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Karinganas do Índico ou um convite à instrospecção sobre as (in)adequações das estruturas canônicas

Para o leitor informado, é difícil ler as 11 narrativas de “Karinganas do Índico” sem fazer uma introspeção sobre a linha ténue que faz endereço entre o conto e a crónica ou, mais profundamente, sobre a textualidade que os textos devem (ou não) a um cânone que se quer universal no acto de narrar.

Da autoria de Minyetani Khosa, pseudónimo de Félix Paulo Cossa, “Karinganas do Índico” sai pela Editora Kulera que como já nos acostumou nesta sua fase embrionária, permeia esta obra com um desenho gráfico que pouco ou nada deve mesmo aos mais exigentes.

Em 74 páginas encontramos estas 11 narrativas que, em geral, modalizam as vivências do espaço periférico da cidade de Maputo, com uma permanente viagem temporal senão espacial à realidade rural das províncias do sul de Moçambique (Maputo e Gaza) como quem faz uma busca na árvore genealógica dos personagens desta colectánea de contos e busca-lhes, pela memória, as suas origens senão dos seus ancestrais. Ressalte-se porém, o conto “Tunguinha” em que as acções se espraiam para Benone e arredores.

A abordagem do tempo como categoria da narrativa apresenta-se, nesta colectânea, como o leitmotiv que justifica a introspecção (possível de fazer) sobre a linha ténue que faz endereço entre o conto e a crónica. Se é verdade que o conto narra factos decorridos num tempo relativamente maior e a crónica centra-se no presente ou num passado muitíssimo recente, em “Karinganas do Índico” somos convidados a ter uma posição quiçá eclética relativamente a essa questão.

Khosa permeia as suas narrativas de vivências periurbanas que abordam o alcoolismo tornado regra pelos bairros e que se viu implicado com a vigência do estado de emergência decretado devido à Covid-19; a miséria que assola os residentes desses mesmos bairros a ponto de os aguçar o dilema de ficar em casa ante as restrições impostas pelo EE; o adultério quase institucionalizado entre as noites de sexta-feira e sábado; as admoestações da guerra na genealogia das famílias; a coisificação da mulher pelos dogmas falocentristas; a violação de menores; o papel e sentido dos templos e os desvarios da juventude (sobretudo feminina) para quem o corpo é objecto de trocas comerciais.

Nestas narrativas, é evidente o pendor contista dum autor para quem o acto de narrar é um fim em si mesmo. Sem nenhuma preleção pelos diálogos ou monólogos (pelo menos na maioria dos textos), nem jogos de quebra da linearidade temporal que se tem observado na narrativa moderna, numa linguagem acessível para o grande público que, aliás, habita os enredos, e permeada pela coloquialidade, “Karinganas do Índico” faz jus ao neologismo que o intitula “Karinganas” que remonta uma tradição milenar na cultura moçambicana (africana se quisermos) em que à volta da fogueira um ancião (ou anciã) narra factos, muitas vezes fictícios e alegóricos, a um público não muito numeroso. O leitor familiarizado com esta realidade, ir-se-á ver projectado a este exercício que não mais se materializa devido, talvez, à dinâmica dos novos tempos e hábitos.

Esta maneira de assumir a escrita da narrativa (em geral) tem-se tornado norma em Moçambique muitas vezes pelo discurso mas outras pelo exercício, gerando, para este último caso, polémicas que remontam, por exemplo, o ano de 2004 quando, na Revista Proler, um proeminente crítico literário escreveu na recensão de uma obra que “a literatura, tal como a concebemos, distingue-se pelo investimento na linguagem e não pelo conteúdo por mais nobre que o julguemos.”

Atentando a este estatuto de contador de “karinganas” assumido no viés discursivo que é muito comum, podemos observar que alguns escritores que se assumem como tal, seguem as normas canônicas tidas como universais relativamente aos gêneros textuais em que escrevem, contudo, noto com alguma recorrência que, tal como Khosa, outros autores da geração que está a dar os seus primeiros passos na literatura assume este estatuto, também, no exercício travestindo-se, então, de narradores omniscientes e com o esmero virado sobretudo para a acção que alimenta o enredo.

Assim, ler “Karinganas do Índico” revela-se-me como um exercício contemplativo e introspectivo. Serve-me de exercício contemplativo do “quo vadis” da “nossa” literatura e introspectivo ante as (in)adequações das estruturas universalmente canonizadas.

Tomo, porém, no último exercício, o cuidado de não consagrar qualquer desvio tornado norma mas faço-o em apologia a Jacques Derrida que na sua crítica ao estruturalismo, reclama uma textualidade dentro do texto e critica a crença na centralização das estruturas de sentido de um texto.

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