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Até sempre, Professor Carlos Serra

O obituário refere 1941-2020 como espaço temporal da passagem do Professor Carlos Serra pelo planeta terra e Moçambique. Também, faz alusão à Tete como a cidade onde ficou enterrado seu cordão umbilical. Todavia, algo deve estar errado! O Professor Carlos Serra, um dos mais profícuos e engajados intelectuais moçambicanos, não partiu para lugar algum. Ele permanece imortal e devoto às análises epistemológicas. Carlos Serra, no jeito Samoriano, não poderá, nunca, despedir-se da sua terra, dos seus estudantes e seguidores.

Ao redigir esta evocação, das mais complexas que alguma vez pude fazer, evitei a expressão “Pai da Sociologia Moçambicana”. Não é que eu tenha dúvidas dessa paternidade, como os sociólogos locais assim o apelidam, mas não queria, pelas experiências anteriores, recriar, bem no modelo político nacional, mais uma paternidade para designações comuns. Porém, concordo, salvaguardadas as devidas proporções, que o Professor Carlos Serra, a seu tempo e espaço, contribuiu, como ninguém, para recriar esta sociedade. De todos, se faz um país e, o bom do Professor interpretou e desmistificou realidades sociais complexas que, de outro modo, teriam passado inexplicadas.

Não fazia ideia que o haviam tratado por obstinado e excêntrico, em algum momento da sua intensa e bem vivida carreira. Mas, ele era um nacionalista, convicto e livre. Foi assim quando sentiu que o fervor azul da revolução conduzia, irremediavelmente, a uma aceitação e esquecimento colectivos e pacíficos da história de Moçambique, pela história da revolução e dos 10 anos de luta de libertação nacional.

Temia que perdíamos a capacidade de questionar e ajuizar as realidades sociais. Sem se eximir das suas responsabilidades, à semelhança do que propõe Noam Chomsky, “falar a verdade e expor mentiras dos governos”, o Professor foi escrevendo textos dilacerantes sobre a história pré-colonial moçambicana, para que não se deturpasse, nunca, uma historiografia secular prenhe de heróis e heroicidade, um percurso histórico de reinados e sultanatos memoráveis e inexpugnáveis. Nem se coibiu de pesquisar a essência do proto-nacionalismo, onde Kamba Simango se destacou não só pela sua tenacidade, mas, e principalmente, pelo seu academicismo.

Mas o Professor Carlos Serra não partiu, e deve estar, algures, repousando. Nos recusaremos, perpetuamente, a aceitar, de consciência, essa ausência física. Ainda acredito, talvez lunaticamente, que ele regressará, com os textos inéditos, com reflexões pertinentes e actuais, conclusões assertivas e, outros juízos de valor perspicazes. Regressará porque deixou inconcluída uma obra que pertence a este povo e país.

O Professor regressará para esclarecer a pandemia do coronavírus, o reacender dos discursos Samorianos nos chapas, os linchamentos que o “encrencado” sistema de justiça não consegue desvendar e travar, os raptos que estão na moda e, até, o entendimento sobre as igrejas pentecostais e profetas em períodos de mudanças climáticas. 

Professor Carlos Serra regressará mesmo, pois, ainda carece de autorizações para se ausentar. Carecemos todos de um entendimento sobre a fome, as epidemias, a inanição e a violência que perduraram, e algumas até prevalecem, incontroláveis, ao longo de milhares de anos. Esta natureza imperfeita, não aceita o domínio humano no modelo actual e, por isso, se rebela. Também, ele precisará de abordar o porquê de viveremos resguardados e com a sensação de que o mundo já não precisa dos humanos. Ou será que voltaremos a rezar aos deuses e anjos para nos salvarem?

Como forma de o honrar, teremos de resumir, em quatro ou cinco parágrafos, bem no seu estilo, a sua contribuição epistemológica. Resumir o deslumbramento dessa mente brilhante e preocupada. Dizer em duas palavras a chave e as soluções para todas as questões sociais, económicas e jurídicas. Para isso, serviram as oficinas de sociologia, uma das suas mais marcantes inovações.

Não resistiria, nestes resumos, de resgatar os dois volumes sobre a história de Moçambique que fizeram dele um historiador de referência e, dos estudantes, agentes activos de uma mudança que construiu Moçambique e suas gentes.  O blog e o diário de um sociólogo merecem referência. Pelo seu blog, antes bem mais visitado que agora, o Professor não se limitou a reproduzir conceitos, mas, antes, recriou um modelo híbrido e endógeno de observação e interpretação de alguns dos fenómenos sociais que marcaram os nossos anos de independência e liberdade.

Os textos mais científicos ou mais jornalísticos inspiraram e cimentaram o entendimento de que um sistema se alicerça muito para além da democracia representativa e de eleições multipartidárias. Para lá dessa linha de horizonte, existe um povo culturalmente maduro, uma classe média com valores e regras de conduta, uma massa também menos esclarecida, mas ciente das verdades mundanas e uma academia que procura firmar-se dentro e além-fronteiras. Enfim, existem as crenças, religiões, arte e vontade próprias. Todos nós procuramos, de forma incessante, rebuscar as fórmulas e os modelos que farão desta sociedade e país, um lugar de paz e prosperidade.

Também ficará órfã a página do Savana sem o Fungula Masso. Mas o Professor pregou-nos uma partida! Mudou-se para uma outra galáxia quando ainda precisava de finalizar um conjunto de cadernos de ciências sociais que, nos últimos anos, coordenou com mestria e habilidade. Cadernos que se converteram em manuais de consulta para todos os extractos sociais, com respostas simples sobre temas complexos. Esta colecção combinava simplicidade e rigor de autores de vários quadrantes do mundo, falantes de língua portuguesa. Qual constelação de pesquisadores espalhados pelo mundo e várias universidades! Ninguém conseguiria congregar tantas e mais variadas áreas de saber num projecto que tinha alma e espírito.

“Olá, muito bom dia, boa tarde ou boa noite, consoante o vosso fuso horário. Apenas para vos dizer que foram editados mais 5 livros da nossa colecção, com capas e contracapas em anexo……”. Era assim que ele aparecia em nossas telas, todas as semanas, solicitando os trabalhos e cuidando da posterior edição.  Nestes cadernos, seu último trabalho epistemológico de vulto, foram desconstruídas matérias eclécticas e complexas. O direito e a justiça, revisitou a pobreza e o porquê de continuarmos pobres, esgrimiu argumentos sobre ideologia e poder político, viajou no âmago da nossa sofrida educação e da violência sexual, enfim, pincelou as facetas sobre como se produz a cultura do medo e tantas outras coisas.

Estou convencido que ele andaria, bem no jeito dos heterónimos de Fernando Pessoa, dialogando sobre a insurgência de Cabo Delgado. Afinal, nem importa desbravar apenas o fenómeno, teremos de seguir por uma via de resolução de conflitos. Um país como o nosso merece paz, bem-estar e desenvolvimento social. Merecemos, todos, um Moçambique com as mesmas oportunidades e direitos.

Só mais um detalhe, obrigado pelos múltiplos conselhos sobre educação. Foi uma bênção ter sentado consigo para entender o porque do sistema educativo nacional ter colapsado. Ainda ecoa, pelos nossos ouvidos, a proposta de Pacto Nacional sobre educação, com especial atenção a ser dada a formação de professores. Onde quer que estejas, Professor Carlos Serra, repousa em paz e ao som do Soul Makossa de Manu Dibango.

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