou antipatriota revela-se hoje o principal empecilho a liberdade de expressão. Paralelamente ao método de mordaça passado na mídia, a valer-se da adjectivação acima referida, floresce a maledicência do circulo académico. Na academia cultiva-se outro tipo de rotulagem, entre sociólogos, historiadores, juristas e filósofos menos dotados: a maledicência.

Quando presentes nalgum debate, a colmeia de académicos menos dotados, valer-se-á da rotulagem, abandonando o debate de ideias para passar a chamar o outro de drogado, marginal, confuso ou maluco; impera aí a soberba da douta-ignorância e arrogância.

Este estado de delírio social dever-se-á ao despreparo dessa estirpe, ao longo da vida, da cultura de debate, de troca de ideias. Agora não serão simplesmente os títulos académicos que resolverão o défice de fluidez de ideias ou capacidade de retórica, falta essa que os conduz à bazarização do debate. A título de exemplo, não é estranho que um advogado, mesmo ao jeito do mestre Pathelin, a meio de uma discussão de ideias, desate a rotular a contraparte, tolhido por alguma miopia até intelectual, a bufar repetidamente termo drogado, drogado, drogado?

A terminar, e porque a generalização é quase sempre madrasta, ressalvar é de louvar o trabalho dos jornalistas e académicos, e até seguidores políticos, que apesar de tudo, ainda mantêm o distanciamento ético necessário desse extremismo, contrário à própria liberdade e autonomia do pensamento.

 

 

A revisão do Código Penal Moçambicano foi uma boa oportunidade para rever o quadro legal penal que regula a situação das crianças em conflito com a lei, suas condições e tratamento. Entretanto, o Código Penal revisto, que entrará em vigor a partir de Dezembro de 2020, continuará a estabelecer que a responsabilidade criminal em Moçambique comece aos 16 anos de idade e que a pena máxima aplicável a uma criança entre 16 e 18 anos de idade continuará a ser de 8 anos de prisão. Estas eram as mesmas disposições do Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores do Ultramar (o Decreto n° 417/71 continuou em vigor até à promulgação da Organização Tutelar de Menores, Lei n° 8/2008) e aquelas previstas pelo actual Código Penal de 2015.

As normas respeitam as recomendações do Comentário Geral n. 24 do Comitê dos Direitos das Crianças. O Comentário estabelece que nenhuma criança em conflito com a lei, abaixo de 16 anos de idade, deve ser privada de liberdade. Entretanto, não há normas que especifiquem a duração máxima de prisão de crianças. Mas, os padrões internacionais preveem que a prisão deve ser usada como medida de último recurso e sempre para o tempo mais breve possível. A duração de 8 anos de encarceramento pode ser prejudicial para o desenvolvimento de uma criança, com consequências que podem ser projectadas na idade adulta. As preocupações alarmantes sobre o perfil das crianças encarceradas e suas experiências com o sistema de justiça criminal, mostradas por pesquisas nacionais conduzidas nos últimos cinco anos, deveriam ter sensibilizado o legislador acerca do uso e impacto da prisão, nas crianças.

A prisão e o encarceramento são devastadores na vida das crianças. Os depoimentos de crianças que participaram do Estudo Global das Nações Unidas sobre Crianças privadas da Própria Liberdade publicado em 2019, afirmam:

Eu me senti como se tivesse sido punido além das minhas possibilidades. Eu queria sair de lá. Eu senti que queria morrer. Você está sozinho e não tem nada além dos seus pensamentos, começa a falar consigo mesmo. Isso muda você, dói, deixa você deprimido, dá vontade de agir. Te deixa com raiva. Não há reabilitação na prisão.

Em Moçambique, há cerca de 500 crianças nos estabelecimentos penitenciários (SERNAP 2019). O número de crianças detidas nas esquadras da polícia é desconhecido e, portanto, esse número não é representativo de todas as crianças privadas de liberdade, no país. Entretanto, se o número de crianças continua a diminuir – de 1.035 em 2017 para 644 em 2018 – há ainda muito por fazer sobre a justiça infantil, como mostrado pelas pesquisas dirigidas entre 2014 e 2019, nas cidades de Maputo, Beira e Nampula.

Essas pesquisas, mostraram os perfis socioeconómicos das crianças encarceradas e as suas experiências com o sistema de justiça criminal. As crianças entrevistadas eram, na maior parte dos casos, crianças órfãs, muitas vezes de ambos progenitores. Viviam com avôs ou com tias, nas zonas suburbanas das cidades. Com níveis de escolaridade baixas, nunca acima da 4° ou 5° classe, as crianças, todos meninos, iam à cidade para vender, muitas vezes, amendoim, outras vezes para fazer pequenos biscatos. A falta de uma estrutura familiar e social que possa acompanhar o desenvolvimento físico e psíquico e ajudar a desenvolver a personalidade, os relacionamentos emocionais com outras pessoas, assim como habilidades educacionais e até talentos das crianças, afectam, desproporcionadamente, o futuro delas. Sem este suporte, as probabilidades de encontrar companhias negativas e cometer ofensas criminais são maiores que quando se tem o apoio de pais e familiares, ao redor.

As experiências das crianças entrevistadas trouxeram à luz as fraquezas de um sistema social e de justiça criminal, no país. A falta de protecção social de um grupo já socialmente frágil acelera as probabilidades das crianças de adoptar comportamentos desviantes. Ainda mais, a aplicação do encarceramento por parte de juízes, para punir ofensas cometidas por crianças em conflito com a lei, deixa este grupo ainda mais desprotegido e frágil, não apenas durante o cumprimento da pena de prisão, mas também depois de ser restituído à liberdade.

Como demostrado por pesquisas, as crianças são detidas pela Polícia, na maior parte das vezes por furto, mas também por uso de drogas, actividade sexual entre adolescentes, entre outros. Dados que confirmam as tendências internacionais demostradas pelo Estudo Global, sobre os chamados “crimes de status”.

A maior parte das crianças entrevistadas permanece sob custódia policial ilegalmente, por mais de 48 horas e sem condições condignas de tratamento policial. Depois da legalização da prisão, elas são transferidas para Estabelecimentos Penitenciários de adultos.

Nos estabelecimentos permanecem em prisão preventiva até que apenas algumas sejam transferidas para o Estabelecimento Especial de Recuperação  Juvenil de Boane, o único no país para crianças/menores condenados a uma pena de prisão efectiva. Os outros continuam nos estabelecimentos para adultos. Se em alguns desses estabelecimentos, as crianças ficam em pavilhões separados dos adultos, em outros, uma separação efectiva e constante é impossível. A superlotação e a inexistência de infraestruturas novas que possam permitir o respeito dos padrões internacionalmente reconhecidos são os maiores desafios do sistema penitenciário no país. Estes não apenas limitam e ou impossibilitam a falta de separação entre reclusos, mas também afectam todos os outros direitos humanos dos reclusos, do acesso a uma alimentação diária condigna ao acesso a saúde e assistência jurídica.

Sem possibilidade de aceder à uma efectiva representação legal que responda às suas necessidades, as crianças vivenciam o funcionamento do sistema de justiça criminal, seus procedimentos complexos, linguagem e terminologia longe de ser facilmente entendida. Em sede de julgamento, as crianças não entendem quem é o seu defensor e obedecem apenas às ordens dos juízes: falar, sentar e ou levantar.

Dentro dos estabelecimentos penitenciários, apenas as crianças condenadas têm a possibilidade de aceder as actividades educacionais e professionais, enquanto as preventivas não o podem fazer, devido a sua instável situação processual, e impossibilidade pela administração penitenciária de saber quanto tempo lá permanecerão. Esta prática vai contra as Regras Mínimas de Tratamento dos Reclusos – Regras de Mandela – e altamente discriminatória. Até prova em contrário, o preventivo goza da presunção de inocência e como tal, deve ter acesso a todos os serviços que a administração penitenciária prevê.

Entretanto, as crianças condenadas também não são sujeitas a um tratamento individualizado de reabilitação e reinserção social. Nem em todos os estabelecimentos penitenciários é possível frequentar uma escola para continuar o processo educacional. No Estabelecimento Especial de Recuperação Juvenil de Boane não existe uma escola que as crianças possam frequentar enquanto cumprem a pena. Existem algumas actividades ocupacionais em vários estabelecimentos penitenciários, mas estas não são direcionadas às crianças, no específico. A impossibilidade de continuar um processo educacional e formativo terá um impacto severo nas vidas das crianças, seu desenvolvimento e futuro. O cenário comum é que as crianças passem muito tempo no ócio, durante o cumprimento da própria sentença, contando os dias que faltam para sair.

Quando na fase final de cumprimento da sentença, nem sempre a administração penitenciária tem a capacidade de recriar o laço com uma possível família que está a espera da criança, fora do estabelecimento penitenciário. Durante a pesquisa de 2019, foi compartilhado que vários são os casos em que, uma vez em liberdade, não tem família a espera da criança, porque a única avô que cuidava dela antes de ser presa, faleceu, por exemplo. Em outros casos, as famílias rejeitam as crianças assim como a comunidade de onde a criança vinha. Não há, muitas vezes, para a criança, uma outra alternativa além daquela de viver na rua. Outras vezes não é improvável ver a criança voltar a barra do tribunal, talvez por ofensas mais sérias do que aquelas cometidas na primeira vez. É um circulo vicioso que não prevê uma via de fuga e as crianças transformam-se em vítimas de um sistema de justiça e um sistema social incapaz de protege-las e apoiar.

Queremos eliminar o número de crianças encarceradas e reduzir substancialmente o número de menores que entram nos estabelecimentos penitenciários. Precisamos afastar esse grupo do sistema de justiça criminal. O afastamento deve ser aplicado em todas as fases de justiça criminal. A Polícia não devia deter uma criança, mas encaminha-la a um serviço de assistência social. Se detida, o juiz de instrução criminal não devia aplicar prisão preventiva a uma criança, mas alternativas a prisão preventiva, envolvendo um serviço social no caso de não existir uma família que possa cuidar da mesma. O juiz da causa não devia aplicar uma sentença de prisão efectiva à uma criança, mas uma alternativa à prisão, envolvendo serviços de natureza social que possam apoiar a criança. Se estas alternativas à prisão existem, devemos usa-las com mais frequência e mais eficientemente. Um efectivo sistema social que olhe à criança em conflito com a lei como um grupo vulnerável que precisa de apoio, deve ser criado. Tudo isso requer instrumentos sofisticados de cooperação interinstitucional entre o sistema de proteção social, educação, sistema de saúde e sistema de justiça. Um sistema abrangente de proteção da criança em conflito com a lei é possível com a criação de políticas de prevenção criminal e intervenção precoce. Acima de tudo, há uma grande necessidade de apoiar famílias, comunidades, escolas e sistemas de bem-estar infantil para lidar com toda a criança, incluindo as crianças em conflito com a lei.

Narra-se que, num ano atípico, assolado por catástrofes sanitárias e políticas, houve uma mudança de paradigma em vários campos sociais. As pessoas já se sentiam menos juntas, a solidariedade já se tinha enfraquecido, ninguém mais pensava noutro! Até porque a realidade da época dava menos alternativas para o exercício do altruísmo.

Nessa era, reaprendeu-se as técnicas da agricultura de subsistência, mesmo nos quintais nobres, o contexto não dava alternativas, ninguém se podia opor, era evidente o new dilúvio.

Quando em conversas com o meu avô, Gaiéthi, dissera-me que não haveria arca capaz de salvar esse povo.

Mas por quê, avô?

Meu neto, não se pode pedir algo a quem já não tem! Não pode clamar por ajuda quem já dispensou todos os anjos. Não pode, meu neto, não pode! Vou dormir.

….! Foi, sem dúvida, confuso e inquietante ouvir essas coisas do avô. Não sei, ao certo, o que ele quis dizer, mas senti um ar de decepção e descrença em algo actual, será o nosso mundo? Estará ele a preferir o então a o presente?

Nessa era, os políticos já se viam afogados nos próprios discursos, é que as falácias tinham menos vida. Deus pode ter investido na velocidade das respostas, elas não tardavam, a noite que nos tomava como puros, lutava com a manhã que nos tornava infectados assintomáticos. Ninguém concordava com isso, mas ninguém podia ser ouvido, o distanciamento impedia o soar alto da voz. O uso da máscara se tornou maléfico depois benéfico, a ida à escola imitou, a ida à igreja imitou. Ninguém perguntou os porquês. Todos imitamos!

O discurso do senhor doutor era incompatível com o de sua excelência. O tema era o mesmo, os objetivos eram opostos.  São acontecimentos que a mim muito tocaram e moveram para épocas e sensações variadas. Mas, isso não era o cúmulo, não era!

Há uma época em que houve elevação dos até então marginalizados. Parte Coco viu, nesse cenário, uma oportunidade para ensaiar a sua chegada. Ninguém se manteve indiferente, Parte Coco arrasou com todos.

A sua narrativa épica se desenrola no bairro da Manga, na Beira. A priori, Parte Coco é um cidadão comum e respeitoso. Contudo, não diz o mesmo quem o tenha encarado nos olhos duas vezes, isso acarretava dívidas pagas em duas modalidades: dinheiro ou porrada!

Ele não apresentava outros critérios. Era firme, não só no andar, nas negociatas também. Ninguém se atrevia a olhá-lo profundamente sem ter pujança económica. Afirma-se que pode ter sido o único homem da Manga que mais auferiu com a sua imagem, pelo que o seu olhar poderia lhe render o sustento de cada dia.

Ninguém tinha coragem de o contrariar. Ninguém o denunciou, quando violou as mulheres. Nenhum polícia o apreendeu, quando espancou os seus conterrâneos, mas todos sabiam que ele podia ser preso, mas quem o podia prender?

Há quem diga que os exageros não paravam por aí, por questões de preservação da identidade e por se tratar de relatos sobre quem não tem dificuldade em acertar contas mal resolvidas, vamos omitir o nome do narrador.

Esse, quando batia, só podias sentir a porrada, mas não vias de onde vinha. Ele bate forte. Não fala muito. Viola as nossas mulheres e nos obriga a continuar com elas. Ele não pode ser contrariado, por isso se dizia ser o Chefia. Ele batia, mas não era confuso.  Lembro-me de que o meu pai me disse que, quando ele fosse beber com os amigos dele, ninguém tinha coragem de o cobrar pelas bebidas. Ele se embriagava à borla, vê-se pode!? Ele corta cabelo no salão da esquina. Mas, sempre que lá está, o dono do salão entra em pânico, é que ele o deu um aviso.  Quando lhe cortasse cabelo, não pode tocar muito na sua testa, ele não gosta. Caso contrário, ele tomaria a barbearia para ele. O dia em que eu o olhei sem saber, ele me obrigou a pagar-lhe 250 meticais ou ele iria deitar-se com a minha namorada “widas”, tive que fazer um empréstimo para o pagar. Parte Coco não tem medo de ninguém, senhor!”

Outros relatos dispersos dão a entender que o Parte Coco levava uma vida de rei às custas de seus conterrâneos, ele rendia só com a sua presença. O Paulito, jovem da Rua 9, chegou a dizer que os vizinhos eram proibidos de acordar antes dele, sob o risco de fortes sanções. Mas também, diz-se que ele batia nos homens que agrediam as suas mulheres, ele não gostava disso.

No meio dessas barbáries, Parte Coco também é reclamado como herói da comunidade da Manga, há quem refere que o bairro da Manga já andou mais seguro e organizado com ele lá.

Já andou porque não andará mais. Parte Coco foi baleado e preso na última noite. Há uma mistura de sensações da parte de quem se deixou fotografar pelos seus olhos, ele nunca se esquece das contas mal paradas, era vaidoso nesse sentido!

Há quem se alegre pelos vizinhos, há quem lamente pelos reclusos! Parte Coco divide sensações naqueles que agride e deixa de agredir! Parte Coco sonha ser polícia, Parte Coco foi baleado e preso por um Polícia!

Parte Coco pode não ser só violador, só agressor. Parte Coco poder ser mais…!

 

Sobre o Manifesto de Consciência Literária ou Repúdio à Mediocridade Hostil

Aurélio Furdela publicou no jornal O País, na página de opinião, a 19 de Novembro, às 21:11 o texto “Manifesto de Consciência Literária ou Repúdio à Mediocridade Hostil”. Escrevemos sobre este texto, com esperança de contribuir para o debate proposto pelo escritor.

Emprestamos a expressão “Legitima Dor”, da obra A Legitima Dor da Dona Sebastião de Lucílio Manjate, para sustentarmos a insatisfação, a dor, a angústia que perpassa na alma do autor cujo Manifesto de consciência literária é uma tentativa de traduzir o problema.

Uma discussão deste tema (Mediocridade hostil) é importante se pretendermos rever a literatura (sobre os sujeitos e práticas que comprometem o sistema literário) e enquadrá-la no nosso contexto, de uma produção e recessão da literatura deficiente, para uma sistematização nacional sobre o assunto.

Para o início do debate, passamos a tecer alguns comentários sobre o Manifesto. Começamos com um contra argumento à mediocridade nociva, que tem como base o facto de os «escritores de circunstância»[1], os primeiros, não serem especializados. Este argumento, mostra falhas logo no início da actividade literária, o que justifica a posição de insatisfação por parte do autor, visto que, naturalmente, surgiriam também, além de «escritores de circunstância» não medíocres (revelados no período colonial, engajados no processo revolucionário, de pertença a um território), prosadores e poetas medíocres que passaram a fazer parte do território literário. No entanto, a literatura, sobretudo a escrita, exigente, permite abertura para iniciantes que reúnem amor, estimulo, estudo, vivência, estima, conhecimento, sobremaneira. Aspectos condicionantes a produção de uma boa literatura.

Do universo de «escritores de circunstância», passado algum tempo, os medíocres esconderam-se[2] na sombra dos feitos do grupo que firmara as bases para o avanço da actividade literária. Por essa razão, insatisfeito o autor e ciente das fragilidades de alguns itens[3], apresenta-nos um instrumento de análise, segundo a qual, é convidado todo «escritor de circunstância» a preencher o quadro, com objectivo de aferir sua própria relevância. Essa proposta, apresenta-se pertinente, porém, peca por ser o próprio escritor a se auto-avaliar de modo a perceber se se ajusta ou não no universo dos não medíocres, facto que, por outro, parece funcionar como convite para uma espécie de“haraquiri”[4]intelectual.

Perceber os itens referidos no quadro, é abordar a questão da prática e dos sujeitos que asseguram e legitimam a actividade literária. Tais práticas e sujeitos, por vezes falíveis. Tal vez seja por tal motivo, que o escritor que não preencher o quadro, em75%, a sua relevância no universo dos não medíocres é duvidosa.

Sendo assim, repetimos, acreditamos que quando um escritor se propõe ou se submete a preencher o quadro sugerido no manifesto, está se auto-avaliando, portanto, compreendemos, formalmente, que esta não é a responsabilidade do emissor/escritor, cuja função é criar e publicar, para daí, a instância do receptor/leitor assumir a responsabilidade de atribuir relevância a obra do escritor, fazendo com que ela passe a existir, preenchendo os vazios, interstícios e fazendo com que «aconteça».

Em geral, o argumento acima exposto a propósito da insatisfação/dor por parte de Aurélio Furdela (relativamente e contra a mediocridade hostil), o facto de alguns «escritores de circunstância» se esconderem na hegemonia de criação de bases da actividade literária do grupo, é nocivo ao sistema literário. Daí, a proposta de um instrumento de análise. O que por conseguinte, abre espaço para ilações, significa que, tal como a produção literária feita por incipientes, a recessão não se demonstra exclusiva, ainda que, em algum momento tenha sido denominada, a sua materialização, de «Falso silêncio» (deixe-se a crítica académica e considere-se a imediata), está a falhar, no sentido em que já não serve para cumprir uma das suas funções, conferir a legitimidade, ou os críticos, aos quais cabe a responsabilidade formal de pensar nessa perspectiva de crivar, não estão o fazendo, a argumentar pelo facto de ser um escritor a propor e dar o primeiro passo formal ao debate, não que os escritores não possam ser críticos, mas, no caso em particular, o escritor Aurélio Furdela, assume-se no manifesto, como escritor. Aliás, este autor tem vindo a caracterizar-se, no intervalo de mais de uma década para cá, por ser um constante agitador de ideias, facto que no futuro, apenas a História da Literatura Moçambicana saberá ou não absolver.

Se a recessão também envolve incipientes, pelo que a produção literária envolve «escritores de circunstância» medíocres que se escondem na hegemonia do grupo que criara bases literárias nacionais, é caso para reelevantar a seguinte questão de forma contrária «a existência de uma crítica literária nacional fraca é influência ou é reflexo de uma literatura igualmente fraca?» (Lobo, 2013:132).

A verdade, é que a instância da edição, o editor, sobretudo o literário, não desenvolveu e não está desenvolvendo seu papel de crivo, como deva ser, para colmatar a mediocridade hostil.

O outro argumento contra a mediocridade, de alguns membros do grupo de «escritores de circunstância», que o escritor Aurélio Furdela usa para demonstrar sua legítima dor, tem a ver com o fórum dos laços na actividade literária, favorecido pela convivência, isto quer dizer, são mesmas pessoas que desenvolvem a actividade. Ficando difícil de não se afeiçoar e criar amizades, comprometendo a actividade literária, o que nos impele a duvidar dos juízos de valor, incluindo do autor do Manifesto, aquando de arrolar uma lista de «escritores de circunstância»[5] que acredita serem talentosos, por estes, fazerem parte do seu círculo de amizade. Todavia, não podemos nos esquecer que um escritor quando lança um trabalho, este, não deve ser avaliado do ponto de vista da amizade, da sua boa/ má fortuna, mas pela obra que publicara no momento.

Dos «escritores de circunstância» que o Autor Aurélio Furdela acredita serem medíocres, dói-lhe o facto de estes escritores persistirem na actividade literária, sem talento, trabalho, conhecimento e outros aspectos condicionantes a produção de uma boa obra literária, mas serem, simplesmente, movidos pelo mero sonho de adolescência, pelo prestígio que detêm nas revistas, pelo facto de fazer parte dos que iniciaram a produção literária após a saída no país, de especialistas, tenderem a funcionar como barómetro da legitimação literária. Características que salvaguardam importância de alguns «escritores de circunstância», já que, nem contemporizar-se conseguem, pelo que, alguns novos escritores seguem cegamente os modelos dos «escritores de circunstância», na busca de consagração.

Por isso, o ciclo vicioso se repete, por várias vezes, a produção e a recepção é comprometida, pelo fórum das amizades, afeiçoes, a justificar pelo prefácio de um dos modelos, escritor de circunstância, seguido por muitos novos escritores, veja-se o prefácio «Não é verdade» de autoria de Eduardo White, a prefaciar «Conversas do fim do fim do mundo», de Marcelo Panguana. Um discurso cujo conteúdo é elogiar a pessoa, o amigo, para emitir um juízo de valor sobre a obra, confesso aqui, encontrar reservas em chamar de biografismo, uma técnica de análise, porém, importa evidenciar o seguinte excerto: «Eu, pessoalmente, delicio-me com o trabalho do Panguana, com a sua obsessão pelo belo do humano e do tudo que o rodeia.», o autor parecendo não ser excepção, descreve o seu sentimento pela escrita do autor, chega a dizer o que podemos ler no prefácio, porém não faz referência com base em excertos da obra, percebe-se no excerto, «aprecio a eloquência condimentadíssima da sua escrita», exercício valorativo, que se repete ao longo do prefácio, o autor traz consigo ideias preconcebidas, o que não é mão, afinal todo leitor tem seu horizonte de expectativa, mas o que se percebe deste, é que se trata de fóruns íntimos. Não obstante, leia-seo seguinte:

«Resolveu publicar, festejando-nos e a festejar uma das virtudes que mais admiro nele […] tem sido assim desde que o conheço partilhando comigo as dúvidas e os medos que tal decisão representa para nós.» [Sublinhado nosso]. O autor não se baseia em nenhuma sustentação teórica, ao invés de se cingir a escrita do autor/obra, preocupa-se com a vida de Panguana para explicar a obra.

Não pretendemos com o exemplo afirmar que Panguana represente ou não a mediocridade, mas simplesmente ilustrar a prática que Furdela entende elemento de suporte ao que chama no Manifesto “mediocridade de nociva”, pois, segundo ele, caracterizam-se muitas vezes, os discursos dos prefácios e de apresentação de livros, da seguinte forma: Arrolar nomes de “enteados” como autores de destaque, algo não fundamentado pela obra. Quando parece que prefaciam as obras dos tais “enteados”, prefaciam os autores, não o livro. Por isso, a comunicação literária falha (produção recepção literária).

Portanto, as práticas de alguns “escritores de circunstância”, sem nos esquecermos dos novos escritores que seguem cegamente tais práticas/modelos, devem ser feitas conforme as deontologias da área, e os sujeitos que salvaguardam a boa reprodução e recepção da literatura, devem assumir o seu papel[6], pois, comprometida a literatura, pelo comportamento destes (escritores de circunstância), de persistir em sonhos de adolescência, orgulharem-se pela hegemonia de ter feito parte do grupo de jovens escritores que iniciaram a actividade literária no país, após 1975, em 1982,e o ciclo vicioso do fórum das amizades, pode se manter e ressurgir prosadores e poetas medíocres, comprometendo negativamente o sistema literário, tornando assim, legítima a dor de Aurélio Furdela.

Bibliografia

Figurell, Roberto. (1988). Hans Robert Jaus e A Estética da Recepção. Universidade Federal de Paraná;

Lobo, Almiro. (2013) “Sobre o falso silencio da critica literária Moçambicana”. In Leituras Ensaiadas. Maputo: Imprensa Universitária, pp.132-135.

Manjate, Lucílio. (2013). A legítima Dor da Dona Sebastião. Maputo: Alcance Editores;

Reis, Carlos. (1999). “ A Literatura como instituição”. In O conhecimento da literatura. Coimbra: Almedina;

White, Eduardo. (2012). “Prefacio: Não é verdade?”. In Panguana, Marcelo. (2012). Conversas do fim do mundo. Maputo: Alcance Editores.

Por Gerson Monjane

[1] Depois da independência, com a saída de escritores incipientes, jovens, profissionais ocupam posições de altos escalões, condicionadas pelas dinâmicas sociopolíticas de seguir em frente com recursos disponíveis, por isso, a criação da AEMO, em Agosto de 1982 como tentativa, bem conseguida, da ideia de avanço.

[2] A titularidade de fundadores da actividade literária, prestígio que lhes concede espaço nos canais de comunicação de honra, fora serem influentes.

[3]Obras publicadas, reedições, Inserções em Antologias, traduções em Línguas estrangeiras, Publicações internacionais, ensaios académicos sobre a obra, monografias sobre a obra, livros sugeridos para a leitura na escola secundária, prémios literários e adaptações do livro para o Cinema.

[4] Suicídio de honra,  praticado especialmente entre guerreiros japoneses,  que consiste em abrir o ventre.

[5]Nesse universo de «escritores de circunstância», acredita Aurélio Furdela haver nesse grupo ou nos não citados, talentosos e Medíocres Ungulani Ba Ka khosa, Armando Artur, Juvenal Bucuane,Eduardo White, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Paulina Chiziane, Tomás VieiraMário, Mia Couto, Suleimane Cassamo, Anibal Aleluia, Nelson Soúte, Calane da Silva, Pedro chissano, Carlos Paradona Rufino Roque, António Pinto de Abreu, Marcelo Panguana, entre outros.

[6]As academias acolhem os críticos, ensaístas de prestígios que reconhecem os escritores e consagra-os, concedem os prémios literários, valida a literatura institucionalmente, julgando-a. Os jornais e as revistas também têm seu papel, sem esquecer dos demais envolvidos na literatura.

O livro “A Greve dos Mendigos”, de Aminata Saw Fall, é uma obra literária que tem o pendor de levar o leitor a uma reflexão em relação a forma como as cidades africanas são dominadas por uma política neocolonial, em que os negros são escravizados pelos seus semelhantes. Um texto que nos remete também a reflectirmos sobre o sonho de liberdade que todos os seres humanos, especificamente africanos, desejam.

O livro foi publicado no Senegal, em língua francesa, em 1979. Em 1986 saiu a versão em inglês, em 2000 foi adaptado ao cinema pelo realizador Cheikh Cissoko e em 2019 foi publicada a sua versão em português pela editora moçambicana Ethale Publishing.

Um livro de leitura leve e divertida que me permitiu observar que várias questões levantadas têm acompanhado o quotidiano de muitas cidadãos africanos. O livro fala de mendigos espalhados pela cidade, interpelando os utilizadores das vias públicas, pedindo esmola, o que chega a causar nalgumas vezes incómodo e repulsa aos citadinos, devido à sua aparência e odor.

No livro são igualmente feitas, interpretações por algumas elites, sobretudo políticas sobre as consequências que esta gente pode trazer para a economia da cidade, tendo em conta que as cidades dependem também do turismo e do investimento estrangeiro, levanta-se a questão de ser necessário manter as cidades limpas e organizadas, ou mais desejosas retirando todos os obstáculos que afectam o brilho da cidade, para a tornar mais atraente. “É preciso livrar a cidade destes homens – sombras de homens melhor dizendo… A Cidade exige ser limpa destes elementos” (2019:11).

Além disso, o livro nos remete a reflectir também sobre como todos podemos influenciar na tomada de decisões políticas relativas à organização da cidade, homens, mulheres, ricos e pobres. A grande preocupação das elites políticas conforme retratadas neste livro, era de que os mendigos estavam a colocar em causa o turismo, a livre circulação do “cidadão de bem”, e isso estava a reflectir-se na economia.

A autora faz uma reflexão, por meio de ficção, sobre como em África também acontece a violação dos direitos humanos fundamentais com a justificação de manter a ordem e tornar os espaços públicos mais agradáveis, expulsando os mendigos ou qualquer outros elementos ou pessoas para bem longe da cidade, que possam colocar em causa estes objectivos. Temos também reflectido nesta ficção o hábito de muitos representantes políticos, que fazem o uso abusivo do poder para realizar interesses individuais em detrimento dos colectivos.

A meu ver, a autora também traz neste livro uma ideia da capacidade que as mulheres têm de participar na esfera pública, apresentando ideias sobre como gostariam que as coisas fossem conduzidas na sua cidade, trazendo uma personagem mulher que coloca em causa as ideias de Kéba (outra personagem com a missão de retirar os mendigos da cidade), questionando-lhe sobre os problemas que poderiam advir desta vontade de limpar a cidade destes homens tidos pelas elites como repugnantes.

Além destas ideias, creio que o livro demonstra também que as mulheres são dotadas de capacidade de participar na política apresentado seus pontos de vista sobre como deveriam acontecer as intervenções de mudança nas cidades. E através deste livro a autora apresenta, através de uma ficção, as suas críticas em relação aos factos que acontecem na sua cidade, sendo essa uma das motivações que lhe fez escrever este livro, como ela refere em  entrevista concedida em Janeiro deste ano à revista Literatas – “O que inspirou-me foi ter notado mudanças na minha sociedade em relação as necessidades das pessoas”.

A autora chama atenção em relação a algumas decisões políticas, que muitas vezes são tomadas apenas para agradar ou acomodar os interesses privados das minorias, ao invés de pensar no bem comum, referindo-se a como estas decisões podem afectar ainda mais o desenvolvimento da própria cidade ou acarretar consequências que podem colocar em causa o seu equilíbrio em geral. Por isso, no final o livro descreve uma situação em que os mendigos são solicitados a regressarem para a cidade, pois eles eram também parte da cidade que despertava interesse aos turistas e investidores estrangeiros.

 

Vi dona Pérola pela primeira vez nos anos 80, com a fome no auge. Nem sei se a conheci ou ela a mim. Temo dizer que nos conhecemos porque nessa altura eu era tão verde para conhecer quem quer que fosse. Ela tinha as suas atenções bastante disputadas que talvez ao invés de conhecer-me, somou-me como mais um.

A nossa diferença de idades não impede meus olhos de ver que, fazendo jus ao nome, dona Pérola é extraordinariamente linda, seus contornos e fundos são tesouros incalculáveis dos pés à cabeça. Naquele sorriso fácil e meigo escondem-se segredos capitais e seculares. Duvida-se da cor do sangue que corre nas veias escondidas por aquele corpo fino, longo e de pele macia. É que a ser vermelho há muito que o coração teria soçobrado perante as angústias e demais cocktails de dissabores servidos à sua mesa.

As águas imaculadas que lhe percorrem das entranhas até aos poros atraem navegadores de diferentes estirpes e latitudes. Desejam tocá-las suave ou freneticamente até ao arrepio, desnudar-se, lançar o anzol bem esticado até regressar satisfeito. Querem penetrar até as profundezas do mar de emoções que ela é para a conhecer e domá-la. Mas não era de imaginar que não só navegassem mas também defecassem e fossem capazes de chegar a todos os cúmulos de estupidez e sabotagem que secam o coração de dona Pérola. A beleza e todo o açúcar que carrega no corpo e no coração lhe saem à desvantagem quando vê as outras, menos perolizadas, sobrecarregadas de bem-aventuranças incomensuráveis.

Estes abutres que se relacionam com dona Pérola sabem que ela tem rebentos por cuidar mas não oferecem ajuda. Quando a conheci ela já tinha filhos e numa mágica afeiçoei-me a eles e ficamos todos irmãos. Mas uma das maiores tristezas da dona Pérola é a intensa peleja entre os filhos que vivem divididos lutando por uma posição de poder na casa e por recursos que ela afinal ainda está a construir. É duro demais para ela.

Ela por vezes finta estas tristezas com alegrias que não se sabe aonde vai buscar, mas dizem que o sofrimento dela é já antigo e começou pela tremenda dificuldade para ela nascer. Uma gestação que tinha de ser escondida porque calhou num lugar e tempo em que havia um decreto que proibia nascimentos. Então aprendeu a comprimir-se, esconder-se e renegar-se ainda no ventre da mãe para que sua vinda não fosse abortada. Foram inúmeras as vezes que desconfiaram da barriga da mãe e chamaram-na para interrogatórios que gelavam e cortavam a respiração. Pelo menos por um bom tempo acreditaram tratar-se de um simples engordar catalisado pela dieta típica para vacas e porcos: espigas de milho amarelo, tubérculos variados e tantos alimentos-arranjos.

Fitar dona Pérola exige audácia perante o risco da hipnose causada por aqueles olhos berlindes ofuscantes pelos quais muitos prometem fundos e mundos. Alguns rifados desapontam-na por fixarem-se nesta preciosidade e não nela. Os preteridos infernizam-lhe a vida desejosos de a ter pelo menos como concubina. Ignoram que ela é mãe de família, tem filhos por respeitar, não é oxigénio para a todos satisfazer e que para tamanho meretrício não há fêmea que aguente. Dona Pérola tem na possibilidade de escolha, um calvário. Sofre porque tem que escolher companheiros à altura do seu físico, pose e posses mas também porque o outro não está ao seu controle. Quando se tem apenas couve cozinha-se e come-se mas quando as escolhas vão desde legumes até carnes sofremos bastante com combinações e satisfação do paladar.

Não sendo mais possível esconder a gravidez e com medo de perder o rebento, a mãe de dona Pérola teve que passar de mata em mata buscando algum buraco para se esconder. O martírio só terminou por meio de uma longa e sangrenta revolta da maioria, que não concordava com o decreto do governo formado por poucos forasteiros mas militarmente fortes. À custa de muito sangue, os forasteiros foram vencidos e dona Pérola veio ao mundo com a população em grande festa e entre infindáveis alaridos.

Sentada ou em pé, nota-se que ela carrega poços por explorar nos dois assentos naturais e em vários apartamentos do corpo. Diante de tamanha riqueza não poderiam faltar prospecções até ao fundo dos poços para provar o sabor, testificar a essência, a naturalidade e sinalizar para que ninguém mais intente tocá-la. Por temerem as responsabilidades com dona Pérola e com os filhos, os exploradores aproveitam-se da penúria, das diferenças e consequente descontentamento para colocar uns contra os outros. Atiçam uma fé religiosa de emergência e inconciliável com o amor que a mãe Pérola sempre ensinou e ofereceu para sugarem-lhe os beiços. Debaixo da bandeira de um deus descomedido penetram-lhe até à medula com pose de magnatas e facilidades de simples garimpeiros.

Ela tem tantos filhos quanto os tem a morte. Dentre eles, ou foram os poetas, imbuídos pelo labor da beleza, ou os políticos tentando adormecer os irmãos com cantarolas para amenizar o saque, que deram a ela esse nome de Pérola… Pérola do Índico. Não era esse o nome dela quando nasceu a 25 de Junho de 1975.

Um pouco pelo mundo, ganha corpo o debate sobre o terceiro contracto de Educação Social ou o novo Pacto Educativo. Um movimento que envolve especialistas, professores, decisores, governos e universidades e, até, o próprio Papa Francisco, que deveria ter realizado o Congresso sobre educação em Maio deste ano.

