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JOSÉ PASTOR: A dor da inquietação irremediável

O acto que agora se comete, aqui e hoje, ultrapassa, por assim dizer, o lançamento de uma obra literária. O que aqui se testemunha é uma reparação, uma indemnização, um ressarcimento, uma restituição. Subtrai-se do silêncio a voz de um Poeta. Aqueles que concorreram para esta empresa praticam, no fundo, o soldo que todos devíamos não só à memória deste Poeta, mas sobretudo à sua obra que permaneceu, nas últimas três décadas, rigorosamente esquecida, a despeito de uma ou outra brevíssima referência.

Num país que pratica o esquecimento como uma das suas artes sublimes; num país que cultiva a amnésia com espantoso método; num país alheado, ancorado na desmemória e no opróbrio do descaso a que vota a muitos dos seus melhores; num país que trata com meticulosa displicência os seus poetas, este acto tem um significado e uma simbologia muito relevantes.

José Pastor, de seu nome José António Pastor Duarte Silva, nasceu em Nampula a 29 de Julho de 1954. As efemérides mais importantes da sua vida resumem-se na nota aposta numa das badanas do livro. É quase tudo do muito pouco que se sabe desta personagem quase elusiva que passou, com um cometa, entre nós, e cuja poesia permanece ainda inacessível.

A sua morte está na origem do seu desconhecimento. Este ano passam 29 anos sobre o seu gesto extremo e há muito urgia que a sua obra visse a luz do dia. Finalmente, temo-lo de regresso ao nosso convívio.

É em meados dos anos 80 que José Pastor faz publicar poemas e contos em páginas literárias, sobretudo na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta e mítica revista TEMPO. Posteriormente, os seus textos irão corporizar algumas antologias de poesia e de conto dedicadas à celebração da literatura moçambicana. Furtar-me-ei ao exercício de referenciá-las aqui. Algumas delas estão descritas na breve nota biográfica do autor.

Numa entrevista, recolhida no livro “Fazedores da Alma”, de Marcelo Panguana e Jorge de Oliveira, dado à estampa em 1999, José Pastor, que proferiu as palavras que servem de título e mote ao volume, narra um episódio que está na origem da destruição da sua produção literária e que seria o acontecimento que antecederia o seu suicídio. À pergunta sobre este seu gesto extremado, o poeta responde:

 

Isso aconteceu-me quando um dia decidi: vou suicidar-me. Então preparei tudo, com um ritual dramaticamente bem preconcebido.

Foram destruídos poemas, contos, cartas e fotografias. Morreu uma parte do passado. Nasceu uma fogueira.

A memória ganhou com tudo isso. Organizado o plano, decidi dormir pela última vez. Acontece que me levantei de manhã muito bem-disposto e ri-me da ideia do dia anterior.”

 

Esta entrevista não está datada, pelo que só posso intuir que a mesma ocorreu muito antes de 26 de Agosto de 1993 quando o poeta põe termo à sua vida. Tinha 39 anos e uma vida contagiante, empolgada, arrebatada, culta, inteligente e atormentada.

O tema do suicídio que aparece nesta entrevista não era inédito. Os seus amigos sabiam-no, pelo menos os mais próximos, com alguns dos quais ele partilhava as suas angústias, marcadas a cada página neste livro, que exprime os seus tormentos e anuncia aquele epílogo trágico da sua vida.

Perguntado, na mesma entrevista, se a ideia da morte não o assustava, o poeta contrapõe:

 

Amo demasiado a vida, vivo-a com tanta liberdade e com tanto gozo, que temer a morte, algo absolutamente normal para um belo fim de percurso, seria, no mínimo, ridículo, e indigno para uma pessoa que amou a vida até à exaustão.”

 

José Pastor foi professor, encenador, activista cultural, contista e, sobretudo, poeta. Era um homem inquieto, as palavras brotavam-lhe das mãos, ocultavam o sol que ele cantava, com a espessa neblina que lhe ia no interior do seu ser, na sua alma, para usar um vocábulo que lhe era caro. Escrevia sobretudo poemas de amor. De um amor apolíneo quase sempre, deslumbrado e deslumbrante, mas num tormento indissimulado. Um amor dilacerado e dilacerante, quase sempre.

Era solar e lunar, impetuoso ou recolhido, expressivo e resguardado, assombrado e assombroso. Gostava dos seus amigos. Queria-os na sua solidão habitada. Sobretudo na Matola, à sombra das suas árvores. Amava os livros, falava abundantemente de escritores, comerciava leituras entre amigos.

Cuba era a sua segunda pátria. Era fervorosamente cubano. Fidel e a revolução tinham nele um implacável defensor. Conheci-o no regresso de Cuba e ele falava amiúde da ilha.

Publicou muito pouco e o pouco que deu a conhecer eram textos brilhantes. O poema que ele escreveu sobre o massacre em Maluana, nos anos 80, é de uma beleza virulenta, e um dos marcos da nossa lírica. “A pessoa de Josefane ficou no massacre de Maluane, mas seu corpo veio a Maputo para pôr velas”. Não me esqueço daqueles versos lancinantes.

