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A Legítima Dor de Aurélio Furdela

Sobre o Manifesto de Consciência Literária ou Repúdio à Mediocridade Hostil

Aurélio Furdela publicou no jornal O País, na página de opinião, a 19 de Novembro, às 21:11 o texto “Manifesto de Consciência Literária ou Repúdio à Mediocridade Hostil”. Escrevemos sobre este texto, com esperança de contribuir para o debate proposto pelo escritor.

Emprestamos a expressão “Legitima Dor”, da obra A Legitima Dor da Dona Sebastião de Lucílio Manjate, para sustentarmos a insatisfação, a dor, a angústia que perpassa na alma do autor cujo Manifesto de consciência literária é uma tentativa de traduzir o problema.

Uma discussão deste tema (Mediocridade hostil) é importante se pretendermos rever a literatura (sobre os sujeitos e práticas que comprometem o sistema literário) e enquadrá-la no nosso contexto, de uma produção e recessão da literatura deficiente, para uma sistematização nacional sobre o assunto.

Para o início do debate, passamos a tecer alguns comentários sobre o Manifesto. Começamos com um contra argumento à mediocridade nociva, que tem como base o facto de os «escritores de circunstância»[1], os primeiros, não serem especializados. Este argumento, mostra falhas logo no início da actividade literária, o que justifica a posição de insatisfação por parte do autor, visto que, naturalmente, surgiriam também, além de «escritores de circunstância» não medíocres (revelados no período colonial, engajados no processo revolucionário, de pertença a um território), prosadores e poetas medíocres que passaram a fazer parte do território literário. No entanto, a literatura, sobretudo a escrita, exigente, permite abertura para iniciantes que reúnem amor, estimulo, estudo, vivência, estima, conhecimento, sobremaneira. Aspectos condicionantes a produção de uma boa literatura.

Do universo de «escritores de circunstância», passado algum tempo, os medíocres esconderam-se[2] na sombra dos feitos do grupo que firmara as bases para o avanço da actividade literária. Por essa razão, insatisfeito o autor e ciente das fragilidades de alguns itens[3], apresenta-nos um instrumento de análise, segundo a qual, é convidado todo «escritor de circunstância» a preencher o quadro, com objectivo de aferir sua própria relevância. Essa proposta, apresenta-se pertinente, porém, peca por ser o próprio escritor a se auto-avaliar de modo a perceber se se ajusta ou não no universo dos não medíocres, facto que, por outro, parece funcionar como convite para uma espécie de“haraquiri”[4]intelectual.

Perceber os itens referidos no quadro, é abordar a questão da prática e dos sujeitos que asseguram e legitimam a actividade literária. Tais práticas e sujeitos, por vezes falíveis. Tal vez seja por tal motivo, que o escritor que não preencher o quadro, em75%, a sua relevância no universo dos não medíocres é duvidosa.

Sendo assim, repetimos, acreditamos que quando um escritor se propõe ou se submete a preencher o quadro sugerido no manifesto, está se auto-avaliando, portanto, compreendemos, formalmente, que esta não é a responsabilidade do emissor/escritor, cuja função é criar e publicar, para daí, a instância do receptor/leitor assumir a responsabilidade de atribuir relevância a obra do escritor, fazendo com que ela passe a existir, preenchendo os vazios, interstícios e fazendo com que «aconteça».

Em geral, o argumento acima exposto a propósito da insatisfação/dor por parte de Aurélio Furdela (relativamente e contra a mediocridade hostil), o facto de alguns «escritores de circunstância» se esconderem na hegemonia de criação de bases da actividade literária do grupo, é nocivo ao sistema literário. Daí, a proposta de um instrumento de análise. O que por conseguinte, abre espaço para ilações, significa que, tal como a produção literária feita por incipientes, a recessão não se demonstra exclusiva, ainda que, em algum momento tenha sido denominada, a sua materialização, de «Falso silêncio» (deixe-se a crítica académica e considere-se a imediata), está a falhar, no sentido em que já não serve para cumprir uma das suas funções, conferir a legitimidade, ou os críticos, aos quais cabe a responsabilidade formal de pensar nessa perspectiva de crivar, não estão o fazendo, a argumentar pelo facto de ser um escritor a propor e dar o primeiro passo formal ao debate, não que os escritores não possam ser críticos, mas, no caso em particular, o escritor Aurélio Furdela, assume-se no manifesto, como escritor. Aliás, este autor tem vindo a caracterizar-se, no intervalo de mais de uma década para cá, por ser um constante agitador de ideias, facto que no futuro, apenas a História da Literatura Moçambicana saberá ou não absolver.