O pressuposto para este manifesto é o de que em nenhum momento da nossa história, o mundo teve tantos avanços inimagináveis, vertiginosos e exponenciais da ciência e tecnologia, tais como biotecnologia, nanotecnologia, infotecnologia, robótica, ciências espaciais, neurociências, entre outros. Porém, existem, contradições e desigualdades inaceitáveis diante de tantos avanços. O mundo ainda assiste aos milhões de pessoas que sofrem de fome, pobreza extrema, desnutrição, migração, racismo, xenofobia, injustiça e violência nas suas mais diversas expressões e consequências.

A pandemia SARS-COV 2 provou, em muito pouco tempo, como os seres humanos continuam altamente vulneráveis e que apesar de estarmos no século XXI, a meio destes grandes avanços científicos e tecnológicos, a humanidade continua vulnerável, independentemente da cor da sua pele, das crenças, religiões e posições geográficas. Por outro lado, a pandemia permitiu, também, conhecer a importância que as tecnologias podem ter neste mundo pós-moderno, sobretudo, com as experiências da telesaúde, educação à distância, e-governo, e-comércio, e-banking, etc. que abriram espaço para a criatividade, inovação, empreendedorismo, nos seus níveis pessoais, familiares, comunitários e institucionais.

As bases para este terceiro contracto de educação social são os anteriores grandes acordos sociais de educação que permitiram um conviver e um progredir do bem-estar da sociedade e da humanidade. Em grande medida, o novo acordo baseia-se nas necessidades crescentes da revolução cientifico-cultural, que terá que produzir uma nova disciplina laboral e, na essência, cada pessoa deverá descobrir a sua paixão, aprender ao longo da vida, cultivar novas competências e habilidades, desenvolver todo o seu potencial, encarregar-se de inventar o seu trabalho e dirigir a sua vida.

O primeiro contracto social teve por base a aquisição de competências básicas para um desenvolvimento pessoal e profissional. A promessa era de que ao aprender de coisas básicas, todos poderiam se desenvolver na vida, tendo disciplina e obediência, e ganhariam um trabalho digno para o resto da vida. O segundo contracto, por sua vez, baseava-se na aquisição de competências técnicas e profissionais que foram fomentas pelo crescimento de universidades, centros de estudos técnicos e superiores, em todo o mundo. A promessa era sustentada nos seguintes argumentos: estude muito, faça esforço, tire boas notas, siga uma carreira e terá um bom trabalho para toda a vida.

O final do seculo XX e o início do seculo XXI, criaram realidades diferentes em que as circunstâncias tecnológicas, económicas e laborais transformaram-se radicalmente e o contracto social da educação não foi renovado e gerou disfuncionalidades e, até, uma anomalia histórica.

Ainda que o terceiro contracto de educação social não esteja definido, certamente que é possível delinear os seus traços fundamentais. Assim, aos estudantes será exigido o desenvolvimento de competências, de criatividade, inteligência emocional, inovação, empreendedorismo e, sobretudo, liderança. Quer aos estudantes, quer aos professores, será exigido o domínio das novas tecnologias, das línguas e, principalmente, que se encarreguem de inventar o seu próprio trabalho.

Também, nesta fase, a escola e os centros de ensino superior terão que potencializar sujeitos pensantes, livres e responsáveis. Dito por outras palavras, teremos que enveredar por uma educação que corresponda as condições de vida do século XXI, que eleve a condição humana das pessoas e contribua para a construção de sociedades democráticas, equitativas e sustentáveis. Essa será uma educação que compromete a todos actores sociais em torno de um ecossistema em que estejam presentes e sejam protagonistas, quer dizer, serão convocados a comunidade, as famílias, os trabalhadores não docentes, os meios de comunicação e as próprias autoridades. Todos estes, terão que contribuir nesta acção multifocal, para ajudar aos jovens a se desenvolverem plenamente na sua dimensão pessoal e profissional.

O terceiro contracto de educação social tem em vista a mudança da agenda educacional e um redesenho gradual de todos os programas de estudo, com base na inovação educativa. Moçambique, brevemente, precisará de adaptar-se a estas realidades. Teremos que aprender a saltar do primeiro contracto de educação social para um terceiro, considerando que o segundo nunca foi explorado no máximo das suas potencialidades e que continuamos a ter um ensino que forma profissionais dependentes do empenho. Mas é, sobretudo, a administração pública que precisa de rever os seus critérios de ingresso nas careiras profissionais, que não olhem apenas a certificados e diplomas, mas que busquem competência, capacidade técnica e inovação.

 

 

Falar da relação intertextual sem alicerçar o conceito de texto num porto seguro é de longe uma atitude arriscada. Para alhear-me disso, é-me oportuno referir que há de se entender como texto “qualquer tipo de comunicação realizada através de um sistema de signos (quer se trate de um poema, uma música, uma pintura, um filme, uma escultura, etc)” GOUVÊIA (2007: 58)

Faço este backshift não só para estabelecer uma âncora satisfatória como já o disse mas para justificar o que me faz abordar “casa 30” de K7’s Azuis (um grupo moçambicano de fazedores de Rap/Hip-Hop) e “30 anos” de Gasso (músico moçambicano) como textos no sentido mais lato possível. Ambos registos musicais foram tornados públicos no primeiro semestre de 2018. Atentemos, portanto, que a sequencialidade com que as músicas foram lançadas desinteressa-me, valendo-me só o facto de saber que foram produzidas em volta do mesmo contexto sócio-cultural.

Sobre a intertextualidade (diálogo que se inscreve nestas músicas na qualidade de textos) vale referir que este conceito foi cunhado por Julia Kristeva (1974: 64), sob o pressuposto de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” Surge, portanto, que estas constatações levam-nos a crer na impossibilidade de existência de uma obra artística num contexto alheio à intertextualidade. E, mesmo que exista tal possibilidade, resulta que a mesma seria incompreensível durante o “convívio” com diferentes leitores porque “só se apreende o sentido e a estrutura de uma obra literária se a relacionamos com seus arquétipos que são abstraídos de textos anteriores que constituem a constante” Jenny (1979) apud BARBOSA (2005: 27)

Este diálogo entre textos pode manifestar-se de diferentes formas, contudo, neste texto importa-nos tecer brevíssimas considerações a respeito da paráfrase e da paródia que além de serem muito comuns, são basilares para os nossos comentários acerca de “casa 30” de K7’s Azuis e “30 anos” de Gasso.

Indo ao encontro do que nos revela GOUVÊA (2007: 60), diríamos que:

a paródia inova, inaugura um novo paradigma e constrói a evolução de um discurso. Na paródia, há uma tomada de consciência crítica, de algo que foi recalcado e posteriormente emergiu. Uma nova maneira de ler o convencional.

em contrapartida, a paráfrase é um discurso em repouso em que alguém abre mão de sua voz para deixar a voz do outro falar. Não há conflito, pois não há oposição. Funciona como se fosse um espelho que reflecte o discurso do outro.

Portanto, em composições rítmicas diferentes, “casa 30” ao ritmo de um bom Hip-Hop e “30 anos” em Kizomba, ambas modalizam um debate cada vez mais frequente nos fóruns de conversa sobretudo juvenis em que a tônica da conversa cinge-se na idade ideal para que o/a jovem “saia da casa da velha”, mas essa é outra conversa que este texto não pretende dar vazão.

O que me chama atenção nas músicas de K7’s Azuis e Gasso é a forma como este debate é tomado com nuances diferentes embora com um ponto de intersecção: a casa 30 é um deadline para tomar um rumo próprio. Quanto a este aspecto, a relação dialógica que se inscreve é de um paralelismo indiscutível. Ora, K7’s Azuis esgotam-se na abordagem fazendo do seu texto um sermão do qual ninguém escapa pelos desafios que se lhe impõem enquanto jovem na “casa 30” ou os que a sociedade institui como sendo próprios dessa idade: desde a casa própria, a profissão, o matrimónio até a procriação, assuntos pelos quais os rappers gravitam e dramatizam em função da criatividade lírica que o Hip-Hop permite e, para conferir um toque mais melódico, aparece o corro na voz de Hot Blaze, e sentencia:

“tens a tua vida mano/ para o ano fazes 30 anos/ ainda estás em casa do papá/ ainda és filhinho da mamã/ cada passarinho faz o seu ninho/ mana até já tens o teu filho/ mano sai daí, sai daí e vai fazer sua vida”.

Na sua globalidade, o teor deste texto traça um deadline inflexível e generalista que independe das especificidades decorrentes da (ir) regularidade da vida que é já uma premissa que todos conhecemos de cor.

É neste quesito que a antítese de Gasso se inscreve para nos reenviar a uma janela reflexiva na qual a generalização sede ante o relato de uma especificidade em que o “insucesso” perante o deadline instituído tem um motivo tão impensável quanto peculiar: o amor ou ausência dele, o que fez com que o eu-lírico tivesse a sua vida errante pelos corredores da indefinição.

Diz-nos o autor no seu refrão: “depois dos 30 / é que a minha vida/ ganhou sentido/ por ter te conhecido”. Ao que se depreende que antes disso a vida do sujeito lírico resvalava pelos túneis da marginalidade e indiferença para com a vida e os seus ditames típicos de alguém que esteja na “casa 30”. O amor surge, para Gasso, como o mote para um “renascimento” mas em boa análise podemos inferir que podia ter sido uma outra razão.

Portanto, quando se diz, nas reflexões sobre a arte sobretudo literária, que esta é concebida para gerar beleza e encantamento, vale acrescer que, na estética da sua recepção, é preciso prestar atenção à simplicidade com que os fenómenos da arte se manifestam porque além de ser peculiar, passa-nos, por vezes, de forma bastante despercebida. E, quanto a estes textos, cabe realçar que é preciso olhar para as especificidades na concepção dos nossos deadlines e também reter que entre “casa 30” de K7’s de Azuis e “30 anos” de Gasso inscreve-se uma das mais belas manifestações da intertextualidade.

 

Ser pontual é comparecer à horas no seu local de trabalho como previamente acordado no seu contrato de trabalho. Por outro lado, ser assíduo significa comparecer regularmente no seu local de trabalho. 

Já lá se vão os tempos em que, com meu irmão mais novo e minhas 2  irmãs mais velhas, íamos visitar Vovô Rabeca em Tsalala onde íamos comer * mimanga ni tinyumi. O machimbombo passava pelo Jardim dos Madjermanes às 9h30, nosso horário preferido dos sábados e era de nr. 50, se a memória não me falha.  Nessa altura sabíamos que era apenas questão de sair de casa  a tempo para conseguir o machimbombo e sabíamos também que um minuto de atraso significava que o mesmo já teria passado e que a solução seria esperar pelo próximo que estávamos certos que chegaria a horas.
Nessa altura era ainda possível ver os tios Manhique, Rodolfo e Miguel entrarem na praceta da Belita para almoçar por volta das 13h e regressarem ao trabalho alguns minutos depois de passarem a refeição em casa, sinal de que a hora de entrada e a saída do trabalho, assim como os horários de transporte eram respeitados à letra. Os tempos mudam e alguns hábitos e costumes também. Como seres humanos que somos, temos de saber nos adaptar, no entanto, porque mudar os hábitos que nos são benéficos?
Chegar atrasado ao trabalho e as reuniões
Na sociedade desenvolvemos a ideia de que chegar tarde ao trabalho e/ou às reuniões profissionais e pessoas é sinônimo de importância. Nas empresas públicas e privadas em Moçambique esta é uma prática corrente e recorrente. Lembro-me de ter tido, numa das empresas em  que trabalhei, 2 colegas  que chegavam ao trabalho atrasadas invariavelmente todos os dias, mas não porque tinha imprevistos. Pude observar com o tempo uma espécie de competição entre elas, que resultou com que chegassem cada vez mais tarde, como forma de mostrar sua importância , ao ponto de chegarem várias vezes mais tarde até que o  nosso próprio chefe.
Este hábito podemos também observar nos nossos dirigentes públicos. A poucos meses fui convidado para um webinar onde devia estar presente um dos nossos actuais ministros. O ministro chegou cerca de 30 minutos depois da hora marcada, não se desculpou e não ficou até ao fim da reunião. Demonstração de falta de educação, falta de respeito à equipe que lhe convidou mas também falta de compromisso ao povo de que é servidor.
Consequência da falta de pontualidade e assiduidade
Não me lembro de ter estudado sobre a importância do horário, pontualidade e nem assiduidade durante meus anos de estudo. Numa altura em que os “soft skills” constituem um dos problemas que os empregadores se deparam nos seus colaboradores, penso que seria primordial que temas destes sejam abordados em algumas disciplinas nas nossas instituições de ensino.

A falta de pontualidade tem várias consequências que podem ser diretas ao colaborador como por exemplo a perda de credibilidade nos olhos do empregador, assim como desconto na sua folha de salário. Mas o mais importante são efeitos que estes hábitos causam ao nível da empresa, notadamente o nível de produtividade, queda de resultados  financeiros da empresa, perda de clientes.
Este comportamento negativo pode ser prejudicial na relação entre os colaboradores, pois em alguns casos a ausência de um pode impedir que trabalho do outro avance, o que é desmotivante para o colaborador assíduo.
As consequências da falta de assiduidade e pontualidade  vão para além do impacto negativo na vida dos colaboradores e no desempenho das empresas. Nós somos seres interdependentes, assim são as empresas e os países. Quando um simples trabalhador não cumpre com o seu dever na empresa, ele na mesma altura está a faltar com o seu dever e responsabilidade como cidadão moçambicano. A ineficiência profissional de um colaborador na extração de matéria-prima (madeira) tem consequências financeiras para a empresa de transporte, que por sua vez prejudica a empresa fornecedora de matéria-prima, as empresas de produção de papel, assim como as empresas de fabricação de caderno escolar e que finalmente acaba por atrasar o início do ano letivo.  Esta interdependência deve ser do conhecimento dos colaboradores. Acredito eu que, se os colaboradores tiverem consciência da importância que os mesmos exercem nesta cadeia de valores para o desenvolvimento das suas empresas assim como de Moçambique, eles serão mais  assíduos e pontuais.
Ser pontual possibilita que o colaborador saia a horas do trabalho. Penso que os líderes devem incentivar os colaboradores a saírem à horas do trabalho (salvo situações excepcionais). Geralmente os colaboradores que saem tarde do trabalho também chegam tarde a casa, o que não lhes possibilita de passar tempo de qualidade com as suas famílias. “Os líderes não devem ajudar os seus colaboradores apenas com os seus trabalhos mas também com as suas vidas”. Família cria equilíbrio nas nossas vidas, poder passar no mínimo uma refeição  e algumas horas de qualidade com a família diariamente ajuda na performance e motivação dos colaboradores, pois no final trabalhamos para as nossas famílias. O hábito de aquecer cadeira para impressionar o superior devia ser condenado e corrigido pelos líderes, 8 horas bem organizadas são mais do que suficientes para que os colaboradores apresentem resultados diários esperados (salvo exceções).
Trabalho remoto
Não obstante o facto de termos de trabalhar de casa devido à situação excepcional que o mundo atravessa, a pontualidade e assiduidade continuam sendo de grande importância para a performance do colaborador e produtividade das empresas. Não devemos relaxar, e para tal é preciso organizar o dia de trabalho como se tivessemos de sair de casa, programar o alarme como habitual, trocar de roupa, organizar um espaço confortável de trabalho e engajar-se no trabalho a hora certa. Na mesma senda, organizar a hora de almoço, programar e organizar o(s) períodos para a(s) pausa(s), assim como hora para terminar o dia de trabalho. Agindo assim continuaremos a ser eficazes e produtivos.
Que terá falhado durante  estes anos para que moçambicanos tenham perdido estes hábitos
Pontualidade e assiduidade
Falta de formação? Perda de valores culturais?
Difícil de encontrar uma razão em particular para este grave problema que afecta a nossa sociedade, o que é certo é que devíamos encontrar soluções, quer sejam no plano de formações ou de outra qualquer outra natureza. Numa altura em que trabalho remoto está a tornar-se (quase) um norma mundialmente, se esta tendência continuar, vamos observar brevemente que boa parte do trabalho que seja possível de ser feito por remoto será confiado a profissionais no estrangeiro, o que de alguma forma já é o caso em alguns sectores.  Marcar reunião e não aparecer, prometer ligar e não cumprir, chegar tarde ao trabalho, apresentar-se ao trabalho quando bem entender custa muito caro ao nosso Moçambique e pode também custar, em última instância, os nossos próprios empregos. Somos sim capazes de mudar esses maus hábitos se começarmos por os assumir.

*mangas e amendoim – língua chope (sul de moçambique)

Recomendação de livro para o  mês de Dezembro: ” Make Time: How to Focus on What Matters Every Day –  Jake Knapp & John Zeratsky”
Samuel Gerson Andrisse
Especialista de recrutamento
Autor do livro “Be ready for your next job interview”

Para os de fé religiosa, o entendimento indica que Deus teria criado o mundo em sete dias. Moçambique, como parcela distinta desse mesmo mundo, também não se construiu num único dia, tem um passado, de processos sociais, políticos e administrativos.

No actual contexto de luta contra o terrorismo que Moçambique atravessa, no concernente a actividade jornalística, esse passado começa a suscitar fricções na penumbra do relacionamento entre a classe jornalística e os cultores da acção política e de administração territorial.
Depois de provar da mordaça da censura, instituída pelo regime colonial desde os primórdios da imprensa de Moçambique, com o advento da Independência Nacional, ocorreu uma transformação, que culminaria com a instalação de sistema centralizado de gestão editorial, podendo-se afirmar que os jornalistas converteram-se em agentes da causa política, longe de fazer jornalismo, veiculavam propaganda do partido Frelimo e, sobre o assunto, Luís Bernardo Honwana, aquando da realização do I Seminário Nacional de Informação, descreveria que “o jornalista transformou-se no funcionário de informação. O seu trabalho consiste em apanhar a fotografia oficial, meter o discurso na íntegra, puxar a título a palavra de ordem.
Embora não tendo existido legalmente qualquer subordinação editorial dos media ao Ministério de Informação ou Partido Frelimo, os profissionais da informação nos primeiros anos da independência, tinham de bitola a linha de orientação da reunião realizada em Macomia, na qual Jorge Rebelo, citado por Fernando Lima, defendeu que “O escritor profissional (jornalista), por todo o lado, o elemento dos órgãos de informação, tem de subordinar-se à disciplina e orientação da Frelimo, quer quanto ao conteúdo, quer quanto à forma. O que aparece nos nossos jornais ou na rádio não pode nunca ser desligado da causa da Revolução.”

Ora, embora justificado pelo contexto histórico, a nível interno e internacional, esse sufocar da palavra jornalística no período monopartidário, depois da abertura sociopolítica, plasmada na Constituição da República de 1990, o ímpeto do jornalismo se comportaria como um jacto de água depois do saltar da válvula que a atravincava dentro do cano.
A título de exemplo, segundo Salomão Moyana, em entrevista concedida a Eduardo Namburete, aquando da discussão da nova Constituição, houve uma tentativa no Jornal Domingo de se trilhar por um caminho que não era próprio do regime monopartidário. Analisadas hoje as edições do Jornal, de Janeiro a Dezembro de 1990, constata-se claramente esse trilhar de novos caminhos, com o aparecimento nas páginas do Domingo, a par das habituais coberturas de eventos oficiais, desportivos e artístico-culturais, de matérias ligadas às negociações de paz, à pobreza que grassava o País, à condição dos deslocados, criminalidade, corrupção, embora tratada ainda como suborno, entre outros temas de maior interesse para o cidadão.
Os métodos de gestão da acção dos jornalistas em tempos do partido único, coincidentes com a ocorrência da guerra civil movida pela Renamo, hoje diferem-se pela ousada tentativa de busca de informação, para alimentar o púbico, em novos tempos, caracterizados pelas acções de grupos terroristas barricados em Cabo Delgado. No tocante ao Governo, que no escalar da Guerra Civil, de 1976 a 1992, controlou com a força do Estado o fluxo de informação sobre o conflito, para as páginas dos jornais, hoje debate-se com a proliferação dos meios de informação e as garantias constitucionais para o exercício da profissão de jornalista.
Entre a missão de informar, por parte dos media e o desejo do Governo de regular a informação, levanta-se um novo debate, em busca de novos caminhos de como fazer jornalismo em tempos de luta contra o terrorismo. Sobre esse aspecto, a relação entre o Governo e a classe jornalística parece-se com a de dois gatos escaldados, sobretudo quando se trata da imprensa privada.
De facto, com a aprovação da nova Constituição em 1990, que abriu portas a coexistência de vários partidos políticos em Moçambique, a aprovação da Lei de Imprensa em 1991, que acolheu o pluralismo de informação no País, a assinatura dos Acordos de Paz em Roma no ano de 1992, e a realização das primeiras eleições multipartidárias, em 1994, afigura-se um novo quadro multiforme, onde a informação teve um papel crucial, a meio os interesses dos principais actores políticos, a Frelimo e a Renamo.

O cenário de proliferação dos media em Moçambique na década 90 conduziu a um posicionamento dos jornais, de acordo com os interesses de cada bloco partidário. Ilustrativamente, prestamos atenção a acção do Semanário Domingo, com paternidade ligada ao partido no poder, este foi sempre apontado como posicionado, na sua linha editorial, a favor do Governo, em oposição ao semanário Savana, conotado com a oposição. Citando um relatório da ONG Article 19, Juarez de Maia, atesta que o semanário Domingo, gerido pela Sociedade Notícias, e o Savana, pertencente a uma cooperativa de jornalistas, Mediacoop, representam dois extremos opostos, com o primeiro abertamente a favor da Frelimo e o segundo, anti-governo, de modo geral.

Dado este passado histórico, hoje, no actual debate sobre o terrorismo, somos tentados a avançar que a relação entre os jornais privados e o Governo equipara-se a uma troca de presentes entre dois rivais, onde cada um irá tirar da caixa oferecida os rebuçados que levou consigo à festa. Por outras palavras, quando jornais privados alegam que reportam a dinâmica da guerra em Cabo Delgado, o Governo entende que há uma falta de reconhecimento da acção de bravura desempenhada pelas Forças de Defesa e Segurança, FDS. Quando o Governo apela à responsabilização pelas FDS, dos órgãos que promovem a desinformação e tentativa de manipulação, os órgãos privados irão entender isto como ameaça à liberdade de Imprensa. Há uma notória falta de confiança entre as partes ora citadas, uma memória do passado hoje intrinca a possibilidade de “acesso seguro” pelos jornalistas às zonas de conflito.

Se as FDS se batem em Cabo Delgado pelo restabelecimento da Paz, por que se batem então os jornalistas por reportar os acontecimentos da agressão terrorista? O nosso entendimento é de que seja pelo mesmo objectivo, faltando agora, nesse período de vigência multipartidária, marcado pela acção de múltiplos órgãos de comunicação e redes sociais, encontrar caminhos para a salvaguarda de uma cobertura jornalística, à luz do direito a liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e do direito a informação.
A concluir, em reconhecimento de todo esse passado histórico, do qual se forjou o espírito de receio mútuo entre os jornalistas e as autoridades governamentais, possivelmente sugerir que, como primeiro passo, para uma relativa aproximação, no que é possível; possível nessa relação de amor e antipatia, com vista a prossecução do mútuo objectivo de restabelecimento da Paz, por que não uma realização de um seminário nacional sobre a cobertura jornalística nas zonas de conflito armado, envolvendo jornalistas, as demais organizações da sociedade civil e as Forças de Defesa e Segurança?

O mundo foi atingido severamente por uma pandemia global como nunca tinha acontecido na história recente, salientando a realidade da nossa ligação mútua para além do que julgávamos. Neste Dia Mundial de Combate ao SIDA, quero congratular todos os Moçambicanos, e especialmente o Governo, pelo seu trabalho árduo na defesa da nossa segurança e saúde aqui em Moçambique.

Todos os países, todas as comunidades, e todas as famílias foram de alguma forma afectados por este novo vírus, a COVID-19. Após meses de vivência com a COVID-19 entre nós, familiarizámo-nos demais com a necessidade de encontrar atenção médica de urgência para um familiar idoso, lidámos com o novo normal de utilização de máscaras e manutenção de distanciamento social, e os requisitos necessários de testagem e quarentena para mantermos os nossos entes queridos seguros. Esta pandemia global sublinha a importância de um sistema de saúde pública robusto, forte o suficiente para tratar pacientes, prevenir uma maior propagação da pandemia, e gerir os imprevistos.

Sinto-me orgulhoso porque o Governo dos E.U.A. providenciou 19.7 milhões de dólares para assistência relacionada com a COVID-19 e doou 50 ventiladores ao Governo de Moçambique. No entanto, estou particularmente satisfeito porque a resposta de Moçambique à COVID-19 assentou na fundação de uma parceria eficaz entre os E.U.A. e Moçambique no sector da saúde. Ao longo dos últimos dezasseis anos, o Plano de Emergência do Presidente dos E.U.A. para o Alívio do SIDA (PEPFAR) tem trabalhado lado a lado com os oficiais locais para expandir a testagem do HIV, rastrear contactos, providenciar tratamento e promover a prevenção. A resposta de Moçambique à COVID aproveitou da experiência profunda do país nestas mesmas áreas. A nossa cooperação tem ajudado Moçambique a alcançar uma taxa de infecção e mortalidade da COVID impressionantemente baixa, salientando-se como um dos países mais resilientes durante a pandemia. A nossa cooperação também está a demonstrar resultados reais na luta contra o HIV-SIDA.

Após mais de 16 anos e mais de 3 biliões de dólares de assistência médica, milhões de moçambicanos se encontram sob tratamento de HIV que salva vidas e instituíram programas salvadores de vidas que cuidam dos mais vulneráveis entre nós.

O HIV, em tempos uma sentença de morte, é hoje uma condição médica controlável. Hoje, no Dia Mundial de Combate ao SIDA, tenho orgulho em afirmar que nos encontramos à beira de um controlo inclusivo, abrangente e sustentável do HIV/SIDA. Isto graças aos programas de prevenção e tratamento que os governos dos E.U.A. e de Moçambique implementaram, e à dedicação dos nossos parceiros de implementação.

Qualquer moçambicano que teste positive para o HIV recebe tratamento imediato e tem acesso a medicação nas unidades de saúde da sua comunidade. Estes 1.3 milhões de moçambicanos que foram testados e estão a receber tratamento são professores, agricultores, empresárias, enfermeiras e crianças que podem assim contribuir para o progresso desta grande nação. O sucesso encontra-se nos números. Ao longo dos últimos 10 anos, os óbitos relacionados com o HIV abrandaram em mais de 20 por cento.
Mas não podemos ainda clamar vitória completa. Em Moçambique, mais de um em cada 10 adultos e mais de 200 mil crianças ainda vivem com HIV. Para reduzir a prevalência desta doença, os Governos dos E.U.A. e de Moçambique continuam a usar métodos modernos de tratamento, mas a prevenção é igualmente importante.

A prevenção é crucial para controlar esta epidemia, particularmente entre os jovens. O nosso programa DREAMS apoia raparigas em quase todos os aspectos das suas vidas, ajudando a prevenir a sua infecção pelo HIV. Apenas este ano, mais de 15 mil raparigas completaram o programa DREAMS. Isso representa 15 mil jovens moçambicanas menos vulneráveis a contrair HIV.

A erradicação da epidemia do HIV/SIDA exige mais do que a cooperação governamental. Exige o trabalho árduo, dedicação e compreensão de todos os segmentos da sociedade. Sinto-me inspirado pelo compromisso vitalício a esta causa de enfermeiros e médicos, professores, organizações da sociedade civil, líderes religiosos, organizações baseadas na fé, empresas privadas, e outros que lutam por melhores serviços e tratamento igual para aqueles que vivem com HIV/SIDA. É por causa de vós que podemos tocar tantas vidas.

Para acabar finalmente com esta epidemia, todos temos de tomar uma posição contra o estigma e a discriminação e apoiar cada um de nós para que conheça a sua condição. O povo dos Estados Unidos continua empenhado em apoiar o povo de Moçambique em face do HIV/SIDA, da COVID-19, malária, e outros desafios de saúde. Juntos podemos alcançar uma geração livre de SIDA.

Muito obrigado. Estamos juntos.

*Opinião alusiva ao Dia Mundial de Luta contra o HIV e SIDA e o título foi adaptado pelo O País

Li com redobrada atenção o comunicado de imprensa “CDD Condena Ataques do Presidente da República à Liberdade de Imprensa”, e fazendo fé do mesmo artigo, “o Presidente da República autorizou as FDS a responsabilizarem os órgãos de comunicação social e as redes sociais pela desinformação sobre o conflito armado em Cabo Delgado.”

Porque, sobre o assunto, o Centro Para a Democracia e Desenvolvimento, CDD, evoca, no comunicado, a Constituição da República de Moçambique, a minha primeira reacção foi de medo. Medo porque ocorreu-me naquele ápice a hipótese de a Lei Mãe também garantir ao cidadão o direito de desinformar.
Estiquei a mão para alcançar a Constituição da República, edição actualizada em 2018, bem recentemente. Folheei até a página 50, onde detive-me no artigo 48, das “Liberdades de Expressão e Informação”. Informação. Não desinformação. Comecei a ficar aliviado, pois gozo do capricho de abominar a ideia de ser desinformado. Fiquei completamente tranquilo ao ler na Constituição: “todos os cidadãos têm o direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, bem como o direito à informação.”

Mas, como ando sempre feito de dúvidas, ainda surgiriam em mim outras questões sobre a preocupação do CDD, contida no seu comunicado de Imprensa. Será que esta importantíssima instituição da Sociedade Civil anda mesmo apreensiva, querendo ver o cidadão desinformado sobre o conflito armado de Cabo Delgado?

Como resposta, entendi que tudo pode estar a passar pela preservação do direito de expressão. Todavia, o direito de expressão que o cidadão detém, não abre alguma prorrogativa para o gozo infinito. O proveito do direito de expressão anda irmanado ao direito à informação, não à desinformação. Agora, do meu lugar de leigo sobre matéria do Direito, colocaria a seguinte questão aos concidadãos juristas: será que, quem se dedica a desinformação não estará a lesar o direito à informação de outrem, mesmo ao jeito de vender gato por lebre?

Entendo que, ao comprar um jornal ou despender megabytes nas Redes Sociais, os cidadãos buscam informação e, em condições normais, nunca a desinformação. Se o Presidente da República autorizou as FDS a responsabilizar os órgãos de comunicação social e as redes sociais pela desinformação, não estará ao mais simples acto, a defender esse Direito à Informação?

Por outro lado, de acordo com o comunicado de imprensa em alusão, o Presidente da República teria exortado às FDS a tudo fazer para apurar a veracidade dos factos. Estarem atentas a qualquer tendência de difusão de quaisquer imagens ou notícias. E que a vigilância deve partir das FDS, que não podem ser denigridos deliberadamente e passivamente, sem responsabilizar esse tipo de compatriotas.

Ora, nesse trecho, confesso ter lido hilariado, perguntando-me: será que o CDD está interessado em ver as forças de defesas desinteressadas em apurar a veracidade dos factos? Por que nos incomodaria a veracidade dos factos? Ademais, em abono da verdade, não encontro nas citações do comunicado ao Presidente da República algo atentatório a integridade física e/ou às liberdade dos cidadãos: Nem apurar a veracidade dos factos; nem o facto de as FDS estarem atentas a difusão de quaisquer imagens ou notícias que constituem violação dos direitos do cidadão. Possivelmente, a questão se ligue a como as FDS irão lograr esse fim. Mas o Presidente da República nada teria dito sobre, a julgar pelas citações contidas no Comunicado do CDD.

A luta contra o terrorismo não se vencerá em Moçambique apenas pelo estampido de armas. O terrorismo, armado de capacidade de fogo, é ao mesmo tempo, uma batalha de informação. Nesse contexto os meios de comunicação funcionam como autênticas armas de controlo da opinião pública. Cientes desse facto, apelaremos as FDS a estar alheias? Se o Presidente da República se refere, igualmente, às Redes Sociais, quem não sabe que, historicamente, a Internet nasce como um meio de uso militar, e que hoje os Jihadistas a exploram para espalhar o terror no seio das sociedades? Seria, quanto a mim, muito irresponsável por parte do Chefe de Estado não advertir as FDS para terem atenção a essa batalha de informação, como instrumento de propagação de imagens horripilantes, que espalham o medo e o pânico, sentimentos que os terrorista julgam essenciais à sua jihad.
Por outro lado, sejamos francos, os jihadistas movimentam altos valores monetários, como forma de conduzir a batalha na frente de comunicação pela media, também se batem ou se baterão por controlar alguns canais de informação do nosso País. Alguns não estarão imunes ao aliciamento, e poderão “jihadizar” as suas páginas. E, porque estamos a falar de informação e gestão da mesma em Moçambique, face o terrorismo galopante, depreende-se com alguma amargura que este já detém algumas conquistas no seio do público incauto, tudo graças aos nossos meios de comunicação, sem muito esforço, os jihadistas já conquistaram a designação de insurgentes. O que é uma insurgência? Entre muitas definições, é uma rebelião contra um poder instituído, ou porque o tem como ilegítimo ou porque é de ocupação estrangeira. Ao chamarem os terroristas de insurgentes, os nossos órgãos de comunicação não estarão a conferir alguma legitimidade às suas acções? Por ironia, o terror implantado em Cabo Delgado comporta uma forte componente externa. Estarão esses estrangeiros a insurgir-se contra o quê em Moçambique? Aqueles senhores podem ser muita coisa, menos insurgentes. Pelo menos, insurgente é Mariano Nyongo, que se rebela contra o próprio líder, Issufo Momade.

Portanto, em tudo e mais alguma coisa, não vejo problema nenhum em o Presidente da República ter autorizado as FDS a responsabilizarem os órgãos de comunicação social e as redes sociais pela desinformação sobre o conflito armado em Cabo Delgado. A questão que o CDD e os órgãos de comunicação que se mostram preocupados deviam levantar, prende-se, possivelmente, aos métodos: como é que as FDS responsabilizarão os órgãos de comunicação e os utilizadores das Redes Sociais que desinformam?

Às vezes no próprio coração da palavra se reconhece o silêncio.

Clarice Lispector

 

 

A abordagem deste artigo bem poderia incluir outros três livros de Pedro Pereira Lopes: Viagem pelo mundo num grão de pólen (poesia), O mundo que iremos gaguejar de cor (contos) e mundo grave. O que estes títulos têm de comum é evidente. A questão que se coloca é: por que quatro livros do ficcionista e poeta têm a palavra “mundo” no título? É uma pergunta que nos interessa responder, mas não hoje, afinal há um livro novinho por apreciar: mundo blue (ou o poema em quarentena), recomendável, no qual cabe a visão do universo de um autor fértil na exploração e na subversão das questões orgânicas da existência.

Mais do que um livro poético, a nova proposta literária de Pedro Pereira Lopes é uma viagem múltipla sobre as questões concretas e abstractas. Nesse trajecto pelos planos tangíveis e irreais, (im)possíveis e desejáveis, o poeta parte de um exercício quieto e pessoal, evidentemente, implicado a uma série de elementos externos que o interessa captar. Há algumas consequências nisso, pois, por exemplo, se no coração da palavra se reconhece o silêncio, nessa condição emana uma sequência de amostras a atribuírem ao verbo o poder da configuração da imagem. E a imagem, aqui, não é inerte. Pelo contrário, a voz enunciadora a impende de ser, ao exprimir-se como se a imergir-nos na memória da paisagem semântica. Nisto tudo a acção da palavra em movimento lento, continuado, é um acto irreversível. Logo, este mundo blue se compromete a percorrer lugares como Costa do Sol, Inhaca, Chiveve e Lilongwe, absorvendo nesses ambientes pormenores naturais e emocionais, dando às cores outras tonalidades numa combinação mista de perspectivas admissíveis sobre os horizontes. Pleno e consciente… a alusão aos lugares pelos sujeitos de enunciação inscreve-se numa espécie de diálogo connosco, sempre mantendo intermitentemente uma dimensão telúrica na escrita.

No plano concreto, além dos lugares revisitados, visualizamos propósitos poéticos projectados em movimentos (horizontais e verticais) e alguns reconhecimentos aos nomes e às obras desses homens que, igualmente, dão vida à versificação: “os escritores são raça estranha/ mas enfadonha seria a vida sem eduardo white/ sangare okapi ou álvaro taruma” (p. 21), e, igualmente, acrescentamos nós, sem Clarice Lispector, Omar Khayyam e Craveirinha, outros autores referenciados no livro.

mundo blue é um exercício singular, que apalpa os sentidos abstractos do que a palavra em silêncio consente. No seu plano demiúrgico, com faculdades ulteriores, o poeta exprime-se e sujeita-se às sensações para compor infinidades: “ateio a fé do primeiro passo e/ choro para edificar luares” (p. 18). É nas lágrimas invisíveis que se enxerga a dor, as perdas, as discordâncias, o desejo do céu, esse lugar fecundo para tantas invenções, e a angústia estampada na saudade do tempo, do ser, do clima e do que está por vir: “tenho saudades do futuro/ sou homem com saudades de mulher sem cais/ deverei falar aos deuses da minha saudade?”. E uns versos depois desses: “na segunda-feira o céu caiu/ tive saudades da chuva com trovoadas na quarta” (p. 25).