O livro “Com a Saliva Muito ao Sul” está dividido em duas partes. A primeira, intitulada  “Respirar o Fogo” ocupa quase dois terços da obra, recolhe poemas de amor, de um amor arrebatado, incessantemente carnal, experiência de liberdade e gozo, vocábulos que ele usa na entrevista acima citada e no registo dessa fruição sensual e sensorial, quase sempre desesperada, nessa solidão imperecível, nessa busca do ser amado, nesse desencontro e nessa perda, nesse júbilo provisório e nesse esmorecimento durável, nessa alegria breve e nessa consternação prolongada, nessa euforia e nesse desalento, muitas vezes, quase sempre, em belos versos, cortantes versos, melancólicos e comovedores versos.

 

Quando no chão da nossa

intimidade sulcamos a terra.

 

Começa assim o livro “Com a Saliva Muito ao Sul” que fala desse

 

Outono que desconhecemos

 

E

 

vive de amores possíveis

 

Este livro, cito-o:

 

Tem a sua própria mitologia

a sua logica da carne, do sangue,

do sexo e da lagrima.

 

Poesia, solidão, tormento:

 

Hoje faço-me o favor

de fazer um poema atormentado

 

Arrebatamento, nostalgia:

 

Nunca mais foste tu

 

Tristeza, sempre a tristeza:

 

Hoje o dia está tão triste,

tão triste como têm sido

os últimos dias.

 

Ou:

 

Há dias em que a tristeza

me invade sem pedir licença.

 

Nessa poesia, diria o autor, “nocturna e esbatida”, onde se acrescenta: “sou triste porque lavro a minha dor”.

 

Poeta solitário por conseguinte:

 

Estou só e em casa.

 

Ou por outra:

 

Desperto sempre de madrugada

e a tristeza volta com

seu veneno.

 

Apesar do título remeter-nos para o “fogo”, esta é uma poesia lunar e não solar. É uma poesia onde se canta o abandono e a solidão, o inverno, o nevoeiro e o dilúvio, a morte, sempre a morte a rondar os versos e o Poeta:

 

Quero morrer deitado

porque sempre vive de pé.

 

Aqui está o testamento e o testemunho do “náufrago delirando na jangada” e sempre o canto do “amor possível”:

 

No teu corpo negro

lavrei o suor,

as minhas mãos rociaram

um perfume natural e afrodisíaco

e bebi da intemporalidade do teu sangue

africano por excelência.

 

Esse amor, cripticamente másculo, virilmente arrebatado, visceral e cantado em versos como estes:

 

E de repente, os músculos ficaram

tensos, as veias em relevo, os olhos

em teias de lagrimas, e teu áspero

cabelo passou pelos meus ombros.

 

Ou:

 

de guerreiro a conquista

do meu corpo

 

Ou:

 

Teu corpo tem a forca

telúrica da Terra.

 

Ou:

 

Até quando o teu regresso

ao meu corpo selvagem.

 

Ou:

 

Roçar do teu corpo possante

 

Ou mais ainda:

 

Beijos, gemidos, e todo o suor,

órgãos genitais entrechocando-se.

 

A perda sempre presente, a ausência do ser amado, a saudade e a nostalgia, a ruina desse amor cantado. Mas também o desprendimento do “amor possível”, onde o Poeta exalta o facto de

 

nunca teres deixado

que o tédio fosse a principal neblina

nas nossas vidas.

 

É dessa “respiração do fogo” do “Universo numa explosão/ de átomos dissimulados”, desses “corpos viris” e dessa “morte que agora me chama”. A morte. Sempre a morte:

 

Vou embora, amor. Só tenho

pena de ti. As asas da morte

não são tão medonhas como se dizem.

 

Há sinais muitos claros dessa morte anunciada. Não só naquela entrevista anteriormente citada, mas nos seus poemas, nos seus versos, como premonição e despedida:

 

Em breve serei a simples

cinza de um sonho

…..

Largo a vida, tudo o que fiz,

o fardo da dor e da solidão.

 

Muitos destes versos são a cartografia dessa busca do silêncio definitivo e da morte, desse desespero e do seu inevitável desenlace:

 

Falta pouco para a grande decisão,

para que haja uma explosão de noites

dentro de mim, para que sangrem as flores

que me fazem respirar, para que a seiva

que me alimenta seja a da arvore abatida.

 

Estes versos são de uma beleza veemente. São virulentos, pungentes e belos, como é aliás é apanágio da grande arte. E mesmo no fim desta primeira parte, “Respirar o Fogo”, anoto ainda estes versos:

 

Não me esqueço que sou apenas

uma titilação transparente

da grandiosidade da criação,

entre os benefícios e os custos

não reclamo glórias e alvíssaras.

 

A segunda parte – “Com a Saliva Muito ao Sul” –  é um longo e fragmentado poema e este não se exonera do seu registo lírico, mas aqui está o poeta mais onírico. Provavelmente texto mais ontológico, mais ensimesmado, mais absorto em si, mais reflexivo, mais indagador e mais perturbado e perturbante, mais sombrio e desesperado. Mas sempre o amor. O amor desesperado. E sempre a morte. A morte inexpugnável.