Se a recessão também envolve incipientes, pelo que a produção literária envolve «escritores de circunstância» medíocres que se escondem na hegemonia do grupo que criara bases literárias nacionais, é caso para reelevantar a seguinte questão de forma contrária «a existência de uma crítica literária nacional fraca é influência ou é reflexo de uma literatura igualmente fraca?» (Lobo, 2013:132).

A verdade, é que a instância da edição, o editor, sobretudo o literário, não desenvolveu e não está desenvolvendo seu papel de crivo, como deva ser, para colmatar a mediocridade hostil.

O outro argumento contra a mediocridade, de alguns membros do grupo de «escritores de circunstância», que o escritor Aurélio Furdela usa para demonstrar sua legítima dor, tem a ver com o fórum dos laços na actividade literária, favorecido pela convivência, isto quer dizer, são mesmas pessoas que desenvolvem a actividade. Ficando difícil de não se afeiçoar e criar amizades, comprometendo a actividade literária, o que nos impele a duvidar dos juízos de valor, incluindo do autor do Manifesto, aquando de arrolar uma lista de «escritores de circunstância»[5] que acredita serem talentosos, por estes, fazerem parte do seu círculo de amizade. Todavia, não podemos nos esquecer que um escritor quando lança um trabalho, este, não deve ser avaliado do ponto de vista da amizade, da sua boa/ má fortuna, mas pela obra que publicara no momento.

Dos «escritores de circunstância» que o Autor Aurélio Furdela acredita serem medíocres, dói-lhe o facto de estes escritores persistirem na actividade literária, sem talento, trabalho, conhecimento e outros aspectos condicionantes a produção de uma boa obra literária, mas serem, simplesmente, movidos pelo mero sonho de adolescência, pelo prestígio que detêm nas revistas, pelo facto de fazer parte dos que iniciaram a produção literária após a saída no país, de especialistas, tenderem a funcionar como barómetro da legitimação literária. Características que salvaguardam importância de alguns «escritores de circunstância», já que, nem contemporizar-se conseguem, pelo que, alguns novos escritores seguem cegamente os modelos dos «escritores de circunstância», na busca de consagração.

Por isso, o ciclo vicioso se repete, por várias vezes, a produção e a recepção é comprometida, pelo fórum das amizades, afeiçoes, a justificar pelo prefácio de um dos modelos, escritor de circunstância, seguido por muitos novos escritores, veja-se o prefácio «Não é verdade» de autoria de Eduardo White, a prefaciar «Conversas do fim do fim do mundo», de Marcelo Panguana. Um discurso cujo conteúdo é elogiar a pessoa, o amigo, para emitir um juízo de valor sobre a obra, confesso aqui, encontrar reservas em chamar de biografismo, uma técnica de análise, porém, importa evidenciar o seguinte excerto: «Eu, pessoalmente, delicio-me com o trabalho do Panguana, com a sua obsessão pelo belo do humano e do tudo que o rodeia.», o autor parecendo não ser excepção, descreve o seu sentimento pela escrita do autor, chega a dizer o que podemos ler no prefácio, porém não faz referência com base em excertos da obra, percebe-se no excerto, «aprecio a eloquência condimentadíssima da sua escrita», exercício valorativo, que se repete ao longo do prefácio, o autor traz consigo ideias preconcebidas, o que não é mão, afinal todo leitor tem seu horizonte de expectativa, mas o que se percebe deste, é que se trata de fóruns íntimos. Não obstante, leia-seo seguinte:

«Resolveu publicar, festejando-nos e a festejar uma das virtudes que mais admiro nele […] tem sido assim desde que o conheço partilhando comigo as dúvidas e os medos que tal decisão representa para nós.» [Sublinhado nosso]. O autor não se baseia em nenhuma sustentação teórica, ao invés de se cingir a escrita do autor/obra, preocupa-se com a vida de Panguana para explicar a obra.