Este exercício com pendor lírico intangível e visual divide-se em duas partes, designadamente, “à beira da ilha: choviam meteoritos no mar” e “névoa seca”. Ambas as partes interligam-se (sem descontinuidades), tecendo histórias não desenroladas. Temos narrativas nos versos de mundo blue, pássaros, mar, sol, luares e até o verso como acto libertário: “sou livre/ quando in-con-ti-do/ o poema/ nasce” (p. 50).

Os que consideram Pedro Pereira Lopes um dos autores em ascensão mais interessantes de Moçambique, de facto, têm neste mundo blue razões suficientes para alimentarem as suas expetactivas.

 

Título: mundo blue (ou o poema em quarentena)

Autor: Pedro Pereira Lopes

Editora: gala-gala

Classificação: 15

 

Terra Sonâmbula, 1992, é o quarto livro do escritor moçambicano Mia Couto, e seu primeiro romance. Esta obra, não só olhando por aquilo que é definido pelas teorias da literatura, como também pelo impacto que a mesma cria num simples leitor, é, na minha opinião, um dos melhores livros deste autor. Diga-se de passagem, Mia Couto, para além de ser um escritor prolífico, é, igualmente, um dos mais criativos, quanto mais não seja no campo do “brincamento” da linguagem.

Terra Sonâmbula é realmente uma das suas grandes criações literárias. Creio eu que foi justamente a partir deste livro que Mia aprimora e consolida aquele linguajar muitas das vezes poetizado, que é característico dos seus textos. A sua obra como um todo, principalmente, na vertente dos diálogos entre as suas personagens, denota vários cruzamentos de “pensatempos” filosóficos, onde o absurdo parece, de alguma maneira, ganhar forma e espaço, decorrente da própria condição humana. E literatura é exactamente isso: captar, retratar, ficcionar, problematizar a realidade humana.

Mia Couto transporta consigo três mundos distintos, a saber: o da cultura ocidental, em razão de seus pais terem sido emigrantes portugueses; o da cultura africana (com ou sem profundo domínio), pelo facto de ter nascido e crescido em Moçambique, em meio urbano; e, por último, o da “cultura” individual, resultado do livre arbítrio e da racionalização de si próprio, como ser humano.

Em CRIATIVIDADE e PROCESSOS DE CRIAÇÃO, 1978, Fayga Ostrower defende que “(…) O modo de sentir e de pensar os fenómenos, o próprio modo de sentir-se e pensar-se, de vivenciar as aspirações, os possíveis êxitos e eventuais insucessos, tudo se molda segundo ideias e hábitos particulares ao contexto social em que se desenvolve o indivíduo. Os valores culturais vigentes constituem o clima mental para o seu agir. (…) Representando a individualidade subjetiva de cada um, a consciência representa a sua cultura.”

Por conseguinte, são três realidades nele confluentes e, como é natural, por vezes conflitantes, que ninguém lhe pode negar, e muito menos ele a si próprio. Além do mais, Mia fez-se escritor conservando a sua singularidade, ocupando deste modo o seu lugar no universo literário moçambicano, de per si vasto e diverso, onde todos cabem nele, sendo então possível, fora de todas as idiossincrasias, uma convivência salutar respeitando, naturalmente, as opções literárias de cada um.

Provindos, por assim dizer, de vivências e realidades diferentes, para o gáudio da literatura moçambicana, este facto leva a que a resultante produzida pelos escritores moçambicanos, no seu conjunto, seja, indiscutivelmente, este rico e invejável património literário do qual o País só se pode orgulhar.

De entre as várias definições da literatura, gosto daquela que Goethe estabeleceu, ao criar a expressão “literatura universal”, como sendo toda aquela literatura que expressa as melhores obras literárias de significação que vai para além das condições nacionais. Ora, de um modo geral, muitas das obras de autores moçambicanos, com destaque para escritores como o Mia, parece responderem a esta formulação de Goethe, na medida em que elas extravasam fronteiras, realmente para além do espaço em que elas foram produzidas. Por isso mesmo, julgo que a escrita de Mia Couto, fora e dentro do País, vai conquistando outros olhares para a sua afirmação.

Vejamos a seguir dois trechos retirados de Terra Sonâmbula:

“Cerimónia fúnebre foi na água, sepultado nas ondas. No dia seguinte, deu-se o que de imaginar nem ninguém se atreve: o mar todo secou, a água inteira desapareceu na porção de um instante. No lugar onde antes pairava o azul, ficou uma planície coberta de palmeiras. Cada uma se barrigava de frutos gordos, apetitosos, luzilhantes. Nem eram frutos, parecia eram cabaças de ouro, cada uma pesando mil riquezas. Os homens se lançaram nesse vale, correndo de catanas na mão, no antegozo daquela dádiva. Então se escutou uma voz que se multiabriu em ecos, parecia que cada palmeira se servia de infinitas bocas.

Os homens ainda pararam, por brevidades. Aquela voz seria em sonho que figurava? Para mim não havia dúvida: era a voz de meu pai. Ele pedia que os homens ponderassem: aqueles eram frutos muito sagrados. Sua voz se ajoelhava clamando para que se poupassem as árvores: o destino do nosso mundo se sustentava em delicados fios. Bastava que um desses fios fosse cortado para que tudo entrasse em desordens e desgraças se sucedessem em desfile. O primeiro homem, então, perguntou à árvore: por que és tão desumana? Só respondeu o silêncio. Nem mais se escutou nenhuma voz. De novo, a multidão se derramou sobre as palmeiras. Mas quando o primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa água e, em cantaratas, o mar se encheu de novo, afundando tudo e todos.”

Outro trecho:

“Espreitei o corpo na distância. Realmente, o homem estava escurecido, dessa cor estagnada dos machongos (Machongo: terra fértil de solos argilosos). E a corda, parada em sua mão, o que seria? O mesmo miúdo me contou: o homem estava a fazer uma corda para se enforcar. Dia e noite enrolava o sisal sem nunca terminar a obra. Já o inuntensílio tinha o comprimento de uma porção de metros. Não chegou a usar, não se pendurou. Faleceu assim mesmo, razões de dentro. A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.

O morto ali ficou, na berma da estrada todo o dia. Na manhã seguinte ainda estava no mesmo lugar, louvado pela moscaria. Vendo bem, o cadáver descuidado no passeio não descondizia com tudo resto. Simbolizava aquilo que a vila se tinha tornado: uma imensa casa mortuária. Ao meio-dia um grupo de soldados veio remover o corpo. Arrastou-lhe pelos pés, ao longo da estrada. Aquele era o funeral que cabia ao anónimo desvalido: poeirando pela rua, as moscas zunzinando, contratadas carpideiras dos ninguéns.

Fiquei a ver os soldados se afastando entre as casas demolidas. O ar estava carregado, ensopado. Ao olhar o fúnebre cortejo, desaparecendo entre os escombros, me veio o pensamento: nós, que nasceremos naquele tempo, éramos os últimos viventes. Depois de nós já não havia mundo para receber mais ninguém.”

Deixo aqui espaço para que o leitor prossiga e conclua este texto, analisando este autor e a sua obra, concordando ou discordando comigo.

Dir-se-á que há, em Moçambique, um esforço de revitalizar a assunção (que é já um lugar comum) de que somos uma nação de poetas. Que a revitalização ocorre, todos sabemos. Quanto ao esforço empreendido, haverá reservas decorrentes dos sinais duma naturalidade possível de encontrar em Otildo Justino Guido e Pedro Pereira Lopes nos seus “O Silêncio da Pele” (doravante OSDP) e “Mundo Blue (ou o poema em quarentena) ” _ doravante MB, respectivamente.

OSDP sai pela Fundação Fernando Leite Couto no âmbito da 2ª edição do prêmio que visa homenagear o seu patrono e dar continuidade ao seu legado. Conta com 85 poemas, divididos em duas partes: Ka Madaukane _da fome e do silêncio & Da Pele e da Caligrafia. MB sai pela gala-gala edições, com os seus poemas divididos em duas partes: à beira da ilha: choviam meteoritos no mar & névoa seca. Vale mencionar o facto de Rui Batista (em OSDP) e Mélio Tinga (em MB), respectivamente, terem dado provas de sua excelência no desenho gráfico destes livros que não deixam a desejar na visão nem no tato, embora neste último caso haja vista que os créditos vão para Minerva Print e TPC, Lda.

Quando em 1965 no seu “A Arte como Processo” Chklovski referiu que “a imagem poética é um dos meios da língua poética. A imagem prosaica é um meio de abstração” talvez não imaginasse que em 2020 e neste hemisfério em que nos encontramos, duas obras traduziriam muito bem o seu conceito de poeticidade como um processo. De facto, OSDP e MB permeiam os textos lá contidos de uma construção poética imagética com fortes referências surreais bastante vincadas, sobretudo em OSDP.

Ler “um fantasma me sacode por dentro/a minha alma vaza pelo poros/ e seca como vampiro empalado” na página 35 de MB e “libertam o único pássaro/ que habita na boca/ e é como lâmina afiada/rasgando o tempo” na página 26 de OSDP seria, por um lado, um exercício de prova da fé que depositamos nas palavras daquele teórico russo e, por outro, a confirmação da premissa segundo a qual a poesia que nestes dias se faz é um mosaico de imagens embebidas de intenções simbólicas e metafóricas que vem prolongar a plasticidade da expressão que se pretende no poema e a experiência sensorial.

Este processo criativo percorre os textos de OSDP e MB numa leveza que se promiscui com a simplicidade com que a complexidade da vida, do mundo, dos amores, dos desamores e outras interceções intimistas são tratadas. Vale, contudo, ressaltar a miscelânea que em MB se faz desses universos com a metalinguagem e uma permanente referência intertextual a outros cultores da palavra com quem o autor de MB deve privar social ou literariamente através da leitura. Leia-se, sobre este aspecto de MB os textos das páginas 21, 30 e 38, respectivamente.

Em OSDP, este processo é aguçado pela associação de imagens aparentemente desconexas para o leitor não informado demonstrando a preleção do sujeito poético pela expressividade dos significantes.

Ler, na página 55 de OSDP, “nossa lágrima grossa/tomba sobre o chão da língua/e desfaz-se em palavras/no silêncio da pele” revela-nos um dos mil e um exemplos que podemos encontrar nesta obra que faz jus à proposição de que “a finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento”. TODOROV et al (1999: 81)

Torna-se, então, inevitável ler OSDP e MB sem fazer esta associação do processo criativo que aproxima estes dois livros que me endossam a prateleira numa simultaneidade estranha que só podia “desaguar” nestas brevíssimas linhas que delas faço como quem pretende participar de um debate que se tem proliferado entre os escritores a respeito da forma e intencionalidade da escrita, para dizer que “o processo da arte é o processo de singularização dos objectos e consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção”[1].

[1] A arte como processo (74 – 95) in TODOROV et al (1999: 81-82)

No imaginário infantil, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muitas, pelo contrário, simbolizavam a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rovers, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas, e se boleavam, aproveitando a distracção dos pedalantes, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.

A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas feitos transportes públicos. Carroçarias empilhadas e necessidade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram ao tempo e testemunham, ainda, essa fantasia que se estende pelo infinito. A verdade foi sempre a filha do tempo, e a sabedoria, a filha da experiência. De geração em geração, txopelamos nossas vidas no Centro, no Sul e no Norte deste país que busca esse horizonte de comunhão e prosperidade. Umas vezes por aventura, outras, não raras, por condição. Txopelar dá sentido as carências e vivências.

Os veleiros, nacalenses por designação, se transformaram na única salvação para a sitiada população dos distritos costeiros do Norte de Cabo Delgado. Os txopelas da salvação. De noite ou de dia, eles passaram a transportar milhares de vidas e almas ansiosas pelo reencontro com a própria vida, serenidade e razão para terem nascido. Estes moçambicanos não procuram portos-seguros, antes, procuram as razões da discórdia, da falta de irmandade. Buscam, neste percurso, o sentido da serenidade e da racionalidade.

De Quionga a Olumbi, de Panguane a Pundanhar, Quiterajo a Mucujo, a debandada quase não deixou de ter mãos a medir. O último campeonato pela sobrevivência, mas, nunca, a última corrida em busca de conforto e bem-estar. Distâncias nebulosas, permeadas por ventos e monções do Norte ou Sul. Uns a estibordo e outros à bombordo. Como carga levam seus parcos haveres. Os sobreviventes patos e galinhas, também eles deslocados, como se fossem o maior tesouro de um passado sem tantas carências. Estas aves, sequer precisam de explicações para entenderem as razões da fuga. Como qualquer racional, agradecem aos seus deuses e espíritos pela salvação. No desespero e aflição, não importa as condições e muito menos a comodidade dos txopelas. Elas nunca existiram. Por isso, são txopelas. Ser transportado sem segurança e na aventura. Precisam de se apinhar para zarparem.

Embarcados, e na precariedade do desconforto, viram todos insulares e sem história e nem nomes, procurando refúgio no continente, um espaço que os deixe olhar para os outros seres na condição humana. Porém, a ondulação e os silêncios, atravessadores pelas ordens dos ventos, se fracturam com os choros de crianças não contabilizadas no horário da partida. O txopela, quando todos mesmos esperam, se reconverte em maternidade. Um parto sem assistência e dignidade, mas com a solidariedade das matronas e assistidos por capulanas salgadas pelas ondas. Os mais inapropriados e inconcebíveis espaços para se chegar ao mundo. O mar de tantos mistérios reserva para si o direito de conservar, em suas profundezas, as placentas que registam a incredulidade da malícia e fúria assassina insurgente.

Hawa ou Eva, nessa etimologia bíblica, foi uma de tantos que vieram e chegaram ao mundo flutuando. Embalados pela sinfonia combinada de ondas que testemunham tantos outros nascimentos, no interior de suas profundezas, porém, quase nunca, na superfície de suas águas. Mas, são estas águas que se acalmaram para receber cada uma destas crianças. Receber e transportar para outros mundos inundados de dissabores e imperfeições.

No mar florescem para a vida os pequenos guerreiros ávidos de rescrever sua própria história, alterar o curso da humanidade e fazer valor a historicidade de tantas gerações de Manis que souberam viver da pesca e caça ou recolecção, mas, jamais, de fratricida e inexplicadas disputas. Hawas, Faridas e Omares, Anchas e Ibraimos, Naziras e Salimos, tantos que agora parecem ser números, mas que transportam fascinantes histórias de trabalho, vida e amor. O tempo se encarregará de escrever a sua própria história. Estas crianças nascidas em maternidades ambulantes e flutuantes serão candidatas a navegantes fugidos da barbárie e crueldade, em busca da terra prometida, como Moisés procurou Jerusalém, partindo para essa fé que alimenta a religiosidade.

Vivemos txopelados para essas esquerdas e direitas, com rajadas de vento nem por isso tão favoráveis. Para tanta desgraça não pode ser apenas a natureza que dita o nosso destino. Somos nós próprios. O bom senso e condução colectiva terão de nos orientar para um porto de calmarias. Assim, a sorte acompanhará os audazes.

De maternidades flutuantes os txopelas podem, lamentavelmente, transformar-se em pequenos calvários, espaços onde a vida deixa de fazer sentido. Neste mesmo mar de tantas alegrias e salvação, os afogamentos sepultam corpos em suas águas cristalinas. Junto da placenta dos recém-nascidos, jazem heróis e famílias com destinos interrompidos. As paradisíacas ilhas assistem com a mesma cumplicidade, o gerar e o desfazer de vidas. São estas águas que retiram o melhor de nossos concidadãos. São os txopelas das múltiplas tragédias de tantos refugiados e fugitivos. Nestas horas, o idílico azul se converte num túmulo sufocante e frio, para deixar nas suas profundezas os sonhos de quem nunca entendeu a génese de tanta conflitualidade, descrença e vandalismo.

Entre maternidades e calvários, só tem um nome, esperança de um outro futuro e novos horizontes. Estes txopelas são as imagens do sofrimento, narradas de formas tão cruzadas, incompletas e incoerentes, insensíveis e arrepiantes, que viajam em sentido inverso do aceitável e tatuando as nossas consciências e memórias. Os txopelas revelam a plenitude de uma tragédia e crime humanitário cujas proporções, só mesmo Deus poderá, algum dia, justificar.

Na linha do horizonte, os txopelas vão chegando silenciados e com a réstia de esperança restabelecida. Invadem as místicas praias do Paquitequete. Areias brancas transformadas em pequenos hotéis desprovidos de tudo.  Um céu aberto e a última redenção divina para quem alcança terra firme.  Paquitequete abraça a todos com a mesma gentileza que recebe dezenas de pescadores. Para trás, as narrativas de uma longa aventura, os relatos da crueldade e descaso, a matriz de sentimentos, de pequenez da nossa solidariedade e generosidade e de um presente que não quer ser passado, pois, o futuro também parece ter deixado de existir.

O artigo anterior apresentou com algum detalhe a realidade da Universidade de Macau (UM), neste procurarei referir essencialmente mais alguns aspectos interessantes, normalmente desconhecidos e aos quais tenho estado mais ligado dentro da instituição e que fazem parte duma história que começa a estar recheada de vários sucessos significativos e com impacto mundial.

No entanto, gostaria de salientar numa pequena nota inicial ainda o Encontro Anual da AULP, em Maputo em 1999, na Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Foi um marco importante na minha vida pois marcou o regresso a Moçambique 25 anos depois de ter partido, mas também porque no âmbito do mesmo pude apresentar cumprimentos e falar de novo com o Presidente Joaquim Chissano que tinha ainda bem presente o Doutoramento Honoris Causa na UM no ano anterior. Carreguei de novo o meu imaginário com o contacto pessoal com os Moçambicanos, sempre inesquecível, o regresso a ex-libris memoráveis, como o Restaurante PiriPíri e a Igreja da Polana, a ida ao Palácio da Ponta Vermelha e a estadia no famoso Hotel Polana, estes 2 últimos locais, que na minha memória de miúdo eram inacessíveis e apenas reservados aos “Deuses do Olimpo”!
Mas, regressando à UM, escrevi anteriormente que a minha maior motivação para começar a “partir-pedra” em 1992, em Macau, foi a excelente qualidade dos alunos locais, bem treinados no ensino básico e secundário, extremamente aplicados no estudo, e com grande “Sede-de –Saber”. Apenas três exemplos, o primeiro, em 1994, dava a cadeira de Análise de Circuitos ao primeiro ano da licenciatura, na primeira aula, ao fim de 10 minutos, um pequeno aluno (em termos de estatura pois tinha menos de 1.5m) no meio da sala levanta o braço com uma dúvida, achei estranho pois os alunos Chineses raramente fazem perguntas durante as aulas, e a dúvida era do mais elementar possível, pensei, não faz a mínima ideia do que estou a falar, mas expliquei tudo em detalhe, tendo ido inclusive atrás para explicar outras coisas que devia saber desde o secundário. Não houve mais dúvidas e a aula acabou sem mais nenhuma pergunta. Na aula seguinte, a meio, o mesmo aluno levanta de novo o braço com outra dúvida, também muito elementar, mas esclareci tudo como anteriormente. Pensei, vou ter de continuar a responder a este tipo de perguntas básicas até ao fim do semestre…estava certo e errado, as perguntas continuaram, sempre pelo mesmo aluno, mas o nível das mesmas foi aumentando significativamente, de tal modo que, perto do fim do semestre (só apenas nessa altura descobri que o tal aluno afinal era uma Aluna! Estas ainda eram mais reservadas que os rapazes nas aulas, nunca abriam a boca…) quando o braço se levantava, eu perguntava: “Ok Ruly, what have I written wrong in the board?”… pois, nessa altura, as dúvidas que tinha estavam relacionadas com uma ou outra gralha que eu poderia escrever no quadro, ou seja, já me tinha ultrapassado… no fim do 3º ano já tinha feito todas as cadeiras do 4º ano, mas não podia ainda concluir o curso porque o projecto final (1 ano completo) frequentava-se apenas no último ano. Portanto, nesse ano fez o projecto final comigo e seguiu as minhas 3 cadeiras de mestrado em microelectrónica. Mas, gostava mais de antenas pelo que foi para Hong Kong (HK) fazer o mestrado e doutoramento nessa área, na tal Universidade de Ciência e Tecnologia (HKUST). Ainda me lembro bem que escrevi uma carta especial directamente ao Chefe do Executivo de HK para ele autorizar a sua inscrição, pois a candidatura tinha sido recusada pela universidade devido a problemas de residência, surpreendentemente ele aprovou! Fez um doutoramento brilhante e numa das conferências em que participou encontrou um colega alemão, casou com ele, teve 2 filhos e vive na Alemanha. Foi a(o) melhor aluna(o) que alguma vez tive. O segundo, o Ben, frequentou a primeira turma de mestrado e participou no projecto que desenhou o primeiro circuito integrado (chip) em Macau em 1995, que designámos por UMCHIP, e subsequentemente, foi um dos meus primeiros alunos de doutoramento que obteve o grau-conjunto Faculdade de Ciências e Tecnologia, UM/Técnico, U de Lisboa, em 2002. No âmbito do seu trabalho projectou também um chip que na altura foi o primeiro da UM a ser publicado na conferência mais importante de electrónica no mundo que se realiza sempre em São Francisco, USA, e que se designa por ISSCC – International Solid-State Circuits Conference. Só o conseguiu porque era um circuito “do outro mundo”, com um desempenho invulgar sem comparação com qualquer outro projectado por empresas ou universidades de topo. Actualmente, é IEEE Fellow (USA) e dirige em Macau a sucursal de uma das maiores empresas americanas do ramo. O terceiro, o Elvis (o nome foi bem escolhido, como eu lhe costumo dizer: “You’re The King”! Os Chineses para além dos seus nomes próprios escolhem quase sempre um alias em Inglês), enquanto aluno, no 1º ano da licenciatura, numa aula expliquei, fora do programa da cadeira de Análise de Circuitos, o que significava a investigação nessa área que implicava a publicação de artigos em conferências e revistas científicas de nível internacional. Ele, que era um aluno normal, após a minha apresentação decidiu que era aquilo que queria fazer na vida, voltei a encontrá-lo no 4º ano, em 2003, fez o projecto final de licenciatura com o Ben e comigo, e consequentemente escrevemos um artigo numa revista científica do IET (UK), tendo sido o primeiro aluno de licenciatura a conseguir fazê-lo, normalmente este tipo de artigos em revista são escritos no mestrado ou só mesmo no doutoramento. Com este resultado propus que fizesse o doutoramento directo a partir da licenciatura e em 2006 estava doutorado, sendo também aos 41 anos quase tudo, IEEE Fellow (USA), IET Fellow (UK), Royal Society of Chemistry Fellow (UK), China Academy of Sciences Overseas Member, Professor Catedrático, e em breve, o meu sucessor… Juntamente com o Ben, o Elvis e mais outros, todos de Macau e doutorados pela UM, vimos o nosso laboratório de electrónica elevado em 2011 a Laboratório de Referência da China, com a designação de State Key Laboratory of Analog and Mixed-Signal VLSI, que ao fim de dez anos, já com cerca de 100 membros (70% de Macau) é líder na área em todo o país, colocando a UM à frente da HKUST e de qualquer outra universidade na China. Para além disto, mundialmente e em 2019, na mesma conferência, em termos de números de artigos/chips apresentados (tivemos 8), à frente da UM encontra-se apenas a INTEL (com 10), o que confirma o que afirmei no artigo anterior, ficou provado que o professor que se opôs ao lançamento da pós-graduação em electrónica no Senado da UM (em 1993) estava errado. Após quase trinta anos, os sucessos obtidos, deveram-se inicialmente, em grande parte aos alunos geniais de Macau mas agora também aos da China Continental que já nos procuram em grande número.
Fazendo um parêntesis, apesar de estar radicado em Macau há 28 anos, ainda hoje mantenho a minha ligação ao Técnico, através duma lei portuguesa que permite uma licença especial apenas para o Território. Assim, desenvolvi a minha carreira paralelamente nas 2 universidades e tive de concorrer a mais de uma dezena de Concursos Públicos em Portugal, para Professor Associado e depois Catedrático. Num desses Concursos, um colega Catedrático do Júri com o qual contactei depois deste estar concluído disse-me: “Rui, o maior erro que fizeste na tua vida foi teres ido para Macau!”, depois de trocarmos vários emails e lhe ter explicado melhor a minha situação afirmou: “Rui, teres ido para Macau foi o melhor que fizeste na vida”!!!… finalmente compreendeu, e apesar de longe atingi todos os objectivos da carreira académica tendo passado em Portugal pela primeira vez a Catedrático, em 2008, e por sinal, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, precisamente na última cidade em que o meu Pai trabalhou. No entanto, por tal implicar o regresso a Portugal, e devido à insistência do Governo da RAEM para que aqui continuasse, como Vice-Reitor, desisti da vaga e continuei ligado ao Técnico. Passei igualmente a IEEE Fellow (USA) em 2008 (sendo um dos 10 primeiros portugueses que o conseguiram), e em 2010 fui eleito para a Academia das Ciências de Lisboa, sendo o único dos seus membros a trabalhar na Ásia, pelo que não me arrependo da opção que fiz.
Mas, durante este período, continuei a manter a ligação da UM à AULP através de uma das Vice-Presidências, a 4ª, entretanto criada para a Ásia, em 2005. Nesse âmbito, em 2006 foi estabelecido um acordo entre a UEM e a UM para a colaboração ao nível da investigação e da pós-graduação na área do Direito, e um dos primeiros alunos que aproveitou a oportunidade foi o Almeida Zacarias Machava, que posteriormente decidiu também seguir o doutoramento concluído em Maio de 2013, e que actualmente é Professor na Faculdade de Direito da UEM. O seu doutoramento, ao qual tive a honra de presidir, foi o primeiro em Direito em Língua Portuguesa na Universidade de Macau!
Já em Outubro de 2013 e como Vice-Presidente da AULP, tive a oportunidade de me deslocar de novo a Moçambique, e pela primeira vez ao Norte, a Nampula e ao Niassa, para visitar a Universidade Lúrio e assistir à inauguração do seu terceiro campus no Niassa, a convite do Reitor Jorge Ferrão, na altura na Presidência da AULP. Foi mais uma experiência memorável, nomeadamente as visitas a Nampula e Lichinga e em especial a cerimónia em Wannangu (um campus completamente no meio do nada), presidida pelo Chefe de Estado, Armando Guebuza, a quem tive o prazer de oferecer a Medalha Comemorativa das Bodas de Prata da UM. Um detalhe a salientar, antes da inauguração oficial, junto a uma “árvore especial” no campus, o Régulo local realizou a inauguração de acordo com a tradição, na presença do Presidente Guebuza e de todos os participantes. Inolvidável!
Rui Martins.
Macau, 21 de Novembro de 2020.
P.S.- Não me posso esquecer também nesta visita a Moçambique do acompanhamento inestimável do Professor Tito Fernandes que entre outras coisas me levou pela primeira vez a uma Fábrica de Cajú! Por mais uma daquelas coincidências do destino ou não, os Professores Tito Fernandes, Jorge Ferrão e eu, somos todos Confrades da Academia das Ciências.

Uma nota de “leitura” por Agnaldo Bata

 

Em um ano em que a prestação das autoridades policiais tem estado no centro de vários debates formais e informais, particularmente pelos casos « Matalane » e « 10 de Novembro »,  apraz-nos recordar de um exemplo flagrante em que a arte, concretamente a cinematografia, trouxe para cima da mesa de debate insumos que nos permitissem, com antecedência (ou não), reflectir profundamente e buscar soluções sobre alguns temas transversais aos tempos actuais, tais como « assédio », « poder », « consentimento » e « respeito pelos direitos humanos ».

Em alusão, é o filme moçambicano «A virgem Margarida », publicado em 2012, sob a égide do cineasta  Licínio Azevedo. A longa-metragem retrata um episódio da história moçambicana aparentemente relegado para o passado pela memória colectiva, porém, cujos contornos (tomando o exemplo da prestação das autoridades policiais) podem ser bem contemporâneos. Historicamente situada logo após a independência (1975) «A virgem Margarida » traz-nos a estória de um grupo de mulheres, oriundas de várias regiões do país, que é enviado, à força, para um campo de reeducação, algures, distante de tudo e de todos, com objectivo de transformá-las em « mulheres novas », livres dos « vícios coloniais », neste caso particular, a prostituição. Dentre as mulheres encontra-se a Margarida, uma virgem de 16 anos que estava de visita a cidade de Maputo para comprar roupa do seu casamento, mas, devido a falta de documentos acabou sendo,também, presa e enviada ao campo de reeducação.

Em 86 minutos, assegurados por excelentes representações de actores da nossa praça tais como : Iva Mugalela, Sumeia Maculuva, Ermelinda Cimela, Rosa Mário, Ana Maria Albino, Ilda Gonzales e Eliot Alex (sem esquecer uma passagem icónica, porém, sempre salutar, de Mario Mabjaia), o filme faz-nos viajar sobre um Moçambique recém independente, com as feridas da guerra colonial ainda por sarar, transpirando fome, desemprego, falta de transporte, meios e vias de comunicação, entre outros.

Sob torturas, privações e maus tratos, com alguma humilhação a mistura, decorre o processo de reeducação das «mulheres de má vida», que são incitadas a enxovalhar o seu passado num baú e atirá-lo à corrente do rio. No enredo temos a figura da comandante Maria João (Hermelina Cimela) que acredita nos ideais da formação do «homem novo» como parte fundamental do processo de construção de Moçambique livre e próspero. A comandante não mede esforços para que, em nome da jovem nação, este objectivo seja alcançado (inclusive chega a adiar o seu tão aguardado casamento). Ela encarna vários moçambicanos, seja da polícia, do exército ou de outras instituições, que acreditam num Moçambique feito de cidadãos íntegros que agem dentro da lei, movidos pela boa vontade e da solidariedade com o outro, acreditando que só assim pode-se pensar em melhorar a sociedade onde vivemos. Do outro lado, temos o comandante Felisberto (Eliot Alex) que aproveita-se da fragilidade emocional e física de algumas das «mulheres de má vida » para obter benefícios sexuais. O ponto mais petrificante desta figura (desculpa o spoiler gritante) é quando ele viola sexualmente a Margarida, sob pretexto de estar a comprovar a autenticidade da sua virgindidade.

Percebemos, durante o filme, um constante diálogo emocional entre os que acreditam na integridade dos agentes da lei e lutam para que a lei seja sempre suprema, e aqueles que usam-na como escudo para obter benefícios pessoais, destruindo sonhos, plantando medo, angústia e ansiedade entre os moçambicanos, sendo este um dos grandes méritos do filme. Mas a questão não se fica por aí. O filme faz-nos experimentar a sensação de que não existem verdades simples e universais (reducionistas) sobre um determinado fenómeno. Vemos isso quando Ancha (Ilda Gonzales, que empresta a sua experiência a esta longa) uma das mulheres «presas» no campo de reeducação, seduz o comandante para obter ganhos pessoais, ou ainda quando Rosa (exemplarmente representada pela professora Iva Magulela), igualmente no campo de reeducação, resiste ao assédio por parte do comandante e mostra como é complicado denunciar o assédio perpetrado por alguém que se encontra em uma situação de poder hierárquico. Nada poderia ser mais interessante nesta longa-metragem se não estas reviravoltas que culminam com uma rebelião das mulheres, num final emocionante em que, coadjuvadas pela comandante Maria João, igualmente agastada com os abusos de poder, todas as mulheres fogem com as suas feridas emocionais e físicas, e destinos certamente mudados,  do campo de reeducação.

Rever «A virgem Margarida » em pleno 2020, foi como assistir uma história do passado que, por ter sido mal resolvida, volta a assombrar os tempos presentes e, se mais uma vez, não for resolvida por intermédio de um debate aberto, sincero e inclusivo, voltará a assombrar-nos dentro de algum tempo com consequências mais drásticas em relação as que temos vivido por estes dias, que já não deixam de ser lamentáveis.

Em suma, a arte moçambicana desempenhou, mais uma vez, o seu papel para a construção de uma sociedade melhor, forneceu-nos insumos, a partir de uma reflexão sobre a nossa história, para debatermos e buscarmos soluções dos problemas que temos vivido nos tempos presentes. Talvez devêssemos dar mais atenção e investir mais nela, pois, comprova-se a partir deste exemplo, que jamais tratou-se apenas de diversão ou lazer, mas sim, também, de um meio de exposição ou denúncia do que ocorre no nosso dia-a-dia.

Sobre o Filme:

Titulo –  Avirgem Margarida ; Ano – 2012 ; Categoria: Ficção ; Duração: 86 minAno: 2012 ; País: Moçambique ; Realizador: Licínio Azevedo

Prémios : Melhor Longa-metragem – Selecção Internacional Ficção – 29o Festival Internacional de Cinema Vues D’Afrique (Montreal) ; (entre outros, no mínimo 11) ;

o sentido da ausência em mim

liberta o desejo

e se livra

Virgílio de Lemos

 

O excerto do poema sem título, da autoria de Virgílio de Lemos, escrito em Lourenço Marques, a 30 de Junho de 1959, condiz com o que é poesia em Pedagogia da ausência. Realmente, no seu segundo livro, Amosse Mucavele atribui a vários sentidos emocionais a ausência, tornando-a abrangente, quando a manifesta no enlace entre a manipulação do silêncio e a invocação da memória.

Há séculos que o silêncio (e já nos referimos algumas vezes a isso) é uma condição poética imprescindível. À semelhança de Virgílio de Lemos, poetas mais jovens de Moçambique, por exemplo, Adelino Timóteo, Japone Arijuane, Pedro Pereira Lopes, Jaime Munguambe, Álvaro Taruma, M. P. Bonde, o próprio Amosse Mucavele e, já agora, Otildo Guido, também trabalham aquele recurso, dando voz ao vazio, à inexistência e à indiferença. No caso do autor da Pedagogia da ausência, aquele registo ocorre igualmente numa abordagem à força anímica. Esse vigor permite os sujeitos de enunciação retomarem às suas circunstâncias e à sua inocência pueril, daí a ruptura poética entre a distância e os intervalos de tempo. Amosse Mucavele assim procede para recuperar, através da memória, o que afinal não pode ressurgir, mesmo quando se trata de compensar ausências no texto. Por isso, as vozes do poema não escapam à inventariação da angústia, movida pela solidão e pela insatisfação do desejo nos moldes decisivos.

Na manipulação das trajectórias rumo ao retorno a certos lugares imberbes, Amosse Mucavele reconstrói uma casa, cujos compartimentos fragmentam-se ao longo dos poemas. No entanto, essa casa não é um lugar bom. Deixou de ser pela invasão da soledade: “na velha casa/ a solidão traça uma rotina fúnebre” (p. 11).

Nos (in)visíveis ângulos dos móveis, em Pedagogia da ausência observa-se a poeira da tristeza que, igualmente, em Hirondina Joshua faz da casa um lugar desarrumado, “quase sem alma”. Precisamente, em Amosse Mucevele a casa é triste por ter perdido “almas” que se recompõe num álbum de fotografias. Ora, no jogo entre a distância, o silêncio e a ausência, a memória surge associada ao passado juvenil, implicado a determinadas partidas da vida, enquanto o silêncio isola e amedronta, com fendas nas lembranças: “O rugir do silêncio/ é mais forte/ quando escutado nas colunas do medo” (p. 34). Nesse sentido, reconhece-se uma certa carga de indiferença ao presente, todavia pouco duradoura.

No seu segundo livro, Amosse Mucavele escreve sobre o que lhe é próximo (mesmo distante), sabe, conhece, vê e julga, quer no exercício da memória, quer no passeio aos espaços reais de Maputo. A capital moçambicana, à semelhança do seu primeiro livro, Geografia do olhar, é o chão do poeta, mesmo na alusão aos espaços líquidos, afinal: “O fim do mar é uma cidade universal” (p. 23).

Não obstante, trabalhando sobre a memória, o silêncio e a ausência, Amosse Mucavele parece esforçar-se em descortinar a face do tempo, para quiçá o transformar em intemporalidade, o que até nos sugere uma comparação com Globatinol – (antídoto) ou o garimpeiro do tempo e Mozambique meu corpus quantum, de Filimone Meigos. E Mucavele também escreve sobre a melancolia que se multiplica e vende-se. É sobre isso o poema “Mel amargo”, um retrato a respeito do instinto possessivo humano, causador do desequilíbrio ecológico.

Pedagogia da ausência é um bom livro de Amosse Mucavele, que exagera na inclusão de textos de outros autores. Em 48 páginas enumeradas, temos 31 poemas de Amosse Mucavele e 10 citações alheias ao poeta. Não havia necessidade. Contudo, nada que ofusca esse interessante cruzamento semântico e fonético timbrado nos sons dos poemas.

 

Título: Pedagogia da ausência

Autor: Amosse Mucavele

Editora: Alcance

Classificação: 13

 

A sociedade moçambicana sofreu, ao longo destes anos, muitas transformações. A forma de ser e estar já não é a mesma em relação ao passado. Algumas práticas desse tempo que se usavam para corrigir certas situações comportamentais das crianças, hoje podem ser vistas como crime, violência doméstica ou dos direitos humanos.

