Falar da relação intertextual sem alicerçar o conceito de texto num porto seguro é de longe uma atitude arriscada. Para alhear-me disso, é-me oportuno referir que há de se entender como texto “qualquer tipo de comunicação realizada através de um sistema de signos (quer se trate de um poema, uma música, uma pintura, um filme, uma escultura, etc)” GOUVÊIA (2007: 58)
Faço este backshift não só para estabelecer uma âncora satisfatória como já o disse mas para justificar o que me faz abordar “casa 30” de K7’s Azuis (um grupo moçambicano de fazedores de Rap/Hip-Hop) e “30 anos” de Gasso (músico moçambicano) como textos no sentido mais lato possível. Ambos registos musicais foram tornados públicos no primeiro semestre de 2018. Atentemos, portanto, que a sequencialidade com que as músicas foram lançadas desinteressa-me, valendo-me só o facto de saber que foram produzidas em volta do mesmo contexto sócio-cultural.
Sobre a intertextualidade (diálogo que se inscreve nestas músicas na qualidade de textos) vale referir que este conceito foi cunhado por Julia Kristeva (1974: 64), sob o pressuposto de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” Surge, portanto, que estas constatações levam-nos a crer na impossibilidade de existência de uma obra artística num contexto alheio à intertextualidade. E, mesmo que exista tal possibilidade, resulta que a mesma seria incompreensível durante o “convívio” com diferentes leitores porque “só se apreende o sentido e a estrutura de uma obra literária se a relacionamos com seus arquétipos que são abstraídos de textos anteriores que constituem a constante” Jenny (1979) apud BARBOSA (2005: 27)
Este diálogo entre textos pode manifestar-se de diferentes formas, contudo, neste texto importa-nos tecer brevíssimas considerações a respeito da paráfrase e da paródia que além de serem muito comuns, são basilares para os nossos comentários acerca de “casa 30” de K7’s Azuis e “30 anos” de Gasso.
Indo ao encontro do que nos revela GOUVÊA (2007: 60), diríamos que:
a paródia inova, inaugura um novo paradigma e constrói a evolução de um discurso. Na paródia, há uma tomada de consciência crítica, de algo que foi recalcado e posteriormente emergiu. Uma nova maneira de ler o convencional.
em contrapartida, a paráfrase é um discurso em repouso em que alguém abre mão de sua voz para deixar a voz do outro falar. Não há conflito, pois não há oposição. Funciona como se fosse um espelho que reflecte o discurso do outro.
Portanto, em composições rítmicas diferentes, “casa 30” ao ritmo de um bom Hip-Hop e “30 anos” em Kizomba, ambas modalizam um debate cada vez mais frequente nos fóruns de conversa sobretudo juvenis em que a tônica da conversa cinge-se na idade ideal para que o/a jovem “saia da casa da velha”, mas essa é outra conversa que este texto não pretende dar vazão.
O que me chama atenção nas músicas de K7’s Azuis e Gasso é a forma como este debate é tomado com nuances diferentes embora com um ponto de intersecção: a casa 30 é um deadline para tomar um rumo próprio. Quanto a este aspecto, a relação dialógica que se inscreve é de um paralelismo indiscutível. Ora, K7’s Azuis esgotam-se na abordagem fazendo do seu texto um sermão do qual ninguém escapa pelos desafios que se lhe impõem enquanto jovem na “casa 30” ou os que a sociedade institui como sendo próprios dessa idade: desde a casa própria, a profissão, o matrimónio até a procriação, assuntos pelos quais os rappers gravitam e dramatizam em função da criatividade lírica que o Hip-Hop permite e, para conferir um toque mais melódico, aparece o corro na voz de Hot Blaze, e sentencia:
“tens a tua vida mano/ para o ano fazes 30 anos/ ainda estás em casa do papá/ ainda és filhinho da mamã/ cada passarinho faz o seu ninho/ mana até já tens o teu filho/ mano sai daí, sai daí e vai fazer sua vida”.
Na sua globalidade, o teor deste texto traça um deadline inflexível e generalista que independe das especificidades decorrentes da (ir) regularidade da vida que é já uma premissa que todos conhecemos de cor.
É neste quesito que a antítese de Gasso se inscreve para nos reenviar a uma janela reflexiva na qual a generalização sede ante o relato de uma especificidade em que o “insucesso” perante o deadline instituído tem um motivo tão impensável quanto peculiar: o amor ou ausência dele, o que fez com que o eu-lírico tivesse a sua vida errante pelos corredores da indefinição.
Diz-nos o autor no seu refrão: “depois dos 30 / é que a minha vida/ ganhou sentido/ por ter te conhecido”. Ao que se depreende que antes disso a vida do sujeito lírico resvalava pelos túneis da marginalidade e indiferença para com a vida e os seus ditames típicos de alguém que esteja na “casa 30”. O amor surge, para Gasso, como o mote para um “renascimento” mas em boa análise podemos inferir que podia ter sido uma outra razão.
Portanto, quando se diz, nas reflexões sobre a arte sobretudo literária, que esta é concebida para gerar beleza e encantamento, vale acrescer que, na estética da sua recepção, é preciso prestar atenção à simplicidade com que os fenómenos da arte se manifestam porque além de ser peculiar, passa-nos, por vezes, de forma bastante despercebida. E, quanto a estes textos, cabe realçar que é preciso olhar para as especificidades na concepção dos nossos deadlines e também reter que entre “casa 30” de K7’s de Azuis e “30 anos” de Gasso inscreve-se uma das mais belas manifestações da intertextualidade.