 

Se é um erro exteriorizar-se

a dor profunda que se sente,

é um ferro que nos fere

quando assumimos o brutal silêncio.

 

Para além do silêncio, a obsessão da morte ronda o poema:

 

Se sofro é por uma cama,

um sono descansado,

até que uma campa merecida

se rodeie de ciprestes.

 

Poema ominoso, poesia agoirenta, funesta, atingida pela “rugosidade das pedras” ou pela “fragilidade da vida”, fissurada sempre por essa “fantástica melancolia”:

 

Porque sou um rio

decidido a lançar-se ao oceano

na procura de formas de suicídio

mais marítimas.

 

Escreve este Poeta sombrio, lúgubre, soturno, taciturno, mergulhado na obscuridade das palavras, que nelas busca a “simbiose de Marte e morte” – cito-o –  e que reconhece:

 

Da minha actividade vulcânica

nasce um mar sombrio

sequioso de sequoias.

 

Nessa “procura do Norte no breu”. Recorrente este discurso do suicídio:

 

De gládio na mão,

não esquecerei um gladíolo de bolso

para o redobro da força

no possível suicídio.

 

E logo a seguir o poeta diz: “Conheço a dor da inquietação irremediável”. Os versos embora taciturnos são pungentes:

 

E quero um enérgico palpitar nas mãos e nos pulsos,

lançar naus ao sangue tropical no Inverno

e ainda: o fragor dos dedos acenando

o terno adeus final,

o mais compreendido entre os humanos.

 

Poesia “a coberto da névoa densa”, como escreve o Poeta. Poemas de amor e de desespero, como o disse e repito. Nos quais cabem ainda estes versos que parecem um apelo: “e nos teus fortes braços sinto-me seguro.” No entanto, acrescentará a seguir: “Amor, na Terra somos amantes a abater!

Parece a expressão de uma renúncia, de uma resignação, de uma cedência. Por isso mesmo diz adiante: “Não nos desviemos definitivamente/ das rotas do sábio silêncio”.

Este poema, este longo e sensual poema, é também por isso um poema desse amor visceral, impossível direi eu, inscrito num mapa de melancolias imprescritíveis:

 

Teu corpo dócil à nudez

no estio calmoso do trabalho da erecção.

 

Versos atravessados por esse amor viril, másculo, vigoroso:

 

Dá-me do teu beijo fatigado,

e dos destroços da espuma

provocados pela ancoragem.

 

Poesia que não recusa o desalento, a angústia, a descrença, o desânimo. Longo poema atormentado, que fala de uma prostração, que não esconde a derrota, que ancora na desesperança, no esmorecimento e na tristeza. Essa mágoa e esse padecimento estão assombrosamente inscritos nos últimos versos:

 

Quero atravessar o deserto,

o desastre.

 

Proclama o Poeta no seu desconsolo final. À beira do seu infortúnio, perante uma dor irremissível.

 

Negrejo, e esta é a remendagem da alma.

Vejo-me espelhado num múrmuro

abismo ignorado.

 

Assim termina o livro, este livro belo quanto dilacerado, tão profundamente consternado, tão atravessado pelo desconsolo, pela dor, pela angústia, tão condoído, provavelmente sem indulgência, tal foi o destino do Poeta que seguiu os sinais aqui cartografados e se matou, talvez buscando na morte essa redenção, essa expiação, essa absolvição.

Este é um livro tremendo de um Poeta espantoso, de uma alma formidável, de um homem surpreendentemente excepcional, de uma ânsia de viver esplêndida, o que poderá parecer paradoxal, de uma vida breve e portentosa.

Causou-me alguma estranheza que este livro não tivesse um prefácio que nos elucidasse sobre o Poeta e o seu destino. Um prefácio que nos esclarecesse não só sobre a trajectória biográfica e literária do autor, mas também traçasse os critérios de escolha e de fixação dos textos e justificasse a organização da obra. Seria uma obrigação indeclinável. Também seria importante percebermos a extensão do espólio e a razão pela qual não estão incluídos textos publicados pelo autor em vida. Isto no que se refere à sua produção poética.

Contudo, aqui estão os poemas, neste belo, dolorido e lúbrico titulo “Com a Saliva Muito ao Sul”,  aqui está o Poeta, assombrado e assombroso, no seu desencanto e no seu desespero, no seu júbilo pelo amor visceral que viveu, na sua atração pelo abismo e pela morte, nesta cartografia de um suicídio anunciado em sinais premonitórios, neste rosto elusivo e arisco por vezes, desenhado nestes versos com a subtileza e a elegância que fazem dele uma voz exemplar na literatura moçambicana e que aqui se cumpre celebrar, neste acto de reparação, depois de décadas  em que ele esteve proscrito no silêncio e no esquecimento.

 

 

Maputo, 10 de Março de 2022

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