O meu pai castigava-me ou dava-me reguadas quando achasse que estava a me desviar da linha. Fazia isso para educar-me. Formar-me como o homem do amanhã. Um homem exemplar.

De castigo para o outro saia renovado. Tornava-me aquele menino bem comportado que era um orgulho para a família. Aquele que sabia cumprimentar pessoas, respeitava os mais velhos e fazia os seus deveres de casa correctamente. Como cristão, evitava cometer pecados.

A educação que levávamos em casa tinha, por isso, que se reflectir no nosso comportamento, como crianças, no seio da sociedade em geral.

No passado, pai era sempre pai. Pais de todas as crianças da aldeia ou da comunidade. Desempenhava o seu papel dentro e fora de casa. Assim que entendesse, podia puxar de um sinto ou de uma varra e bater numa criança qualquer da comunidade por mau comportamento.

A iniciativa de castigar uma criança mal comportada podia partir de uma mulher que, à semelhança dos homens, era mãe de todas as crianças e assumia a sua responsabilidade de educadora dentro e fora da sua família, contribuindo para a moralização da sociedade no seu todo.

Curiosamente, nenhuma criança repreendida ou castigada fora de casa atrevia-se a queixar aos seus pais pela reguada que apanhou porque podia passar por uma punição a dobrar, pois estava em causa a preservação ou salvaguarda da honra e do bom nome da família.

A forma como a sociedade educava aos mais novos não era entendida como violência doméstica, nem tão pouco violação dos direitos humanos, matérias que nem sequer eram do domínio da comunidade. A sociedade tinha as suas próprias regras, os seus valores que eram respeitados por todos. Tudo acontecia com normalidade e sem qualquer tipo de questionamento. Nada do que se fazia era visto como crime, mesmo por parte das autoridades administrativas da época.

Hoje, tudo mudou. Na sociedade moderna em que vivemos, bater numa criança é reportado como um caso de violência doméstica. Bater como processo de educação e não para magoa-la. Não só há leis que penalizam esse tipo de casos, como existem no país organizações não-governamentais que ganham dinheiro com a monitoria e denúncia de ocorrências de género.

Por conta disso, a sociedade demitiu-se do seu papel de educação das crianças, jovens e adolescentes. É que o pai e a mãe perderam o seu espaço como educadores na aldeia ou na comunidade. Hoje, os mais novos dão se ao luxo de insultar aos mais velhos se um deles tomar a iniciativa de chamar atenção a uma criança em caso de mau comportamento.

Os jovens não respeitam aos pais e muito menos a estranhos. O professor não pode atrever-se a dar uma reguada a um aluno ou porque não repetiu as matérias ou porque não fez o TPC. Antes de enfrentar a lei, pode ter problemas com os país do miúdo que vão querer saber porque é que ele bateu no seu filho.

Algumas crianças não estudam e confiam na fraude académica. Copiam ou compram enunciados algures com questões já resolvidas e obtêm boas notas, mas, na prática, não sabem nada, nem escrever uma simples redacção com cabeça, tronco e membros. Os quadros do amanhã, num país que mais valoriza o diploma do que propriamente o saber fazer.

Casos de gravidez prematura multiplicam-se dia-pós-dia, o mesmo em relação ao envolvimento de jovens na venda e consumo de drogas. O alcoolismo é outro problema que a sociedade, com os seus instrumentos legais de defesa da criança, não consegue corrigir.

A sociedade já não é aquela que era, apesar da disponibilidade de leis contra a violência doméstica e a existência de organizações defensoras dos direitos humanos. Estamos perante uma sociedade com graves problemas de imoralidade por conta da degradação dos seus valores que, ao que tudo indica, ninguém consegue resgatar.

Ganhamos as leis. Ganhamos activistas dos direitos humanos sempre atentos ao dia-a-dia da criança. Já na se bate a ninguém nas escolas. A criança está num à vontade, pois não há quem lhe chame atenção na via pública, mas vamos lá ver a sociedade que temos hoje. Uma vergonha.

NB: Não sou defensor da violência doméstica, pois é inaceitável, mas às vezes é preciso que as crianças apanhem uma reguada quando não estudam ou passar por algum tipo de castigo para obrigá-las a comportar-se como deve ser na sociedade.

 

Historicamente, uma vasta bibliografia indica que, com o advento da independência nacional, ocorreu um êxodo populacional das minorias do Moçambique colonial, com o maior caudal para Portugal e África do Sul, deixando o País com cerca de 90% da população por alfabetizar. Por erosão, um considerável universo do pessoal especializado seguiria no mesmo sentido, facto que até a data chamaria a atenção dos estudiosos pelas fragilidades causadas nos sectores da indústria, Saúde e Educação, sobremaneira.

Volvidas quatro décadas e meia de independência de Moçambique, acto com registo a 25 de Junho de 1975, surge a necessidade de se analisar os demais sectores, aparentemente negligenciados, embora de magnitude nada desprezível em termos de consequências causadas na sociedade moçambicana. Como forma de contribuição, e ainda por uma questão de interesse particular, debruçar-nos-emos, no presente artigo, sobre o sector das artes, com enfoque à literatura.

Para melhor compreensão das implicações negativas do êxodo na literatura, importa, antes de quaisquer desenvolvimentos argumentativos, estabelecer um breve paralelismo com o desfalque de quadros verificado no sector industrial, em Moçambique, principalmente após a assinatura dos acordos de Lusaka, a 7 de Setembro de 1974. Este facto culminaria com a tomada de posse do Governo de Transição, cujo período de vigência marcaria um átimo de desamores em relação ao futuro da pérola do Índico.

Com a saída massiva de pessoal especializado, depois da independência, Moçambique desaba na necessidade de seguir em frente, contando com os recursos humanos disponíveis. A colocação de nacionais dotados de relativo conhecimento sobre as diferentes áreas fez com que vários incipientes ou funcionários de escalões inferiores no período colonial passassem a exercer postos de capital relevância na indústria, na Saúde ou Educação, a título de exemplo[1]. O meio literário também conheceria uma semelhante trepidação, sobretudo com a saída do País de autores que escreviam  para afirmar a ideologia colonial na sua expressão luso-tropicalista. Aliás, de acordo com Mendonça (1988), “aparece neste grupo a maior parte da prosa editada em Moçambique.”[2]

A edificação de um novo edifício literário em Moçambique conduziu à criação da Associação dos Escritores Moçambicanos, AEMO, em Agosto de 1982. Este facto constituiu, de certa forma, um braço mobilizador do Estado para impulsionar o surgimento de uma vaga de escritores engajados na causa revolucionária[3]. Jovens interessados desfruiriam de uma oportunidade histórica: ocupar um território literário quase que vazio, por imperativo das dinâmicas sociopolíticas acima descritas. Importa referir que, intencionalmente, recorremos ao termo território para induzir o leitor à ideia da territorialidade, definida como a conduta ou atitude que instintivamente os animais, incluindo o próprio ser humano, a promover a defesa do território que ocupam. No caso dos seres humanos, esta defesa também está relacionada com a cultura, facto que mais adiante trataremos com algum destaque, na esfera da literatura moçambicana.

A literatura no Moçambique colonial, à semelhança do que sucedia em muitas outras ocupações de âmbito profissional, conferia supremacia a autores de descendência europeia, que para alguns estudiosos configuram o que também Noa (2002), designa por “Literatura Colonial”, destacaremos o que este autor assume como a terceira fase dessa literatura, evocando escritores Fernando Magalhães, Guilherme de Melo, Agostinho Caramelo, João Salva-Rey, Eduardo Paixão e outros. Concomitantemente, através de uma leitura atenta sobre o percurso das letras em Moçambique, concluímos que, com este conjunto de romancistas destacados por Noa, coexistiam poetas como Rui Knopfli ou Eugénio Lisboa.

Porque a Independência Nacional de Moçambique, sob vários aspectos, impôs-se como um processo de ruptura com o passado colonial, a partir do conturbado ano de 1974, assistiu-se igualmente à saída de escritores, casos de Guilherme de Melo, que, em Outubro de 1974, faria as malas para Portugal. Rui Knopfli, em Março de 1975, seguiria o exemplo. Fernando Magalhães, em 1977, apenas para trazer à memória alguns dos autores que avultavam no panorama literário do Moçambique colonial. Aliás, arrebatado ao meio literário de Lourenço Marques, numa recentíssima edição do JL, Eugénio Lisboa, que também deixou Moçambique em Março de 1976, recordaria, marcado por alguma saudade, um dos inusitados momentos de convívio literário, já nesses distantes tempos de Lourenço Marques[4].

Diga-se de passagem que, paralelamente à saída desses escritores de Moçambique, desvaneceu a disponibilidade do livro, facto já sensível nos primeiros anos da independência nacional. Em entrevista inserida no Número 1 da Revista Charrua (1984), Rui Nogar constataria que “agora o que nos distancia da aquisição de conhecimentos literários, da aferição dos nossos próprios valores […]: é apenas a inexistência de livros, é apenas a resultante da situação que se vive em qualquer País, colonizado, subdesenvolvido.” Todavia, para muitos da nossa geração etária, residentes no centro da Cidade de Maputo, abririam as tabacarias, ao estilo da Vitória, para troca de livros, como forma de colmatar essa inexistência de livros.

 

Como ficou dito, em 1982, quando já se perdia a memória da antiga Lourenço Marques, ora Maputo, nasceu a Associação dos Escritores Moçambicanos. Lado a lado com escritores revelados no período colonial, estes mais engajados ao processo revolucionário, uma nova e influente geração de poetas e prosadores ocuparia o território literário naquele tempo deixado vago pelos cultores da apodada por literatura colonial. Como território, parafraseando Coelho Neto, entenda-se um espaço com limites estabelecidos por fronteiras colocadas [embora nada físicos], onde a questão da exclusividade de apropriação e de uso distingue hoje “nós”, os incluídos, aqueles que integram o território, e os “outros”, aqueles que não fazem parte do território.

Imbuídos desse espírito de pertença, alguns escritores da vaga de autores como Ungulani Ba Ka Khosa, Armando Artur, Juvenal Bucuane, Eduardo White, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Paulina Chiziane, Tomás Vieira Mário, Mia Couto, Suleiman Cassamo, Anibal Aleluia, Nelson Saúte, Calane da Silva, Pedro Chissano, Carlos Paradona Rufino Roque, António Pinto de Abreu, Marcelo Panguana, entre vários outros, adoptariam, alguns, uma conduta ou atitude instintivamente defensiva, para assegurar o território ora ocupado, em consciência, algo agridoce, das circunstâncias próprias do seu surgimento como escritores, e da falta de talento, notório nos textos sem qualquer relevância literária. É preciso evitar-se a romantização dos processos. Aliás, já em 84 do século passado, Fernando Couto, comentando sobre o Número 1 da revista charrua, apontava “como aspectos positivos de realce [na revista] os contos e poemas, mas ressalvando, de modo perítrico, que não todos.”

Hoje, transcorridas pouco mais de três décadas, a distância temporal nos confere a firmeza de elaborar instrumentos de análise, a aferição de quem, nesse grupo de “escritores de circunstância”, de facto foi, ou é, relevante no panorama literário, tendo em vista a obra literária, apenas a obra literária e nada mais. Chamo aqui a todos os escritores nacionais a preencher, individualmente, a tabela a baixo, de modo a que cada um possa aferir a sua relevância como escritor, no seio da sociedade moçambicana, isto atendendo o facto de ser ou não escritor de realce[5].

 

 OBRAS PUBLICADAS  REEDIÇÕES INSERÇOES EM ANTOLOGIASTRADUÇÕES EM LÍNGUAS ESTRANGEIRASPUBLICAÇÕES INTERNACIONAIS ENSAIOS ACADÉMICOS

SOBRE A OBRA

MONOGRAFIAS DE CULMINAÇÃO DE ESTUDOS SUPERIORES BASEADOS NA OBRALIVROS SUGERIDOS PARA LEITURA NO ENSINO SECUNDÁRIO PRÉMIOS LITERÁRIOS
         

 

Cientes da falibilidade de alguns itens elencados, se em mais de 35 anos de publicação, um escritor não se ajusta a 75% dos mesmos, a sua relevância como autor é assaz duvidosa. A esses itens podíamos acrescentar adaptações das histórias dos livros para o cinema ou teatro, como acontece com autores como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa e Paulina Chiziane.

Voltando à nossa linha de raciocínio, se no sector industrial, como consequência do êxodo da minoria branca, profissionais de baixa qualificação técnica viram-se na contingência de assumir sectores-chave da produção industrial, na literatura, sem o desdoiro de escritores de relevo surgidos na década de 1980, ocorreu igualmente a ascensão de meros alfabetizados para a classe de literatos[6], possivelmente por exagero de alinhamento na causa. Alinhados, porém, tecnicamente fracos, e/ou de duvidoso talento para o exercício da escrita literária. É certo que parte desses se ajustaria melhor ao lugar de animadores culturais, uns de excelência, tais os declamadores Gulamo Khan, Jaime Santos e Guilherme Mussane, exemplificando.

Por outro lado, a literatura pode ser equiparada ao acto de voar, muitos gostariam de experimentar a sensação, daí que também simples apreciadores de poesia se batem, embora sem algum talento, pela publicação e afirmação no panorama literário, sendo esses facilmente promovidos pelos “escritores de circunstância”, os igualmente sem talento, com o fito único de enturvar as águas e assim lograrem a sórdida empreitada de invisibilização e/ou subalternização[7] dos grandes talentos literários, a destacar Guita Jr., Amin Nordine, Sangare Okapi, Ruy Ligeiro, Lucílio Manjate, Celso Manguana, Chagas Levenne, Adelino Timóteo e, por mera modéstia, detenho-me por aqui.

Tendo falado em voar, ser piloto e escritor marca, nalgum momento da vida, o sonho de muitos adolescentes e jovens. Pouco depois do registo da saída massiva de escritores da literatura colonial, surgiram “escritores de circunstância”, que infelizmente, os medíocres dessa vaga, pela doce condição de continuar a alimentar essa quimera da adolescência em idade adulta adoptaram uma atitude fagocitária, valendo-se do facto de fazerem parte de um movimento marcado pela criação de notáveis revistas literárias, com destaque para a Charrua[8]. Eram os tempos da experiência socialista, de identificação com o espaço literário conquistado, no qual a colectivização da produção constituía a palavra de ordem. Hoje, alguns ainda não conseguiram contemporizar-se, porque mudam-se os tempos, soam novas canções. A obra individual é chamada hoje para advogar o sujeito escritor. Liesegang (1998) refere que se identifica uma pessoa com relação ao seu espaço mais relevante [revistas Charrua, Forja, Xiphefu, ou Oásis], mas o actor continua a ser individualizado.

É claro que estamos certos de que, à luz das mesma circunstâncias que levaram à legitimação de simples alfabetizados como escritores, também surgiram, de facto, escritores merecedores de sê-lo, entre outros, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleimane Cassamo, Eduardo White, Armando Artur, Lília Momplé, Paulina Chiziane e Aldino Muianga, alguns destes sem associação à revista em alusão.

Hoje, estamos remetidos a uma fase de quase conspurcação do espírito literário, cuja consequência é o desejo daquela corrente de alfabetizados que, por força do contexto, se consagrou no meio literário. Esses procuram veneração por parte dos escritores de prossecução, mas isto nada a mercê da criatividade literária, que tenha sustentado a consagração literária de muitos dos “escritores de circunstância”. É notável a qualidade medíocre das suas obras, por isso batem-se por uma constante invisibilidade literária de quem parece ensombrá-los. Conspurcam os cargos político-administrativos que ocupam, como meio de silenciamento e desqualificação do outro na sociedade, quase sempre incauta às dinâmicas literárias no País. Embora alguém se empenhe em demonstrar que depois de si veio o caos, essa dinâmica literária não deixou de trazer à luz novos escritores. Sobre a mediocridade, do texto, “O Medo da Inteligência”, publicado há 41 anos, mas com muita actualidade, José Alberto Gueiros, defende:

Os medíocres são mais obstinados na conquista de posições. Sabem ocupar os espaços vazios deixados pelos talentosos displicentes que não revelam apetite pelo poder. Mas é preciso considerar que esses medíocres ladinos, oportunistas e ambiciosos, têm o hábito de salvaguardar suas posições conquistadas com verdadeiras muralhas de granito por onde talentosos não conseguem passar.

As muralhas de granito incluem, hoje, a desqualificação do outro, que chega a insana atitude de negar que se possa agir, por parte dos escritores emergentes de 2003 a esta parte, e pensar de livre arbítrio[9]. Em todas as épocas nascerá tanta gente medíocre e ambiciosa, dotados do mesmo oportunismo. Hoje, certa continuidade dessa mediocridade se entrega a ovação dos “escritores de circunstância”, julgando que deles encontrarão algum decreto que os legitime como escritores consagrados. A acção da mediocridade de ontem, associada à de hoje, também se traduz na maledicência, que acaba por manter dividida a classe dos verdadeiros escritores. A mediocridade intriguista calunia e envenena o meio literário, havendo necessidade do surgimento de uma nova ordem literária, na qual o extraliterário não interfere, cabendo à crítica literária autorizada, em Moçambique, não atrelar-se a afinidades tecidas no convívio social dos anos 80. Essas afinidades impõem à crítica um exercício nada salutar à própria literatura, pois, através de malabarismos discursivos, perpetuam a vigência hegemónica de “escritores” que se multiplicam em actos fagocitários à aparição e verdadeira afirmação de novos autores.

Os malabarismos discursivos caracterizam-se muitas vezes por arrolar nomes de “enteados” como autores de destaque, algo não fundamentado pela obra. Quando parece que  prefaciam as obras dos mesmos, prefaciam não a obra, mas o próprio “autor-afilhado”. Quando parece apresentarem um livro, apresentam o próprio autor-afilhado, não o livro. Essa conspurcação estendem-na ao plano internacional, servindo protegidos literários e amos. Assim, da crítica arriscam-se, num porvir não muito distante, ao crivo da crítica da Crítica, em contraposição ao que actualmente também ocorre de muito bom na reflexão sobre a literatura moçambicana. Entretanto, depois de cimentar-se, a partir dessa década de 1980, uma nova classe de exímios cultores da palavra, ficcionistas, hoje, caberá a outros assumir esse legado, sem quebrar pontes, mas atentos a acção da mediocridade nociva, que conta sempre com o recurso à gazua dos cargos político-administrativos que ocupa, para manter a “visibilidade literária”, mercê da invisibilização de quem muito invejam o talento. Felizmente, não existe como parar o vento com as mãos.

 

[1] Precisamente a 8 de Março de 1977, depois da realização do III Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel intimaria jovens provindos de vários quadrantes do País a assumirem e trabalharem nos vários sectores da economia, então em estado de defecção.

[2] In: Literatura Moçambicana: a História e as escritas. Faculdade de Letras, 1988.

[3] Na Conferencia Constitutiva da AEMO, em discurso intitulado “Condições Para Mobilizar Obreiros Literários ”, enfatizar-se-ia que “a Associação dos Escritores Moçambicanos (…) é condição de florescimento da nossa literatura, é a via necessária de mobilizar os obreiros da produção literária.”

 

[4] Jornal de Letras,  6 de Outubro de 2020.

[5] A tabela, de aferição da relevância literária do escritor, descarta o extra literário, do género, cargos político-administrativos, militância partidária, pertença ou não aos serviços de segurança do Estado, etc., muitas vezes usados como factores de legitimação literária.

[6]  De Fernando Ganhão registamos “Nós, que somos os mais alfabetizados de um País de analfabetos, temos responsabilidades que penso deverão constituir também uma das preocupações desta Associação.” (In: Memorial. AEMO, 2007)

 

[7] Razões de percurso podem explicar a necessidade de se ter subalternos literários. Aquando da criação da AEMO, onde muitos alfabetizados tiveram a oportunidade de seguir a carreira de escritor, poetas da gesta libertária, como o coronel Sérgio Vieira, frequentavam o mesmo espaço e, pela atitude trazida da guerrilha, naturalmente arregimentaram “escritores” que não vinham das matas. Muitos, já mentalmente aleijados, acreditam que essa subalternização constitui alguma herança comportamental, que deve passar de geração em geração.

[8] Chamamos aqui atenção para asserção de Gilberto Matusse (1994): “A Charrua marca um momento de redefinição da literatura pós-independência. Por um lado, porque propicia o surgimento em bloco de novos nomes, que viriam a afirmar-se no cenário da literatura moçambicana, contrariamente ao que aconteceu com a quase totalidade dos nomes isolados que procuraram lançar-se no período entre 1975 e 1984.”

[9] O disparate desqualificador procura sempre negar que os novos autores possam pensar de mote próprio, associando qualquer pensamento destes a manipulações, ora que são porta-vozes do fulano ou beltrano. Esta abordagem, associada à questão etária, explorada por muitos como elemento diferenciador do meio literário, procura simplesmente minimizar a pensamento do interlocutor mais novo. Este sentimento deve ter razões do percurso sociopolítico a que alguns foram expostos. Parte desses deixou-se castrar a nível do pensamento, depois absorveram ideias inculcadas a escopro e martelo e, por isso, essa dificuldade em perceber que outros possam gozar livremente da capacidade de pensar e do direito a liberdade de expressão.

Para o leitor informado, é difícil ler as 11 narrativas de “Karinganas do Índico” sem fazer uma introspeção sobre a linha ténue que faz endereço entre o conto e a crónica ou, mais profundamente, sobre a textualidade que os textos devem (ou não) a um cânone que se quer universal no acto de narrar.

Da autoria de Minyetani Khosa, pseudónimo de Félix Paulo Cossa, “Karinganas do Índico” sai pela Editora Kulera que como já nos acostumou nesta sua fase embrionária, permeia esta obra com um desenho gráfico que pouco ou nada deve mesmo aos mais exigentes.

Em 74 páginas encontramos estas 11 narrativas que, em geral, modalizam as vivências do espaço periférico da cidade de Maputo, com uma permanente viagem temporal senão espacial à realidade rural das províncias do sul de Moçambique (Maputo e Gaza) como quem faz uma busca na árvore genealógica dos personagens desta colectánea de contos e busca-lhes, pela memória, as suas origens senão dos seus ancestrais. Ressalte-se porém, o conto “Tunguinha” em que as acções se espraiam para Benone e arredores.

A abordagem do tempo como categoria da narrativa apresenta-se, nesta colectânea, como o leitmotiv que justifica a introspecção (possível de fazer) sobre a linha ténue que faz endereço entre o conto e a crónica. Se é verdade que o conto narra factos decorridos num tempo relativamente maior e a crónica centra-se no presente ou num passado muitíssimo recente, em “Karinganas do Índico” somos convidados a ter uma posição quiçá eclética relativamente a essa questão.

Khosa permeia as suas narrativas de vivências periurbanas que abordam o alcoolismo tornado regra pelos bairros e que se viu implicado com a vigência do estado de emergência decretado devido à Covid-19; a miséria que assola os residentes desses mesmos bairros a ponto de os aguçar o dilema de ficar em casa ante as restrições impostas pelo EE; o adultério quase institucionalizado entre as noites de sexta-feira e sábado; as admoestações da guerra na genealogia das famílias; a coisificação da mulher pelos dogmas falocentristas; a violação de menores; o papel e sentido dos templos e os desvarios da juventude (sobretudo feminina) para quem o corpo é objecto de trocas comerciais.

Nestas narrativas, é evidente o pendor contista dum autor para quem o acto de narrar é um fim em si mesmo. Sem nenhuma preleção pelos diálogos ou monólogos (pelo menos na maioria dos textos), nem jogos de quebra da linearidade temporal que se tem observado na narrativa moderna, numa linguagem acessível para o grande público que, aliás, habita os enredos, e permeada pela coloquialidade, “Karinganas do Índico” faz jus ao neologismo que o intitula “Karinganas” que remonta uma tradição milenar na cultura moçambicana (africana se quisermos) em que à volta da fogueira um ancião (ou anciã) narra factos, muitas vezes fictícios e alegóricos, a um público não muito numeroso. O leitor familiarizado com esta realidade, ir-se-á ver projectado a este exercício que não mais se materializa devido, talvez, à dinâmica dos novos tempos e hábitos.

Esta maneira de assumir a escrita da narrativa (em geral) tem-se tornado norma em Moçambique muitas vezes pelo discurso mas outras pelo exercício, gerando, para este último caso, polémicas que remontam, por exemplo, o ano de 2004 quando, na Revista Proler, um proeminente crítico literário escreveu na recensão de uma obra que “a literatura, tal como a concebemos, distingue-se pelo investimento na linguagem e não pelo conteúdo por mais nobre que o julguemos.”

Atentando a este estatuto de contador de “karinganas” assumido no viés discursivo que é muito comum, podemos observar que alguns escritores que se assumem como tal, seguem as normas canônicas tidas como universais relativamente aos gêneros textuais em que escrevem, contudo, noto com alguma recorrência que, tal como Khosa, outros autores da geração que está a dar os seus primeiros passos na literatura assume este estatuto, também, no exercício travestindo-se, então, de narradores omniscientes e com o esmero virado sobretudo para a acção que alimenta o enredo.

Assim, ler “Karinganas do Índico” revela-se-me como um exercício contemplativo e introspectivo. Serve-me de exercício contemplativo do “quo vadis” da “nossa” literatura e introspectivo ante as (in)adequações das estruturas universalmente canonizadas.

Tomo, porém, no último exercício, o cuidado de não consagrar qualquer desvio tornado norma mas faço-o em apologia a Jacques Derrida que na sua crítica ao estruturalismo, reclama uma textualidade dentro do texto e critica a crença na centralização das estruturas de sentido de um texto.

Um influencer de marketing é uma pessoa com o poder de influenciar a decisão de um número significativo de pessoas, sobre a compra de um produto ou a adesão a um serviço.

Não existe um número pré-estabelecido de seguidores, para que se possa ser considerado influencer.

270 mil seguidores no Instagram é um número muito elevado. Corresponde a mais do dobro da capacidade dos estádios do Zimpeto e da Machava, juntos.

Quem tem a atenção de tamanha audiência, facilmente consegue convencer 10,000 pessoas a adquirirem um determinado produto. Razão pela qual, marcas recorrem aos serviços de influencers para promoverem seus produtos. Hoje em dia, os influencers têm maior impacto do que as publicidades em formato corporativo, por aqueles criarem uma “aproximação” maior entre a marca e os potenciais consumidores. Os influencers interagem continuamente com os seus seguidores. 1000 fanáticos são capazes de comprar um produto, só para receberem uma atenção especial do influencer promotor de tal produto, ainda que tal atenção seja fictícia.

Quem é comerciante, sabe o que significa poder vender 5000 pares de sapatilhas em uma semana, porque o influencer anunciou que a promoção duraria apenas uma semana. Essencialmente, o selo de aprovação de um influencer torna-se em si, uma marca registrada.

Um influencer é um modelo publicitário. Não está nas telas mas sim nas redes sociais, a promover marcas, expondo-se de maneira atractiva. Quanto mais bem-parecido for o modelo, maior atenção e admiração desperta.

Alichia Adams era uma mulher muito bonita, de corpo com curvas extremamente perigosas e apetecíveis.

Namorou com “Guyzelh Ramos” durante uns anos, deve ter sido com ele onde aprendeu a dançar daquela forma tão sexy que testemunhei nos vídeos que circularam pelo WhatsApp, daquela noite que fora a sua despedida, em grande, deste planeta.

Teria de ter morrido doente ou violada e assassinada, para que não sofresse tanto gozo e desqualificação pelos machos e “intelectuais” moçambicanos? E se fosse um homem a esfregar-se no traseiro de mulheres alheias, fumando um charuto e bebendo whisky, sentir-se-iam mais inconsoláveis e reivindicariam as cinzas de viva voz?

Sentem-se cornudos por ela ter dançado daquela maneira para outros homens que não moçambicanos, ou é só porque os homens “eram bandidos” e por tal, sentem-se antes de tudo, protectores?

Mulher emancipada vive como quiser e dorme com quem quiser.

Ninguém exigiu que lhe erguessem uma estátua. Por outro lado, influencers de marketing não devem ser concorrentes de escritores, PhDs, professores, bancários, etc. Cada qual com a sua esfera de influência.

Respeitem a família e os admiradores de Alichia Adams. E que a nossa irmã descanse em paz.

Muito gosto em estar aqui para falar deste “Pedagogia da Ausência” de Amosse Mucavele. Na minha apresentação vou falar da poesia de Amosse, mas partindo da construção duma crónica. Não pretendo incorrer na tentação da crítica literária, dispenso aos que nos acompanham aquilo que seria o abismo da minha análise semiótica. Vou, por isso, cingir-me ao nível mais modesto, mas para mim mais legível e próximo das minhas poucas habilidades, a crónica.
Vou abordar o que dá título ao livro: a ausência e os lugares que povoam a infância de Amosse, mas que ao mesmo tempo, para mim, marcam o seu presente, ou a vida do homem não seria feita daquilo que ele lembra.
Começo pela poesia “a casa”, a qual indica um lugar, mas preenche uma ausência. Essa ausência, que Amosse aborda é, acima de tudo, muito mais do que presente. Apesar de ser caracterizada como distante “nas manhãs rendidas” ela ganha peso e forma “na velha casa” onde a “solidão traça uma rotina fúnebre”. Todos poemas, ao longo do livro, sussurram nos ouvidos uns dos outros que os títulos não são fronteiras suficientes para separá-los. Ou não fosse “Reencontrar o amor” uma continuidade dos poemas que lhe antecedem. Este livro, parece-me, melhor estruturado do que o anterior. Enquanto na obra anterior Amosse parece feito de retalhos, aqui, quando decide encarar os seus fantasmas apresenta-se de cabeça tronco e membros.
Mesmo quando decide navegar ele faz uma paragem em Mafalala onde “murcha”, diz-nos, “o cansaço das lembranças estampadas. Nesse regresso ele vai buscar uma criança para abrir o caminho da ferida aberta. É a ausência, que mais uma vez, com a força da sua presença ganha corpo. Até em “Tempestade”, quando era suposto aceitar as vicissitudes da vida, há feridas que se abrem na rocha. São os ancestrais que tinham olhos de cor nutritiva, perenes nos sulcos do tempo a soar no tabuleiro da alegria.

É preciso parar em “Ponte Cais”, pois “o fim do mar é uma cidade universal”, que antes era desejosa de “amar emigrantes”. Aqui Amosse saiu do seu universo da infância e instalou-se na baixa, zona de todos os prazeres. Porém, onde quer que vá fá-lo acompanhado daquela ausência presente. Por isso mesmo que a terra derreta na língua do mar acaba sorvendo o “Mel amargo”.

Depois da nudez do Amosse dá-mo-nos de cara com a segunda parte da obra: Migrações. Aqui parece-me difícil descortinar uma linha que liga tudo, mas existe. Amosse compreendeu que a poesia vive da necessidade de não ser periférica. Aqui a obra ganha outras vertentes e rompe o universo familiar. Migrações significa a incorporação de outros lugares e outras literaturas na escrita de Amosse. Migrações é música e pintura verbal, fantasia e imaginação, lazer, ironia, misticismo, consciência crítica da linguagem e exploração do inconsciente e muito mais. Sem Migrações não se explica este Pedagogia da Ausência.

 

 

*Título do editor.

Texto de apresentação do livro Pedagogia da ausência, de Amosse Mucavele.

A escolha de Mauro Pinto (Maputo, 1974) para esta extraordinária colecção de fotografias é o icónico bairro da Mafalala. Uma celebração às suas gentes, a todos aqueles que ali viveram e aos que ali vivem ainda hoje.

Nas imagens altamente provocatórias, as casas de madeira e zinco, despidas de ausências, enchem-se de histórias. Histórias, tão reais e tão próximas que podemos sentir no pescoço, o leve sussurrar da voz de uma Avó, ou o vento nas frinchas da janela que nos embala ao adormecer, e que, devagar, muito devagar, traz com ele o sono, que nos abraça.

O fotógrafo partiu à descoberta de um passado e traz-nos um Mundo ao redor de outro Mundo. Ou será antes, uma memória, intensa e permanente que entra no presente?

É a mesma Mafalala que conheceu de tanto ser falada, e que reconhece agora, vagueando nas suas ruas estreitas, onde submerge em sentimentos, retidos em cada imagem numa brutal realidade.

Um bairro nascido no tempo colonial, criado por gentes vindas das mais diversas partes do Índico, a Mafalala ganhou vida própria, respira, e vive no gap imperativo entre o passado e o presente, transbordando de orgulho dos seus filhos.

Contou-nos Mauro Pinto que, “uns vêm-me, abrem e deixam-me entrar, e eu automaticamente deixo que penetrem o meu ser cobrindo-me de memórias”.

A violência exibida nas imagens de Mauro, arrasa-nos, em episódios emocionantes de um passado traumático articulado no presente.  Na pobreza das casas de madeira e zinco, vemos confrontados, com uma força interior que clama ainda pelos efeitos de todo um movimento anti-colonial, pela igualdade e justiça social.

Mauro Pinto vive em Maputo e é testemunha da ironia entre a riqueza e a humildade existente nos bairros periféricos da sua cidade.  A modéstia das casas de madeira e zinco, contrasta com os anseios e a franqueza de quem lá vive.

Cada casa tem seu cheiro, ruído, por vezes com um silêncio ligeiro, e a musicalidade do bairro tem estas misturas de culturas, religiões e luz… a luz neste trabalho tem individualidade própria, como as pessoas que vivem nestas casas”, observou Mauro Pinto

O fotógrafo mostra-nos a cidade numa nova prespectiva, vindo a público com um diálogo entre a fotografia e a luz, num conceito de apresentação criativo que transborda para o exterior.  Um jogo que integra a técnica, a comunicação atractiva da imagem e o ambiente que a rodeia.

 

 

 

O dia 6 de Novembro de 2020 marca um significativo aniversário na longa disputa de soberania sobre o Tema Malvinas: nessa data se completam duzentos anos da tomada de posse das Ilhas Malvinas por parte de David Jewett, quem naquele dia içou pela primeira vez a bandeira argentina nas ilhas.

No momento da Revolução de Maio, as Ilhas Malvinas – que tinham sido objecto de disputas entre a Espanha, França e Grã-Bretanha no século XVIII – estavam sob o pleno exercício de soberania por parte das autoridades espanholas, com uma posse exclusiva, efectiva, ininterrompida e não contestada pela Grã-Bretanha, nem por qualquer outra potência estrangeira. Esses direitos de soberania passaram à Argentina, como Estado sucessor da Espanha.

A presença espanhola nas ilhas cessou em 13 de Fevereiro de 1811, quando o último governador da época do Vice-Reino das Malvinas retirou-se das ilhas, no contexto do conflito com a Primeira Junta de Buenos Aires.

Apesar da sua evacuação, as Ilhas Malvinas não permaneceram vácuas ou esquecidas. Existia com o arquipélago uma fluída circulação de bens, capitais e pessoas graças aos recursos naturais que possuía: golfinhos e elefantes marinhos, baleias e gado chimarrão. Navios de origem britânica, norte-americana, francesa e argentina exploravam e utilizavam as costas continentais e as ilhas como estações para aportar, caçar e abater. Isso chamou a atenção das autoridades de Buenos Aires que, desde 1813, outorgavam alvarás de pesca, emitiam disposições para evitar a depredação dos recursos e controlavam a instalação de qualquer estabelecimento de carácter permanente na região.

É neste contexto que o facto de içar a bandeira nacional e a presença nas Malvinas, em 1820, de David Jewett, marinheiro norte-americano ao serviço da Armada argentina, ganha toda a sua dimensão.

Com o início dos processos independentistas na América Latina, desde 1810, os novos governos patriotas tiveram de enfrentar o poder realista que se lhes opunha por mar e por terra. David Jewett, igual que outros marinheiros norte-americanos e europeus, incorporar-se-ia a essa luta ao serviço das Províncias Unidas, desenvolvendo actividades de corsário até 1817.

Em janeiro de 1820, o Director Supremo das Províncias Unidas, Jose Rondeau, designou David Jewett, com todas as atribuições e prerrogativas do cargo, como “Coronel do exército ao serviço da marinha.” E foi assim que zarpou em 20 de janeiro, no comando da fragata La Heroína, contando com o reconhecimento das autoridades argentinas como navio de guerra do Estado, para internar-se no Atlântico Sul.

Jewett navegou em La Heroína ao longo de 10 difíceis meses e no final de outubro de 1820 chegou ao Puerto Soledad, nas Ilhas Malvinas, onde encontrou várias embarcações de diferentes bandeiras que aportavam temporariamente ali como parte das suas viagens de caça e pesca para a região austral.

No dia 2 de novembro, Jewett convidou os outros capitães a se encontrarem com ele mediante uma comunicação na qual lhes informava que tinha sido comissionado pelo Governo das Províncias Unidas para tomar posse do arquipélago. Mencionava também que, conforme as normas dadas pelas autoridades de Buenos Aires procuraria evitar a destruição dos recursos das ilhas. No dia 6 de novembro de 1820 foi realizada a cerimónia de tomada de posse das Ilhas Malvinas.

