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Mia Couto ganha mais um prémio literário

Mia Couto foi o vencedor do prémio de literatura Jan Michalski, estabelecido pela fundação com esse nome, na Suíça, em 2010. O vencedor deste prémio há dois anos foi Olga Tocarczuk, que viria a ganhar o Nobel de Literatura em 2018. O prémio foi atribuído à trilogia “As areias do Imperador”.

O júri foi eloquente na sua apreciação:

… a qualidade excepcional da escrita de Mia Couto, o modo como subtilmente mistura oralidade, e narrativa, cartas, fábulas, lendas, sonhos e crenças que, no conjunto, nos transportam para a realidade histórica de Moçambique colonial nos finais do século 19. Sem nenhum traço de maniqueísmo, o autor desenha com mestria o retrato de sedutores personagens que enfrentam a desumanidade da Guerra.

… o romance de Mia Couto é, ao mesmo tempo, uma saga histórica e uma narrativa encantadora, um poderoso retrato de uma fascinante mulher, uma história de amor e humanidade. Com um idioma inventivo que é renovado pela terra africana e inspirado na sua singular poesia, o autor moçambicano questiona crenças, cria pontes entre mundos e apaga fronteiras numa meditação universal sobre a alteridade.

É uma bela notícia, não só por mais um reconhecimento internacional do nosso grande escritor mas sobretudo pela consagração de uma obra de excepcional qualidade, a trilogia “As areias do Imperador” que, para mim, ocupa o lugar cimeiro de toda a vasta produção de Mia Couto, particularmente com o segundo e o terceiro volumes. À medida que os livros foram saindo – “Mulheres de cinza”, “A espada e a azagaia”, “O bebedor de horizontes” –, escrevi as minhas notas de leitura. Para os eventuais interessados, trago aqui o que escrevi na altura depois de ler o último volume da trilogia.

O BEBEDOR DE HORIZONTES

Mia Couto terminou a sua trilogia “As areias do imperador” com um belo romance, este “O bebedor de horizontes”, depois de a ter iniciado com “Mulheres de cinza” e continuado com “A espada e a azagaia”. Disse ele que a escrita desta trilogia tinha sido o maior desafio da sua carreira literária; para mim, superou o desafio de modo brilhante.

Os três romances giram à volta de Gungunhana, ele é o imperador, o Leão de Gaza. No primeiro volume, vemos o império no seu ponto mais alto, com a vitória sobre os chopes, aliados dos portugueses. Nesse primeiro romance, surge-nos a outra figura central da trilogia, Imani, mulher de apenas 15 anos, que, por ter aprendido português, vê-se num papel charneira nos acontecimentos que se seguem. Com Imani, conhecemos a sua família – a mãe, que se suicida, o pai, os dois irmãos que combatem em lados opostos numa guerra que, sendo colonial, foi também fratricida. Aparece o sargento Germano de Melo, um republicano integrado no exército da conquista colonial, homem de lealdades divididas e que acaba por superar os seus preconceitos quando se apaixona por Imani. E surgem-nos algumas outras figuras fascinantes, como a italiana Bianca, dona dum bordel em Lourenço Marques e que ama Mouzinho de Albuquerque; ou Bibliana, feiticeira com grandes poderes curativos. Gungunhana está ausente, o seu poder tirânico e cruel é a sua face visível.

Em “A espada e a azagaia” confrontam-se os dois poderes, o do imperador de Gaza e o do distante rei de Portugal, D. Carlos, com os seus representantes políticos e militares, António Enes, Mouzinho, Caldas Xavier, Aires de Ornelas. Neste livro, surgem Gungunhana, o Nkossi, e a sua mãe, a poderosa Impibekezane, que tentam manter o Estado de Gaza através de um possível compromisso com os portugueses, que Mouzinho de Albuquerque impossibilita, decidindo a destruição da capital, Mandlakazi, e a captura de Gungunhana. O centro do livro é o confronto final entre o exército português e o de Gungunhana e seus aliados, e Mia Couto dá-nos de forma intensa o clima de violência das grandes batalhas sem se deixar tentar pelo fascínio mórbido das descrições das carnificinas. As últimas páginas do livro, com Gungunhana prisioneiro e levado com algumas das suas mulheres / rainhas para a lancha de guerra, primeira etapa do exílio, e depois na própria lancha onde um destroçado imperador é confrontado por um Zixaxa altivo, são tão boas e com um final tão perfeito que me perguntei se o terceiro livro era necessário.