Não pretendemos com o exemplo afirmar que Panguana represente ou não a mediocridade, mas simplesmente ilustrar a prática que Furdela entende elemento de suporte ao que chama no Manifesto “mediocridade de nociva”, pois, segundo ele, caracterizam-se muitas vezes, os discursos dos prefácios e de apresentação de livros, da seguinte forma: Arrolar nomes de “enteados” como autores de destaque, algo não fundamentado pela obra. Quando parece que prefaciam as obras dos tais “enteados”, prefaciam os autores, não o livro. Por isso, a comunicação literária falha (produção recepção literária).

Portanto, as práticas de alguns “escritores de circunstância”, sem nos esquecermos dos novos escritores que seguem cegamente tais práticas/modelos, devem ser feitas conforme as deontologias da área, e os sujeitos que salvaguardam a boa reprodução e recepção da literatura, devem assumir o seu papel[6], pois, comprometida a literatura, pelo comportamento destes (escritores de circunstância), de persistir em sonhos de adolescência, orgulharem-se pela hegemonia de ter feito parte do grupo de jovens escritores que iniciaram a actividade literária no país, após 1975, em 1982,e o ciclo vicioso do fórum das amizades, pode se manter e ressurgir prosadores e poetas medíocres, comprometendo negativamente o sistema literário, tornando assim, legítima a dor de Aurélio Furdela.

Bibliografia

Figurell, Roberto. (1988). Hans Robert Jaus e A Estética da Recepção. Universidade Federal de Paraná;

Lobo, Almiro. (2013) “Sobre o falso silencio da critica literária Moçambicana”. In Leituras Ensaiadas. Maputo: Imprensa Universitária, pp.132-135.

Manjate, Lucílio. (2013). A legítima Dor da Dona Sebastião. Maputo: Alcance Editores;

Reis, Carlos. (1999). “ A Literatura como instituição”. In O conhecimento da literatura. Coimbra: Almedina;

White, Eduardo. (2012). “Prefacio: Não é verdade?”. In Panguana, Marcelo. (2012). Conversas do fim do mundo. Maputo: Alcance Editores.

Por Gerson Monjane

[1] Depois da independência, com a saída de escritores incipientes, jovens, profissionais ocupam posições de altos escalões, condicionadas pelas dinâmicas sociopolíticas de seguir em frente com recursos disponíveis, por isso, a criação da AEMO, em Agosto de 1982 como tentativa, bem conseguida, da ideia de avanço.

[2] A titularidade de fundadores da actividade literária, prestígio que lhes concede espaço nos canais de comunicação de honra, fora serem influentes.

[3]Obras publicadas, reedições, Inserções em Antologias, traduções em Línguas estrangeiras, Publicações internacionais, ensaios académicos sobre a obra, monografias sobre a obra, livros sugeridos para a leitura na escola secundária, prémios literários e adaptações do livro para o Cinema.

[4] Suicídio de honra,  praticado especialmente entre guerreiros japoneses,  que consiste em abrir o ventre.

[5]Nesse universo de «escritores de circunstância», acredita Aurélio Furdela haver nesse grupo ou nos não citados, talentosos e Medíocres Ungulani Ba Ka khosa, Armando Artur, Juvenal Bucuane,Eduardo White, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Paulina Chiziane, Tomás VieiraMário, Mia Couto, Suleimane Cassamo, Anibal Aleluia, Nelson Soúte, Calane da Silva, Pedro chissano, Carlos Paradona Rufino Roque, António Pinto de Abreu, Marcelo Panguana, entre outros.

[6]As academias acolhem os críticos, ensaístas de prestígios que reconhecem os escritores e consagra-os, concedem os prémios literários, valida a literatura institucionalmente, julgando-a. Os jornais e as revistas também têm seu papel, sem esquecer dos demais envolvidos na literatura.

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