Conforme o relato de testemunhas presenciais, como o capitão britânico James Weddell – que relata o episódio na sua célebre obra “Un viaje hacia el Polo Sur (1822-1824)”—  e o francês Louis de Freycinet, o Coronel Jewett, perante as tripulações ancoradas no Puerto Soledad, e em nome do Governo de Buenos Aires, içou a bandeira argentina, leu uma proclama e disparou uma salva de 21 tiros de canhão.

Três dias depois entregou aos capitães ali presentes uma circular informando sobre a tomada da posse das Ilhas Malvinas em nome do Supremo Governo das Províncias Unidas da América do Sul e de sua vontade de agir com justiça e hospitalidade para com os estrangeiros; solicitando também, que se comunicasse essa informação às outras embarcações.

A circular teve grande difusão através da imprensa internacional. A 3 de agosto, na Grã-Bretanha, The Times publicou uma matéria na qual apresentava o facto como um acto de soberania, e em novembro, o faria El Argos de Buenos Ayres.

Enquanto se difundia o ocorrido nas Ilhas Malvinas, Jewett permaneceu no arquipélago por um período de vários meses. Durante a sua permanência exerceu sua autoridade até que por pedido próprio, em fevereiro de 1821, as autoridades portenhas o relevaram do mando e Guillermo Roberto Mason foi designado como novo comandante de La Heroína.

A solene tomada de posse das Malvinas foi uma manifestação, de carácter oficial e público, do efectivo exercício da soberania argentina, herdada da Espanha, a qual teve ampla difusão, e que não foi contestada pela Grã-Bretanha (que tampouco a objectou em 1825, quando assinou com as Províncias Unidas do Rio da Prata o Acordo de Amizade, Comércio e Navegação onde reconheceu à jovem nação) nem por qualquer outra potência estrangeira. Este significativo acto foi um elo fundamental na longa cadeia de medidas que, desde os próprios inícios do primeiro Governo pátrio até a expulsão das autoridades argentinas de Puerto Soledad, em janeiro de 1833, evidenciam a continuidade da ocupação efectiva das Ilhas Malvinas e do exercício de soberania por parte do nascente Estado argentino.

Esta usurpação, realizada em tempo de paz sem mediar declaração de guerra, nunca foi consentida pela Argentina. Desde então, e durante os seguintes 187 anos, os diferentes governos argentinos têm reclamado permanentemente a restituição do exercício pleno da soberania sobre as Ilhas.

Nessa reclamação, o apoio da comunidade internacional foi fundamental. Além do pronunciamento unânime e precoce dos países da América Latina em favor da posição argentina, foi se somando, à medida que a comunidade internacional se organizava em diferentes fóruns multilaterais, ou de outros grupos regionais. Esse apoio coincidente permitiu conseguir no âmbito da Organização das Nações Unidas a emissão de diferentes resoluções relacionadas directa ou indirectamente com o Tema Malvinas, entendido como a disputa de soberania sobre as Ilhas Malvinas, Georgias del Sur e Sandwich del Sur e os espaços marítimos circundantes.

 

Felipe Carlos Solá, é ministro das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto da República Argentina

O Génio é para si próprio a sua própria recompensa,

 porque aquilo que cada um é de melhor

deve sê-lo necessariamente para si mesmo”

Arthur Schopenhauer

Se mesmo na condição de um personagem que sustenta um romance impactante, Okolo tivesse interiorizado esta famosa e intrigante frase de Arthur Schopenhauer, a sua função (entenda-se acção do personagem definida do ponto de vista de seu significado no desenrolar da intriga) no enredo de “A Voz” teria sido diferente da que se lê nas 135 páginas desta reedição feita em 1980 pela Edições 70, com a tradução (de inglês para português) de Maria Cristina Rocha.

Originalmente publicada em 1964 com o título “The Voice”, Gabriel Okara estreou-se neste livro como ficcionista quando até então era conhecido como “poeta de muita sensibilidade” conforme refere Arthur Revenscroft na introdução desta reedição.

A Voz” revela-se-me como um enredo local mas global, circunstancial mas actual e, acima de tudo, revigorante cada vez que se lê nas sociedades actuais (africanas, se quisermos) o mesmo mote que terá norteado o enredo alegórico criado por este escritor nigeriano.

O que me faz epigrafar a frase de Schopenhauer neste texto é o pano de fundo deste romance que decorre entre a aldeia de Amatu (aldeia natal de Okolo) e a cidade de Sologa, onde o jovem é “exilado” devido à sua busca por algo que não chega a revelar de forma clarividente. Esta sua busca chega a ser tão ferrenha quanto incómoda para os anciãos e, sobretudo para o chefe Izongo.

Iluminado pelos estudos que o permitem vislumbrar o que poucos da sua aldeia conseguem aceder devido à baixa senão inexistente escolaridade, Okolo indaga aos seus semelhantes e ao poder estabelecido sobre a pertença de algo que não especifica com a sua recorrente questão: pussuí-lo-ão? Pela dedução, os membros da aldeia inferem que as indagações de Okolo são em si uma afronta ao establishment vigente em Amatu numa busca por uma vida política e socialmente melhor tendo, então, granjeado simpatias por parte de alguns membros da aldeia, o que para o Chefe Izongo tornou-se num perigo pessoal.

Não faltaram, portanto, apelos de gente que embora não tivesse lido tantos livros quanto Okolo encontraram na escola da vida, argumentos para sugerir que este vergasse aos ditames vigentes em Amatu:

“neste mundo tudo se modificou. O mundo já não é recto. É por isso que se vejo alguém virar as palmas das mãos, viro também as minhas para baixo. Se, ao contrário, vejo que abrem as mãos e as elevam ao céu, faço o mesmo com as minhas. Põe isso a parte e procede como nós: terás a alma tranquila como nós temos.” (p. 57)

Amatu, torna-se, no universo temporal deste romance, numa terra em que “as almas das pessoas estão cheias de dinheiro, carros e casas de cimento; por todo o lado só se vê a procura do dinheiro”(p. 58) relegando todo e qualquer valor à insignificância.

Movido pelo princípio altruísta assente na crença do valor individual do ser em relação à vida dos outros, Okolo insurge-se contra o paradigma vigente e acaba por ser expulso da sua terra natal para Sologa, uma cidade vizinha cujo elo de ligação é um rio. Ao longo da viagem no barco, Okolo vivencia, novamente, o peso do seu sentido altruísta:

“A rapariga que ia ter com o marido encostou-se a Okolo. Tinha o corpo molhado. Okolo olhou para ela. Não possuía qualquer agasalho. Okolo tornou a levantar-se, afastou o impermeável com os cotovelos para tapar a rapariga e sentou-se. A rapariga fitou Okolo, hesitou e depois chegou-se mais para ele para se tapar melhor” (p. 69)

Esta acção altruísta e quiçá ingênua de Okolo associada ao passado que deixava em Amatu (que também o perseguia) tornaram a sua vida imaterializável em Sologa, tendo sido, enfim, mandado de regresso à sua terra natal pelas autoridades locais.

Ao longo da viagem de regresso a Amatu

“Okolo ia sentado com os joelhos encostados ao queixo, procurando não tocar em ninguém. Pelo menos isso tinha aprendido. No seu íntimo, sorriu. Seria possível que o nosso corpo nunca tocasse no corpo de outra pessoa, que a nossa alma nunca contactasse com outra, nos bons e maus momentos?” (p. 117)

Okolo debruça-se sobre estas questões durante os três dias e as três noites que a viagem durou para concluir que “cada pessoa deve ter um objectivo na vida, para além de criar filhos, e que a paz de consciência reside precisamente na realização desse objectivo”. (p. 119)

Já em Amatu, encontra a aldeia em alvoroço porque “Izongo rigozijou-se por Okolo ter deixado a aldeia. Ficou com o coração cheio de doçura, sentiu-se possuído de bondade e convocou toda a população de Amatu: homens, mulheres, crianças, coxos, surdos, mudos e cegos”(p. 77): comemora-se então a sua expulsão de Amatu. Vendo a ocasião como sendo propícia para a sua reaparição, faz-se pela multidão ao centro das atenções. Antes que este dissesse uma palavra, Tuere pegou na mão de Okolo e saíram do local, tendo sido, na manhã seguinte, afogados pelo rio abaixo a mando do Chefe Izongo.

Em “A Voz” a Gabriel Okara constrói esta narrativa em XII capítulos caracterizados pela linearidade de um enredo que não vem à superfície graças à poeticidade das narrações e descrições que além de endossar a construção da cor local revigoram o pensamento de Spencer citado por Chklovski[1] para quem “o mérito do estilo consiste em pôr o máximo de pensamento num mínimo de palavras”.

De facto, uma leitura apressada de “A Voz” associada à dificuldade (por parte do leitor) de estabelecer uma relação dialógica com a realidade extratextual pode conduzir à conclusão injusta deste enredo, situando-o apenas na dialéctica de um conflito político. Contudo, o leitor informado há-de proceder nesta aparente simplicidade e desinteressada poeticidade de Okara uma mescla de saberes, perspectivas e insights, tal como refere Stein (1981: 214) citado por JONA (2013: 51):

“the implied reader offers simultaneously an interpretation of the history of the novel and a theory of the novel reading as such; the act of reading enlarges upon letter, widening its perspective from prose fiction (…) a beholder must create his own experience. And his creation must include relations comparable to those which the original producer underwent”

Esta “cavalgada” pela poesia presente nesta narrativa de Okara faz-se necessária não só para a interpretação do significado patente nas entrelinhas do significantes mas para compreender o devir do estado de espírito de Okolo e por que não dos restantes personagens senão dos objectos referidos porque, em geral, “o acto de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se tornou não interessa à arte.” É daí que ao descrever o estado de espírito de Okolo, Gabriel Okara procede da seguinte forma:

“Okolo caminhava na noite escura, tropeçava, continuava a caminhar. O seu interior estava em desordem, como uma sala onde os ladrões tivessem deitado ao chão cadeiras, almofadas, papéis. Abria e fechava os olhos, abria e fechava, esperando ver alguma luz sempre que os abria, mas não viu ninguém naquela noite escura.” (p. 82)

Assim, Okolo torna-se em “A Voz” numa metaforização de um discurso para além do enredo e fixa a sua textualidade no questionamento do alheamento das pessoas às causas comuns, ao sentido de missão e ao curso pelo qual pretendem conduzir as suas vidas. Ora, a busca incessante e ingênua que ele engendra qual um peregrino destemido coloca-o numa posição de busca de uma heroicidade (por lutar pelo bem dos demais descorando qualquer risco à sua integridade física ou moral) ou o transforma no epíteto de uma busca inglória porque não conseguira mais que o despertar de um e outro personagem no enredo, embora se possa daí antever a possibilidade de a sua “luta” ser continuada por outros. Ora, esta é uma inferência muito além do texto que talvez não vingue porque tal como alerta-nos Tynianov[2] “onde a vida entra na literatura, torna-se ela própria literatura e deve ser apreciada como tal”.

Para todos efeitos, ler “A Voz” de Gabriel Okara e criar um sistema de equivalências entre o que parece ter sido o mote da sua criação com o que se vive pelo menos na sociedade moçambicana nos dias de hoje, dá-nos ensejo de perguntar: pussuí-lo-ão?

 

Bibliografia

JONA, Sara. Entre o Índico e o Atlântico: ensaios sobre literatura e outros textos. Maputo: Ndjira. 2013;

OKARA, Gabriel. A Voz. Tradução de Maria Cristina Rocha. Lisboa: Edições 70. 1980.

TODOROV, T. et al. Teoria da Literatura – I: textos dos formalistas russos apresentados por Tzvetan Todorov. Tradução de Isabel Pacoal. Lisboa: Edições 70. 1999;

[1] A arte como processo (74 – 95) in TODOROV et al (1999: 79)

[2] A Noção de construção (118 – 123) in TODOROV et al (1999: 119)

 

Abrem-se-me fendas na retina

Lâminas em jihad sangrando a dor

Cravada no ventre até ao cabo

– É o meu destino no vasto Moçambique?

 

Rasgo sulcos no mar da esperança

Ondas sem norte meus rebentos engolem

Se quero alguma ajuda em suplício?

– Apenas paz que se apaga no luzir dos rubis

 

Na mesma retina

Rasgado de valas e corpos às moscas

Santa a guerra que sangra essa dor?

Outro punhal cravado no ventre até ao cabo

Um legado de angústias em brasa

Rememora alegrias decepadas

No coração da noite

 

E satânicas sinfonias em jihad

Disparam divinas incertezas

Muidumbe, Quissanga e Macomia às costas

– O trilhar de outros caminhos para a liberdade?

 

Fecundo na palma a semente da esperança

Dormente em Mocimboa

Sob estandartes de endiabrados versículos

-Oh GOD, who is the DOG?”

 

Também sou Moçambique!

Na pobre-riqueza das minhas entranhas

Fermenta a embriaguez dos homens

Lascivos ante o Sol de Junho

Oh pátria minha, o teu dormir é letargo

– Ouça novamente a voz: “Surge et ambula!”

 

 

 

Comboio navio avião

Há sempre um que nos deixa

quando devíamos partir

Há sempre um que nos leva

quando devíamos ficar

Guilherme Afonso

 

No dia em que a cidade de Maputo comemora 133 anos de existência, lembro-me de Guilherme Afonso: poeta, escritor e amante do cinema. Se estivesse vivo, hoje completaria 91 anos de idade. Mas não está. Como todos, quando chegou a sua hora, partiu nessa inadiável viagem que não é feita de comboio, navio ou avião. Ainda assim, o artista deixou-nos pelo menos três livros, Circuito (contos, 1988), Memória inconsumível (poesia, 2007) e Pão amargo (drama, 2010).

Conheci Guilherme Afonso por aí em 2011. Já não me lembro como tudo aconteceu, no entanto sei que foi através dos livros. Nessa altura, o escritor tinha 82 e eu 24 anos de idade. Sem preconceitos nenhuns, construímos uma amizade discreta e sincera. Sempre que fosse possível, ligávamos um ao outro e, principalmente, conversávamos via e-mail. Até hoje guardo conversas, conselhos, anedotas, reflexões e alguns textos da sua autoria. Muitos desses e-mails vinham carregados de um tom divertido, impossível não rir, e, simultaneamente, cultivaram-me. Aprendi muito de Guilherme Afonso, um homem de convicções que soube dar ouvidos a um menino que ainda sou, sem julgamentos.

Durante um ano, conversamos sobre livros, autores, filmes, língua portuguesa e sobre o nosso país. Sempre que fosse possível, lá ia a casa dele, na Vladimir Lenine, onde era muito bem tratado. Ficávamos numa sala cheia de livros, cada um com a sua história, como aquele, salvo o erro, Ensaio sobre a cegueira autografado pelo seu conterrâneo: José Saramago. Aí ficamos a saber que ambos éramos leitores do Nobel da Literatura 1998.

Em 2012, mais por obrigação académica, decido escrever o ensaio As intrusões do narrador no conto ‘Momento’, de Guilherme Afonso, trabalho final da disciplina de Metodologia de Investigação Científica, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM. Para mim, na altura em que frequentava o terceiro ano do curso Literatura Moçambicana, aquele seria o primeiro dos poucos ensaios. A minha pretensão era ser outra coisa, todavia, depois de ouvir alguns professores – qualquer dia conto essa história –, sem nenhuma ambição resolvi fazer uma experiência. Reformulei o ensaio submetido à disciplina de Metodologia de Investigação Científica e enviei-o à revista Literatas. Em uma ou duas semanas o texto foi publicado. Aí percebi que alguma coisa nova na minha vida estava a começar.

Algum tempo depois de me estrear como ensaísta, ganho coragem e envio a primeira versão do ensaio As instruções do narrador no conto ‘Momento’, de Guilherme Afonso, ao próprio autor. No dia 14 de Maio de 2012, o poeta e escritor responde-me assim: “Quanto ao seu ensaio (acho que assim se lhe pode chamar) sobre o meu conto ‘Momento’, saiba o meu amigo que, pelo seu saber no mesmo demonstrado, fiquei muito agradavelmente surpreendido. Confesso-lhe que não o sabia capaz de tanto, o que só demonstra que não o conhecia bem. Os meus parabéns, muito estimado amigo, por este seu trabalho. Muitos parabéns, e também o meu profundo agradecimento por ter dedicado o seu saber a analisar este meu conto”.

Foi surreal! Então Guilherme Afonso apreciou a minha análise? Esse episódio aproximou-nos ainda mais e o escritor prontificou-se a ajudar-me com materiais e livros, de modo a melhorar a minha escrita. Ganhei dois livros autografados dele e continuei a aprender, inclusive, que “todos precisamos de qualquer jogo”. Às vezes, as lições vinham com elogios. Noutros casos, com críticas severas. Guilherme Afonso foi um homem muito franco, que expunha as suas opiniões abertamente. Também aprendi dele a separar o autor do texto nas minhas análises literárias. Uma coisa é amizade e outra é literatura. Não mistura-las, na reflexão literária, é um acto de honestidade. Então, quando quisesse ter uma opinião sincera sobre os meus textos, enviava-os a Guilherme Afonso.

Com o poeta também aprendi a não ter receios da crítica e a não temer meter-me em confusões, se nisso vislumbrar um bem maior. Claro, e também aprendi que no exercício literário não devemos guardar mágoas com quem pensa ou age diferente. Esta lição tive um dia, em sua casa, quando o perguntei, digo de cor: “Guilherme, em 1981 travou um debate aceso com Luís Carlos Patraquim, nas páginas da Tempo. Isso afectou a vossa relação?”. Já com os seus 83 ou 84 anos ele sorriu e disse que não. Fez-me perceber que o debate nos jornais é uma coisa e a relação entre as pessoas, à parte a imprensa, é outra. Não houve mágoa nenhuma entre os dois. Tanto que continuaram a conviver e a emprestarem-se livros como se nada tivesse acontecido.

Esclarecimento: No dia 28 de Setembro de 1980, a revista Tempo anuncia o primeiro concurso literário de Moçambique independente, com a pretensão de estimular o aparecimento de novos valores autênticos. Contra a espectativa, das categorias sujeitas ao concurso (poesia, conto, teatro e história de Moçambique) apenas houve uma menção honrosa ao conto “Abatido ao efectivo”, de “103 linhas apesar de tudo”, pseudónimo de Guilherme Afonso, inspirado no número de linhas que o conto submetido ao concurso tinha.

De acordo com o júri constituído por Álvaro B. Marques, Bruno da Ponte, Gulamo Khan, Luís C. Patraquim e Willy Waddigton, “O fracasso foi completo, à excepção do conto ‘Abatido ao efectivo’, de Guilherme Afonso, onde perpassa alguma coisa de técnica narrativa articulada, embora a servir um tema já gasto e de “cliché”. Guilherme Afonso discorda do júri e escreve à Tempo, acusando o júri de ter prestado um mau serviço ao país, culpando a revista por ter elegido aquele júri. Patraquim não demorou, publicou um artigo no dia 22 de Março de 1981, no qual defendeu que a personagem de “Abatido ao efectivo” é manejada como um fantoche para justificar a ideia de que o autor é anticolonialista. Em defesa de Afonso, Quique M’Benhane acusa o júri de empregar uma enorme dose de classicismo ao analisar as obras submetidas ao CLT. O caldo entornou-se e também por isso a Tempo torna-se num espaço privilegiado de debate literário e promoção da literatura moçambicana.

De facto, termos posições diferentes não faz de nós inimigos. Então eu não me envolvi em querelas com o Furdela, n’O País, há alguns meses? Não deixamos de ser amigos. Inclusive falamos com regularidade. Muitas vezes, o que importa é o que fica, quando a discordância é posta de lado. Guilherme Afonso foi um “mestre” nisso e hoje eu sinto saudade dele. Ainda bem que tenho os e-mails. Aí, de vez em quando, recupero as conversas e os bons momentos que passei com ele.

Uma das coisas que Guilherme Afonso gostava de fazer era criar aforismos. A 13 de Fevereiro de 2013 enviou-me 17 aforismos. Segundo me disse, fui o primeiro a lê-los. Fiquei muito emocionado com a revelação. Na verdade, perguntei-me por que ele me confiou essa oportunidade ímpar. Se eu coloquei-lhe essa pergunta? Também não vou contar tudo.

No dia 15 de Fevereiro deste ano, fiquei a saber que Guilherme Afonso morreu numa clínica, na cidade de Maputo. Não tivemos tempo de nos despedir. Nem foi necessário. Para mim, como para a família, não foi um momento para chorar. Celebramos o poeta e o escritor. Cada um do seu jeito e no seu momento. Sou-lhe muito grato por tudo o que foi aqui dito e por aquilo que exclui deste texto.

Como nos dizes no teu poema “Estar”,  “Porque não há partir nem ficar/ Há permanecer/ Há estar// Estar distante ficando/ Permanecer partindo”, onde quer que estejas, Guilherme, neste dia do teu aniversário, receba estas sei lá quantas linhas apesar de tudo.

 

 

PS: Ao primeiro concurso da revista Tempo foram submetidos 93 trabalhos. Não houve vencedor, apenas uma menção honrosa ao conto “Abatido ao efectivo”, de Guilherme Afonso. O conto, à semelhança de “Momento”, está publicado no livro Circuito.  

Guilherme Afonso nasceu a 10 de Novembro de 1929, no Concelho de Santarém, em Portugal. Chegou a Moçambique em Outubro de 1959, a fim de ingressar no corpo de Polícia, onde desempenhou as funções de guarda, escriturário e arquivista no Comando-Geral durante a administração colonial e o Governo de Transição. Depois da independência nacional, no Instituto Nacional de Cinema, desempenhou as funções de Chefe do Sector de Documentação e Informação Cinematográfica, até 1988. Guilherme Afonso foi ainda apresentador do programa “Vamos falar de cinema”, na TVM.

*“Todos precisamos/ de qualquer jogo” é excerto do poema “O poeta”, do livro Memória inconsumível, de Guilherme Afonso.

 

 

 

Acabei o artigo anterior com a partida para Macau, e começo a escrever este a 29 de Outubro, quando se completam 28 anos (!) sobre a minha chegada, nessa altura, a um Território Chinês sob Administração Portuguesa, actualmente (desde 20 de Dezembro de 1999) designado por Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China.

Chegámos então os 5, à Ilha da Taipa, numa noite depois de uma viagem em que atravessámos 2 continentes de ponta-a-ponta, cheios de malas pois vínhamos para o fim do mundo (…), mas tivémos sorte pois chegámos ao apartamento providenciado pela Universidade no edifício destinado a professores (muitas pessoas vindas de Portugal passavam vários meses em hotéis) e onde vivemos 22 anos até à mudança para o novo Campus em 2014. Logo cedo, na manhã seguinte, atravessei a rua e fui à Universidade, especificamente à Faculdade de Ciências e Tecnologia, que oferecia a licenciatura em Engenharia Electrotécnica, programa para o qual tinha sido recrutado, por 2 anos, como Professor Associado (Visitante – pois mantenho a minha ligação ao Técnico até hoje, com base em leis especiais para Macau), tendo sido mencionado igualmente que viria chefiar o Departamento. Grande surpresa, ninguém na Faculdade sabia da minha chegada (…), nem gabinete tinha, e o Director (Chinês) estava ausente em visita a Portugal (…). Constatei também que não havia Departamentos na Faculdade…e como o serviço docente já estava distribuído (pois o primeiro semestre já ia avançado) encontrei-me na situação de não ter nada para fazer, algo a que não estava habituado depois de 17 anos intensos no Técnico. Lembrei-me então que tinha sido recrutado por um responsável do ensino superior e decidi telefonar-lhe, ficou surpreendido por já cá estar (o processo de vinda foi muito burocrático e prolongado) e combinei ir falar com ele. Na muito breve conversa que tivémos informei-o de que não sabia que Departamento viria chefiar pois estes não existiam na Faculdade, ficou surpreso e disse-me que a mesma era jovem e ultrapassava uma grande crise pelo que esperava que eu pudesse contribuir para o seu desenvolvimento. De repente toca o telefone, ele atende, fala com a secretária e desliga, logo a seguir diz-me: “Prof. Rui Martins ainda bem que está aqui porque quero apresentá-lo ao Infante Dom Henrique!”…Infante Dom Henrique, só me lembrava do Navegador ou do paquete que nos tinha levado de LM a Lisboa. Nesse momento interiorizei instantaneamente: “Onde é que eu estou?”…mas a porta do gabinete abriu-se, entrou um sujeito, e fui apresentado: “Prof. Rui Martins, o Infante Dom Henrique!”…cumprimentei-o e despedi-me de ambos.

Regressei a casa, completamente desconsolado e sem saber o que fazer à vida, e disse à minha mulher para não desmanchar completamente as malas pois iríamos quase de certeza regressar a Portugal em breve…Passei uns primeiros dias bastante desorientado, como não tinha mais nada para fazer, coloquei os 3 filhos no Colégio Dom Bosco, uma das 2 escolas onde havia ensino em Português, e dediquei-me a jogar o Tetris numa pequena consola electrónica dos meus filhos (antes nunca tinha tido tempo para tal), numa semana bati os recordes todos enquanto pensava no que fazer, partir ou ficar…decidi ir estudar a Faculdade e ver como podia contribuir. Pensei escrever um relatório sobre o estado da Faculdade, dos programas e apresentar algumas propostas para o futuro. Escrevi então, em cerca de 1 mês e meio, aquilo a que chamei “First Impressions, First Proposals”, com um título estranho a que não estava habituado pois todas as minhas obras até aí tinham sido de cariz pedagógico, técnico ou científico, mas não tive inspiração para melhor. Ao revisitar esse relatório recentemente concluí que, e apesar das centenas de trabalhos que publiquei ao longo da minha carreira académica, esta tinha sido a melhor obra que escrevi em toda a minha vida, fui divinamente inspirado naquele momento precioso. Tirei “o retrato à Faculdade” e apresentei propostas para o seu desenvolvimento (apesar de ser jovem estava a perder alunos), e também para o lançamento das pós-graduações (havia apenas licenciaturas e assim propus o lançamento de mestrados e doutoramentos) bem como da investigação científica, inexistente na altura, e daí ser correcta a definição de “Deserto” mencionada anteriormente. Quando concluí o relatório, a 18 de Dezembro pouco antes do Natal, distribuí-o pelos responsáveis da Universidade e do Governo, e como era a única pessoa que estava no gabinete nesse dia às 9h da manhã, apresentei-o em primeiro lugar ao Reitor (Chinês), que apenas o aceitou sem fazer qualquer comentário. Quando cerca de meia-hora depois entreguei o mesmo ao Director da Faculdade este disse-me: “Muito Bom (!) trabalho, vamos apoiar em tudo o que nos fôr possível”, perguntei-lhe: “Como sabe o seu conteúdo se ainda nem leu?”, respondeu-me: “Sim, ainda não li, mas o Reitor já o leu e acabou de me telefonar referindo o que lhe acabei de dizer”. Recebi o mesmo apoio de responsáveis governamentais, mas alguns colegas internamente foram críticos interrogando a necessidade do esforço, pois Macau iria mudar de Administração e para além do mais o local era agradável, com boas ligações a praias de sonho na Tailândia, Filipinas, Indonésia, etc…pelo que seria melhor gozar a vida…Ignorei as vozes dissonantes, e apesar de ter apenas apoios verbais, mais nada, decidi-me a lançar “mãos-à-obra”, ou melhor a começar a “partir-pedra” (…). Uma das coisas que me entusiasmou fortemente, e está salientado no relatório, foi a motivação dos alunos, tendo escrito: “A good Student’s Corps, well interested with a very strong thirst of knowledge (completely different and better, in terms of interest, than the one that we’ve in Lisbon)”. Hoje, após quase trinta anos, estava certo, os sucessos que temos obtido, nomeadamente em Electrónica e a nível de topo no mundo a eles se devem, aos alunos de Macau e também da China Continental.

Alguns pormenores interessantes da interacção com uma Cultura muito diferente, quando escrevia o relatório tive de consultar muita documentação relacionada com a Faculdade, criada recentemente em 1989, e que atravessava um período de instabilidade grande, pelo que contactei o funcionário administrativo responsável, ficámos amigos e baptizou-me com um nome Chinês de 3 caracteres: “Mǎ Xǔ Yuàn”, o primeiro Mǎ significa “Cavalo” (signo do Zodíaco Chinês) e relacionado com as 2 primeiras letras do meu apelido, os 2 seguintes Xǔ Yuàn significam “Faz um Desejo”, ou seja “O Cavalo faz um Desejo” (Foi o que fiz quando escrevi o relatório)! Nome este que se revelou ao longo destes anos uma excelente escolha e tem sido quase profético, pois sempre que alguém Chinês o lê fica surpreendido e diz-me que é um nome brilhante…Como referi, no dia em que cheguei não tinha nada para fazer, mas pouco depois quando comecei a “partir-pedra” e até hoje a situação inverteu-se e passei a não saber como arranjar tempo para fazer tudo o que desejava fazer, pois todo um mundo de oportunidades se abriu. No princípio costumava ir frequentemente ao Mercado Vermelho (um mercado famoso no norte da cidade) comprar peixe, no entanto, com o tempo o número de vezes que lá tenho ido reduziu-se significativamente, mas o “nosso” fiel peixeiro (Chinês de Zhongshan aqui radicado e que aprendeu um pouco de Português) diz sempre “Muito Gōng Fu (Trabalho)”, como quem diz: “Muito trabalho, vens cá pouco”…Como referi também antes, quando cheguei não tinha gabinete na Faculdade, mas com o tempo a minha vizinha, administrativa no Instituto de Estudos Portugueses, disse-me que havia um gabinete do Instituto vago noutro edifício e se eu estivesse interessado podia ir para lá, como não tinha alternativa aceitei, mas o gabinete era pequeníssimo, longe de tudo, com mobiliário ultra-rudimentar (ou seja, descartável…), era tão deprimente que várias vezes fechei a porta para chorar sozinho, pensando nas condições que tinha deixado para trás no Técnico…um dia, em que tinha a porta aberta, um professor Chinês, de Taiwan, que tinha estudado e trabalhado nos Estados Unidos, já velhote e que fumava muito naquele local, veio até à porta e perguntou-me quem eu era e o que estava ali a fazer, lá lhe expliquei muito desalentado a minha situação, e ele diz-me: ”Está descansado, este gabinete é extraordinário, pois possui um “Feng Shui” fantástico (foi a primeira vez que ouvi o termo e não sabia de que falava), está de costas para a montanha (a Universidade estava construída numa montanha e a minha janela era virada para lá), que significa Poder, e em frente ao mar (a porta do gabinete apontava para uma janela no fundo do corredor virada para o mar), que significa Dinheiro. Vais ser uma pessoa influente aqui com muito Poder e bastante Dinheiro para gerir. Pensei, já não está bom da cabeça…cerca de 1 ano depois fui nomeado Sub-Director da Faculdade e só nessa altura consegui aí um gabinete, uma tarde o mesmo professor Chinês espreita pela porta desse novo gabinete e diz-me: “Eu não te dizia? E, olha, o Feng Shui deste gabinete é ainda melhor”, tinha mesmo razão e passei a acreditar piamente no “Fluxo de Energia Chinês”!  Quando aguardava pelos bilhetes de avião para viajar até Macau pensava, como é que irei sobreviver num Território ínfimo de 30km2 (…). Mas é nessa exiguidade que reside a Magia do local, como aqui se diz, abençoado pela Deusa Chinesa A Ma e pela Na. Sra. de Fátima, em Macau conheci Portugal todo e o Mundo melhor do que quando vivia em Lisboa, e voltei de novo a África, nomeadamente a Maputo e a Moçambique. Já agora, um pequeno detalhe, ao longo do tempo o interesse dos Chineses pela língua Portuguesa tem vindo continuamente a aumentar, e nunca aqui se falou tanto a língua de Camões como agora, no entanto, o Português mais puro (com melhor sotaque) falado por Chineses continua a ser daqueles que nasceram ou viveram em Moçambique, nomeadamente em LM (Maputo).

 

Rui Martins.

Macau, 2 de Novembro de 2020.

P.S. – Não podia concluir sem explicar quem era afinal aquela personagem misteriosa designada por Infante Dom Henrique…Não é que era ele mesmo? O responsável governamental, era e ainda é monárquico (ficámos amigos), e a referida pessoa era o Infante Dom Henrique, irmão do Dom Duarte, Duque de Bragança, que encontrei também mais tarde.

 

 

 «  Raras são as pessoas que têm carácter suficiente para se alegrar com os sucessos de um amigo sem ter uma sombra de inveja » Ésquilo, Dramaturgo Grego (525-465 a.C )

 

Quando comemoram-se, em 2020, cinco anos após o seu lançamento, « O inspector de Xindzimila » deu-me a honra de descobrir a escrita de Virgília Ferrão, uma das poucas mulheres que ousa desafiar a prosa, um campo literário, em Moçambique, dominado por uma maioria do sexo masculino. Prova disso, é o facto de Virgília Ferrão ter-se tornado a primeira mulher a vencer o prémio 10 de Novembro[1] em 2019, ao assinar o romance «Corais de Rosa».

Nesta trama, cujo título sugere-nos de imediato tratar-se de um policial, Virgília dá vida a uma vila fictícia, Xindzimila, que passa a viver dias conturbados com o regresso de Dionísio, que outrora, após ser cobrador de « chapa », ausentara-se para estudar em Lyon, em França.

O protagonista do romance retorna à sua vila natal para ocupar o cargo de inspector e é confrontado com ressentimentos do seu passado, quando, embora de forma ligeiramente tardia em relação ao que o título da obra nos sugere, uma série de assassinatos misteriosos sucedem-se na vila. Dionísio é desafiado a desvendar o mistério das mortes o mais rápido possível, não apenas por ser um insepector supostamente com uma formação de alto nível, porém, porque todos os indícios levam-nos a crer que o próprio inspector é o assassino.

Para desvendar este mistério, Virgília dá voz aos personagens que, na primeira pessoa do singular, reviram eventos do passado, expressam os seus sentimentos, medos, anseios e receios, conduzindo o leitor à uma reflexão sobre a intrínseca relação entre o sucesso e a inveja, como o fez, de certa forma, o clássico dramaturgo grego, Ésquilo na sua célebre frase supracitada.

O amor ganha um espaço central nesta ficção narrativa, não apenas porque Dionísio descobre  na pele tropical e no incandescente sorriso da Quina um lugar onde deseja passar a sua eternidade, porém, igualmente porque ele é obrigado a questionar as suas certezas sobre o certo e o errado, o moderno e o tradicional, e a descobrir a importância do perdão na construção da dimensão humana dos seres.

O fluxo entre a inveja, a lealdade, a intriga e o amor, alimenta os conflitos entre os personagens desta narrativa, remetendo-nos a um realismo literário que é secundado pela viagem a algumas belezas culturais do vasto Moçambique, como ocorre quando a trama nos faz imergir no meio de cerimónias tradicionais, como é o caso da passagem de poderes entre régulos ou do Chinkwosswe (equivalente ao noivado), ou ainda quando faz-nos degustar um pouco da gastronomia local do centro-norte do país. A descrição da beleza e do encanto da natureza aproximam-nos mais a um romantismo literário porque, como referi anteriormente, Xindzimila não existe no mapa geográfico de Moçambique.

É uma obra que vale a pena ler, de uma escritora que Celso Muianga, renomado editor Moçambicano, terá classificado como sendo um dos « grandes futuros para a literatura moçambicana [2]»

 

Nota de leitura por Agnaldo Bata

Referência da Obra :

FERRÃO, Virgilia (2015) “O inspector de Xindzimila”, 1a Edição. Editora Selo Jovem, São Paulo, Brasil, 196 páginas;

Actualmente o livro pode ser adquirido na Fundação Fernando Leite Couto, na Cidade de Maputo.

 

Sobre a autora da Obra :       

Virgília Ferrão nasceu na Cidade de Maputo, é Licenciada em Direito (2008) em Moçambique, e Mestre em Direito do Meio Ambiente (2013) na Austrália, actualmente trabalha como consultora jurídica em Maputo.

Publicou “O Romeu é Xingondo e a Julieta Machangane”, em 2005, “O Inspector de Xindzimila”, em 2016, e tem participação em ontologias. É administradora do blog “diário de uma qawwi”.

 

 

 

 

 

 

[1] O prémio 10 de Novembro é concurso lieterário anual, instituído em 2005 em homenagem à Cidade de Maputo, organizado pela Associaçao dos Escritores Moçambicanos em parceria com a Conselho Municipal da Cidade de Maputo.

[2] Entrevista publicada no Jornal « O Pais » no dia 14 de Junho de 2020

MoÇambique estava a ser dilacerado por uma sangrenta guerra civil que rebentou dois anos após a independência do país: a guerra dos 16 anos. De todos os cantos ouvia-se o barulho das armas na província da Zambézia. Milhares de pessoas deslocavam-se de uma região para outra a procura de lugares seguros para habitarem. Durante essas andanças, os braços do jovem Sebastião foram atingidos por uma chuva de balas que não soube de onde é que vinham.