Felizmente, temos agora o terceiro volume, a história não ficaria completa sem este “O bebedor de horizontes”. Este terceiro livro é muito, muito bom, não sei se alguma vez a prosa de Mia teve um sabor poético tão marcado. A história, contada em trinta capítulos, é a do exílio, das perdas.

É a última vez que pisamos a nossa terra. É uma pena que caminhes calçada, Imani.

 Ao imperador, às sete rainhas que o acompanham, ao filho Godido, ao conselheiro Mulungo, a Zixaxa e às suas três mulheres, a Imani também levada, o deixarem a terra é insuportavelmente doloroso, e o livro transmite-nos esse sentir: são dez capítulos para a lancha com os prisioneiros percorrer o Limpopo até Xai-Xai e um navio os levar até Lourenço Marques, outros cinco capítulos em Lourenço Marques. Seguem-se seis capítulos com a viagem para Lisboa, cinco em Lisboa na prisão, três no exílio – Açores para os homens, São Tomé para as mulheres, para finalizar com um brilhante epílogo no último capítulo, já no tempo da nossa independência.

Gungunhana vai perdendo tudo no longo caminho: o império, o medo daqueles a quem subjugou, as ilusões sobre os portugueses, a virilidade, a dignidade, vai-se tornando um farrapo. Faz uma última profecia, uma invocação:

Virão buscar-me, Zixaxa. Os meus netos virão buscar-me.

É um contraste enorme com Zixaxa, o chefe Mpfumo, o homem que mantém a dignidade e que sobrevive.

O Ngungunyane vai tecendo cestos. Eu vou tecendo pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo de me vingar de Ngungunyane. O rei de Gaza entregou-me aos portugueses? Pois agora é o que eu sou: um português, um português de pele escura. Um português feliz que olha para quem o traíu e o vê infeliz e bêbado.

Nestes três romances, onde a narração está a cargo duma jovem chope, não se podia esperar que o retrato de Gungunhana fosse resplandecente. O império de Gaza foi o que foi, estabeleceu-se com a razão da força. E um imperador em queda e feito prisioneiro não é uma imagem de primeira grandeza. Outro grande escritor moçambicano, Ungulani Ba Ka Khosa, escreveu há cerca de trinta anos um outro livro essencial da nossa literatura, “Ualalapi”, onde Gungunhana também não é tratado com punhos de renda. Uma escritora portuguesa, Ana Cristina Silva, escreveu há uns anos um livro interessante, “O rei do monte Brasil”, narrando o exílio de Gungunhana nos Açores e o regresso de Mouzinho a Portugal até o suicídio deste em Lisboa. As fotos incluídas no Apêndice Final de “O bebedor de horizontes” não são um enfeite, permitem uma melhor leitura (talvez devessem ter sido distribuídas ao longo do livro).

E Imani? Grávida do sargento Germano, o saber português e a sua beleza (“Descrevi-te como a mais bela das mulheres”, escreve-lhe Zixaxa do exílio) funcionam como uma maldição. O imperador e as rainhas desconfiam dela, até por andar calçada, os portugueses querem que ela espie o imperador, um pastor evangelista, que também vai preso no barco para Lisboa com os seus fiéis, quer a sua ajuda para assassinar o imperador. Imani encanta quem a vê com os olhos abertos: o republicano Álvaro Andrea, comandante da lancha “Limpopo”, António Sérgio de Sousa, o comandante do navio que os leva para Lisboa, Bianca, a rainha Dabondi. Em Lisboa, sofre a perda maior, insuperável: o filho recém-nascido é-lhe arrancado para ficar com a avó, a mãe de Germano: A batalha, contudo, estava decidida mesmo antes de começar.

As mulheres são dominadas e a minha criança é-me arrancada dos braços. Dona Laura embrulha-a numa manta e afasta-se a passo acelerado. Desvanece na distância o choro do meu bebé. Até que escuto apenas a água tombando sobre o tanque. Daqui para a frente será sempre assim: um rumor de água será a única voz do meu pequeno filho.

 Imani é uma personagem fascinante, uma extraordinária criação literária, mulher de vários mundos, lealdades, identidades, depósito de poucas alegrias e muitas dores.

O final do livro é um regresso ao princípio da história e uma passagem do testemunho, uma herança entregue aos nossos escritores.

Estão aqui os meus escritos, estão aqui as cartas que guardei, está aqui toda a minha vida. Leva estes cadernos e publica-os se achares que merecem ser conhecidos.

É um pesado encargo este, de escreverem a nossa vida.

 

Álvaro Carmo Vaz

Escritor

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