Sebastião começou a sangrar fortemente. O chão todo ficou irrigado de sangue. Os seus amigos, que outrora se desfizeram do grupo almejando escapar duma chuva caindo do céu das armas, encontraram-no, horas depois, estatelado no chão com os braços a jorrarem o sangue. Era como se de uma torneira, saindo águas turvas, se tratasse. Levaram-no, de imediato, para um centro de saúde onde receberia os primeiros socorros. Quando lá chegaram, os médicos procuraram, rapidamente, estancar o sangue. De seguida, realizaram alguns exames médicos e radiografia onde constatou-se que os seus membros superiores foram alvejados gravemente. Os tiros atingiram as suas veias principais e fraturam os ossos. A única solução era amputa-los.

A situação de Sebastião era de difícil encarar. Ninguém daqueles médicos tinha coragem de lhe anunciar àquela triste notícia, mas não havia mais nada a se fazer, para além de se amputar os dois braços. De repente, um dos profissionais ganhou a coragem, aproximou-se do paciente que chorava de tanta dor que sentia nas suas entranhas.

– «Jovem, teremos que lhe amputar os seus braços, pois sofreram bastante com as balas…» – Disse um dos agentes que se mostrou corajoso, com a sua cara possuída de dor e tristeza por ver um homem a sofrer tanto.

– «Não. Não vão fazer isso com os meus braços. Sem eles como é que vou comer, vestir-me… Como farei os meus afazeres?» – Questionou o alvejado, enquanto soltava uns gritos de choro, com os seus olhos inundados de lágrimas.

– «Não é nosso desejo que você fique sem os braços, mas sim, é para o seu bem-estar, pois, depois de muitos exames que fizemos, esta é a última e única opção que temos. As balas causaram danos graves nos seus braços. Se deixarmos assim, você corre o risco de passar mal por toda vida…» – Explicou o profissional de saúde.

As dores que o Sebastião sentia, iam aumentando cada vez mais. Ele estava desesperado e sem saber o que fazer.

– «Será que não há qualquer medicamento que posso tomar para tudo voltar ao normal, sem que precisem de executar este acto?» – Perguntou Sebastião.

– «Infelizmente não temos outra saída. As balas atingiram gravemente as veias e os ossos dos seus braços» – Respondeu o médico.

– «Então, se amputarem os meus braços não terei mais estas fortes dores que estou a sentir?» – Questionou Sebastião, com a voz trémula.

– «Sim, não sentirá mais dores depois de as feridas sararem. Fica calmo, vai dar tudo certo.» – Confortou-o o médico.

– «Está bem, aceito. Então vamos fazer isso rapidamente, pois já não suporto mais estas malditas dores.» – Prontificou-se.

Os médicos levaram-no para a sala de cirurgia onde se prosseguiu com o acto. Ele estava decidido a enfrentar esse segundo momento muito doloroso da sua vida. De seguida foi amputado os seus membros superiores. Ele ficou de baixa no hospital por cerca de quatro meses onde recebia os cuidados médicos. A guerra estava cada vez mais violenta. Passados os quatro meses, o jovem teve alta.

Ansioso para encontrar a sua família, Sebastião dirigiu-se para sua casa rapidamente. Para a sua surpresa, ninguém mais estava lá. Dúvidas começaram a flutuar na sua mente: “Estive internado no hospital por muito tempo e ninguém da família procurou saber de mim. Agora esta casa está totalmente abandonada. Será que toda a minha família tombou nesta maldita guerra? Ou refugiaram-se para um outro lugar seguro? A partir de hoje quem vai passar a cuidar de mim neste estado em que me encontro? A verdade é que já sou inútil na vida… Se aparecerem esses guerreiros malandros vão acabar comigo e nem tenho como me defender. Sou um morto vivo”.

Os dias seguintes foram de grandes desafios para o Sebastião, pois há coisas que já eram difícil de executar por si só. Neste momento em que ele precisava de ajuda de terceiros, alguns zombavam muito dele, mas os outros sensibilizavam-se bastante com o estado em que ele se encontrava e o apoiavam. Em Outubro de 1992, passou-se alguns dias em que, no seu distrito, não se ouviu mais o barulho das armas. Tudo estava estranho para os que não andavam informados. Através de uma rádio, Sebastião acompanhou a notícia que anunciava a assinatura dos Acordos Gerais de Paz, no dia 4 de Outubro de 1992, em Roma, capital da Itália. O calar das armas foi um grande suspiro dos sobreviventes daquela sangrenta guerra que dizimou milhares de pessoas.

O país começou a respirar a paz, mas a guerra levou consigo os braços do Sebastião e deixou-o com marcas indeléveis daquele dramático dia que foi banhado pela chuva mortífera de AKM’s. Num belo dia, Sebastião decidiu sair de casa e apreciar o seu bairro, que já não o via há bastante tempo devido ao isolamento que se submetia por ser deficiente. Enquanto caminhava pelo bairro, viu uns meninos que jogavam futebol. De repente sentiu chichi e, pediu um dos meninos para que lhe ajudasse a tirar as calças para urinar, mas este não aceitou, apenas limitou-se em ri-lo e depois foi-se embora. A pressão da urina aumentava cada vez mais. Enquanto ele ainda tentava tirar as calças para urinar, deu-se conta de que a urina já estava a sair.

Sebastião decidiu encarar a vida de forma diferente. Aprendeu a conviver com a sua deficiência. Aprendeu a fazer muitas coisas sem que precisasse de ajuda de terceiros. Aprendeu a escrever com os pés e depois com as partes dos braços que lhe haviam sobrado.

Um grande fotojornalista circulava pelas várias artérias da província da Zambézia, procurando registar os momentos que lhe serviriam de notícias. Durante estas suas andanças, encontrou o jovem Sebastião e ficou impressionado com o que ele conseguia fazer no estado em que ele se encontrava. O fotojornalista decidiu escrever uma reportagem sobre ele, falando dos desafios que enfrentava na vida por ser deficiente. A reportagem, com uma fotografia grande do Sebastião a escrever com a parte dos braços que lhe sobraram, foi publicada num dos jornais da praça e, na altura, a ministra da educação leu a reportagem e ficou sensibilizada com a história. Mandou chamar o jovem para a cidade de Maputo para que pudesse prosseguir com os seus estudos na capital, recebendo apoio do Ministério. Na capital, Sebastião fez o seu ensino primário e secundário.

Anos depois, com diversas dificuldades, concluiu os seus estudos superiores em psicologia, escolha motivada pelo sofrimento “mental” que tivera durante a guerra civil. Na altura da procura do emprego, nenhuma instituição quis contratá-lo, pois achavam-no inútil. As pessoas zombavam dele por ser deficiente. Ele era desprezado por quase todos. Cansado de ser humilhado, Sebastião tentou perpetrar um suicídio sem sucesso. Depois de escapar do suicídio, ele decidiu continuar a enfrentar os preconceitos que a sociedade tinha contra pessoas portadoras de algum tipo de deficiência.

Passaram-se muitos anos, mas todos aqueles acontecimentos que Sebastião viveu durante a guerra estão gravados na sua mente. Sempre que os moçambicanos comemoram o dia da paz, a 04 de Outubro de cada ano, ele recorda com dor e consternação todos os episódios dolosos que viveu durante a guerra civil. A todo momento que ele olha para os seus braços amputados, a sua mente recua para o passado, trazendo-lhe memórias daquele dramático dia em que os seus braços receberam uma enxurrada de balas. Ele não acredita no assunto da paz, pois todos os dias são de luta contra pessoas que o descriminam.

 

 

 

Que Louise Glück é Nobel de Literatura 2020, o mundo já sabe. Ora, que este facto fez com que a norte-americana poet(is)a reencarnasse o centro de um debate que andava já esquecido no universo literário da quarta língua mais falada no mundo, tenho imensas dúvidas de que ela própria saiba.

Se Sophia de Mello Breyner Andresen assumiu em diversas intervenções que não era poetisa e sim poeta por julgar que houvesse/haja no primeiro termo um viés falocentrista que inferioriza as mulheres relativamente aos homens em igual exercício, Cecília Meireles fê-lo intencionalmente, no poema “motivo” por encarnar um sujeito poético masculino, como se pode ler:

“Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.”

Glück, mesmo sem querer, divide a comunidade de falantes de português em dois: os neologistas e os puristas. Tudo porque diversos veículos de informação, sobretudo electrónicos, usaram nas suas manchetes o termo “poeta” para se referir a esta grande voz da literatura mundial, autora de 12 colecções de poesia e alguns trabalhos de ensaios poéticos.

Ao que se pode denotar, pelo menos até esta parte, não há nenhuma explicação morfológica que justifique esta tendência que vai granjeando mais simpatias. As razões, se considerarmos o argumento de Sophia de Mello Breyner Andresen et al, são mais sociolinguísticas.

Diga-se, no entanto, que esta batalha, se existe, possa ser vencida pelos neologistas porque tal como pondera Antoine Meillet (1866-1936), a história das línguas é inseparável da história da cultura e da sociedade porque a linguagem é um fenómeno eminentemente social.

Assumindo, nestes termos, a língua como um facto social conforme atesta Ferdinand de Saussure (1857-1913), no sentido em que se trata de um sistema convencional adquirido no convívio social, resulta que esta (a língua) caracteriza-se por ser “um produto social da faculdade da linguagem.”

Por assim ser, é pelo exercício da linguagem que o homem constrói sua relação com a natureza e com os outros homens. Portanto, se nesse exercício houver uma visão do mundo que conflitue com o uso linguístico, essa relação não será fecunda porque mesmo parecendo óbvia, a questão da língua como exercício de socialização é complexa porque a passagem do social ao linguístico e do linguístico ao social não é feita com tranquilidade.

Valerá, portanto, a atenção dos sociolinguistas em assumir este debate (poeta/poetisa) como actual e premente de forma a esclarecer as nuances por detrás deste debate aparentemente supérfluo porque é já evidente que, tal como recordam-nos GOMES & CAVACAS (2004: 24) “as palavras entram na língua por adopção, pelos falantes, não por imposição.”

Embora seja importante assumir que a língua é dotada de uma tenacidade que a protege dos modismos de época, é também salutar compreender, nesta batalha entre neologistas e puristas, que esta comporta-se, também, como um organismo vivo e dinâmico. E, na fala dos autores supracitados, a língua e, logo o léxico não tem realmente um dono, e sim construtores e utentes que através dos tempos, tem descoberto, nas palavras, maneiras de encontrar expressão para as suas necessidades e de transformar o uso que faz dessas palavras no seu significado.

 

Mirando, taciturno, os bramidos de um mar que é de per si um habitat natural de peixes e quejandos, espraia-se na incredulidade, partilhada com os seus, de conceber gases liquefeitos nas profundezas do mar mas a chuva de precariedade que lhe cai pelo teto descoberto alia-se à vozearia do seu servo que em cada fim de frase remata um «do mar, trarei três mil pregos» e deposita-lhes, então, uma súbita e religiosa certeza.

De numeracia precária porque dele os tocadores de flautas quinquenais só se recordam no fim de intervalos fechados de cinco invernos, fraturou o lápis porque da escola não mais faturou além do sétimo ano na sua localidade cujo nome não me ocorre (mas isso desinteressa, não é?). Gerada num fim de infância e início de adolescência pela actividade pesqueira e de garimpo, a sua numeracia não definia a exactidão deste três mil em pregos mas reconhecia-lhe a suficiência para cobrir o teto e assim acabar com os des(mandos) da chuva de precaridade absoluta.

«…patrão, ninguém faz tudo sozinho, virão aqui irmãos moçambicanos e estrangeiros para juntos extrairmos três mil pregos. É bom recebe-los com carinho porque iremos aprender muito com eles e poderemos, também, ensiná-los muita coisa…» Para Omar Quionga, de nome de nascença, registo e credo, ser chamado de patrão por quem, no organograma das ordens, está muito acima do régulo a quem presta vénia e um pouco abaixo de Alláh, fora qualquer coisa como uma flor que se agiganta em direcção à abelha para ser-lhe extraída o néctar. Isto, associado a um linguajar corriqueiro que se adentra em Omar numa promiscuidade de amantes consumidos pela volúpia, fita-se-lhe o peito, a alma e os olhos pregando-lhe uma atenção de lobista nesta sua espera por irmãos pretos e brancos que lhe trazem um número tão exacto quanto satisfatório de três mil em pregos.

Ler “Samsung Heavy Industries” num outdoor instalado nas imediações com o letreiro estampado num azul escurecido pelo tinteiro, deixou-lhe o coração liquefeito e mais ainda quando viu Mamadou Hassane pousado com manias de um lord numa viatura em que, dos ocupantes, só o preto da sua pele dava ares de diversidade tonal. Via-se, então, sôfrego em se desfazer da melindrosa vida de ter o teto descoberto e a mercê da chuva de precariedade absoluta.

Deitado de bruços com o olhar absorto num Rovuma que se demora em trazer aquele número exacto de três mil em pregos, que são seus por direito, poderia eu encetar-lhe uma conversa sobre o merecimento e braços para suportar tanta benesse, se Omar fosse matéria capaz de respirar, preencher vazios e se expressar fora do devaneio poético mas isso, também, desinteressa.

Enquanto isso não se materializa, cabe-me dizer-lhe, caro leitor, que Omar está ali deitado de bruços com o olhar num Rovuma que se demora em trazer aquele número exacto de três mil em pregos, com uma tira do caule de um arbusto seco na boca cantando Kihiene de Zena Bakhar e, ao cheio do mar, sobrepõe-se-lhe o da pólvora que, reconhecido pelo seu olfato, escancara o susto que lhe era insuspeito naquele seu estado zen.

«Omar Quionga…» antecipou-se, a treze passos, um dos três homens com armas em punho que em sua direcção se dirigiam e antes que Omar se desfizesse do susto e dissesse uma palavra, vê, ante seus joelhos, três papéis nunca antes vistos de uma só vez, com a imagem de Samora Machel estampada e no canto inferior direito lê-se “mil meticais”. Porque o receptor é também um emissor assintomático, Omar Quionga significou “três mil pregos” em três notas de mil meticais e o martelo que lhe faltava ganhou realização extratextual numa metralhadora AK-47, com pente moldado para uma munição de 7, 62 mm. «Allahu Akbar! Junte-se a nós. A outra parte terás depois do serviço em Macomia» acrescentaram os homens de armas em punho num corro, com o tenor e o baixo devidamente afinados como se tivessem proferido aquela mesma frase para outros 2999 Omares.

Na manhã daquele Domingo, a Alicinha e a Julia, que levava o sobrinho amarrado às costas,  puseram-se a caminho da casa da Melita. Esta vivia nas proximidades da taberna do Loureiro, até não muito distante donde ocorrera aquele incidente em que perdera o lábio superior. Iam a conversar sobre lugares-comuns, apenas para vencer o tempo da caminhada.

Cruzaram-se com raparigas e rapazes de roupas domingueiras, a caminho ou provenientes da missa na igreja da Missão de S. José. Vinham com ares descontraídos e alegres, de quem acabava de descomprimir os peitos com as comunhões ofertadas pelo padre Fernandes. Algumas mulheres estugavam o passo, de regresso dos mercados onde foram adquirir provisões para os matabichos dos maridos, antes do regresso dos campos de futebol onde iam assistir às partidas de futebol matinais entre as suas equipas favoritas.

Aproximavam-se da moradia da Melita, no cruzamento de um beco nas traseiras do “Lourinho” com um caminho largo que desembocava no Muvumbi. A Alicinha estacou e disse à prima:

“Estás ver esta casa aqui?”, apontou com um dedo as ruínas duma barraca de madeira e zinco, desgastada pelas intempéries e pelo abandono”. Aqui nesta casa aconteceram coisas muito misteriosas”.

“Estou curiosa por saber o que sucedeu”, disse a Julia, a ajeitar a criança às costas, desconfortada com o calor que crescia.

E a Alicinha contou a tragédia da família que em tempos habitou aquela cabana ora em ruínas.

“Nesta barraca vivia um casal que tinha uma filha chamada Elisa. O dono da casa chamava-se vovo Madala, uma pessoa já de idade, de uns sessenta anos, talvez. Vinha de Porto Amélia e as pessoas diziam que era macua, porque é macua todo o homem que se veste com túnicas brancas e usa um barrete de tipo cofió. Trabalhava como alfaiate na varanda duma loja no Xipamanine, mais precisamente do indiano Bhai, onde fazia bainhas em capulanas e remendava roupa variada. Toda a gente gostava dele porque era um homem sossegado, alegre e brincalhão.

A mulher do vovô Madala chamava-se Hassina, também muito estimada aqui na zona e vendia hortaliças no bazar do Diamantino. Eles juntaram-se quando ela acabava de ter uma filha, há dezasseis anos, depois de perder o marido num acidente de um barco que virou, durante uma travessia da Catembe para a cidade. Conheceram-se lá na loja do Bhai, e resolveram juntar-se. Assim, iam ajudar-se e viver o resto da vida porque tinham uma comunhão de interesses: uma companhia responsável e a partilha das dificuldades do dia-a-dia.

A criança cresceu nas mãos do velho como filha legítima e tudo ele fazia por ela, como se fosse sua. Ela estudou na escola primária da Missão e crescia que, eh!, os vizinhos diziam que era uma promessa de mulher, elegante, bonitona e alegre como o padrasto.

Tudo parecia correr bem neste pequeno lar. Como sempre acontece nas famílias, a Elisinha e a mãe começaram a desentender-se. Discutiam por dá-cá-aquela-palha. Coisas pequenas transformavam-se em grandes problemas. Ora era a água que faltava no tambor…porque é que não foste carretar água ali no Dias?… ora era a roupa do padrasto que não estava bem engomada… será que nesta casa não temos ferro de engomar?… ora chegava tarde da escola… onde estiveste durante este tempo todo?…; enfim, uma infinidade de reprimendas que deixavam a moça amuada e sem disposição para conversar durante dias. Refugiava-se sempre no ombro do padrasto para aliviar as frustrações. Este tranquilizava-a com palavras de afecto e de encorajamento: “…és mulher, um dia vais ser como a tua mãe… estas más disposições acontecem sempre a qualquer mulher e elas vão passar… desculpa a tua mãe…”. E a vida voltava ao normal.

Durante aquele período de preparativos para as festas de Natal e do Ano Novo o vovô Madala demorava-se a largar do trabalho. Contingentes de mães exigiam da sua perícia para embainhar capulanas, as últimas remessas chegadas de Hong-Kong, às quais elas atribuíam nomes; ora era o Xivite xa Bhai, ora era o Xigubo xa Filipe, Salimina, ou Xi-kambana, e outras mais designações que eram homenagens ou registos de memórias na história da comunidade. Preocupada pelos atrasos a Elisinha ia ao Xipamanine ajudar o padrasto e, juntos, já ao anoitecer, recolhiam a casa em animadas conversas, confortados pelo sentimento de que o sacrifício valera a pena e que se o faziam era para o bem de todos. Ele adorava-a, era a filha que nunca tivera. Ela nutria por ele uma especial admiração e o orgulho de alguém grato por ter um pai afectuoso.

Até que chegou aquele dia em que todos despertaram dos sonhos de felicidade em que adormeciam.

A mãe Hassina atrasara-se nas vendas, esperara pelo homem da camioneta que fornecia as hortaliças durante toda a tarde. E este não havia maneira de chegar e já fazia-se tarde. Era sempre um risco desafiar a escuridão dos becos deste Chamanculo, sem iluminação nem policiamento. Com os malaíta que se escondem nas sombras tudo poderia acontecer. Ainda há dias violaram e mataram a filha duma colega vendedeira lá do bazar, coitada da moça! Aquele demorara-se por causa duma avaria na camioneta, em plena estrada de Marracuene.

A mãe Hassina chegou a casa às vinte horas, quando a emissora da Hora Nativa transmitia as notícias do dia. Entrou pelo portão sem ruído. De dentro de casa escutava-se apenas a voz baixa do locutor no rádio transístor sobre o aparador. Do vovô Madala nem sombra! Da Elisinha também não detectava sinais da sua presença em casa. Dirigiu-se à despensa que esta ocupava. Ao contrário dos hábitos da casa, a atmosfera do compartimento era de escuridão e os candeeiros já deviam estar acesos. Como a surdina de vozes que vêm de longe, escutou murmúrios, a respiração arquejada e suspirosa de gemidos de prazer que se soltavam daquele quarto. Pelas frestas de caniço descortinou o vulto convulsivo e gemebundo de seu marido, o vovô Madala, e testemunhou a entrega vuluptuosa e voluntária da sua filha Elsinha.

Recostou-se à parede para recobrar o equilíbrio. O que presenciara era uma cena dos quadros que se pintam e expõem no Inferno. Este caíra e tomara como habitação a sua casa. Quantas vezes aquilo sucedera? Desde quando assim era? Porque razão não se dera conta destas práticas há mais tempo? Eram estas algumas das muitas perguntas que se atropelavam na cabeça.

Regressou ao fogo principal da habitação. Acendeu os candeeiros e compôs-se.

O vovô Madala penetrou na sala como se viesse do banho: fresco e sorridente. A Elsinha fez o mesmo mais tarde e deu à mãe a desculpa de que atrasara-se na cantina do Dias onde fora comprar petróleo.

A mãe Hassina sofrera já demais. Nem quer recordar o que foram os tempos em que vivera com o falecido marido. Tempos para esquecer! Com o vovô Madala parecia que os céus se abriram e contemplaram-na com a felicidade de ter alguém que a respeitava e amava. A si e à sua filha, que ele tratava com muito carinho, como se sua fosse. Nessa noite teve os piores pesadelos da sua vida, monstros que lhe invadiram os sonhos, que a interpelavam e empurravam para o precipício dumas covas onde fogos altos ardiam; escutou os gemidos da filha no meio duma multidão de supliciados em combustão, a imagem do vovô Madala metamorfoseado em Lucifer, com uma máscara medonha, a soltar grunhidos; e trazia a forquilha de Satanás numa mão e uma serpente viva noutra; gargalhava à entrada do pórtico duma caverna guardada por mulheres nuas que entoavam cantigas obscenas e empunhavam varapaus com formatos de pénis.

A madrugada despontou serena. Os galos cantaram os cantos habituais. Mas o dia, ou os dias, jamais seriam como os habituais na casa da tia Hassina. Ela assim o concebeu e assim o decidiu. Recolheu o escândalo no silêncio do peito, calou na boca as palavras de protesto. Sofrera já demais. Era de madrugada mas já tinha uma babalaza, a lazeira do sofrimento e da humilhação. E interrogou-se: qual é o xarope para esta ressaca, senão voltar a beber do mesmo sofrimento? Qual é o remédio para calar o fogo dum escândalo senão outro escândalo?

Não passavam três dias a mãe Hassina preparou aquele jantar de família. Calhava ser a data de aniversário do vovô Madala. Ia completar sessenta e cinco anos de idade. E estas ocasiões só se comemoram uma vez na vida. Convidados especiais não houve.

Durante a refeição a conversa decorreu amena: a chegada duma nova remessa de capulanas na loja do Bhai, “… como vai o curso de costura, minha filha?… as hortaliças já não chegam para os fregueses… o pedido da filha da vendedeira do balcão ao lado é já no sábado… há mulheres com sorte!…”; enfim, um nunca mais acabar de banalidades que preenchem as conversas duma família feliz. Quem diria que haveria alguma espécie de animosidade no espírito da dona da casa se ela se esmerara nos guisados, na mathapa à moda de Marracuene e na sobremesa? Até deu-se ao luxo de brindar o aniversariante com uma garrafa de vinho “Matateu”. Haveria mesmo algo que houvesse maculado o entendimento neste lar que parecia tão coeso e prendado?

E tudo aconteceu. Antes da meia-noite o vovô Madala morreu sem se aperceber das circunstâncias da sua própria morte. Apenas engasgou-se, espumou pelo nariz e pela boca; e caiu de lado, inerte, sem vida. No instante seguinte, a Elsinha desabou da cadeira e estatelou-se de bôrco na sala-de-jantar, cheia de vertigens e morreu sem um queixume, com os olhos esbugalhados, surpreendida pelo esgar de ódio que decifrou do rosto da mãe.

O desaparecimento simultâneo do vovô Madala e da Elsinha deu azo a desencontrados comentários e muitas interrogações. A mãe Hassina respondia que o marido e a filha haviam-se deslocado a Porto Amélia de urgência, para tratar de assuntos ligados à família que ele lá deixara: “…ele já não vê a família há muito anos e há problemas de heranças que tem de resolver. Daí a urgência na viagem e a demora lá na terra…”.

Três anos passaram depois do desaparecimento do marido e da filha da Hassina”.

“ Três anos sem ninguém saber o que aconteceu? Essa mulher teve sorte!”, admirou-se a Julia que, até àquele ponto do relato, mantivera-se silenciosa e espantada com o dramatismo da narração.

“Sim, três anos sem se saber ao certo onde eles estavam. O problema caira já no esquecimento. A vizinhança passou a ter outras preocupações e desviara a atenção para questões mais prementes: “…como ganhar o pão-nosso-de-cada-dia?…como alimentar e pagar a escola para estas crianças todas que não param de nascer?…”. Um segredo como este não fica assim por toda a vida. Alguma coisa tinha de acontecer para revelar a verdade.

Aquele homem andara pelas lojas dos indianos no Xipamanine, desde o Centro Associativo, até ao Zundap, a perguntar se conheciam um velho chamado  Madala, ou assim conhecido, e que trabalhava na varanda da loja dum tal Bhai. Nem foi difícil localizar o sítio. O próprio Bhai manifestou a sua grande preocupação pelo desaparecimento do alfaiate, que era seu amigo e um grande costureiro, atencioso e sempre pronto a ajudar a clientela. Mandara procurar pela esposa dele no bazar do Diamantino. Esta confirmara que o velho se deslocara para o norte, em Cabo Delgado, mas que não tardaria a regressar e que, ela própria, já estava em sérios cuidados pela demora dele e da filha.

O forasteiro ficou apreensivo com a informação:

”…o meu pai nunca pôs os pés em Porto Amélia há mais de seis anos, embora a gente se comunique por meio de cartas. Estou preocupado porque deixei de receber as cartas dele. A nossa família está desunida, cheia de confusionistas, e precisamos dele para resolver um problema de heranças. Os meus tios querem ficar com as nossas propriedades e só ele, que é o mais velho, é que pode resolver esse problema…”.

O Bhai desconfiou e enrugou a testa, cheio de dúvidas. “… o que você quer dizer é que o seu pai nunca chegou lá em casa, em Porto Amélia?”

”Sim, não vejo o meu pai há muito tempo, e nunca saí lá da terra”.

Os dados estavam lançados. Alguma coisa a mãe Hassina estava a esconder. O Bhai e o filho do vovô Madala dirigiram-se à esquadra da polícia, no Xipamanine, para comunicar a suspeita sobre o desaparecimento daquele e da enteada.

A mãe Hassina foi surpreendida no bazar, quando apregoava a frescura das hortaliças expostas na banca. O espanto foi geral. Ninguém conseguia emudecer a surpresa: “…o que aconteceu com a Hassina?…terá roubado alguma coisa?…será que se meteu nas políticas do Mondlane?”…especulações sobrevoaram a atmosfera do bazar e alimentaram as conversas da semana.

Durante interrogatório sobre o paradeiro daqueles, pela boca da própria Hassina, veio a confissão do crime hediondo de envenenamento do marido, o vovô Madala e de sua filha, a Elsinha, por tê-los surpreendido num acto de ofensa sexual praticado na casa matrimonial.

“E onde estão os corpos?”, perguntaram os agentes da polícia.

“Vamos à minha casa. Vou mostrar onde estão”, respondeu, sem oferecer resistência.

Aquele foi um cortejo fúnebre com destino à casa onde ela habitava. Ia algemada e um contingente de testemunhas curiosas engrossava a procissão.

O ambiente da casa da Hassina era de muita tranquilidade. Nada fazia suspeitar que lá ocorrera um crime com aquela envergadura. Não havia indícios de violência, nem doutros sinais que pudessem fornecer pistas de que algo de monstruoso ali sucedera.

Quando lhe repetiram a pergunta sobre o paradeiro dos corpos ela apontou o chão por debaixo da mesa, com toda a naturalidade, sem nenhuns remorsos. Depois da morte daqueles, durante o resto daquela noite cavou um buraco muito fundo e lá depositou os cadáveres. Cobriu o chão com todos os cuidados e pôs uma esteira sobre essa campa improvisada. Meses depois, quando a notícia do desaparecimento já se esbatera na comunidade, ela própria cimentou aquele chão, como se de um mausoléu se tratasse. Convivia com as vítimas do seu crime, os mesmos que amara como marido e filha, mas que odiara como amantes.

Os coveiros da Câmara desenterraram os restos mortais, umas ossadas misturadas umas às outras, pedaços de carnes decompostas que inundaram o bairro com um cheiro nauseabundo, e meteram-nas numa urna metálica. Esta foi introduzida na carroçaria do carro funerário com alguma sem-cerimónia. Que espectáculo tão macabro!

Quando os residentes viram aquele kwerre comprido, todo pintado de um cinzento prateado, com as inscrições de “Serviços de Salubridade, Câmara Municipal de Lourenço Marques”, a rolar no areal ficaram a saber que a Hassina matara o marido e a filha para punir o crime de incesto que haviam praticado e que _ contradição das contradições_ conservara os corpos em casa porque os amava e deles não podia separar-se porque eram as únicas pessoas de família que possuía.

“ Chiça, ainda vou sonhar com isso!”, disse a Julia com um estremecimento. “E aonde é que essa Hassina está agora?”.

“ Onde é que ela poderia estar? No manicómio, claro!”, respondeu a Alicinha, a bater ao portão da casa da Melita.

 

Sobre o autor, à guisa de introdução

“Pensar globalmente e agir localmente”, sugere ser o lema de Afonso Vaz Vassoa; um indivíduo multifacetado, a julgar pelos diferentes tipos de formação que caracterizam a sua carreira académica: a Linguística, o Jornalismo, a Comunicação Social – com habilitação em Relações Públicas. Juntam-se a esses factores os seus interesses profissionais nas associações sócio-culturais às quais pertence, nomeadamente: Associação de Escritores Moçambicanos, Associação de Profissionais de Relações Públicas de Moçambique, Associação de Ciências da Comunicação e da Informação e da Rede de Profissionais de Relações Públicas, Marketing e Comunicação das Universidades da Commonwealth. Vassoa é também consultor, pesquisador e docente universitário.

Ao pensar do modo acima referido, são sobretudo questões da interculturalidade, ou seja, do convívio democrático entre diferentes culturas que o preocupam nos últimos anos. Um relance a toda a sua obra que demonstra a linha de pesquisa na qual o autor trabalha é o relacionamento entre as culturas ocidentais e as africanas, que seriam a chave para um concerto baseado no investimento em relações interpessoais entre os povos do mundo. Constata-se ainda, desse labor, que não seria necessário que os povos abdicassem daquilo que são, bastava que glocalizassem os seus modos de agir e de pensar. Ou seja, há urgência, na óptica de Vassoa, de se instituir uma nova ordem mundial, que implique mudança de mentalidade na forma como uns veem os outros.

Será ainda no âmbito desse trabalho, dentre outros tantos que realiza, que destaco África: o Berço da Humanidade e a Fonte da Eternidade, de 1998, livro de poesia, no qual se pode apreender o desassossego do autor, pelo desejo de reconhecimento das qualidades de desenvolvimento de África. Além disso, sugere o banimento do afropessimismo, propondo o melhoramento do relacionamento entre as pessoas. “Vocês Homens, amem-se”, refere ele em nota do autor.

Acrescido a isso, no seu segundo livro, com o título e Comunicação Social e Relações Interculturais: desafios e oportunidades da África Contemporânea, publicado em 2010, obra didáctica, e que é de carácter multidisciplinar, o autor cruza as áreas da Antropologia, das Relações Internacionais e das Ciências da Comunicação, abrindo portas para Estudos Culturais. Nele, Vassoa explica a importância que deveria ser dada à valorização dos diferentes tipos de saberes do continente africano, mormente a necessidade de se esclarecer determinada visão estereotipada sobre este e a premência da existência de relações públicas e sociais que possam contribuir para o reconhecimento do continente, bem como a urgência na solução de problemas tecnológicos que permitam partilhar os saberes científicos e as riquezas naturais de áfrica.

Desafios para a interculturalidade: as cambalhotas e o devir

África, interculturalidade, Antropologia e relações humanas, vistas numa abordagem interdisciplinar voltam a ser recorrentes na obra hoje em apresentação: Cambalhotas de Dedos Marcados, um romance que integra, por um lado, o seu pensar mundos, já afirmado nas suas obras anteriores e, por outro, uma amálgama de enigmas, com um pano de fundo que visa o fomento da interculturalidade relativa ao conhecimento científico versus os saberes tradicionais africanos; as crenças e religiões ocidentais versus ou o culto de crenças e religiões africanas. Sobretudo, a obra se dedica a abordar a condição humana.

Destaco, por exemplo, a explicação de saberes medicinais tradicionais africanos, que são transmitidos de um bisavô ao seu bisneto de nome Racaverdão. Esse bisavô representa, no livro, a sabedoria ancestral que Vassoa nos convida a glorificar. Alguns desses saberes são similares aos dos perorados por teorias científicas, como o caso de se dar importância aos sonhos e de os interpretar, por se acreditar que comandem a vida dos povos africanos e transportam recados dados pelos antepassados aos vivos. Sobre isto também nos fala Altuna (1996), na sua obra Cultura Tradicional Bantu. A hermenêutica sobre sonhos preconizada nessa cultura, dialoga com a interpretação do mesmo fenómeno, defendida por Sigmund Freud, no seu livro A Interpretação dos sonhos. Este que é, também, referido na obra em apresentação, pg. 54 e, segundo consta, “Freud […] sustenta que os sonhos são as chaves para o inconsciente, que é a parte da mente que contém vontades reprimidas, traumas e desejos assustadores demais para serem admitidos” […].

Um outro saber que se pretende partilhado com o mundo e que foi mencionado na obra de Vassoa, tem a ver com a medicina tradicional, através da qual se chama a atenção à consideração de uma quantidade de produtos naturais, que tanto no antanho, quanto hoje, são convocados como imprescindíveis no combate a várias doenças, em detrimento ou no convívio que deveriam ter com a medicina moderna que massifica a industrialização de medicamentos. Esses produtos tradicionais de fortes valores medicinais são: batata africana, moringa, gengibre, quebra-pedra, embondeiro, aloé vera, beterraba e outros; hoje também aceites pela medicina moderna como saudáveis e, nos dias que correm, tem-se propalado serem úteis na desactivação do vírus da covid19. Vassoa apela à massificação do conhecimento e da medicina ancestral e ao convívio desta com a moderna.

Cambalhotas de Dedos Marcados é um título que sugere acrobacias e é o que acontece na obra. Há uma série de reviravoltas que são narradas, numa história com um pano de fundo aparentemente trivial, envolto em histórias de amores, de desamores, viuvez e de infidelidade, mas que essencialmente acaba revelando a história de vida da geração moçambicana conhecida por “ 8 de Março”, trazendo-nos imagens da Historiografia e da cultura moçambicanas.

O romance tem várias nuances no que concerne aos géneros literários (romance histórico, autoficção e romance policial). Nele, o autor descreve, ao pormenor, e com muita adjectivação as suas diferentes personagens. O narrador faz questão de mencionar a diversidade étnico-histórica existente entre elas, para depois explicar que, ainda assim, tinham uma amizade muito forte. Isto revela que essas dissemelhanças não constituíram impedimento para a sua convivência pacífica. Ao realizar esse exercício, alerta e apela que as desigualdades culturais ou étnicas não constituem impedimento para o fomento da interculturalidade, pois a coexistência e a convivência entre diferentes culturas não obstroem a construção de um projecto nacional ou continental comum.

 Da narrativa aos cruzamentos de géneros literários

 A narrativa

Há uma descrição adjectivada e bastante pormenorizada de cada um dos personagens, a partir do seu perfil, que comporta características físicas e psicológicas. E não é à toa que o narrador faz isso. Mas voltaremos mais tarde a este assunto, por convir, antes disso, apresentar esse quinteto. São membros de uma banda musical, os “Cinco Dedos” ou “O Mapa de Racaverdão”. Viviam numa mesma residência, o “Lar de Estudantes Pré-universitários”. Em 1977 tinham todos 18 anos, excepto um, Mocelso, o mais novo.

Sãotilma, a vocalista do grupo, é filha de italiano e português. Cursou Medicina. Angs, o baterista, é filho de americano e indiano. Cursou Psicologia. Mocelso ou Branquinho, baterista e líder do grupo musical, é filho de moçambicanos – cuja mãe é de origem camponesa. Cursou Artes Plásticas, é ilustrador-desenhador. Obéniug ou Pretinho, viola-solo, é filho de Enfermeira cabo-verdiana e de pai branco moçambicano. Formou-se em Veterinária e, por último, Racaverdão escrevia as letras para o grupo, filho de professor do ensino primário formado em missão católica e de mãe doméstica, ambos moçambicanos. Formou-se em Agronomia.

Racaverdão, jovem descrito como sendo negro, alto, musculoso, era um homem que tinha poderes mediúnicos e que se medicava em função delas. Tinha uma cicatriz em forma de mapa da África, na mão direita, com configurações que, de certa forma, tornavam alguns países maiores do que deveriam ser na representação de um mapa oficial e ainda alguns países mutilados. Era uma cicatriz advinda de uma queimadura que teve na sua infância. E essa espécie de mapa era a sua fonte de inspiração para as músicas que escrevia. Além de que, em alguns momentos se transfigurava – em mulher grávida e infeliz, vítima de violações de “mapas missionários.” Essa cicatriz tinha o poder de emitir mensagens.

Um desses dias, nas suas visões viu cinco soldados no cume de uma montanha em posição de combate. Tendo lhe sido explicado pelo bisavô que esses homens revolucionariam Moçambique, lutando contra o colonialismo português. Ao longo da narrativa, apercebemo-nos que se trata dos Cinco Dedos ou, para quem queira, da “geração 8 de Março”, representada pelos membros da banda, que realizaram a insurreição de Moçambique, sobretudo nas áreas nas quais foram formados. Trata-se, também, dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa e das vicissitudes que têm passado ao longo dos anos, mesmo após a instituição da Organização de Unidade Africana. Trata-se da dificuldade em se libertar das consequências do colonialismo

Em dado momento da narração, Racaverdão entra em transe e faz revelações sobre o futuro de África. O simbolismo de toda a sua narração é como se de uma palestra se tratasse, a partir da qual o autor nos sugere a necessidade de se autenticar os saberes mediúnicos transmitidos, por serem portadores de verdades que em algum momento vêm a ter lugar, tão válidos quanto a ciência. Esse personagem faz a premonição de eventos que, de facto, vieram a ter lugar no séc. XIX, como a exploração de Moçambique pela América e pela China, por exemplo, é o que sugerem as mutações que a sua cicatriz comunica.

Cruzamento de géneros literários

 Romance Histórico

Há na obra afirmações e representações que nos fazem pensar tratar-se de um romance histórico, por exemplo, a afirmação: “procura-se em Cambalhotas de Dedos Marcados […] recriar, […] representar […] linguagens e mensagens de algumas almas silenciosas e ruidosas, nacionais e internacionais […]”, cfr. Pg. 7. Os romances históricos têm também esse condão, repor factos omitidos pela Historiografia. Há, também, um exercício de memória, através da abordagem do passado histórico, atributo típico desse género literário.

Uma outra qualidade desse género literário, representada nesta obra, são as referências a datas históricas moçambicanas, como 2 de Fevereiro de 1825 (Batalha de Marracuene); 1964 a 1974 (Luta Armada de Libertação Nacional); 25 de Junho de 1975 (Independência de Moçambique), 8 de Março de 1977 (Chamada da juventude moçambicana para o desenvolvimento do país); 1994, ano de abertura para o pluralismo político em Moçambique e ano no qual a União Africana completou 31 anos de existência.

Há, no livro, a colocação de personagens com existência real, que no romance histórico são designados personagens referenciais, nomeadamente: Eduardo Mondlane, Samora Machel, Malangatana Ngwenha e Alberto Chissano, que no caso do romance ganham o estatuto de personagens referenciais. Há ainda a indicação de alguns espaços moçambicanos, especialmente os de Maputo e alguns de Pemba, onde decorre grande parte das acções, que numa abordagem literária sobre o género, acabam nos dando a designada cor local dos lugares narrados. Outras províncias de Moçambique e países de África são referidos.

Romance auto-ficcional

Ao ler Cambalhotas de Dedos Marcados o leitor pode se colocar a clássica pergunta típica de quando se está perante um romance auto-ficcional: será que esta obra aborda a biografia do autor? Para Faedrich (2015:48), a Auto-ficção é um conceito cunhado por Doubrovsky (1977), para se referir a determinado tipo de romance contemporâneo que, abordando facto de modo ficcional, não tem compromisso com a verdade, por a tornar ambígua. A autora refere ainda que nesse tipo de obras o autor utiliza biografemas para chamar a atenção sobre a sua biografia. Mas o que prevalece como pano de fundo é o texto literário.

O que é típico na auto-ficção é o convívio pacífico e quase indissociável entre a ficção e a realidade. Digo quase indissociável, porque, para um leitor que não conheça o contexto narrado, dificilmente poderá concluir que a narrativa aborda alguns factos reais.

O que me permite a mim, leitora, advogar que Cambalhotas de Dedos Marcados é um romance auto-ficcional, embora o autor se tenha ocultado ou, pelo menos, não haja sinais da existência do seu nome em alguns dos personagens é que, lendo a sua biografia, aliada às peripécias narradas, constatei que ele distribuiu, por alguns dos seus personagens, a sua representação biográfica. Esta corresponde a uma das técnicas deste tipo de prosa ficcional. Existem outras técnicas.

Por outro lado, o uso da auto-ficção como técnica tem a ver com o facto de o autor não desejar se expor ou expor alguns dos personagens, no que concerne aos eventos representados com recurso à verossimilhança. Além disso, o que a Teoria Literária aventa é que, em obras de autoficção, o seu autor não escreve uma biografia, por considerar a sua vida irrelevante para um país e, por causa disso, prefere camuflar alguns dos seus dados biográficos no emaranhado de uma história que pode ser julgada comum.

Dos dados que temos à mão, que são referentes à biografia do autor e que constam da contracapa do livro em apresentação, revelam que ele é Bacharel em Desenho e que fez parte da Geração “8 de Março”, o que sugere que o autor seja tanto protagonista na história da vida real, quanto na narrativa. A par disso, escreveu “um livro intitulado O Princípio do Fim, com objectivo de narrar a história do grupo musical, desde a sua formação até o dia de despedida em Marracuene, incluindo a catástrofe do incêndio. Primeiramente, ele havia dado o título de um provérbio popular que sugere que, Quando a cabeça não regula, o corpo é que paga! Mais tarde, a pedido dos amigos, ele intitulou a obra de uma outra forma para atenuar, aparentemente, a culpa explícita que estava expressa naquele ditado”[…], cfr.. pg. 53.

Ao longo das páginas 74 e 75, pode-se constatar a menção ao tipo de trabalhos de culminação de cursos que cada um dos cinco dedos faria, sendo que caberia a Angs, dissertar sobre  “Efeitos psicológicos de culpas omitidas e Mocelso, “Técnicas de ilustração de romances baseados na vida real”.

A mim me parece que esta história constante do livro não é comum, nem trivial. Há dados não ficcionais que tornam opacos os reais. E provavelmente, pelo desejo de exorcizar algum problema, como por exemplo o das consequências da fogueira feita num piquenique e o atentado à vida de um dos personas. Não há como provar exactamente o que é que se pretende conjurar, mas os dados apresentados indiciam a existência de biografemas na obra.

 Romance Policial

 A existência do romance policial pressupõe a existência de um enigma sobre uma morte, que no final da obra é desvendada e informado que é o criminoso. Regra geral é assim que funciona. Há, na obra, reminiscências de dados que fazem com que o romance em apresentação seja um policial.

Há uma agente policial, Ailen, que se introduz no grupo dos Cinco Dedos, com objectivos de espiar e obter dados para esclarecer o atentado feito a determinado personagem. Há a explosão de uma bomba, que cinco […]. Há também a referência a um mercenário, Fish Reewell ou Frank Reewll, o suspeito de ter criado condições propícias para se efectivar o atentado. Há um homem morto e outro baleado, que é um dos membros dos cinco dedos e que vai para à reanimação em um hospital. Fica em estado de coma […]. Estas são algumas das características do romance policial possíveis de encontrar na obra, mas existem muitas mais, que deixo a critério do leitor, para as descortinar.

Considerações finais

 Em Cambalhotas de Dedos Marcados, o autor utilizou como alegoria cambalhotas ou incidentes da vida de cinco personagens para falar sobre a condição humana, em primeira instância, dos moçambicanos da “Geração 8 de Março” e dos africanos e a interculturalidade que podem construir, em segunda instância.

A obra constitui uma dimensão simbólica dos problemas vividos por cinco moçambicanos da “Geração 8 de Março”, marcados pelo chamamento da pátria, para que contribuíssem para o desenvolvimento de Moçambique, ocupando as vagas deixadas por profissionais portugueses a quando da sua retirada de Moçambique. Mas também se refere aos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, marcados pela ofuscação do ocidente.

Ela é narrada com recurso a um cruzamento de três géneros literários, o romance Histórico, o romance auto-ficcional e o policial. Os dados históricos foram representados com recursos a datas históricas, personagens referenciais, cor local e à memoração de datas e de acontecimentos antigos. Os biografemas deixam marcas que demonstram tratar-se de uma obra de autoficção. Entretanto, recordo que, este tipo de romance não tem um compromisso com a verdade, pelo que a minha recomendação é a de que não se imputem como facto, dados narrados neste livro. Além disso, uma das técnicas utilizadas pelo autor, a de distribuir os seus biografemas por diferentes personagens, tornam opaca a descoberta e a separação entre a verdade e a ficção.

 

 BIBLIOGRAFIA

 ALTUNA, R. (1996). Cultura Tradicional Bantu. Maputo: Paulinas.

FAEDRICH, A. (2015). Autofiction concept: demarcations of the concept from contemporary Brazilian literature. Itinerários, Araraquara, n. 40, p. 45-60, jan./jun.

VASSOA, A. (2019). Cambalhotas de Dedos Marcados. Maputo: Alcance.

 

 

 

A vidraça cristalina permitia descobri-la a partir do lugar onde me encontrava sentado, também alguns subsídios luminosos na ordem de uns tantos luxes faziam com que ela cintilasse.

O seu brilho foi o grande chamamento, despertou-me, fui arrebatado pela beleza que ela emanava, venci a timidez que me era característica e reforçado pela cumplicidade nocturna pedi para que o servente a chamasse.

A vontade de tê-la por perto medrava a medida que ela se aproximava acompanhada pelo servente.

Quando chegou olhei-a mumificado, sem saber o que dizer, ela trajava uma saia branca com fundo vermelho e adornos dourados e na parte superior tinha um véu branco que lhe cobria o rosto. Emitia uma beleza peculiar que a distinguia das demais. A frescura que ela exalava animava-me e a alcova que o lugar oferecia constituía tudo o que precisava para me entrosar com ela.

A apreciação unilateral durou o tempo suficiente de perceber que ela era humilde e este sentimento conferiu-me a ousadia de descobrir-lhe o semblante.

Beleza sublime que me convocou para um êxtase sem igual, divaguei perdidamente por um mundo onírico onde ela era a minha princesa.

Era de origem belga e estava em Moçambique a pouco tempo e já tinha um grandíssimo grupo de admiradores e pretendentes.

A cara dela não me era estranha já a tinha visto amiúde em muitos lugares da cidade de Maputo, sempre impondo seu charme em cada lugar que habitava.

Não demorei a confirmar que eu era seu novo apaixonado e que lhe seria eternamente fiel, pisquei-lhe o olho e ela continuou serena.

Senti que uma tácita relação de intimidade surgira entre nós, segurei-a com a mão direita senti a frescura do seu corpo serpenteando o meu ser, fiquei domado pela sua sumptuosidade. Prontos ela acabava que me possuir sem dizer uma única palavra.

Era a primeira vez que eu me enamorava por uma estrangeira, fora sempre fiel às cá da terra, mas esta forasteira usurpava minha alma.

Depois de confirmada à vontade mútua de nos possuirmos, levei-a aos meus lábios e beijei-a profusamente, toda a minha paixão ficou selada naquele acto, estabeleceu-se um contacto supremo entre nós como se ambos tivéssemos vivido antes esta relação que acabava de se iniciar. A continuidade amorosa ia-se cimentando com beijo atrás de beijo.

A música que se fazia ouvir metamorfoseou-se com a minha embriagues e solícito levei-a a pista, evoluímos na dança, sempre a segurando firme com a mão direita por vezes a beijava e experimentava uma nova frescura dos seus lábios e assim ia sucando a essência áquea e o sabor lupo-mate que ela emanava e conferia em mim uma prazerosa sensação governando intrinsecamente todo o meu ser.

Voltamos à mesa e as diligências para nos conhecermos melhor aumentava, eu com o meu olhar usurpador e ela ali sempre fresca para mim.

Experimentei uma leveza concedido pela sua levedura que fomentava em mim uma animação incomum mas estava grato por conhece-la.

Os meus comparsas de paródia que estavam nas proximidades acompanhadas de duas nativas falavam animados. O ruído das suas gargalhadas por vezes roubava o conluio que se operava entre eu e ela.

Quando me levantei para ir aos lavabos tropecei e logo os meus companheiros anularam a queda.

– Temos que ir embora – conferiram quando se aperceberam da minha embriaguez.

– Não, preciso ficar com ela – disse convicto.

Quando voltei dos lavabos ziguezagueando eles ficaram convencidos que precisavam de me acompanhar à casa.

Ainda vociferei para desencoraja-los, mas eles não se deixaram intimidar, ampararam-me lado a lado e forçaram-me a sair.

Mas antes de abandonar o local gritei:

– Amo-te Stella Artois.

 

Três cavalos no estábulo. Dois castanhos e um branco, cada um preso no seu quarto. Fora do estábulo muitas árvores e um céu azul que a pouco e pouco vai sendo tomado pelos mistérios do anoitecer. A Cristiana, namorada do David, vai me apresentando os meninos que estão presos no estábulo enquanto o pai os vai alimentando. Ela tem uma enorme paixão por cavalos, penso enquanto parado na entrada do estábulo vejo os olhos dela a despejarem alegria como uma adolescente quando fala do seu primeiro amor para as amigas.

Um cão branco vem a correr em direcção ao estábulo e os meus fantasmas acordam. Faz um percurso rápido em poucos segundos. Ele vem mesmo em direcção ao lugar onde estamos, penso assustado. O medo é mesmo o petróleo certo para incendiar o sossego de qualquer um. Naquele momento não me aparecia outra coisa à cabeça, apenas os dentes afiados daquele cão que corria agitado para onde eu estava. A Cristiana continua a falar, mas não consigo ouvir mais nada senão os passos do cão que se aproxima. De repente a garrafa que trago na mão cai e quase toda cerveja deita-se no chão da entrada do estábulo. O pai da Cristiana para mim, enquanto o David ri-se do meu medo,

assim vais lá mesmo!

ele não te faz mal, não te preocupes…

E de verdade ele não me faz mal, mas a agitação na qual vinha em minha direcção e aqueles dentes fora não diziam nada disso. Tudo acontece em Tomar e enquanto pela janela do meu quarto entra o latido de um cão não consigo parar de pensar que estou apaixonado. Não falo de uma dessas paixõezinhas fingidas que não passam de um pretexto para chegar ao momento em que as calcinhas vão abaixo e a imagem de um corpo nu à disposição da nossa volúpia nos faz perder a cabeça. Isto é mesmo uma paixão às direitas. É certo que estou apaixonado e enquanto a madrugada continuar sendo como esta folha branca onde cabem milhões de mundos não vejo as cordas que me prendem à esta tontice a se desatarem.

Os relógios da cidade deviam estar a marcar duas e pouco quando pela primeira vez entrei em Tomar. Pela janela do carro entravam o azul radiante que o céu das cidades portuguesas despeja no Verão, o verde do jardim do Mouchão e o cisne branco que mergulhava a cabeça e fazia amor com as águas do rio Nabão que dividem a cidade em duas margens. Por cima da música que tocava no carro, a minha voz excitada dançando para o David antes de ele sorrir

Tomar é mesmo uma cidade linda!

Há tempos que já me tinham falado do Convento de Cristo, cuja construção começou no século XII, das historietas sobre os templários, do facto de se chamar pato-bravo a quem seja de Tomar, mas nunca me tinham dito que

Tomar é mesmo uma cidade linda!

Nesta madrugada estou como um homem que está deitado no colo da sua esposa, mas não para de pensar na amante. Lisboa que me perdoe, mas Tomar não me sai da cabeça. Pequena, simples, mas cheia de cor e muito encanto. Isto faz-me tão feliz. O suicida de “Explicação dos Pássaros” de António Lobo Antunes fez muito bem em morrer longe de Tomar, em Tomar ninguém morre assim.

Enquanto passeávamos no Mouchão, de repente o Higino, sem nenhuma dúvida para provocar o David

então Miguel, gostas mais de Vila de Rei ou de Tomar? E eu com a mão a varrer o cabelo que há quase um ano não corto e um sorriso matreiro a saltar-me pela boca, tentando fugir da parede na qual o Higino pretendia me encostar,

não queiras me meter em problemas, Higino. Mas Tomar é mesmo linda e nada disto seria lindo sem tu e o David a empurrarem-me para beijá-la.

É certo que estou apaixonado e que foi mesmo um exagero em demasia ligar-te à esta hora da noite para estar neste paleio tão gordo de pieguices. Mas também é certo que nós os dois sabemos mais que ninguém que quando se está verdadeiramente apaixonado não é a cabeça que comanda.

Será que o salário é um incentivo para que “bons candidatos” optem por uma empresa em detrimento de outra?

O artigo 85 da Lei do Trabalho estatui que ”o período normal de trabalho não pode ser superior as 48 horas por semana e 8 horas por dia”. Se todos os trabalhadores têm de cumprir com esta lei, então porque alguns ganham melhor que os outros? Esta questão leva-me a refletir sobre a definição do salário.

O QUE É SALÁRIO?

Segundo a definição do Dicionário Infopedia salário “é a quantia fixa que um trabalhador, por conta de outrem, recebe pelo seu trabalho e que é paga de forma regular, de acordo com o definido por um contrato de trabalho; ordenado; vencimento”.

O mesmo dicionário define salário ainda como sendo “o pagamento recebido pela prestação de um serviço ou por um trabalho realizado”.

Baseando-me nas definições deste dicionário minha questão seria a seguinte: então porque é que duas, ou mais, pessoas exercendo o mesmo trabalho, na mesma empresa não recebem o mesmo salário?

Os PCAs trabalham ou deviam trabalhar 48 horas semanais como qualquer outro trabalhador, então como justificar a usual diferença salarial abismal entre o que recebe um PCA e o que é pago a um recepcionista?

A resposta a estas 2 questões eu encontro no valor do trabalho prestado por cada um deles. Neste caso, eu definiria o salário como sendo a quantia recebida pelo “valor” que cada colaborador acresce a produção da empresa em cada hora de trabalho que presta. Ou, por outra, a “qualidade” do serviço prestado  por hora de trabalho sob conta de um terceiro.

Quando ainda trabalhava em Maputo, recordo-me um dia ouvir meu Chefe na altura, Herman W. dizer: “não é recomendável aos colegas compararem seus salários”. Sendo para mim o salário uma medida de valor, eu penso que é normal que façamos comparações entre os nossos salários. Penso eu que o objetivo não é necessariamente de saber quanto o outro ganha, mas de tentar perceber quanto e que “eu valho” como colaborador para a empresa. Como Seres Humanos, nós somos todos motivados por desafios e pela concorrência, saber que os outros ganham melhor equivale a dizer que “eles” têm melhor desempenho. Numa empresa bem estruturada, esta conclusão pode levar a que um colaborador dê o melhor de si para progredir na carreira e atingir níveis elevados de salário. Por outro lado, a diferença salarial pode constituir um critério de descontentamento nas empresas mal estruturadas em termos de grelha de salário e de planos de carreira, pois os colaboradores não terão um foco para apoiarem seus esforços.

DISCRIMINAÇÃO E DESIGUALDADE SALARIAL EM TERMOS DE GÉNERO

A discriminação salarial acontece quando pessoas com as mesmas habilidades e mesmos anos de experiência de trabalho e trabalhando na mesma empresa recebem salários diferentes. Esta discriminação pode ser motivada pela falta de grelha salarial nas empresas mas também e muitas vezes pelo facto dos gestores pagarem salários tendo em conta as “pessoas” e não necessariamente a “qualidade do trabalho prestado” pelos colaboradores. Este último caso acontece geralmente desde o processo de recrutamento. O “cota” que emprega a sobrinha (muitas vezes sem qualificações) e que paga salário mais elevado do que dedica aos restantes dos colaboradores com as mesmas funções, competências ou qualidade de trabalho, o que infelizmente tem sido prática no nosso maravilhoso Moçambique.

 Segundo site especializado em matérias laborais www.acergs.com, “as desigualdades de gênero no mercado de trabalho variam em todos os países e regiões do mundo e de forma muito diferente. Em termos globais, não deixará de haver desigualdade económica entre homens e mulheres nos próximos 169 anos. Só em 2186 é que será atingida a igualdade econômica entre sexos”. Embora tenha ouvido bastante sobre esta versão, minha experiência nas empresas em que trabalhei, principalmente em Moçambique, não confirmam esta tese. Vi em Moçambique homens e mulheres receberem salários de maneira equitativa.

Tanto a desigualdade em termos de género, bem como a discriminação salarial provocam nos colaboradores afectados pelo problema um sentimento profundo de injustiça o que infalivelmente afecta a sua performance no seio das estruturas empresariais em que se encontram inseridos. Fraca produtividade, abandono do posto e saída de trabalhadores para empresas concorrentes, são algumas das consequências diretas destas práticas.

 O SALÁRIO COMO INCENTIVO PARA ESCOLHER UMA EMPRESA/EMPREGO EM DETRIMENTO DE OUTRO?

Para qualquer indivíduo dinheiro é sim importante, pois permite-nos, por exemplo, fazer planos de vida, pagar nossas contas, poupanças para o futuro ou prover uma melhor educação aos nossos filhos, no entanto não constitui o primeiro incentivo a ser avaliado para escolha de um trabalho ou mesmo de uma empresa quando se tratam de “bons candidatos”.

Para os “bons candidatos” o salário é o quarto critério de decisão para escolha de uma empresa a trabalhar ou não.  Os bons candidatos olham para uma empresa que tenha um plano de desenvolvimento credível; um trabalho com mais responsabilidades, onde apresente um plano de carreira profissional de médio e longo prazo; os bons candidatos procuram trabalhar com bons gestores, os superiores hierárquicos servem muitas vezes de mentores e os bons candidatos procuram estar por perto de pessoas que lhes façam crescer; e finalmente vem o critério salário, que não é algo a negligenciar se quisermos atrair um bom candidato, mas que não é o prioritário.

A título de exemplo, recentemente meu padrinho e amigo de mais de 20 anos decidiu mudar de carreira profissional e foi contactado por 3 agências de recrutamento (Headhunters). Numa das nossas conversas pela madrugada, ele lamentava-se do facto dos headhunters estarem a concentrar os seus argumentos para lhe convencerem apenas no salário e no cargo a ocupar, sem dedicarem grande ênfase nas propostas de evolução de carreira, nos treinamentos e formações profissionais dedicadas ao aperfeiçoamento para o desempenho das funções e/ou nos desafios profissionais propostos, o que não lhe motivava bastante. Finalmente, depois de muita análise e negociação acabou optando por uma multinacional, a operar no sector de hidrocarbonetos, que lhe ofereceu não necessariamente o melhor salário mas sim um plano de carreira profissional, um ambiente de trabalho favorável com um grupo gestores experientes e competentes, planos de formação profissional contínuos e desafios profissionais a relevar que lhe satisfizeram. Este é um exemplo de que (somente) o salário não constitui o incentivo primordial se tivermos que recrutar bons candidatos “top people”. Aos bons candidatos como este, as empresas devem no mínimo oferecer uma “revolução de 30%” com relação a situação em que se encontram, percentagem distribuída em cada um dos critérios acima referidos.

Este caso ilustrativo leva-me a conclusão de que para fazer um bom recrutamento devemos oferecer aos bons candidatos o que chamamos de “career move” e não um bom salário como forma de os atrair, pois estes são mais atraídos por “challenges”. Podemos concluir também que para estes níveis de talento, saber que “irá ganhar melhor que os colegas desde a sua chegada na empresa” constitui um ponto negativo na sua tomada de decisão para integrar a empresa, pois o futuro colaborador imagina o mesmo cenário quando forem contratados novos colegas. Isto mostra desde o processo de recrutamento que a empresa e os gestores depositam pouca importância nos colaboradores já em posto, falta de um plano de evolução da carreira, falta de diálogo etc etc.

Mas quando pagar melhor a um novo colaborador se torna necessário, os Gestores devem consagrar tempo de qualidade a justificar aos colaboradores já na empresa a razão dessa decisão, pois o sentimento de injustiça causa desmotivação. Esta é também uma boa oportunidade para o gestor comunicar alguns aspectos a melhorar no colaborador antigo, assim ganham em motivação e produtividade e evita-se conflito e inveja entre colegas.

QUE SOLUÇÕES PARA UMA JUSTIÇA SALARIAL NAS EMPRESAS

As soluções seriam elaboração de uma grelha salarial clara onde entre outros aspectos deve constar a função do colaborador, responsabilidade do colaborador e plano de remuneração associado a evolução de carreira profissional.

Para terminar gostava de dizer que para uma evolução salarial o colaborador deve evoluir em termos de “qualidade como profissional”. Os colaboradores devem, incessantemente, procurar se aprimorar como profissionais no seu domínio de especialização. Ler bons livros sobre a sua área, participar em workshops, assistir vídeos (youtube), ouvir podcasts, fazer parte de grupos profissionais e tomar outras ações que assegurem contínuo crescimento e aprendizado. As empresas e os gestores não podem tudo, estes têm apenas o papel de mentores. A responsabilidade de evolução profissional é, em primeiro plano, e principalmente, do próprio colaborador.

Recomendação de livro para o  mês de Novembro: “Born to Win – Zig Ziglar”.

Samuel Gerson Andrisse é especialista de recrutamento e autor do livro “Be ready for your next job interview”.

O artigo anterior focou-se no período após a “Revolução dos Cravos” contando apenas pequenos episódios e passando rápido pelos 5 anos de estudo no Técnico, mas há ainda algumas estórias interessantes a contar, pois é uma Escola que marca.

Em 1975, no 1º ano, tivemos a cadeira de “História das Ciências”, sem créditos e sem notas, 1h uma vez por semana oferecida por um Professor (Físico)/Padre João Resina Rodrigues, da Academia das Ciências de Lisboa, que nos abriu os horizontes para a Ciência, foi excepcional (a cadeira era facultativa com poucos alunos mas não falhei uma aula). Nessa altura, não tinha ainda a certeza sobre que especialidade devia seguir pelo que comecei a comprar desde então livros sobre Física, Astrofísica, Cosmografia, Biologia, Genética, Filosofia, História, etc…ainda hoje tenho uma biblioteca pessoal mais extensa nestas áreas do que em Electrónica, e, por mais um daqueles acasos do destino, quando o Professor faleceu em 2010, abriu uma vaga na Academia a qual deu lugar à minha entrada na mesma (voltarei ao assunto).

Mas continuando, um pouco mais tarde, já no 3º ano, em 1978, um dos jovens professores que realmente influenciou a mudança no Técnico tinha feito aí a licenciatura em Engenharia Electrotécnica mas doutorou-se no MIT, nos Estados Unidos, e regressou em 1975, em pleno “Verão Quente”, tentou impor um novo sistema de avaliação no meio da confusão que descrevi antes, em que tínhamos apenas trabalhos em grupo. Propôs que houvesse testes, teve forte oposição dos alunos e fizemos greve à cadeira, Fundamentos de Telecomunicações I, ou seja, deixámos de ir às suas aulas (…), no entanto ao fim de algum tempo (2 ou 3 semanas) chegámos a um consenso. Continuámos a ser avaliados em trabalhos de grupo mas agora concluídos numa semana, no semestre seguinte, em Fundamentos de Telecomunicações II, passaram a ser trabalhos de 24h, e isso abriu caminho ao regime normal de testes e exames que ainda se mantém hoje. Um pormenor interessante, quando acabámos a greve às suas aulas, aparecemos para o recomeço num dos anfiteatros do Pavilhão Central, um dia às 8h da manhã, chegámos um pouco mais cedo, mas as portas do anfiteatro estavam fechadas, o que não era normal, aguardámos então que o contínuo as abrisse. Para nossa surpresa, às 8h em ponto, as portas abrem-se, mas do lado de dentro, era o professor que já lá estava e quando entrámos víamos só um dos quadros pretos (eram paralelos e amovíveis sendo cada um o dobro do tamanho dos de uma sala normal), o qual estava já completamente cheio de fórmulas (…). Não houve tempo a perder, foi só sentar e começar a passar tudo para a sebenta, ainda não ia a meio do primeiro quadro (a escrever), já ele tinha descrito tudo e levantou o outro quadro que estava encoberto por trás e o qual estava também já todo escrito! Desisti, era melhor só prestar atenção. Foi o momento da viragem na Escola, a partir daí até ao fim foi sempre a acelerar com uma dinâmica e exigência completamente diferentes em todas as áreas do curso. O professor após algum tempo no Técnico regressou de novo aos Estados Unidos e é dos professores com maior notoriedade mundial na nossa área, ficámos amigos, e uma curiosidade, nasceu na Beira, em Moçambique!

No ano seguinte, em 1979, outro professor, este recém doutorado na Universidade de Manchester, no Reino Unido, Mário Lança (falecido este ano), dava Electrónica Aplicada I e II no 4º ano. Éramos mais de 200 no curso, e lembro bem que na altura poucos passámos a estas 2 cadeiras à primeira…não era difícil, mas continha uma “mudança de paradigma” que era difícil de assimilar, e muitos ficaram a não gostar da Electrónica por causa destas 2 cadeiras, outros adoraram, e fizeram-me despertar para esta área fascinante. Nós tínhamos estudado Electrónica I e II no 2º ano e julgávamos que já sabíamos umas coisas (de Electrónica…), pois ficámos a conhecer umas fórmulas “tipo comboio” (que enchiam o quadro) da corrente e da tensão da operação dos transístores que tinham todos os termos, mas, quando chegámos às suas aulas não queríamos acreditar pois, usando só menos de metade do quadro, o professor pegava nas mesmas fórmulas e deitava quase todos os termos para “o lixo” pois afirmava (e bem) que os termos desprezados não eram precisos para nada em termos de projectos práticos com transístores, e daí a “mudança de paradigma”, mas para as nossas mentes ainda muito matemáticas isso era extremamente difícil de engolir ao princípio…se bem que ao fim de umas semanas, quem aguentava, pois muitos começaram a “baldar-se” às aulas, não queria outra coisa senão trabalhar com aquelas fórmulas muito mais simples! O tal fascínio pela Electrónica e o espírito motivador deste professor, convenceram-me a escolher esta área e assim iniciei a carreira como Assistente Estagiário. Uma nota curiosa, acabei o curso num dia e fui dar aulas no dia seguinte a uma turma da noite, os alunos (trabalhadores) tinham sido quase todos meus colegas, quando entro na sala vou para o lado da secretária/quadro, e dizem: “Ó Rui, o que é que estás aí a fazer, o Prof. está a chegar”, respondi, “O Prof. sou eu…”, gargalhada geral, mas 5m depois prestavam todos atenção.

Seguiram-se 12 anos de ensino e investigação, o mestrado (projectei com outros colegas o primeiro circuito integrado analógico em Portugal, em 1982) e o doutoramento, sempre em Electrónica. Em 1986/87, no início do doutoramento, hesitei, Portugal atravessava uma crise económica grande e já tínhamos 3 filhos, pensei sair do país e emigrar (a ideia de África na juventude estava sempre presente), nomeadamente para a Austrália, ou então fazer o doutoramento fora, mas, outro jovem professor, regressado do Imperial College em Londres, diz-me: “Se fizeres o doutoramento comigo irás publicar nas conferências e revistas científicas de topo mundial, o que equivale a um doutoramento, nos Estados Unidos ou Inglaterra”. Não fiquei muito convencido mas pedi um tempo para pensar, fui passar Julho e Agosto de 1986 de férias ao Algarve, numa altura em que também tinha tido um princípio de um esgotamento. O meu Sogro tinha montado um negócio de “gaivotas” (com pedais) em 3 praias do Algarve, Manta Rota, Altura e Praia Verde, e pediu-me se podia ajudar a coordenar o início do mesmo. Foram 2 meses de trabalho (mais braçal) de sol-a-sol, no duro, pois além da coordenação ainda substitua os jovens trabalhadores temporários que muitas vezes não apareciam e tinha de movimentar as “gaivotas”, que não eram nada leves…mas desanuviou-me a cabeça e decidi aceitar o desafio do doutoramento no Técnico. O orientador estava certo, entre 1986-1992 publiquei mais em conferências e revistas internacionais do que qualquer colega da área que aí se doutorou ou nos Estados Unidos, e contribuí para a criação do primeiro grupo de investigação na área da Microelectrónica em circuitos integrados analógicos, em Portugal. Trabalhei num circuito integrado que foi também o primeiro totalmente personalizado (full-custom) a ser projectado no país e publicado na revista mais famosa de Electrónica. Um pormenor, desenhei a implantação do circuito – layout – na Universidade de Pavia, em Itália (Universidade de Alessandro Volta).

Em Fevereiro de 1992 com o doutoramento concluído passei a Professor Auxiliar, o grupo de investigação era dos mais avançados na área, mas sonhava todos os dias em sair de Portugal, havia qualquer coisa que me atraía para o desconhecido, estavam-me no sangue as aventuras Africana e Mexicana do meu Pai, em especial a primeira devido à vivência em Moçambique. Então, em Março de 1992, o semanário “Expresso” publica um anúncio de recrutamento de professores para a Universidade de Macau…como era e continuo a ser colecionador de selos, desde os tempos de LM, pois retirava-os das cartas que vinham de Portugal, conhecia Macau apenas pelos seus selos antigos…E, não fazia a mínima ideia que aí houvesse uma Universidade, vim a verificar mais tarde que a Universidade de Macau tinha sido refundada com esse nome apenas em Setembro de 1991, sendo nessa altura a única em Macau, como acontecia igualmente em Moçambique com a Universidade Eduardo Mondlane, panorama que mudou muito na década seguinte em ambos os lados. Respondi, passaram 2 meses, sem ter sido contactado, pelo que esqueci. Mas, estava escrito nas estrelas (…), em Julho, encontro por acaso, um ex-colega do Liceu Salazar (Carlos Pires, o “Fininho”), que também tinha sido colega primeiro e posteriormente aluno, no Técnico, e que não via há anos. Disse-lhe que tinha respondido a um anúncio para Macau e ele diz-me: “Rui, está lá o “Gui”!”, “Gui” (Rodrigo Brum) era outro ex-colega do Liceu que não via há imensos anos, telefonei-lhe, a mulher era docente na Universidade, disse-me que era um local agradável, continuei interessado, mas pouco tempo depois recebia uma carta da Universidade dizendo que não havia vaga, e arrumei o assunto. Contudo, em Agosto, recebo um telefonema de um responsável de Macau dizendo que estavam à minha espera (…), não quis acreditar, mas, após um processo relativamente complicado, no fim de Outubro de 1992 lá partia com a família toda (os 5) para Macau.

Um detalhe final, no dia em que mencionei ao meu ex-orientador de doutoramento que tinha aceite uma posição de professor noutra Universidade, achou bem pois pensou que iria para Aveiro, Coimbra, Braga ou Porto, quando lhe disse que era a Universidade de Macau afirmou: “Mas Macau é um Deserto (!), não há lá “Universidade”…”. Respondi que me tinham contratado e ia experimentar. Quando cheguei confirmei que tinha razão (…).

 

Macau, 20 de Outubro de 2020 ! (40 anos depois dos 5 Foguetes!…)

O homem só é consciente quando pode servir-se da sua própria inteligência.

Rodrigues Júnior

 

Para Lex Mucache, escrever é um acto de libertação da consciência? Pode ser muito cedo para darmos uma resposta categórica nesse sentido. Entretanto, ao analisarmos Asas decepadas, seu livro de estreia, constatamos um certo interesse de o autor usar a ficção no encargo da emancipação da razão, sem vulgarizar um eventual propósito literário.

No seu livro com 18 contos, primeiro, Lex Mucache apresenta-se como um escritor deveras interessado em representar questoes ligadas à moral, à solidariedade e à fraternidade na perspectiva comunitária. Em geral, as histórias dos seus contos ou desenrolam-se no meio rural ou situam-se em contextos humildes, às vezes, sem se esforçararem em garantir uma abordagem concreta do lugar. Esta estratégia atribui ao espaço narrativo uma certa autonomia em relação à realidade, tornando a história mais flutuante, no entanto sem se desligar dos substractos que a sustentam.

O primeiro conto do livro, “Asas decepadas”, o que o intitula, logo acusa as qualidades literárias de Lex Mucache na concepção do conto. Ao localizar a sua narrattiva em duas dimensões, no ar e na terra, o escritor leva à sua história uma alegoria da natureza humana, através da qual se evidenciam comportamentos, contrassensos e cenários que diluem quaisquer ambiguidades sobre a lógica insana do poder.

“Asas decepadas” é um conto sobre os possíveis mecanismos de controlo social por parte dos que temem os impactos da consciencialização das massas. Na história, existe uma personagem contratada pelos poderosos para decepar as asas de todas as aves, Ivan Brainovich, de modo que estas possam ser facilmente vigiadas em terra firme. “Os populares [inconscientes?] jubilavam; não mais necessitavam de gaiolas e vedações, pois todas as aves andavam à solta pela freguesia. Era aí em que residia o paradoxo das aves, numa liberdade que era a pior das prisões. E sempre que o conselho se reunia para o balanço habitual, o chefe dos contratadores dizia: ‘Recordam-se da controvérsia que, outrora, divergiu os colonialistas a respeito do nosso saudoso Chitlango? Pois é, caros amigos, está ultrapassado! Lacrado e carimbado. Aqui não há águias, apenas galinhas.’” (p. 12)

Entretanto, a certa altura, o próprio decepador de aves apaixona-se pela possibilidade de voar, ser livre, que usa as asas dos pássaros para se lançar em outras dimensões. O traiçoeiro projecto dura pouco tempo, afinal os poderosos do lugar têm sempre outros artifícios para dominar e amputar iniciativas improvisadas como aquelas. Ivan Brainovich é derrubado em pleno voo e, com mais cuidado, os obcecados pela manutenção do status quo decidem não só continuar a decepar os pássaros bem como passam a colocar todos em gaiolas.

O conto inaugural deste primeiro livro de Lex Mucache é de tal ordem impactante que é impossível não relacionar com a política ou com os jogos de controlo social. Colocando humanos e aves na mesma história, primeiro, o autor activa esse fascínio comunitário que norteia todo o seu discurso narrativo. Segundo, coloca os homens como vilões capazes de violar a essência dos fenómenos naturais para o seu próprio benefício. Terceiro, poe-nos a reflectir sobre o preço real da estabilidade democrata, na relação entre interesses de classes. É um conto para reler várias vezes e até compará-lo, por exemplo, com As aves, de Aristófanes.

Lex Mucache prova, neste seu Asas decepadas, ser um autor com capacidade inventiva para acrescentar qualidade à ficção moçambicana. A sua escrita não é refém de aspectos técnico-narrativos. Ainda assim, o seu estilo narrativo, aparentemente despreocupado, incopora nas histórias algumas marcas discursivas próximas à oralidade. Quem for ler o livro poderá ficar com a percepção de já ter sido contado a história intitulada “Os três viajantes”, cujo enredo é típico das narrativas orais moçambicanas reproduzidas para legitimar regras e veicular valores. Essa é a história de três homens, que partem numa viagem com objectivos diferentes. Sintetizando, do trio apenas triunfa aquele com coração nobre, preocupado em salvar a sua comunidade da seca e das epidemias, que soube ouvir. Os outros dois, por terem desrespeitado as regras da boa conviência e da solidariedade, perderam-se dos prováveis caminhos auspiciosos.

O livro de Lex Mucache é muito comprometido com os contextos que alude. Certamente, o escritor deve ter escrito os contos depois de ter definido os temas do seu interesse, consoante o que sente, o que pensa e o que passou. Logo, em pequenos fragmentos captam-se retratos passíveis de nos proporem reflexões profundas sobre Moçambique. “O motim” é um exemplo doloroso, mas relevante para o efeito. Dizemos o mesmo de “O retrato milagroso de Ben Mabunda”, conto que extrai das nossas rotinas quotidianas uma luz de esperança. Na dor, Lex encontra aspirações e, inevitavelmente, o seu leitmotiv.

Num outro ângulo, no seu Asas decepadas Lex Mucache inclui histórias sobre a justiça e sobre o que se julga isso ser. Paralelamente, revela-se um autor vinculado à sua contemporaneidade. Por exemplo, quando escreve sobre o que fomenta o terrorismo em “A missão”:

“No princípio, Laurindo era um pacato chefe de família e fiel de armazéns. Conferia produtos, controlava a entrada e saída de bens. Várias foram as vezes em que os colegas tentaram aliciá-lo, para fazer alguns desvios, mas ele nunca cedeu. Insatisfeitos pela sua rectidão, os colegas montaram-lhe uma armadilha. Uns produtos roubados na pasta de Laurindo levaram à sua expulsão. Depois que ficou desempregado, perdeu também a esperança; quem contrataria um homem na casa dos cinquenta e que pouco sabia fazer? Imediatamente, atirou-se às bebidas destiladas, passando todos os dias bêbado” (p. 59).

Este excerto justifica o que se vai passar com o protagonista em toda história. E, mais do que uma narrativa sobre o terrorismo, “A missão” é um conto escrito para ajudar a compreender esse fenómeno a ondular entre o que se julga ser fé e a fatalidade, claro, sem julgamentos reducionistas mesmo entre as personagens.

O sonho é outro factor na órbita de Mucache, todavia sugestivo quando é impossível de concretizar. Verdadeiramente “pedagógico”, o escritor dá vitalidade a Mussa e Abu, perdedores enganados pelas suas pretensões. Na verdade, recorrendo a essa dupla, Lex Mucache desconstrói a ideia romântica de que a coragem e a persistência levam as pessoas à vitória. Em Asas decepadas as escolhas é que determinam o destino das personagens. Como aprender a escolher certo? Muitas vezes, é sobre isso que Lex Mucache escreve.

 

Título: Asas decepadas

Autor: Lex Mucache

Editora: Kulera

Classificação: 14

 

Estávamos então em Agosto de 1974 no fim da nossa “aventura africana”, no paquete Infante Dom Henrique a caminho de Lisboa. A chegada e reintegração em Portugal apesar de difícil, não foi tanto como a de muitas outras famílias. O meu Pai dizia “vão sempre ser precisos farinha e pão…”, assim, começou logo à chegada a contactar antigos conhecimentos e em menos de 2 meses conseguiu retomar alguma actividade numa empresa de representação de maquinaria de moagem. Com o passar dos anos, com os 3 filhos já na Universidade em 1978 sentia mais dificuldades económicas, e desta vez o empresário não foi moçambicano, mas mexicano (Faustino Fernández, descendente de Espanhóis) que fez uma oferta ao estilo do Real Madrid! E, partiu de novo, agora só com a minha Mãe, para Hermosillo, capital do Estado de Sonora, no México, que é basicamente um Deserto (Sonora no México e Arizona nos Estados Unidos, voltarei ao Deserto…). Foi chefiar a Moagem do “Molino La Fama”, produzindo a Farinha “Los Gallos”. Aí esteve durante 5 anos, e numa das visitas que nós os 3 filhos aí fizémos a minha irmã do meio decidiu ficar, casou com um Mexicano, e lá está radicada desde o início dos anos 80, um dos ramos da família ficou assim na América-do-Norte.

No meu caso, inscrevi-me em 1974/75 em Engenharia Electrotécnica, no Técnico, e pensei que iria começar o 1º ano, mas a estória foi muito mais gira…em Outubro, realmente, as aulas começaram, mas o sistema universitário estava em “auto-gestão”, as aulas decorriam no anfiteatro de Electricidade, e tínhamos uma cadeira em cada manhã, Análise Matemática, Física e Química, mas o interessante, é que o que era oferecido numa aula não tinha seguimento na aula seguinte, os Assistentes (não havia Professores, tinham-se reformado, sido saneados ou ido para o Brasil quase todos) também não eram os mesmos, aparecia quem estava disponível no momento, e cada um dava o que lhe apetecia dentro dos 3 temas anteriores…a confusão era mais que muita, e ao fim de 1 mês as universidades fecharam, fiquei então sem nada para fazer…mas, como um dos meus Tios trabalhava na Sperry-UNIVAC sugeriu que eu fizesse alguns cursos de computadores (que apareciam em força) para me ir entretendo, assim entre Novembro e Março fiz todos os que havia, as linguagens de programação comerciais, RPG-1, RPG-2, Cobol e ainda Perfuração de Cartões (neste, eram só alunas já com uma certa idade, quase todas ex-datilógrafas, e eu…). Com o “Processo Revolucionário Em Curso” (vulgo PREC) a decorrer, foi criado em Maio de 1975 o “Serviço Cívico” para os alunos universitários (1º Ano) e assim entre Junho e Agosto de 1975, contribuí para a sociedade na Ribeira da Laje, em Oeiras. Todas as manhãs às 8h íamos numa camioneta de caixa aberta da Câmara de Oeiras até à Laje, onde passávamos o dia. Aí, fazíamos animação cultural e desportiva, trabalhos de construção civil, desde a montagem de esgotos, à construção de uma estrada em brita, um pavilhão para a terceira idade, etc…tudo controlado politicamente por um grupo de estudantes como nós, mas bastante revolucionários e facciosos, quanto à população esta era uma maravilha, trabalhávamos e ofereciam-nos de tudo. Foi uma experiência fantástica que nunca mais esqueci. Interrompi este período apenas para me inscrever no Técnico, a 19 de Junho de 1975 (data histórica), ao descer a Alameda D. Afonso Henriques no regresso a casa, vi muita gente aglomerada na Fonte Luminosa (lado oposto ao Técnico) e fui ver o que se passava. Era um comício do Partido Socialista com Mário Soares, apareceu imensa gente, ele exigiu no discurso inflamado contra o Governo a sua demissão, criticando também o Conselho da Revolução, ameaçando paralisar o País, e perto do fim disse: “Vamos todos a Belém”. Lá fomos todos a pé até ao Palácio de Belém (12km!) onde chegámos noite avançada e aí Mário Soares (MNE em Setembro de 1974 que assinou o Acordo de Lusaka com Samora Machel) salta em camisa para a caixa de uma camioneta, mesmo em frente do Palácio, e começa a discursar (em voz muito alta), com os militares armados ao fundo em cima na varanda dos Jardins do Palácio a assistir, a situação esteve muito tensa, era muita gente e receei o pior. Mas, os militares mantiveram-se calmos, a manifestação acabou, fui serenamente até à estação do combóio e daí para casa. Foi o único comício a que fui na vida, o qual marcou o início do célebre “Verão Quente de 1975”, significativo para o futuro de Portugal como uma Democracia Ocidental. E, apenas 6 dias antes da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975!

Em Outubro, comecei finalmente o 1º ano do Técnico, o momento revolucionário ainda se fazia sentir em força, a “auto-gestão” mantinha-se, a organização era melhor, se bem que a Associação de Estudantes ainda controlava tudo, sendo gerida por um grupo conhecido como “Pops” (designação que creio ter origem em “Populares”…) cuja “ideologia” era para lá da “Extrema-Esquerda”… Na avaliação das cadeiras, para uma sociedade igualitária (…), as notas eram apenas “Apto” e “Não-Apto”, classificações que se mantiveram durante todo o 1º ano, não havia exames, e só existiam trabalhos em grupo, sem limite de alunos em cada grupo (…). Comigo aconteceu mais uma coisa interessante, na cadeira de Análise Matemática I (uma das matemáticas difíceis) quis formar grupo com uma outra colega que conheci na altura, e com quem as trocas de ideias iniciais nos faziam convergir na nossa visão do mundo, tendo sido ambos bons alunos no liceu. Assim, quando o Assistente pediu para formarmos grupos, eu fiz grupo com ela. Pouco tempo depois quando a lista dos grupos estava exposta no quadro, salta um dos colegas “controladores revolucionários” (estilo “chefe-de-turma”) e diz: “Esses dois não podem estar no mesmo grupo, e ainda por cima sozinhos, pois são bons alunos e tal criará uma grande desigualdade na turma, têm de ficar em grupos diferentes!…”. A minha colega ficou apavorada com a situação (e eu também…), mas acalmei-a e disse-lhe: “Isto resolve-se facilmente”. Enquanto todos dialogavam para resolver a situação fui falar com o “chefe-de-turma” e propus-lhe que eu e a colega ficássemos juntos, mas convidei-o a fazer parte do grupo e para além disso convidaríamos uma outra colega formando grupo os 4. Ele aceitou logo (!), e rapidamente se esqueceu do que tinha imposto antes quanto à nossa separação. Assim, fez Análise I e II facilmente…enquanto eu e a colega (que é uma professora de topo mundial) colaborámos até ao final do curso. Um outro pormenor curioso, a Cantina era no edifício da Associação de Estudantes, ao almoço a fome era muita depois das aulas desde as 8h, e havia uma grande fila, esperávamos à volta de 30 a 40m, e escutávamos sempre as mesmas músicas revolucionárias Chinesas (!) (sinal premonitório…), interrompidas de vez em quando pelas “Quatro Estações”, de Vivaldi (única diferente). Esta música abre-me o apetite ainda hoje…Os 5 anos correram (1975-1980), as notas passaram a Apto Escalonado no 2º ano (A, B, C, D) e a partir do 3º/4º ano veio a normalidade com testes, exames e notas (0-20), alguns professores regressaram doutorados, dos Estados Unidos, e da Europa, e a Associação de Estudantes evoluiu da “Ultra-Extrema-Esquerda” no 1º ano para a “Direita/Extrema-Direita” (…) no 5º ano! Assim, a 20 de Outubro de 1980, há 40 anos atrás, lancei os 5 foguetes comemorativos da conclusão do curso de Engenharia Electrotécnica! Interessante, que Samora Machel desapareceu no dia anterior em 19 de Outubro, mas de 1986. Soares e Machel, ambos Presidentes, influenciaram significativamente o desenvolvimento dos 2 países e deixaram a sua marca numa geração de Portugueses e Moçambicanos.

No regresso a Portugal, em 1983, o meu Pai foi trabalhar no grupo Amorim & Lage, numa grande Moagem na Maia, no Porto (voltarei ao Porto também mais tarde), onde produzia outra farinha famosa, a “Milaneza”, local onde se reformou em 1997. Um detalhe interessante, já recentemente, este grupo associado a outros parceiros fundaram a Cerealis que é a maior empresa nacional na área de produtos alimentares (Farinhas e Massas) agrupando as duas marcas “Nacional” e “Milaneza”!

Nestes anos, a ligação a Moçambique foi ténue, mas a Memória e a Saudade foram fortes!

 

Rui Martins.

Macau, 9 de Outubro de 2020

P.S. – Escrevi este artigo no dia dos anos de mais uma pessoa importante na minha vida, a minha Mãe, que fez 87 anos, responsável por ter estudado e praticado Piano entre os 6 e os 18 anos, ainda pensei seguir Música, em vez de Engenharia, mas decidi-me por esta última, tendo abandonado por completo a primeira. Um outro colega do Liceu (Miguel Henriques) teve uma opção diferente e é actualmente o Director da Escola Superior de Música de Lisboa, no Instituto Politécnico de Lisboa. Tenho ainda hoje esse “bichinho no corpo”. Após 40 anos de carreira académica, espero ansiosamente reformar-me em breve e voltar ao Piano!

 

 

Assim, do nada, se fez o silêncio. Condoído e melancólico. Inexplicável. No mês do professor, terminava uma viajem que parecia infinita, duma das mais profícuas e renomadas professoras que a própria Universidade Pedagógica ajudou a professorar. O vocabulário da exaltação será sempre restrito e, quiçá, repetitivo para expressar a temporalidade, a dialéctica de metamorfoses, a viagem, e o erudito. As melhores expressões se converteram em lágrimas. Uma dor profunda e uma comoção abrasiva.

Para trás, e neste cenário de incredulidade, ficou um percurso de tantos, e essenciais, livros e outros textos conjuntos e colectâneas de natureza e conteúdo académico e educativo e, acima de tudo, uma história que passou tangencialmente, ou na profundidade, pela história de outros tantos estudantes, docentes e curiosos.

E nesse instante, terminou uma fascinante aprendizagem, cuja intenção se associava a disponibilidade para olhar o mundo que nos envolve, saber escutar e, sobretudo, caminhar junto da natureza no universo das suas diferentes formas.

No ano em que a Universidade Pedagógica de Maputo, mais extensa ou confinada, celebra o seu 35º aniversário, a nossa professora Stela Mithá Duarte, também se aproximou das 35 publicações, dos 35 estudantes que orientou, das 35 conferências que organizou, dos 35 cantos da universidade que amou e dos 35 tectos que edificou. Essa, a marca do reconhecimento e da grandeza de um talento que, indelevelmente, ficará para os anais desta instituição que são o produto da revolução do 25 de Setembro, das vitórias e dos sacrifícios da independência nacional, da coragem e bravura dos melhores filhos desta pátria.

Celebramos os 35 anos de uma universidade que, na sua dimensão territorial, regional, cultural, educacional e científica, uniu e formou moçambicanos de todas as raças e etnias, das classes sociais mais desfavorecidas, das classes médias e abastadas, estrangeiros, e primou por manter presente essa busca incessante pelo conhecimento, pela pesquisa e pela extensão. A professora Stela formatou esse restrito grupo movido pelo ideal do olimpismo universitário que procurou ensinar mais, publicar mais e elevar o brilho de um país que procura o seu reencontro.

Nesta ode, não são as memórias ou as fases institucionais mais importantes, que devem ser restauradas. Serão antes, as energias que ao longo dos anos preencheram suas alegrias, os dissabores que a entristeceram, os debates que acalorou e, principalmente, as virtudes que foi estimulando e que engrandeceram este longo percurso que ainda terá de ser palmilhado. A professora Stela era essa líder. Serena e resguardada, que sabia orientar e iluminar as mentes mais controversas e brilhantes.

Devolvemos o seu corpo à terra no dia do professor, na semana onde as festividades se confrontam com as vicissitudes, nos momentos em que um país inteiro é chamado à reflexão, como se as nuances educativas continuassem desconhecidas ou carecidas de debates. E sob a capa da chuva miúda e teimosa, transformamos o seu corpo em cinzas. Essa cinza, do seu corpo, que é conhecimento e que vai descer rio a baixo, por toda a extensão do Zambeze, contemplando a Chupanga de David Livingstone e desaguando nas ensobradas águas do Índico. Esta foi a sua vontade, e estas cinzas também são a história. O Zambeze se converte no rio de todas as nossas emoções.

O Zambeze se transformará num rio de energias e conhecimento secular e, igualmente, num rio universitário. As águas que nos roubaram uma companheira sóbria, destinta, amiga de todos e companheira de todas as ocasiões.

Ninguém te pede para repousares em paz, professora. Os verdadeiros professores não repousam. Não podem repousar, enquanto existirem pesquisas para escrever, enquanto não nos reconciliarmos como moçambicanos, enquanto existirem crianças e adultos analfabetos, enquanto os tabus superarem a ciência, enfim, enquanto os dissensos forem bem maiores que os consensos. A professora Stela partiu como viveu. Comungou o espírito de reconciliação. Nasceu muçulmana, cresceu católica e hindu. Na hora da partida, comungou estas três religiões, para que a sua alma pudesse partir reconcialiada. Apenas o seu corpo deixou de estar no nosso seio. (x)

 “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.”
José de Almada Negreiros (1921). In A Invenção do Dia Claro. Lisboa: Olisipo .

“Antigamente / (antes de Jesus Cristo) / os homens erguiam estádios e templos / e morriam na arena como cães. // Agora… / também já constroem Cadillacs.”

José Craveirinha (1974). “Civilização”. In  Karingana ua Karingana, Lourenço Marques: Académica.

 

Intróito

Começo o meu texto citando dois poemas que, em meu entender, respondem à grande incógnita que nos reúne em torno do assunto de um dos paineis da Feira do Livro de Maputo, edição 2020. O tema é “Dialécticas literárias em tempos de crise: que ideias para o futuro?”.

São as dúvidas e o medo sobre o tempo vindouro que inspiram o nosso diálogo. São estas questões nunca respondidas, desde que o mundo existe e que não terão uma solução com as intervenções nesse debate. Entretanto, cada um dos participantes tecerá considerações éticas, com as quais, certamente, acredita que podem ajudar a enfrentar o que nos espera, mas nenhum dos painelistas trará uma fórmula acabada. Isso não tem sido possível, tal como ilustram os poemas e tal como temos vivenciado. Ambos os textos revelam que ainda há muito a se fazer pela humanidade e pelo futuro. Por outras palavras, temos que ir cuidando da humanidade para a salvar. Mas o trabalho será sempre inacabado.

 

Pressupostos

Será, também, a partir do pensamento de Edgar Morin (2002), de Zygmunt Bauman (2007) e de Yuval Noah Harari (2020), que tentarei construir o meu pensamento. Morin, porque nos sugere como o futuro pode ser gerido em termos educativos;  Bauman, por nos alertar para a gestão da incerteza e da utopia que é a vida ou o conhecimento sobre o mundo. Em síntese, ambos os autores se referem, nas suas obras, às questões do futuro. Encontrei, também, através de uma abordagem à obra de Yuval Harari, a ideia de que as escolhas que fizermos, actualmente, em relação à pandemia global do coronavírus, mudarão as nossas vidas futuras.  E é em função das ideias destes autores que elaborarei a pretensão de uma “sinfonia” na criação literária para os dias que vêm pela frente.

Em Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro, Morin (2002), aponta os caminhos que deverão nortear o ensino no século XXI, a saber: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios de um conhecimento pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrena; afrontar as incertezas; ensinar a compreensão e a ética ao género humano.

No primeiro conceito, o autor alerta-nos para a importância de se ir construindo em permanência o conhecimento, para evitarmos ilusões. Quer dizer que o conhecimento nos transcende. E é, também, o que sugerem as epígrafes do presente texto. No segundo, há um convite para que o conhecimento seja apreendido em função de problemas globais, que depois possam ser particularizados localmente. Quer isto dizer que é importante estabelecer-se relações que permitam a leitura e a troca de informações de dados que sejam comuns, para depois os fragmentar em partes que possam responder a contextos específicos. O terceiro conceito confronta-nos com a dimensão humana, isto é, sobre o facto de o homem ser feito de múltiplas identidades: física, biológica, psíquica, cultural, social e histórica, que devem ser levadas em consideração no ensino, por serem indissolúveis e por coexistirem em toda a raça humana, ou seja, os homens são iguais e é preciso que isso esteja claro na contextualização local ou específica de cada fenómeno. Assim, chegamos à quarta premissa, na qual o autor nos sugere que uma crise de um país arrasta consigo todos os países, ou seja, a terra, no seu todo, é a nossa casa comum, os problemas de uns são os problemas de todos. Estes dois últimos paradigmas complementam-se.  E com o quinto, somos convidados a abandonar as concepções deterministas sobre o mundo, dado que não há como predizer o futuro. Seguindo para o sexto ponto, somos ensinados sobre a necessidade de aprender a compreendermo-nos como humanos, há que ultrapassar a barbárie, a xenofobia, os desprezos,  os racismos, etc.  De alguma forma esta noção surge como alicerce para a compreensão do quarto paradigma. No sétimo somos chamados para a urgência de sermos democráticos. A nossa condição de indivíduos numa dimensão ternária: espécie-sociedade-indivíduo, que, para além de nos conceder uma autonomia individual, cobra-nos em obrigações pessoais, por um lado, e sociais, por outro, para com a espécie humana.

Há em síntese, na concepção deste autor, a ideia subjacente de que o futuro é uma incógnita que deve ser abordado, considerando a ideia de unicidade da espécie humana que habita um lugar comum que é a terra e que, para além das preocupações individuais, há a necessidade de se estabelecerem trocas e conhecimento, uma vez que, por serem seres pluri-identitários, os Homens devem, cada vez mais, cultivar valores éticos, de compreensão, de cidadania, que sejam democráticos, visando proteger o planeta e a sua espécie. Os determinismos são um fenómeno falho na sua essência. O devir é árduo.

A questão da incerteza é também estudada por Bauman (2007:100), na sua obra Tempos Líquidos, no capítulo que aborda a utopia e a incerteza. Segundo o autor, foi no séc. XVI “que as rotinas antigas e aparentemente eternas começaram a se desintegrar”. E foi nessa mesma altura em que, a partir de Sir Thomas More, se começou a utilizar a palavra utopia, para designar novos sonhos. Segundo explica o autor que tenho vindo a citar, significa, grosso modo: lugar bom e lugar nenhum. Entretanto, os seguidores de Sir Thomas More, conforme afirma Bauman, foram propalando a ideia de impossibilidade de se viver um mundo sem utopia. E a utopia na sua óptica é: “uma imagem de um outro universo, diferente daquele que conhecemos ou de que estamos a par. Além disso, ela prevê um universo originado inteiramente da sabedoria e devoção humanas.” (Bauman: 2007:102-103). E é um conceito encoberto de incertezas, com o qual se deve ligar cautelosamente.

As vidas dos seres humanos encontram-se entrelaçadas, conforme nos sugere Yuval Harari (2020), ao afirmar que, no contexto pós-pandemia, é importante que os planos económicos sejam feitos de modo global, uma vez que o problema é global. Segundo ele, deve existir solidariedade entre países pobres e países ricos. O seu ponto de partida é o de que as mudanças nos próximos tempos não terão apenas a ver com os sistemas de saúde mas, também, com a economia, com a cultura, com a política e com a ciência. A crise presente marca, certamente, uma nova era para as nossas vidas.

No entender de Harari, será uma era marcada pelo controle total dos cidadãos, porque se passará a viver num mundo digitalizado. Além disso, deverá haver uma escolha entre o isolamento nacionalista ou a solidariedade global, sendo que essa solidariedade consiste no facto de que os países desenvolvidos construirão soluções cientificamente aceitáveis para debelar o vírus, para a sobrevivência do planeta, para si próprios e para os países pobres e estes últimos, em nome dessa sobrevivência, outra escolha não terão, senão a de colaborar com a recepção de tais soluções.

É já sabido que a actuação do vírus pode ir mudando de foco, de países ricos para pobres e vice-versa. Entretanto, a ideia de se viver num mundo digital vigiado parte de ambas as partes: governo-indivíduos e vice-versa. Há nisso vantagens, segundo o autor. A par disso, o maior risco que se corre é ter de se confiar mais na ciência, do que em teorias da conspiração. E a troca de informação entre países será importante para o avanço desta.

 

Que futuro?: produção e recepção literárias

 Colocados esses pressupostos teóricos, parece-me que as “sinfonias” no âmbito da produção e da recepção literárias passarão, certamente, por adoptarmos algo que temos vindo a repudiar há alguns anos: o contexto digital. Mas é necessário haver  sistematização e massificão do conhecimento, e para que tal aconteça, num país como Moçambique, temos de nos preparar para um processo demorado, dado que o ingresso às tecnologias e aos dados digitais ainda é um problema por ser resolvido.

No que à literatura e ao acesso ao livro diz respeito, basta pensamos que os nossos maiores arquivos literários, a Biblioteca Nacional de Moçambique (Cfr. O País, nr. 4112185, pg. 13, de 01 de out. 2020), em Maputo, e a Brazão Mazula, da Universidade Eduardo Mondlane, não têm todas as entradas bibliográficas digitalizadas em catálogos. Ora, se essas são as maiores, de referência não só pelos tamanhos, como pela dimensão dos seus acervos que contêm, o que será das restantes existentes no país? Além dessas instituições de alto gabarito, a Rádio Moçambique, ao comemorar os seus 45 anos de existência, este ano, segundo referiu um dos seus representantes (Cfr. jornal domingo, nr. 1990, pg. 15, 04 out. 2020), um dos grandes desafios que ainda enfrenta é a digitalização da sua informação e o uso de tecnologias de difusão actualizadas à presente era.

Além disso, em Moçambique têm estado a operar, entre outras as seguintes editoras ou braços editoriais: Alcance, Brinduka, Trinta Zero Nove, Selo Jovem, Índico, Escola Portuguesa de Moçambique, Xidjumba, Oleba, Fundza, Fundação Fernando Leite Couto, Gala-Gala, TDM e FUNDAC (que não o sendo, publicaram obras resultantes dos seus concursos literários), Cavalo do Mar, Ethale Publishing, Ndjira (actualmente integrada no Grupo Leya), MOLIJU, Literatas, AEMO, JV, Plural, Chil, Kuvaninga – Cartão d’Arte e Imagem Real. Deste conjunto, apenas a Trinta Zero Nove e a Ethale Publishing é que se encontram representadas na Feira do Livro de Frankfurt, edição de 2020.

É uma feira criada a 18 de Setembro de 1949 e tem sido amplamente publicitada. Este ano, foi eminentemente digital, dada a emergência sanitária que o mundo atravessa. Da entrevista que fiz a alguns representantes de editoras, contatei que a possibilidade de participar nessa feira, passava por ter uma Banda larga de internet suficientemente potente e capacidade para digitalizar materiais ou de os colocar em arquivos digitais. Por consciência de que muitos países não teriam essa possibilidade, a organização da feira abriu a possibilidade de algumas editoras serem formadas para o efeito, conforme o referiu, Sandra Tamele, editora na Trinta Nove Zero, em entrevista datada de 15 de Outubro, na qual referiu:

“Eu e mais 19 jovens editores estamos a participar do programa de bolsas e a usufruir de formação sobre direitos, metadados e digitalização do negócio. Não porque não tenhamos capacidades, mas reconhecem que nadamos contra a corrente em mercados sem leitores estabelecidos ou onde são poucos. Tenho a mesma abordagem das grandes editoras, a escala é que é muito diferente”.

Esta constitui a solidariedade necessária de que fala Yuval Noah. Portanto, embora a Trinta Nove Zero não seja tão carente, maior parte das editoras moçambicanas, apenas pôde assistir ao que os outros faziam na feira, sem poder participar, tendo se perdido uma possibilidade de publicitar a produção literária ou a possibilidade de tradução de mais autores.

No contexto do que acabei de mencionar, não descuro, entretanto, a colocação de Rosário (2014), no seu texto O livro como fonte do saber na era digital, que é importante ter em consideração a ideia de que o acesso ao conhecimento pode-se processar de diversas maneiras, não apenas através do livro, como também através da palavra oral, derivada do conhecimento sistematizado de geração para geração e dos formatos digitais como vídeo-jogos, entre outros acervos digitais. O que, nos dias que correm, em que a informação se multiplica e se modifica a todo o momento, não é suficiente.

Em Moçambique, quanto a nós, e tanto quanto se pode constatar, ainda carecemos de acesso ou criação de acervos digitais. Da entrevista feita a Sandra Tamele, acima referida, a mesma afirmou:

Gosto de pensar que a internet e todas as plataformas de comunicação digital são o nosso bilhete para viajar e chegar a outros mercados, oportunidades e talvez até leitores. Este ano tem sido difícil e exigiu muito dos organizadores das feiras. É uma lufada de ar fresco ver Frankfurt totalmente digital depois do cancelamento de Bologna, Londres e Liepzig. Tenho aprendido muito com colegas do México, Brasil, Espanha e África do Sul sobre formatos de livros inclusivos, soluções de logística e até refinamento da imagem e marketing da ETZN (3009), portanto faço um balanço muito positivo.

A questão que se coloca e que me parece ficar por resolver, quanto a isso em Moçambique é que o domínio acabado de referir é de uma quantidade ínfima da população e, consequentemente de editoras.

Aliado a esse facto, existe ainda a desvantagem confirmada de que o acesso ao livro, tanto digital, quanto físico, é ainda um grave problema e que, por essa e por outras razões, a literatura não é um fenómeno de massas. No entanto, é ponto assente que, se por um lado, já nos apropriamos da utilização do livro digital, por outro, ainda existe quem o negue, a pretexto da sedução pelo folhear do livro e do cheiro do papel.  Acresce a tudo isto a dificuldade de ligação ao livro digital, pelos motivos já apontados.

Uma grande discussão, no concernente à passagem para o ambiente virtual, coloca-se quanto à recepção de obras literárias. Haverá ou tem já estado a acontecer uma migração (necessária) para se criar hábitos de leitura de livros digitais? As feiras do livro já são realizadas em ambientes virtuais, referimo-lo anteriormente e está a acontecer na presente edição da Feira do Livro em Maputo (existem vendas de livros on line, bem como, estantes virtuais); o acto de contar histórias e os clubes de livro, já decorrem em ambientes virtuais, os concursos literários e as oficinas de literatura já têm lugar no ciber-espaço. Os lançamentos de livros ou webinares em torno do livro e da Literatura, também.

Em meu entender, para que a assinatura de autógrafos passe a ser realizada virtualmente, basta que o autor do livro escreva o texto-autógrafo nesse ambiente e que digitalize a sua assinatura, para que esta possa ser colada no livro de quem pede o autógrafo.  Encontramo-nos a um passo muito curto para lá chegar. Mas, é claro, que muitos ficarão de fora.

Ainda no que respeita aos hábitos de leitura, há, em ambientes virtuais mais avançados, a possibilidade de, com recurso a uma caneta digital, podermos marcar ou sublinhar os livros digitais ao lê-los. A releitura necessária ao livro passará por esse processo. Marcadores de livros não faltarão, porque essas canetas têm a possibilidade de colorir as telas digitais.

O grande problema que se colocará, e que já existe relativamente à recepção do livro, é o acesso ao mundo digital. Para além de a literatura já ser um fenómeno burguês, tendencialmente sê-lo-á ainda mais, pelo facto de que o acesso à internet ainda o ser. Então teremos que trabalhar a inclusividade, posto que a exclusão digital é um dado adquirido, quer para os países em vias de desenvolvimento, quer também para os países desenvolvidos, ainda que de uma forma mais branda. Há que estudar novas formas de acesso à Literatura.

A harmonia digital já é uma realidade para a maior parte dos escritores no mundo. É ínfima a quantidade de escritores que ainda escrevem à mão. Os livros hoje são todos produzidos (escritos e impressos) em ambientes digitais. Existem ainda os áudio-livros. Portanto, do ponto de vista da produção literária, já podemos afirmar que grande parte dos países ou dos escritores se encontram a trabalhar em ambientes digitalizados.

Ainda do ponto de vista da produção literária, seremos convocados a aprender com Morin, quando nos alerta para a ideia de vivermos numa casa comum e de sermos da mesma espécie humana e que, por isso, precisamos de aprender a nos compreendermos e a nos protegermos, para além de ser importante expandir ideias de democraticidade, para uma melhor cidadania. Assim, a Literatura será chamada a re-educar o mundo. Será convocada a (re)escrever temáticas que sugiram ou que façam representações que estimulem uma maior solidariedade para a preservação da espécie humana, bem como a um maior intercâmbio na solução de problemas, visto serem os mesmos, ocorrendo algumas excepções derivadas de cada contexto político, económico, cultural e geográfico. Haverá que se estabelecer um equilíbrio entre uma Literatura universalizante, que aborda questões comuns, mas também a localista, que assinala determinadas particularidades contextuais.

Quanto à representação de objectos simbólicos, a literatura sempre escreveu sobre o passado, o presente e o futuro, isso não me parece que mudará. Provavelmente, considerando as ideias de Morin, Bauman e Harari, mude a perspectiva, a partir da qual se analisa ou se representa a constância de fenómenos sociais no mundo. A certeza ou o determinismo relativo a alguns acontecimentos será ou já se encontra modificada, uma vez que as cartografias geográficas se encontram alteradas. O clima mudou, a vida passará a ser mais digital do que em presença, as relações humanas mudarão, a gregaridade do ser humano passará a ter novas abordagens; o mundo tornou-se uma aldeia global na qual os problemas se encontram interligados. A sociedade precisará de ser (re)educada para essa nova abordagem e a literatura tem um grande papel a desempenhar nesse processo. Mas ficarão em desvantagens países como Moçambique, nos quais a tecnologia ainda é um entrave; o que não significa que se deixará de escrever. Mas a literatura continuará restringida a uma circulação muito circunscrita. Se já existiam excluídos, haverá ainda mais.

A literatura poderá, ainda, trabalhar as representações simbólicas que ajudarão a humanidade no acolhimento das novas descobertas científicas. A par disso, coexistirão ainda no país, por muito tempo, a produção e a recepção de literatura em formato digital e físico. As escolhas que fizermos, a longo prazo, ditarão o lugar no qual o país se colocará. Entretanto, grande parte da mudança será ditada pelo poder económico e pela vontade política, sendo estes poderes a decidirem se o livro, e por consequência a literatura, sejam, ou não, objectos de primeira necessidade. A resposta a isso ainda se coloca no âmbito da incerteza.

O suposto “lugar bom”, actualmente, é o ditado pelas novas tecnologias. É para lá que o mundo se encontra a migrar, com dificuldades e com exclusão ou não. É para Moçambique “lugar nenhum”, a julgar pela presente condição de info-excluidos, ressalvando o iniciado trabalho da Trinta Nove Zero, na produção de livros em brile; pelo que, uma “sinfonia” literária ainda carecerá de percorrer um longo caminho. A presente feira de livro digital, com todo o esforço que foi feito, incluindo os investimentos que foram necessários, não passa de um evento para burgueses.

 

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt (2007). Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar.

HARARI, Yuval (2020). The word after coronavirus. Finantial Times. March.

MORIN, Edgar (2002). Os Sete Saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget.

ROSARIO, Lourenço (2014). O Livro como fonte do saber na era digital. In Singularidades III. Maputo: Alcance.

LAISSE, Sara. Entrevista a Sandra Tamele – sobre a participação de editoras moçambicanas na feira do livro de Frankfurt, edição de 2020.

 

*Sara Jona Laisse, docente na Universidade Politécnica. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

Arca da Aliança Social

Quando me lembro do isolamento ou afastamento da consciência humana nos problemas que afectam ou assolam o bem comum, abraço-me ao pensamento de Vanessa Aguiare,

Gilberto Mendes

Não sei se alguém já abordou esta questão, mas, por mim, nunca li nem ouvi nada a respeito. E, sim, precisamos de falar dele. Precisamos

Fico a ver o lá daqui

Realizada em Fevereiro do ano em curso (2025), não foi mero propósito o trabalho minucioso, bastante perspicaz, como é o traço deste Professor das artes

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